"O Pescador de Vidas" foi publicado em 2016 pela Editora Arwen. Agora está disponível integralmente para você como Livro Virtual aqui no blog.
Uma ótima leitura!
Sigam-me,
e eu farei de vocês pescadores de homens.
(Mateus
4:19)
Prólogo
O relógio de pulso digital
daquele homem marcava vinte e três horas e sete minutos quando o fitou antes de
bater à porta de seu apartamento. Algumas imagens vinham à sua lembrança e o
confundiam no discernimento do real ou da fantasia, pesando-lhe a vista, numa
dor de cabeça que o fazia levar a mão à testa, como se o mal-estar pudesse
desaparecer em alguns toques. O que realmente acontecia, até o surgimento de
novos flashes.
Os poucos segundos em que
aguardou o elevador pareceu-lhe uma eternidade. Tinha certeza que as visões que
o despertaram e impulsionaram-no a deixar o aconchego de seu quarto minutos
antes, projetavam um futuro próximo, tanto que se não atendesse de pronto a sua
intuição, tudo estaria perdido.
Ao entrar no elevador, viu a
própria imagem denunciar o sono que o levara cedo para a cama naquela noite. A
camisa que vestira rapidamente ao levantar, estava pelo lado avesso, o que o
fez trocar. Colocara o primeiro jeans que encontrou no armário e o chinelo de
dedos ao lado da cama. Não dispunha de mais tempo, qualquer segundo
representaria o fracasso de sua missão, uma das mais importantes pelas quais já
havia sido orientado. Uma vida estava em jogo.
Vestindo a camisa
corretamente, teve em seu abdômen a figura que se formava de rabiscos azuis num
fundo branco, um pescador lançando sua rede da proa de um barco em alto mar.
Nada proposital, pura sintonia do universo, a camisa tinha sido a primeira que
vira ao abrir a gaveta. Foi tomado por um longo arrepio, seguido de novos
flashes, pessoas deitadas no chão no escuro de uma noite fria, uma moça próxima
a um poste, que parecia prostituta, uma velha suja e mal vestida às
gargalhadas, um menino numa tragada de cigarro, um mendigo barbudo. Tudo ao
mesmo tempo, como se fizessem parte do mesmo contexto. Imagens que traziam
consigo a mesma dor de cabeça de minutos antes. O que o fez sair do elevador um
pouco desnorteado, sem acertar abrir o alarme do carro. Em pouco tempo deixava
a garagem de seu prédio no Papicu em direção ao centro da cidade.
Parecia ter serenado minutos antes
e a noite era a mais fria daquele início de maio de 2015. Podia ter pego um
agasalho, mas fora impedido pela urgência do chamado. Salvaria mais uma vida,
só que desta vez cumpriria uma de suas maiores missões, o resgate do
missionário.
Todo o percurso foi norteado
pelas mesmas imagens confusas que o impulsionavam a seguir aquele chamado. Era
uma sexta-feira e a cidade estava movimentada. No sinal de trânsito do lado de
um shopping na Av. Santos Dumont, a primeira imagem se materializava à frente
de seu carro, um mendigo barbudo o impedia de seguir adiante. Parecia
completamente drogado. Depois, seguiu em direção ao Centro. Na Av. Dom Manuel
mais uma imagem se presentificou, desta vez o menino em uma tragada de cigarro,
logo na primeira esquina. O que podia ser fantasia tornava-se realidade diante
dele, como se fossem os sinais necessários ao cumprimento de sua missão.
Estou
perto. Logo, logo tudo ficará bem!
Procurou o melhor local para estacionar
seu carro ao entrar na Rua Castro e Silva, após algumas voltas. A Praça da
Estação servia de abrigo para inúmeros moradores de rua, que descansavam após
mais um árduo dia de luta pela própria vida. Muitas recordações de seu passado
enchiam-lhe de uma melancolia desconcertante. Cenas como aquela foram marcadas
para sempre em sua memória celular, mas isso tinha sido há muitos anos, antes
daquela missão especial. Novamente podia sentir a dor, a sensação de abandono e
profunda carência de cada ser ali tragado pela dura realidade das ruas,
esquecidos à própria sorte. Tudo tão vivo de novo, como em seu passado, quando
vagava pelo frio da noite.
As mazelas daquelas pessoas
não importavam naquele instante, no entanto. Nem mesmo a profunda empatia
experimentada por ele junto àquela gente poderia tirá-lo do foco. Retornara ao
cenário de seu passado movido por um único e irrevogável objetivo, salvar a
vida do missionário.
Passando por tantas pessoas
procurando se refugiar do frio em sacos de estopa ou papelões, deparou-se com
uma moça escorada num dos postes da praça. Vestia-se de modo vulgar e olhava-o
com um jeito provocativo, mascando chiclete. A mesma prostituta das imagens
projetadas em sua mente.
— Procurando diversão,
bonitão? — abordou ela, com sorriso no
rosto, como se comemorasse a chegada de seu único cliente naquela noite
solitária e fria.
Nem precisou responder a
proposta, seguindo em sua busca. Mais à frente, na calçada do antigo prédio da
Refesa, a mesma mulher velha das imagens, tomada por uma grande gargalhada.
Parecia ter sido provocada por um dos companheiros do lado que lhe havia dito
algo. Sim, estava muito perto. Sua jornada naquele lugar sombrio logo se
cumpriria.
Muitas pessoas dormiam próximo
às outras na calçada em cima de papelões, em meio ao mau cheiro de urina,
algumas se cobriam com jornais, outras com os próprios trapos sujos. Homens,
mulheres, idosos e crianças. Todos vivendo como animais, distantes da dignidade
da ética social.
Finalmente quem procurava!
Encontrava-se em posição fetal, pés imundos e descalços, trajando uma velha
calça jeans suja e rasgada, provavelmente a mesma do dia em que chegou às ruas.
O restante do corpo magro estava nu, tremendo de tanto frio. A barba de semanas
escondia o rosto jovem e cansando.
O homem sorriu emocionando,
celebrando o cumprimento de sua missão. As imagens projetadas misturavam-se
àquela cena do jovem dormindo aos seus pés. O rapaz acordou, como se sentisse
sua presença. Os olhos semelhantes fitaram-se por algum tempo, como se perscrutassem
a alma um do outro.
O mendigo parecia assustado e
procurou ver melhor seu rosto. Não tinha como visualizá-lo perfeitamente, pelo
escuro da noite. Devia ter avistado a mão estendida em sua direção e ouvido o
que a voz grave lhe dissera.
Vamos,
filho? É hora de voltar a ser o Pescador de Vidas!
1
Quatro meses antes...
O comandante do voo 747
anunciou no sistema de som da aeronave, que sobrevoavam a cidade de São Paulo,
e em alguns minutos pousariam no aeroporto de Congonhas, passando mais algumas
instruções aos passageiros sobre à aterrissagem. Solicitou que todos se
preparassem para um pouco de frio naquela tarde, com uma temperatura média na
cidade de vinte graus. Murmurinhos e a agitação das pessoas tirando seus
agasalhos e atendendo o pedido do piloto acordaram Saulo Sobreira de um sono
restaurador. Cansado por alguns eventos
seguidos, havia dormido durante as quatro horas de viagem de Fortaleza à
capital paulista.
— Chegamos. — informou-lhe
Guilhermina, sua secretária.
Saulo sentiu-se aliviado por
vê-la ali. Viajavam sempre lado a lado. Era de uma eficiência incansável e uma
permanente disposição a auxiliá-lo em qualquer necessidade, a todo e qualquer
instante.
Diante da aparência impecável
daquela bela e elegante mulher, lembrou-se de como estaria depois do
relaxamento durante a viagem.
— Um espelho, Guilhermina.
Rápido! — Exigiu ele. Logo surgiu no reflexo do pequeno espelho que ela
entregou-lhe, a imagem de um homem cansado, com olhos inchados de dormir e o
cabelo um pouco desgrenhado. — Meu Deus! Estou horrível. — era visível sua
vergonha.
— Impossível. — retrucou ela, sorrindo.
Saulo desatracou o cinto de
segurança e levantou-se em direção ao toalete. Passou pelas poltronas de
Cândida e Edgar, atrás da sua, bem como pela de Lucas ao lado e os viu pela
visão periférica. Tentava esconder-se no que seria possível durante o percurso.
Seria inadmissível que alguém o visse desarrumado. Ouviu o comentário de
Cândida nas suas costas:
— Ele está bem?
— Não tenho certeza. — respondeu
a secretária.
— Pensei que ele estivesse
fazendo o tratamento. — comentou Edgar.
Não teve mais como ouvir o que
diziam à medida que foi se distanciando. Só relaxou despois de fechar a porta
do toalete atrás de suas costas, apoiando-se contra a mesma, como se impedisse
que alguém entrasse e o visse daquela forma. O ar já lhe faltava aos pulmões e
tudo se resumia à sua aparência. Somente após alguns instantes com os olhos
fechados, sentiu-se inteiramente seguro a encarar o que vira há pouco ao
acordar, voltando-se ao ambiente minúsculo em que se encontrava. O paletó
estava fora do lugar correto, a camisa amassada perto da gola, sentindo que sua
parte de trás havia saído de dentro da calça. Experimentou um frio na espinha
diante do reflexo de um homem completamente amarrotado. Uma imagem que abominou
a vida inteira no irmão. Thomás nunca se preocupou com a aparência, mesmo
quando liderava a comunidade.
Aproximou-se do espelho
devagar, dedicando-se primeiramente ao cabelo. Procurou ajeitá-lo com os dedos
de modo cuidadoso em repetidas vezes, tentando enxergar qualquer detalhe que
fosse de desalinhamento em sua aparência. Depois a camisa, a gravata, o paletó.
Em poucos segundos já se encontrava impecável, como de costume.
Trajava um fino terno italiano
de cor azul escuro, com uma gravata amarela em detalhes pretos, destacando-se
na camisa de um azul que se confundia com o do paletó. Os sapatos sociais,
marrons, que combinavam com o cinto comprados em sua última viagem a Roma,
completavam o perfeito visual. Orgulhava-se de sua indescritível elegância
subjacente aos seus 1,90m de altura. Moreno claro, de uma exótica beleza, aos
38 anos, marcada pelo charme dos olhos negros e levemente puxados, o que lhe
dava um traço oriental. Ostentava quase sempre um olhar penetrante, insinuador
ou sedutor, como muitos o definiam.
Acariciou cuidadosamente um
pequeno broche de ouro branco no formato de um Cristo Ressuscitado, fixado na
lapela de seu paletó, símbolo da comunidade. Pronto, em pouco mais de dez
minutos o bonito e elegante Saulo Sobreira, o grande Pescador de Vidas do
Chiamare, sentia-se preparado para ser visto em público.
Saulo retornou a sua poltrona,
quando todos já se aprontavam para o desembarque. Sentou-se naturalmente.
— Estou bem agora? — precisava
da confirmação de Guilhermina.
— Você sempre está — respondeu
— lindo como sempre. — Completou baixinho e sorriu.
— Assim perco a credibilidade
em você. Estava péssimo.
— Exagero, Saulo.
Respirou fundo, incomodado com
o último comentário.
— Guilhermina, eu sou o ícone
da comunidade. E imagem, é tudo! — justificou.
— Concordo com você, em parte.
— retrucou ela. — Sabe que no seu caso vem passando dos limites.
— Lá vem você com essas
tolices. — mostrava-se impaciente.
— Acho bom nos apressarmos,
todos já estão desembarcando. — sugeriu Edgar, da poltrona de trás.
Saulo voltou-se um pouco para
trás, fitando o jovem sentado em sua diagonal que retirava os fones dos
ouvidos.
— Está preparado, Lucas? Muito
nos espera aqui em São Paulo.
O adolescente consentiu,
baixando a vista.
— A comunidade está ganhando o
mundo. — Saulo completou orgulhoso, retornando à sua posição na poltrona.
~
Os missionários da Comunidade
Chiamare entraram na sala de desembarque do aeroporto de Congonhas e
aproximaram-se da esteira de bagagens. Lucas permaneceu atrás dos pais e de
Saulo com sua fiel secretária. A melodia da música Everybody´s Changing da banda inglesa Keane, em seus fones, parecia afastá-lo completamente daquele
mundo, de mais aquela viagem estafante, de todas aquelas pessoas que certamente
o bajulariam ao encontrá-lo. Como a letra da composição sugeria, precisava
lembrar seu nome. O jovem de 18 anos questionava-se quem era diante de um
universo que lhe fora imposto quando criança. Preferia estar em casa, quieto ou
na companhia de seus amigos, seus melhores amigos, os amigos que nunca
existiram, que nunca lhe foram permitido, por conta de sua missão.
De repente, Lucas foi tomado
de seu isolamento por uma atitude inesperada do pai. Edgar puxou-lhe um dos
fones violentamente.
— Tem como sair do seu
mundinho egoísta e pegar sua bagagem? — o pai estava visivelmente alterado,
pronto para um embate, como de costume nos últimos anos.
— Calma, Edgar. Eu posso fazer
isso. — interviu Cândida, já se aproximando da esteira.
— Claro, e assim ele nunca
aprenderá a ter responsabilidades. O Lucas já é um homem, Cândida. — Edgar
explicou, dividindo-se entre o filho e a mulher.
— Você está chamando atenção.
— interferiu Saulo.
— Melhor deixarem para
conversar sobre isso ao chegarmos à obra. — Guilhermina completou.
Edgar o encarou.
Fique
tranquilo, filho. Seu pai está cansado.
O jovem podia ouvir o
pensamento da mãe num eco que amenizou o susto. Sentia-se exposto, envergonhado
pela forma como fora tratado pelo pai, como tantas outras vezes. Pensou em reagir,
em questioná-lo, por que tanta hostilidade gratuita. Sentia-se como se Edgar o
odiasse, por mais que Cândida tentasse convencê-lo do contrário. Talvez se o
fizesse, finalmente o pai lhe revelasse o motivo de sua agressividade.
No entanto, aprendera que não
podia questionar um superior, principalmente um missionário do Chiamare. Seu
pai era nada mais nada menos que um dos fundadores da comunidade, a quem devia
total e cega obediência. Simplesmente olhou o pequeno broche de prata no
formato de Cristo Ressuscitado, o mesmo que todos os consagrados da obra usavam
no peito, e tomou a frente da mãe, antes que ela pegasse sua mochila. Não
queria que aquela situação desagradável se estendesse.
Lucas apressou o passo, na
direção oposta de onde estavam, tentando se adiantar ao ritmo da esteira, mas
sua bagagem estava prestes a desaparecer novamente pelas cortinas de borracha.
E certamente aquilo irritaria seu pai ainda mais. Atrasar-se-iam por sua falta
de atenção. O jovem parou e observou as malas de outras pessoas passando diante
dele, como em um desfile. Procurou o olhar da mãe mais uma vez e viu-a
apreensiva. Por mais que odiasse fazer aquilo, principalmente em público, era
necessário, mesmo que alguém percebesse. Por ela, por sua mãe. Sabia o quanto
Cândida lutava para que ele e seu pai se entendessem.
Fixou o olhar na esteira,
concentrando-se, como se a segurasse com as próprias mãos. Seu coração entrou
num ritmo um pouco mais acelerado e os músculos se enrijeceram, causando-lhe um
leve tremor, sem nada tocar. Por um segundo, Lucas não ouvia nada, nem ninguém,
como se o mundo parasse diante dele e uma dor se alastrava por sua cabeça.
Pronto, a esteira parou! Sua
mochila por pouco não fora engolida pela cortina. As pessoas em volta, não
compreendiam o que havia acontecido e comentavam entre si. Funcionários do
aeroporto, atentos, aproximaram-se para dar conta do problema. Seus pais, Saulo
e Guilhermina, permaneceram apreensivos a alguns metros, por medo de vê-lo
descoberto em sua aberração. O jovem tomou a mochila nas mãos e a jogou nas
costas, enquanto ouviu comentários de outros passageiros, reclamando sua
bagagem ou se perguntando por que a esteira deixara de funcionar.
Lucas fechou os olhos e o
desfile de bagagens voltou a acontecer. Deu as costas em direção à saída.
Necessitava ir embora dali, recompor-se, recuperar suas forças.
Sentia-se exausto.
~
Em pouco mais de meia hora,
estavam Saulo, acompanhado da secretária e o casal de missionários com seu
filho, deixando o portão de desembarque do aeroporto de Congonhas em São Paulo.
Para a surpresa do líder do Chiamare ninguém os aguardava, o que o deixou
enfurecido.
— O que significa isso? — perguntou
ele intolerante.
— Pelo visto estão todos muito
ocupados. — brincou Edgar.
— Eles sabiam realmente que
nós chegaríamos hoje? — Cândida procurou compreender.
— Definitivamente não sei o
que ocorreu. Deixei tudo acertado com o pessoal da obra daqui de São Paulo. — explicou
Guilhermina.
— Desrespeito total com a
obra! — Saulo esbravejou.
— Deve ter acontecido algum
imprevisto. — Lucas tentou colaborar.
— Ou simplesmente esqueceram
de nós. — Edgar continuou brincando.
— Edgar! — a mulher o
repreendeu. — Você quer piorar as coisas?
— Não se preocupem já
encontraremos uma explicação para tudo isso. — afirmou Guilhermina fazendo uma
ligação no aparelho celular.
— Não há justificativas. Total
descaso com os fundadores da obra! — Saulo indignou-se.
— É, meu caro Saulo Sobreira,
trata-se do ônus pela expansão. Daqui a pouco a comunidade conseguirá ser maior
do que você. — Edgar trazia certa leveza e ironia em sua fala.
— A comunidade é maior do que
eu. — respondeu de pronto. — O que você está querendo dizer com isso, Edgar?
— Não há mais tempo para
sermos tratados com pompas e regalias. — Edgar explicou. — Há muito mais o que
fazer pela obra do que simplesmente utilizar o tempo dos missionários como
babás de seus fundadores, Saulo. Já devíamos estar no hotel e não aqui
esperando por pessoas ocupadas com coisas realmente sérias.
— Sua praticidade é um salto
para perdermos o controle, Edgar. — Saulo retrucou.
— O controle não pode ser o
objetivo, apenas um mecanismo. — Edgar já se fazia ouvir em um tom mais sério
que o inicial.
Saulo detestava quando o
companheiro se disponibilizava a lições de moral como aquelas, o que acontecia
constantemente, deixando-o irritadiço, principalmente ao enxergar a expressão
de admiração no rosto de Lucas, assistindo o pai tentar desbancar seu mestre.
Já que Edgar era a única pessoa capaz daquela proeza, todos os outros acatavam
sem questionamento algum suas ordens. Sabia que um dia o rapaz desejava fazer o
mesmo.
— Acho que não é lugar nem
hora para discutirmos o funcionamento da comunidade. — Cândida interviu.
— Precisamos ir. Eles
realmente se confundiram com o horário dos voos. — Guilhermina explicou,
referindo-se aos missionários da obra em São Paulo, depois de desligar o
telefone.
— In-com-pe-ten-tes! — Saulo desabafou,
pronunciando sílaba por sílaba, de modo intolerante.
— Cuidado com a soberba,
Saulo. Não faz parte dos votos da comunidade. — Edgar ironizou novamente.
— Edgar! — Cândida o
repreendeu mais uma vez.
Lucas parecia prender um
sorriso. Saulo respirou fundo para manter o controle.
— Bom, vamos então? — propôs
Guilhermina.
— Olha quem veio nos
recepcionar! — Edgar chamou a atenção de todos, referindo-se ao homem que
estava pouco mais à frente.
Pareciam estar diante do
próprio Saulo, com um visual completamente diferente, claro. Tênis, jeans e uma
camisa em malha leve de mangas compridas, totalmente despojado, o oposto de seu
sósia. Carregava uma bolsa de viagem no colo, outra menor na mão e um casaco de
moletom apoiado no antebraço. Se não fosse pelas vestimentas, poderiam jurar
estarem vendo outro Saulo Sobreira. Idênticos, praticamente nada os distinguia,
o rosto, o porte físico, tudo igual.
Saulo mostrou-se visivelmente
abalado ao ver o outro à sua frente. Procurou ajustar a gola de seu paletó,
cuidando para que estivesse impecável, diferente do estilo “mal vestido” do
irmão, que muito lembrava o de Thomás, na época em que era do Chiamare.
– Diogo? — Adiantou-se Edgar,
numa fala que foi quase um grito.
O homem se virou num susto
para encará-los. O olhar profundo e sereno se revelou ao tirar os óculos
escuros. Pronto, a grande diferença entre ambos. Diogo parecia querer se
assegurar de quem estava vendo. Um encontro que não ocorria há anos.
Saulo foi tomado por um
turbilhão de sentimentos pouco experimentados. Nervosismo e ansiedade se
confundiam pela lembrança de seu passado. Sentia-se feliz e desconsertado pelo
encontro inusitado. Talvez o irmão gêmeo estivesse da mesma forma. Não! Pouco
provável. Já não se viam há dois ou três anos, por puro desinteresse de Diogo.
Ou melhor, por interesse claro de não manter nenhuma proximidade. A verdade é
que o dois nunca foram chegados um ao outro, o irmão sempre preferiu a amizade
de Thomás à sua. Um incômodo que Saulo jamais conseguiu superar.
De repente, ali diante do
irmão, não sabia como proceder, se tomava iniciativa ou esperava que ele o
fizesse. Da última vez que se viram, Diogo praticamente o ignorou. Impossível
não recordar as dores de uma vida inteira, sendo desprezado pelos dois irmãos
idênticos a ele. A cumplicidade de Diogo e Thomás seria para sempre um fantasma
em sua vida. Hoje, embora separados, desde a tragédia, aquela amizade reverbera
em seu coração.
Melhor seria realmente
aguardar que ele se manifestasse, como havia prometido para si mesmo, quando
estiveram juntos pela última vez. Foi o que aconteceu.
— Olá, como estão? — a fala de
Diogo soava um pouco desconcertada. — Ei, garotão! — voltou-se completamente a
Lucas, indo em sua direção. Embora distante de Saulo, Diogo nunca perdera o
contato com o jovem e o considerava como seu afilhado, assumindo para si a
responsabilidade que era de Thomás. Encontravam-se pelo menos uma vez por mês
em finais de semana, quando Lucas ia à casa do avô. Deste modo, certamente
evitaria algum contato com Saulo.
— Saudade de você, garotão! — declarou
ele no ouvido de Lucas.
— Também, tio. Que bom te ver!
— respondeu o jovem em total cumplicidade.
O forte abraço denunciava o
profundo afeto entre os dois. Lucas herdara de Diogo, a cumplicidade
compartilhada com Thomás. O que machucava e muito os calos do líder da
comunidade. Este ficou apreensivo até o final daquele abraço, sem conseguir imaginar
qual seria a reação do irmão, se novamente o ignoraria ou não.
— Faz tempo que não aparece na
comunidade, Diogo. — Guilhermina resolveu intervir, por perceber a ansiedade do
chefe. Sua voz trazia um tom um tanto artificial.
— Não tenho o que fazer na
comunidade, Guilhermina. — respondeu ele, desvencilhando-se dos braços de
Lucas. Na sequência, cumprimentou a cada um com um rápido abraço, inclusive
Saulo, que desejou permanecer um pouco mais de tempo em seu colo, mesmo não
sendo possível. Em seguida, voltou para junto do afilhado, deixando o braço
pousado no ombro do rapaz, como se quisesse demarcar território.
— O que faz mesmo em São
Paulo, Diogo? — Cândida procurou saber.
— Não me diga que veio também
à inauguração da obra em Guaratinguetá, como nos velhos tempos? — Edgar
completou com seu bom humor.
— Será um grande prazer tê-lo
conosco! — colocou-se Guilhermina, de forma enfática.
Saulo desejou ouvir que sim,
que o irmão estaria com eles. Mas evidente que não.
— Não, não. Óbvio que não! — Diogo
respondeu tranquilamente com sorriso no rosto. — Vim realizar um trabalho de
consultoria numa empresa aqui em São Paulo. Devo ficar por algumas semanas.
— Mas são essas coisas da Biodança? — Guilhermina perguntou
parecendo desdenhar da última expressão pronunciada por ela.
— Trata-se de um trabalho mais
voltado para a área gerencial. — Diogo explicou. — Mas eu utilizo, sim, parte
da metodologia da Biodança com o grupo. Inclusive, Guilhermina, você poderia
conhecer meu grupo fixo de Biodança em Fortaleza. Nós estamos trabalhando a
verdade da expressão. Seria ótimo para você.
Pronto, esse era o Diogo que
Saulo conhecia, sagaz em sua percepção. Ele certamente sentira a alfinetada de
Guilhermina acerca de seu trabalho e o tom por ela utilizado que soava falsidade.
Quantas vezes o próprio Saulo fora confrontado pelo irmão em sua verdade no que
diz respeito ao futuro da comunidade, depois da tragédia.
Impostor!
Aquilo vindo do louco do
Thomás seria compreensivo, mas sendo pronunciado por Diogo pesava-lhe toneladas.
Foi por esse motivo que ele abandonou o Chiamare e manteve-se distante por
todos aqueles anos.
— Não tem mesmo como aparecer
por lá? — dessa vez foi seu afilhado quem se pronunciou. Com Lucas tudo poderia
ser diferente. Diogo seria capaz até de mudar de ideia.
— Infelizmente não, garotão.
Sabe que não acredito nesse caminho.
Diogo respondeu com uma
tranquilidade, desfazendo de uma obra religiosa reconhecida hoje mundialmente,
que provocou Saulo a esbofeteá-lo. Se não ocupasse a posição que ocupava, seria
capaz de fazê-lo, ensinar-lhe uma boa lição.
— Um caminho reconhecido agora
por Roma. — Saulo finalmente interviu. Alguém precisava dizer umas boas
verdades. Quem ele pensava que era?
Os dois irmãos se encararam
por alguns segundos e uma atmosfera de conflito parecia ter se estabelecido.
Muitos já tinham sido os confrontos pelo mesmo motivo. Diogo parecia desprezar
o fato de ter sido um dos fundadores do Chiamare. Mas isso havia sido há muitos
anos, junto com seu queridinho irmão, o outro gêmeo, Thomás.
— São muitos os equívocos, até
mesmo dentro de uma instituição como a Igreja Católica. — Diogo justificou sem
perder de vista o olhar contrariado do irmão.
— Você é mesmo muito
pretencioso! — Saulo não conseguiu conter o tom de afobamento.
— Conheço esse caminho, meu
irmão. Por isso o abandonei. — Diogo respondeu com a mesma calma de antes.
— Como sempre, dono da
verdade! — Saulo finalmente explodiu.
— Pelo menos honesto com ela.
— Diogo se contrapôs, em seguida completou. — Bom, acho que esse é o momento de
ir embora. Boa sorte para vocês na nova inauguração.
Depois, ele abraçou Lucas mais
uma vez e se foi.
Pelo menos não fora agressivo,
nem houve nenhuma acusação direta. O que era uma constante em seus encontros.
Saulo procurou se recompor, embora estivesse visivelmente abalado
emocionalmente. Precisava estar inteiro para a inauguração de mais um centro
religioso da obra. Aquele encontro infeliz não lhe tiraria do foco.
~
Foi fácil para Lucas se perder
da vista dos pais e dos missionários da comunidade, alegando ir ao banheiro.
Mas o que pretendia na verdade, era estar mais uma vez na presença do amigo a
quem chamava de tio e que pôde tão pouco aproveitar, minutos antes no saguão do
aeroporto de Congonhas.
O rapaz percorreu toda a área
interna da estrutura, procurando por Diogo e o viu se direcionar à ala dos
táxis. Precisou correr a fim de que não fosse tarde demais. Gritou pelo tio,
para que não entrasse no automóvel. Pronto, a pequena fuga fora em vão. Não
fosse pelo seu dom.
Restava uma alternativa,
poderia sem muito esforço parar aquele carro e conversar um pouco com seu
grande amigo. Por que não burlar uma única vez os ensinamentos de Saulo e
aproveitar para si o que todos afirmam tratar-se de uma dádiva a ser usada em
prol da humanidade, ou da comunidade? Nunca achava que tinha esse direito, os
pais e o próprio Saulo, seu mestre espiritual, fizeram-no acreditar que só
poderia utilizá-la pelo bem comum e, claro, sem que ninguém percebesse. Não era
o momento para tal. Ele desejava que esse momento nunca chegasse, temia ser
apontado por todos como uma aberração, como algumas vezes quando criança na
escola, no momento em que seu dom se manifestou.
Lucas se assegurou de que
ninguém o observava e concentrou-se no automóvel já a muitos metros a sua frente.
Sentiu os músculos se enrijecendo, o tremor, a dor de cabeça, tudo igual como
sempre acontecia quando lançava mão de seu dom. Imediatamente o carro parou.
Feito! E não arrancou nenhum
pedaço, nem prejudicou ninguém. Outros táxis e seus motoristas continuavam em
seu ponto, aguardando algum passageiro, sem se darem conta do que havia
acontecido. Já era noite e Lucas percebeu o frio, afundando as mãos nos bolsos
da jaqueta jeans que vestia. Andou em passos largos em direção ao automóvel
parado a alguns metros no meio da pista. Aproximando-se, viu o motorista
virando a chave na ignição vezes seguidas, sem que o motor respondesse. O homem
balbuciava alguma coisa como não compreender o que estava acontecendo, visto
que o veículo havia saído da revisão há poucas horas.
Foi quando Diogo saltou do
veículo, soltando um sorriso, como se agora compreendesse o que ocorrera.
— Garoto traquino! — Diogo
disse, com largo sorriso.
— Estava com muita saudade de
você.
Os dois se abraçaram mais uma
vez.
— O Saulo sabe que você anda
parando automóveis no meio da rua? — brincou.
O rapaz reagiu com uma
gargalhada.
— Não compreendo por que se
mantém tão distante. Sinto muito a sua falta, tio.
— Tem sido uma maratona de
muitos trabalhos.
— Sei que não se trata disso.
É a comunidade, não é?
— Não concordo que o explorem.
— justificou, assanhado o cabelo de Lucas.
Este fitou o chão por um
instante e encarou-o novamente.
— Como fizeram com você no
início?
— Lucas...
— Sei que tem a ver também com
o tio Thomás. Só depois que ele foi preso que você deixou o Chiamare.
— Acho que não é o lugar, nem
o momento para falarmos sobre isso. — Diogo respondeu, olhando a sua volta.
— LUCAS? — foi um grito da
saída do aeroporto. Quando os dois se viraram, avistaram Cândida se
aproximando. — Nós o procuramos por toda parte, ficamos preocupados, você não
voltou do banheiro.
— Ele não perde o hábito de
fazer suas traquinagens. — Diogo brincou.
— Vai ficar de castigo — sentenciou
Cândida, no mesmo tom de Diogo.
— Ah, não! Vocês não param com
essa mania de me tratar como uma criança. Já tenho dezoito anos, ok? — Lucas
reclamou.
— Quer mesmo ser tratado como
adulto, rapazinho? Que tal avisar para onde vai? — sugeriu a mãe.
— Vocês não permitiriam. — respondeu,
dando de ombros.
O motorista finalmente conseguiu
dar partida no motor e vibrou dentro do carro.
Todos riram.
— Bom, tenho mesmo que ir. — Diogo
anunciou.
Lucas experimentava uma
solidão todas as vezes em que se despedia de Diogo, como se fosse a única
pessoa no mundo capaz de compreendê-lo, mais até que sua mãe.
— Quando nos vemos novamente?
— Assim que retornar a
Fortaleza, eu te procuro, garotão.
Mais uma vez se perderam num
longo e afetuoso abraço, até o motorista do táxi reclamar. Em seguida, Diogo
colocou a mão no peito de Lucas, na altura do coração e o mesmo retribuiu o
gesto, como sempre faziam em cumplicidade. Depois despediu-se de Cândida e
entrou no automóvel, seguindo viagem.
Mais uma despedida, provocando
uma lágrima perdida do rosto de Lucas. Como duas pessoas poderiam ser tão parecidas
fisicamente e tão diferentes de alma como Diogo e Saulo. Por tantas vezes
desejou ser orientado espiritualmente por seu “tio”. Se o mesmo não tivesse
deixado a comunidade, quem sabe o jovem não teria tido uma vida diferente, com
amigos, escolas, meninas? Quem sabe não seria uma pessoa normal? Pois era assim
que sentia em sua companhia. Não uma aberração, como se achava ou um ser
diferente, como Saulo o considerava, por mais que aquilo não lhe trouxesse
nenhuma regalia, pelo contrário, todos além dos fundadores pensavam ser do
próprio Saulo Sobreira o dom.
— Por que tem que ser assim,
mãe?
— É a forma dele te amar e te
proteger. — respondeu ela de pronto, pondo a mão em seu ombro — Vamos, querido?
Precisava retornar à sua missão, à sua prisão.
2
Saulo havia acordado com
enxaqueca naquela manhã e por isso ficara mais tempo do que de costume na cama,
antes de levantar. Já passava das dez quando chegou à mesa posta para o café,
na varanda da casa da comunidade, em São Paulo. Uma propriedade com aproximadamente
2.000m² de área construída, em pleno bairro Cerqueira César, próximo à Avenida
Paulista, cercada por um belíssimo jardim projetado que lhe outorgava uma
atmosfera quase bucólica. A imensa construção abrigava quinze consagrados
dedicados à oração e administração da obra na capital paulista. O velho
casarão, hoje completamente reformado, fora doado por uma família abastada,
submetida ao carisma do Chiamare.
Dois bem-te-vis rodopiavam em
volta de uns bulgaris, celebrando as
belas flores que despontavam naquela manhã de janeiro, enquanto o líder da
comunidade serviu-se de café e dois dedos de leite, beliscando os brioches
dispostos num prato um pouco mais a frente. A mesa fora preparada de modo
especial com uma variedade de pães, bolos e frutas. Guilhermina acompanhava
diariamente a cozinha dos hotéis e locais de onde estavam, assegurando-se de
que tudo sairia como ele gostava.
Já haviam se passado alguns
dias desde que os fundadores do Chiamare foram recebidos pelos missionários
paulistanos. Aprontavam-se para viajar a Guaratinguetá naquela tarde e cuidarem
dos últimos preparativos para a inauguração da nova obra. Hoje praticamente
todos os estados brasileiros eram contemplados com casas e missionários da
comunidade, que começava também a ganhar o mundo. Duas outras inaugurações já
estavam previstas para este ano, uma na Alemanha e outra na Guatemala. O
Chiamare já era reconhecido como uma das maiores comunidades religiosas da
Igreja Católica. Finalmente o sonho de Saulo Sobreira materializava-se, depois
de tantos anos de um árduo trabalho como líder religioso. O que o fazia
recordar-se do princípio.
A comunidade estava
completando vinte anos de fundação e nascera com o carisma ou missão de
evangelização nas ruas àqueles que não dispunham de um canto para morar, bem
como retirá-los de sua difícil situação de abandono social, oferecendo-lhe um
trabalho, uma nova vida. E fundamentalmente, a cura da alma.
Chiamare, em
italiano, chamar. “Porque
muitos são chamados, mas poucos, escolhidos” — Mateus 22:14. Assim, surgiu
o trabalho, a partir da iniciativa de quatro jovens, oriundos de um grupo de
estudos e acompanhamento religioso de uma paróquia no bairro do Montese, em
Fortaleza, orientado pelo padre italiano Giuseppe Giordano. A ideia era levar o
alimento para o corpo (pão e sopa), bem como o conforto para a alma, através do
Evangelho, aos moradores de rua. Semanalmente, à noite, no centro da cidade, o
grupo cumpria sua missão, compunham rodas de violão e procuravam promover a paz
naquelas pessoas abandonadas pelo sistema social.
Numa daquelas jornadas, após
tocarem a alma de uma mulher, vítima do vício e do abandono da própria família,
ela os acompanhou e fez nascer no coração do líder do grupo o desejo de
promover o mesmo a outras almas perdidas de si mesmas. A ex-costureira retomou
sua profissão e passou a ensinar seu ofício aos demais que foram sendo
resgatados pelos jovens. Com a ajuda de Padre Giuseppe, eles conseguiram,
através de doação, uma casa antiga perto da igreja, que serviu de abrigo às
pessoas chamadas por eles de “resgatadas”, onde montaram a primeira facção e se
transformaria mais tarde numa fábrica de roupas. Assim, davam-lhes casa,
comida, uma família, uma nova profissão e, principalmente, amor e fé. Os
“resgatados” se transformavam em missionários consagrados, que além de terem
acesso a uma vida digna, passavam a propagar a Palavra de Deus, submetidos ao
carisma da comunidade que ganhava vida e crescia exponencialmente, com a
chegada de milhares de fieis, atraídos pela proposta.
A Comunidade Chiamare se
constituía de missionários consagrados, organizados em duas categorias
distintas: os pescadores de vida ou mestres espirituais, aqueles que iam para
as ruas evangelizar e se dedicavam também à administração e gerenciamento da
obra; e os resgatados, que assumiam o trabalho nas fábricas de roupas como
costureiros e demais funções estruturais na comunidade. Dentre eles, os
missionários de vida, dedicavam-se inteiramente ao Chiamare, com votos de
pobreza, obediência e castidade (entre solteiros e casados). Já os missionários
do mundo, eram fiéis que tinham sua vida normalmente fora da obra, mas doavam
parte de seu tempo ao carisma. Com o tempo, os consagrados foram também se
organizando entre leigos e religiosos, com a formação de padres pescadores de
vidas.
Há pouco mais de duas semanas,
logo após o aniversário da comunidade, a hashtag
#Chiamare20anos foi apontada como um dos assuntos mais citados por vários
minutos na internet, dentre mais de oitocentas mil pessoas que acompanharam
através da rede mundial de computadores e da Rádio Chiamare 107,9 FM o evento
no qual a obra recebeu do Vaticano o decreto de aprovação definitiva dos
Estatutos da Associação através do Pontifício Conselho para os Leigos (PCL).
Saulo sentia-se exausto, mas
feliz com os últimos acontecimentos. Celebrava não somente a propagação e
sucesso de sua iniciativa e trabalho, bem como a transformação em sua vida
pessoal, que de fundador e moderador geral do Chiamare passara a ser apontado
como uma das personalidades religiosas mais importantes do país, reconhecido
por onde ia, em todos os lugares, inclusive internacionalmente. Fato estampando
na capa da revista semanal Notícia, através da manchete: Saulo Sobreira, o grande Pescador de Vidas. Sobrepondo sua
fotografia, que tomava todo o ângulo retangular do exemplar, numa pose lateral,
responsável por traduzir o visual impecável num terno cinza e seu famoso olhar
penetrante, considerado por ele um convite a se deixar tocar pelo carisma. Foi
Guilhermina quem lhe trouxe a revista.
— Toda a cobertura do evento
acerca do reconhecimento de Roma à comunidade. — detalhou ela, com sorriso no
rosto, sentando-se do outro lado da mesa.
Saulo soltou com força o ar de
seus pulmões, trazendo a revista para perto de si, como se quisesse comprovar o
que ouvira. Em seguida, folheou-a mais rápido que sua vista pudesse acompanhar
o conteúdo, até a primeira página da reportagem sobre o Chiamare. apertava os
dentes, ansioso pelo que lia de maneira dinâmica. Balançava a cabeça vez por
outra em sinal de confirmação das informações contidas ali.
— Ficou bom! — concluiu ele,
recostando-se na cadeira, mas sem tirar a revista da frente de seu rosto.
— Bom? Nós ganhamos oito
páginas em uma das revistas semanais mais lidas do país. Acha pouco, Saulo? O
Chiamare é um dos assuntos mais comentados na internet nas últimas semanas. De
repente, você se transformou em umas das maiores celebridades do país.
— Acha que as pessoas vão
gostar? — finalmente voltou a ver o rosto de Guilhermina, pousando a revista
sobre a mesa, para tomar outro gole de café.
— Nossa assessoria de marketing foi perfeita. Essa sacada de
misturar beleza e espiritualidade à sua imagem, causa comentários em todos os
cantos do país. — ela serviu-se de um pouco de suco. — Pessoas posicionam-se
contra e a favor, mas o fato é que nós o transformamos em assunto, em
atualidade. De uma forma ou outra, todas as pessoas falam a respeito, desperta
curiosidade. Isso é bom.
— Mas não podemos nos perder
do nosso propósito. — advertiu ele, trazendo a revista novamente para perto de
si.
— Estamos cuidando do
crescimento de nossa comunidade. Afinal, foi com essa ideia que você chegou
aonde está. — Guilhermina, silenciou um pouco e falou. — Preciso falar sobre um
assunto delicado.
Saulo baixou a revista e
cortou uma lasca de bolo.
— É sobre a inauguração do
novo centro aqui em São Paulo?
— Não.
Depois de comer a pedaço do
bolo, ele fez sinal para que ela falasse.
— Thomás sairá da cadeia em
menos de um mês. — Guilhermina pareceu correr com aquela revelação, como se a
soltasse no exato segundo em que finalmente tomou coragem, para não desistir.
Saulo soltou a revista sobre a
mesa, pousou o garfo no prato à sua frente e encarou a secretária.
— Como assim sair?
— A pena dele acabou. Foram
doze anos.
Ele afastou sua cadeira para
trás e levantou-se num impulso, desfazendo-se com força do guardanapo em seu
colo. Caminhou até um pouco mais à frente, dando as costas para Guilhermina.
Olhou o jardim em volta, a estrutura da casa.
— Fizemos o que estava ao
nosso alcance, Saulo. Agora é com a justiça. — complementou ela.
— Desde quando sabe disso?
— Tem algumas semanas.
— Algumas semanas. — Então por
que somente agora ela estava contando?
— Não falei antes por conta do
evento em Roma, agora a inauguração da obra em Guaratinguetá. Enfim, foi uma
forma de cuidar de você. Infelizmente não temos como esconder por mais tempo.
— Temos?
— Sim. O Edgar também sabe.
Saulo bateu com força contra a
coluna.
— Esse homem não pode sair da
cadeia!
— Nós não podemos mais fazer
nada.
Tantas coisas boas
acontecendo, por que logo agora aquele fantasma precisava emergir das
profundezas do inferno? Um homem que por pouco não destruiu o Chiamare. Um
psicopata! Que ao ser condenado pelo seu crime, prometeu vingança a todos eles.
E agora estaria de volta às ruas? Como era possível?
Doía pensar aquilo acerca do
próprio irmão. Pior, de um homem idêntico a ele. Saulo, Diogo e Thomás eram
trigêmeos univitelinos e totalmente iguais fisicamente. Uma ironia do Senhor.
Na verdade, hoje Saulo acreditava piamente que aquele detalhe da aparência fora
pensado por Deus, para que ele pudesse assumir finalmente a liderança do
Chiamare no momento certo, assim como aconteceu, logo após a tragédia que
separou os três irmãos para sempre.
Algo precisava ser feita para
impedi-lo de sair e cometer mais atrocidades, pondo a vida de inocentes em
risco.
— Ele é perigoso, é capaz de
acabar com todos nós, com a comunidade. — alertou, debruçando-se sobre a mesa,
apoiado pelos próprios braços como colunas de um templo.
— Nós não quisemos te falar
por sabermos que reagiria assim.
— O Thomás não pode sair da
cadeia!
3
Cândida desligou o chuveiro
quente e saiu do banho apressada por conta do horário para o almoço. Os lábios
tremiam de frio, embora procurasse urgentemente se proteger, com o roupão, da
baixa temperatura daquela manhã. A única coisa que não suportava quando viajava
a São Paulo. As primeiras semanas de 2015 foram cansativas para ela.
Inicialmente o evento em Roma, onde a comunidade recebeu do Vaticano o decreto
de aprovação definitiva dos Estatutos da Associação, e agora a inauguração de
mais uma obra em São Paulo. Logo mais à tarde, eles partiriam da capital
paulista direto para Guaratinguetá, onde deviam cuidar dos últimos preparativos
para a cerimônia, que aconteceria logo pela manhã.
Enxugou-se e pôs-se diante do espelho, sacando
um estojo de maquiagem de sua nécessaire,
iniciando a jornada cotidiana de uma mulher tão bonita quanto ela. Aos 39 anos,
tinha sua beleza e elegância admirada por todas as pessoas por onde fosse, com
um estilo simples e discreto, sendo uma referência a todas as mulheres da
comunidade.
Após alguns minutos, inerte em
seu ritual cosmético, percebeu através do espelho a imagem de Edgar na porta do
banheiro. O homem com quem estava casada há dezenove anos parecia olhá-la com a
mesma paixão e desejo de quando se conheceram. Três anos mais velho que ela e
continuava com a mesma beleza de quando eram jovens. Na verdade, ela sempre o
havia achado interessante, desde quando ele chegou ao grupo da igreja, quando
Cândida era noiva com outra pessoa, antes mesmo de juntos, fundarem a
comunidade. Tudo havia passado e desde quando a verdade sobre o dia de seu
casamento veio à tona, Edgar passou a fitá-la de outro modo. Não, impressão
dela. Seu marido certamente jamais a olharia de modo apaixonado novamente. A
perfeição de seu casamento ficava sobreposta como um modelo a ser seguido por
todos os casais da comunidade, como era pregado. Isto é, não existia de fato!
Hoje, em sua intimidade, Cândida sentia-se a mulher mais infeliz do mundo.
— Estamos atrasados. — alertou
ele.
— Estou tentando me apressar.
— justificou.
— Precisamos dar bom exemplo à
obra.
Exemplo? Ouvira aquela palavra
nos últimos vinte anos e sentia-se farta da mesma. Significava mentira, hipocrisia!
Viver o que de fato não existia. Era apenas para vender esta imagem para o
mundo. Não sabia se de fato faziam bem ou mal às pessoas.
Cândida simplesmente engoliu
no seco, como tantas vezes nos últimos anos e prosseguiu com a maquiagem.
— Viu se o Lucas está pronto?
— perguntou ela, sem querer expor sua insatisfação permanente dentro daquela
união.
— Certamente não, como você,
ele não tem o menor propósito com esta comunidade. — respondeu de pronto,
sumindo para o quarto.
Paciência tinha limite!
Cândida o acompanhou.
— Qual é seu problema, hein?
Vem se especializando em ser uma pessoa sempre mais desagradável.
— Olha que bonito, a Lady Di do Chiamare finalmente perdendo
a classe. — ironizou, batendo palmas.
— Sinceramente não sei onde
vamos parar, Edgar. Somos o ícone da união dentro da comunidade, quando na
verdade, não experimentamos o amor há tantos anos. Estou farta dessa mentira,
de enganar as pessoas. De ser maltratada! — completou, voltando ao banheiro.
Apoiou-se na pia e viu a maquiagem ser borrada por sua dor.
Ele a seguiu, tomado pela
mesma fúria de doze anos atrás.
— Farta? Então está farta? E
eu? Como pensa que estou? Acha que é fácil, manter um casamento perfeito para
todo o mundo, quando na verdade... não temos nem vontade de beijar essa pessoa?
Aquilo foi como uma punhalada.
Ela disparou no choro. Não conseguia reconhecer naquele homem hostil a mesma
paixão que o fez assumir seu primeiro filho e todo o amor que ele lhe havia
concedido nos anos que se seguiram, como uma família feliz, até a descoberta da
verdade. Um erro jamais perdoado!
— Talvez fosse melhor
pensarmos realmente no divórcio.
Falou aquilo, mas na verdade,
queria ouvir o contrário. Que ele se posicionasse contra e expusesse seus
motivos — o grande amor que tinham um pelo outro e que tudo podia ser diferente
daqui para frente. Não era possível que tivesse de fato acabado. Edgar passara
tempos apaixonado sem se declarar, quando se conheceram e ela era noiva de seu
melhor amigo, até que Cândida fora deixada pelo mesmo. Foi o momento em que ele
tomou coragem e pediu-a em casamento, mesmo estando ela grávida do outro. Uma
atitude de quem ama verdadeiramente.
Para ele não importava se estava ou não esperando um filho de outro
homem. Queria casar e constituir sua família com a mulher que amava. Assim o
fez.
Tudo mudara sete anos depois,
quando o erro de Cândida fora descoberto. De repente, a felicidade fora
destruída por um segredo do passado. Desde então, viu o marido que tanto a
amava se transformar num homem amargo e hostil. O conselho administrativo da
comunidade não concordou com a separação, na época. Aquilo seria um escândalo e
arranharia certamente a credibilidade do Chiamare junto aos fiéis. Eles eram
considerados por todos um casal modelo de amor e companheirismo. O que não foi
uma mentira, pelo menos nos primeiros anos de casamento. Por isso, todos
acharam por bem que eles se mantivessem casados e permanecessem pregando o amor
dentro da família, embora não o experimentassem mais em seu leito. Tudo para o
bem da comunidade!
Quanto a eles? O que vinham
fazendo de suas vidas? Cândida implorara por perdão durante anos e não fora
ouvida, até que cansou de tentar. Procurando não mais resistir à sua sina.
Primeiramente abandonada grávida pelo homem que amava, depois pelo companheiro
que havia escolhido para passar o resto de sua vida. O que lhe restara de bom
de tudo isso fora seus filhos. Por Salomão e Lucas, era capaz de suportar
aquele martírio.
— Divórcio? — Edgar deu uma
gargalhada. — Acha realmente que será fácil, após tantos anos? E a comunidade,
e minha família?
— Dane-se a comunidade!
Dane-se a sua família! — finalmente Cândida se voltou inteiramente para ele e o
enfrentou de perto. — Eu vivo há doze anos num inferno e sinto-me cansada de
toda essa mentirada que nós experimentamos e pregamos para o mundo!
— Egoísta! Você é uma egoísta!
Só pensa no próprio umbigo.
— Egoísta? Acha pouco, depois
de tantos anos, aguentando o seus insultos? Já não paguei todos os meus pecados
sendo maltratada por você?
— Foi o preço por sua traição.
— novamente deixou o banheiro.
Cândida foi atrás.
— Um preço caro, que já
paguei! Não aguento mais, Edgar. Eu quero o divórcio!
Edgar parou e a encarou,
engolindo a saliva com dificuldade. Pela primeira vez em tantos anos ele a via
daquela forma, reagindo e tomando uma atitude.
— Seria realmente um ótimo
momento para nos divorciarmos. Já que o Thomás está saindo da cadeia.
Cândida sentiu um arrepio na
espinha, procurou o ar e não encontrou. Aquele nome, aquele homem, um monstro
que destruiu sua vida, sua felicidade. Tudo sua culpa! O que Edgar estava
falando? Por que trazer aquela história?
— O que disse?
— O Thomás está saindo da
cadeia. Terminou a pena. Pensei que estivesse contando os dias. Não era isso
que queria?
— Saindo da cadeia? — sentiu
uma sensação de desmaio e procurou se apoiar numa cadeira ali perto. — Ele não
pode sair da cadeia!
— Por que não pensei nisso? — refletiu
ele. — Por isso está querendo o divórcio. Anda, fala, diz a verdade. É por ele,
não é? É pelo Thomás...
— Está louco. Esse homem não
pode sair da cadeia!
— Mentira! Você mente o tempo
todo.
Os músculos do rosto de Edgar
pareciam se contorcer diante dela. Cândida via raiva, ódio em sua face. Finalmente
ele saiu do quarto, passando por Lucas na porta como um furacão. O jovem correu
para ajudar a mãe que por pouco não despencou no chão, ajudando-a a sentar na
cama.
— Mãe, o que houve?
— Nada, filho. Nada demais.
Acho estou com um pouco de fome, só isso.
— Você e o papai brigaram
novamente, não foi?
— Não, filho.
— Ouvi vocês falando alto.
— Seu pai está um pouco
nervoso por conta da inauguração, só isso.
— Não é isso, eu sei. O tio
Thomás vai ser solto, não vai? Por isso brigaram.
Aquele monstro viria
aterrorizar a vida de todos novamente. Esquecera completamente que sua pena
estava chegando ao fim. Não permitiria que ele se aproximasse de seus filhos,
principalmente de Lucas. Salomão era mais forte, mais maduro, sabia como se
defender. Mas Lucas, apesar de apenas um ano mais novo que o irmão, parecia um
menino, puro de coração, como uma criança. Não fora criado para o mundo, e sim
para a comunidade, para Deus somente. Não, Thomás não terminaria o que começara
há doze anos, não destruiria sua vida novamente. Seria capaz de tudo para
impedi-lo.
Esse
monstro não pode sair da cadeia, não pode!
~
A notícia de que Thomás sairia
da cadeia tirou o chão de Cândida naquela viagem. Nem todos os trabalhos de
preparação para a cerimônia de inauguração a fez desanuviar um só instante. Mesmo
que quisesse, não conseguiria, visto que Edgar a observava o tempo inteiro de
um modo desconfiado, numa vigília permanente, como se aguarda a reação de um
criminoso que a qualquer instante poderá lhe atingir ou fugir. Sentia-se
prisioneira do julgamento equivocado de seu próprio marido. Sem saber o que
mais a incomodava, se o medo de se ver novamente diante do homem que destruiu
sua vida ou se pelo olhar punitivo e esmagador de Edgar.
Precisava, contudo, manter a
tranquilidade, sem jamais deixar transparecer a angústia, principalmente para
Lucas, que parecia perscrutá-la a todo instante. Temia que o filho conseguisse
usar seu dom e descobrir o real motivo de sua aflição. Embora soubesse que
aquilo era quase impossível. Lucas não exercia força nenhuma sobre os seus de
coração, somente a pessoas com quem não tinha o menor envolvimento afetivo. Até
mesmo para ele existia limites.
Ela havia acordado sem o menor
ânimo de sair da cama naquela manhã. Mesmo tendo despertado no mesmo instante
em que Edgar se levantou do tapete em que passara a noite, fingiu continuar
dormindo, até que ele se aprontasse e saísse do quarto. Situação um tanto
constrangedora experimentada em todas as obras que visitavam, já que a verdade
sobre o casamento modelo do Chiamare não poderia ser do conhecimento de todos.
Assim, dividiam com dificuldade quase sempre o mesmo quarto, não obstante
estivessem separados de alma há exatos doze anos.
Foi a última a chegar à mesa
do café e os paparicos dos missionários da obra em Guaratinguetá a incomodavam
profundamente. Em diversos momentos disse-lhes em pensamento para deixá-la em
paz. O próprio pedido de divórcio reverberava em suas lembranças disputando sua
concentração com a revelação de Edgar sobre a saída de Thomás da prisão.
Definitivamente estava uma pilha, sem nenhuma disposição interna para
participar daquele evento, muito menos posar de boa esposa e ícone da
comunidade.
O que aconteceria se saísse
correndo dali? Pegasse um táxi e fosse para a lua? Mais do que nunca precisava
da força de Deus. Se necessária era sua presença que Ele lhe concedesse coragem
para seguir e viver seu papel como uma das fundadoras da obra e principalmente
a mãe do escolhido. Isso, Lucas, o motivo maior. Por ele, seria capaz de
continuar e enfrentar a todos, até mesmo Thomás.
O corte da faixa na frente da
casa da obra atrasou por pelo menos uma hora e meia, incialmente pelo ausência
de algumas autoridades, o evento contaria com a presença do prefeito de
Guaratinguetá e assessores, do arcebispo de Aparecida e diversos padres, bem
como com o vice-governador do Estado. Depois por mais uma crise de Saulo em
seus rituais de cuidado com a aparência, por conta de seu Transtorno Obsessivo
Compulsivo, fixado na ideia de que o novo paletó tinha um corte errado e não
havia percebido ao comprá-lo. Guilhermina precisara ser criativa em seu
repertório de argumentações para convencê-lo a vestir outro blazer.
Por fim, tudo dera certo.
Saulo fez um belíssimo discurso descrevendo a espiritualidade do Chiamare e sua
missão num mundo cada vez mais órfão de Deus, não por abandono do Senhor, mas
pela ausência dos corações de seus próprios entes em conexão plena com Ele. O
que fez com que Cândida questionasse a vivência real de cada um deles ali
presentes. Até que ponto não estavam também separados daquele amor divino por
seus monstros internos proclamados senhores de seus desejos e ações cotidianas?
Que direito tinham eles de pregarem o bem quando viviam o mal em suas próprias
escolhas diárias? Esperava que Deus lhe respondesse aquelas perguntas de algum
modo e lhe fizesse acreditar numa verdade para seguir adiante naquele caminho.
Logo após o ritual de
inauguração, com a fala de algumas autoridades e o corte da faixa pelos três
fundadores da obra, o evento teve continuidade com a famosa missa de cura da
comunidade. Já passava do meio dia e todos se direcionaram para o galpão ao
lado da construção, onde foi constituído o altar e milhares de fiéis já
aguardavam para o início da cerimônia que seria presidida pelo arcebispo de
Aparecida e o pároco local.
A cerimônia obedeceria a mesma
estrutura ritualística das missas semanais de quarta-feira do Chiamare em
Fortaleza. Iniciaria com adoração ao Santíssimo e momento de cura presidido
pelo próprio Saulo Sobreira, líder da comunidade, tendo continuidade com a
celebração eucarística.
O coral situado à direita do
altar entoou as primeiras notas, estabelecendo uma atmosfera mística enquanto
missionários cruzavam todo o galpão por entre os fiéis com turíbulos exalando a
fumaça do incenso.
Espírito
Santo repousa, Espírito Santo repousa
Espírito
Santo repousa, Espírito Santo repousa
Sobre
nós, sobre todos nós, Espírito Santo repousa
Sobre
nós, sobre todos nós, Espírito Santo
Repousa
sobre
Nós
Traz
unção, traz unção a nós, Espírito Santo repousa
Vem
curar nossos corações, Espírito Santo repousa
Sobre
nós, sobre todos nós
Espírito
Santo repousa sobre nós
Impressionante como tudo
mudava quando davam início à celebração. As dúvidas de Cândida pareciam não
mais existir. Ela e algumas autoridades posicionaram-se por trás do coral, de
onde tinham uma visão privilegiada do altar. Um padre entrou em procissão,
acompanhado de diversos missionários, carregando em sua frente, com as mãos ao
alto, como se abrisse caminho, o ostensório, contendo o corpo de Cristo. O
Santíssimo fazia-se presente, tocando milhares de fiéis em seu testemunho.
As pessoas acompanhavam o
coral, algumas de olhos fechados, outras seguindo o caminho de Deus até o
altar. Um momento de arrepiar. A presença do Senhor parecia tomar todo o
ambiente. Lucas ficava quase sempre do lado esquerdo, um pouco escondido, perto
do púlpito, de onde Saulo presidia aquele instante, para dali cumprir sua
missão, o caminho para o qual fora escolhido. A cura da alma — fenômeno
presente nas missas do Chiamare. Lucas precisava que os fiéis abrissem seu coração
e agiria dentro dele, transformando desejos, ressignificando sofrimentos,
exterminando doenças do espírito e até enfermidades físicas.
Após alguns minutos, Saulo
roubou a atenção de todos ao microfone, parecia também inebriado com a presença
do Senhor.
“Boa noite, fiéis do
Chiamare!”
A assembleia respondeu em
coro. A banda do ministério de música continuava entoando as notas da melodia
inicial, tocando com suavidade o coração de todos, como se o enchesse com o
sopro do Espírito, conforme a letra sugeria.
“Permaneçamos todos de olhos
fechados, com as mãos no centro de nosso peito, em posição de intimidade e
respeito a Deus, que aqui nos observa neste altar. Nos observa do alto de sua
misericórdia e amor incondicional.”
Saulo podia ter todos os
defeitos e ser vítima da própria vaidade, como muitos o condenavam. Mas quando
estava ali naquela posição, fazia-se totalmente instrumento de Deus a abrir o
coração de todas as pessoas. Não somente o dom da palavra lhe fora concedido,
mas a capacidade de servir como canal de Sua fala. Sua entrega lembrava a
postura de Thomás, no passado, quando um dia ocupou aquele papel. Talvez os
muitos anos como líder moderador do Chiamare o tenha feito cumprir melhor que o
irmão aquela que um dia fora sua missão. Não, nem Cândida, nem ninguém podia
negar o dom daquele pescador de vidas.
“Sintamos Sua força invadir
nossas entranhas”, continuou ele, “arrebatando em êxtase cada célula, com o
único objetivo de nos colocar a serviço, a serviço do bem, do amor, da
misericórdia.”
Por isso Cândida estava ali.
Para permitir que aquela força a arrebatasse novamente e a deixasse viva. E
assim sentiu! Uma alegria inexplicável a dominou completamente.
“Embora nos tornemos vítimas
de nosso ego e nos afastemos de Deus muitas vezes”, prosseguiu Saulo, “Ele está
em nós agora. Sintamos Sua força, Seu amor, Sua verdade. Ressignifiquemos
aquilo que nos condena e nos distancia Dele, ressignifiquemos a culpa por
nossas falhas. E mesmo quando tudo possa parecer impossível, saiba que Ele está
ali fazendo com que o impossível torne-se possível!”
A banda alternou outras notas
musicais, resultando numa nova melodia que foi aos poucos tomando conta do
ambiente.
“Nosso Deus, é o Deus do
impossível! Posso, tudo posso, Naquele que me fortalece, nada e ninguém no
mundo vai me fazer desistir.”
O coral iniciou a música de
Celina Borges:
Posso,
tudo posso Naquele que me fortalece
Nada e ninguém no mundo vai me fazer desistir
Quero, tudo quero, sem medo entregar meus projetos
Deixar-me guiar nos caminhos que Deus desejou pra mim
E ali estar
Nada e ninguém no mundo vai me fazer desistir
Quero, tudo quero, sem medo entregar meus projetos
Deixar-me guiar nos caminhos que Deus desejou pra mim
E ali estar
Cândida sentiu-se em êxtase,
grata pela presença de Deus em sua vida. Abriu os olhos afogados em lágrimas e
deparou-se com uma multidão, tocada da mesma forma, acompanhando a música
entoada pelo coral e o vigor da voz de Saulo Sobreira.
Vou
perseguir tudo aquilo que Deus já escolheu pra mim
Vou persistir e mesmo nas marcas daquela dor
Do que ficou, vou me lembrar
Vou persistir e mesmo nas marcas daquela dor
Do que ficou, vou me lembrar
Viu o filho do outro lado do
altar, por trás do líder da comunidade, com as duas mãos cruzadas na altura do
peito, de cabeça baixa, totalmente entregue e concentrado naquele momento,
preparando-se para viver o que Deus lhe reservou, assim como em todos os
rituais do Chiamare, desde os seis anos de idade.
E
realizar o sonho mais lindo que Deus sonhou
Em meu lugar estar na espera de um novo que vai chegar
Vou persistir, continuar a esperar e crer
E mesmo quando a visão se turva e o coração só chora
Mas na alma há certeza da vitória
Em meu lugar estar na espera de um novo que vai chegar
Vou persistir, continuar a esperar e crer
E mesmo quando a visão se turva e o coração só chora
Mas na alma há certeza da vitória
Nesse momento, o ostensório,
abrigando o corpo de Cristo, que havia sido deixado sobre o altar, elevou-se,
sem que ninguém o impulsionasse ou se aproximasse. A fé, o mistério, a mística
presente em todas as missas de cura do Chiamare se espalhava por todo o espaço,
causando devoção nas pessoas, choque em muitas e emoção em tantas outras. A assembleia
ajoelhou-se em massa diante da manifestação do Senhor.
Posso, tudo posso Naquele que me
fortalece
Nada e ninguém no mundo vai me fazer desistir
Nada e ninguém no mundo vai me fazer desistir
Vou perseguir tudo aquilo que Deus já
escolheu pra mim
Vou persistir, e mesmo nas marcas daquela dor
Do que ficou, vou me lembrar
Vou persistir, e mesmo nas marcas daquela dor
Do que ficou, vou me lembrar
Ninguém
imaginava, mas Lucas, com seu dom, provocava a levitação do ostensório. Um
fenômeno presente em todas as missas do Chiamare desde sua fundação, na época,
presididas pelos irmãos Thomás e Diogo. O jovem herdara o dom de seu tio e
através daquele ritual, efetuava a cura em massa. O que atraía cada vez mais fiéis
àquelas celebrações. Para isso, necessitava encontrar corações abertos,
dispostos à mudança que poderia exercer na alma, o que era possível devido a
sensibilização de Saulo. Isto é, para cada um dos dois missionários pescadores
de vida, uma missão diferente. Havia sido assim no passado, com os fundadores e
agora com o líder da comunidade e seu pupilo.
No entanto, não
se podia negar, Lucas era hoje sim o verdadeiro baluarte do Chiamare. Mesmo que
seu dom, sua identidade fosse mantida em segredo para sua preservação, vinha
dele o poder de cura que fizera daquela comunidade uma das maiores da Igreja
Católica da atualidade. Para Cândida, o filho fora um escolhido de Deus, e
aquilo lhe dava forças para prosseguir em sua difícil caminhada, de cuidado e
proteção a ele.
De repente, ao
olhar a multidão, Cândida avistou o rosto de Diogo num dos cantos do galpão ao
fundo. Por uma fração de segundos não acreditou no que vira. Depois de doze
anos, desde a tragédia cometida por Thomás, nunca mais tivera sua presença em
qualquer cerimônia realizada pelo Chiamare. Ele havia se afastado completamente
da obra, inicialmente viajou por anos mundo a fora, depois retornara ao Brasil
com outra proposta de vida, longe do chamado religioso. Talvez o convite de
Lucas no aeroporto o tenha feito mudar de ideia. Ou quem sabe seria um retorno
às suas raízes? Bem aventurada a obra caso tivesse seu primeiro escolhido de
volta! Sem falar na felicidade de Lucas, pela presença do tio, e até mesmo de
Saulo, numa reaproximação do irmão, como tanto sonhou. Pensou em procurá-lo,
acolhê-lo, mas não! Diogo precisava de espaço, não de ser importunado na fuga
de seu ego. O tempo e Deus falaria em seu coração.
Minutos depois,
o ostensório pousou solitário por sobre o altar. Saulo findou o primeiro
momento da cerimônia e a celebração eucarística se instaurou. Uma nova obra do
Chiamare fora inaugurada.
4
Os últimos dias em São Paulo,
não foram como nas viagens anteriores. Por mais que a inauguração da nova obra
em Guaratinguetá tenha sido um grande sucesso, inclusive noticiada na imprensa
nacional, Saulo voltava sua atenção completamente para o fato de que Thomás
sairia da prisão dali a poucas semanas. Como um homem afastado do mundo aqui
fora há tantos anos podia mexer tão profundamente com a paz daqueles a quem
deixou em liberdade? Tivera inúmeros pesadelos nas noites que seguiram após
saber daquela bomba. Recordava-se da imagem do irmão sendo levado do tribunal,
algemado, após o veredito do juiz. Jamais esqueceria seu rosto, seu olhar
revelando a grandeza do ódio em seu coração, o desejo de vingança a todos os
que o levaram àquele triste final.
Por várias noites seguidas,
Saulo acordou atormentado por aquelas imagens fatídicas dominando seus sonhos.
O homem que representou em muito a quase destruição do Chiamare não podia assim
retornar e fazer tudo novamente. Certamente o faria! Como havia dito no
passado, acabaria com todos eles, esmagaria o que tinham de mais precioso. Não,
aquele monstro não podia voltar!
Por isso, os fundadores da
comunidade resolveram se reunir antes de retornarem a Fortaleza e enfrentar o
conselho administrativo do Chiamare. Precisavam estar preparados, com ideias
para evitarem um confronto com seu maior inimigo.
Saulo e Guilhermina foram quem
primeiro chegou à sala de reuniões da obra em Guaratinguetá. A secretária
trouxera-lhe uma xícara de chá, a fim de que relaxasse um pouco para o
encontro.
— Sei que não tem dormido bem,
— disse ela. — mas precisa estar tranquilo. Juntos, acharemos uma saída, como
sempre fizemos.
— Ele tem entrado nos meus
sonhos todas as noites. — revelou, fixando o olhar numa escultura de barro, no
formato de crianças de mãos dadas numa roda, no centro da mesa de doze lugares,
como se naquele pequeno círculo pudesse enxergar a figura do irmão, como um
demônio a lhe perseguir!
Guilhermina aproximou-se por
trás dele, pousando as mãos sobre seus ombros, ousando amassar seu fino paletó
numa massagem.
— Chego a acreditar que ele é
a própria encarnação do mal. — disparou a secretária, despertando-o de seu
transe momentâneo.
— O mal? É duro de acreditar,
mas acho que tem razão. Um anjo que virou demônio. E não é apenas uma analogia.
Saulo levantou-se de repente,
como se não se importasse com a atitude cuidadosa da secretária e se pôs diante
de uma janela que dava para o jardim, afundando uma das mãos no bolso, enquanto
a outra ajeitava mecanicamente as ombreiras do paletó. E continuou.
— Isso mesmo, Guilhermina. O
Thomás é um anjo caído. O Chiamare precisa estar preparado para esta batalha.
— Mas nós estamos.
Ela aproximou-se mais uma vez,
tocando-lhe nos ombros, mas agora Saulo afastou-se. Guilhermina prosseguiu, sem
se deixar abater pelo limite a ela colocado.
— Nós não permitimos que ele
saísse da cadeia durante esses doze anos, e não vai ser agora que o Thomás vai
voltar a nos atormentar. Não se preocupe, tudo dará certo. Deus está do nosso
lado, meu querido.
Ele a observou de modo
reprovativo.
— Sabe que não gosto quando se
refere a mim desta forma.
— Desculpa, desculpa. — pondo-se
diante dele novamente. — É por causa do meu cuidado, do meu afeto por você.
— As pessoas podem não
compreender.
— Eu sei, eu sei. Tem toda
razão.
Guilhermina nunca esquecera
sua paixão por Saulo desde os tempos de faculdade. Na verdade, sofreu para
aceitar que ele fizesse os votos de castidade e a deixasse só, sem seu amor. No
entanto, nunca se separaram em presença cúmplice e companheira na vida um do
outro. Ela jurava que o havia esquecido, mas óbvio que não, que guardava
solitariamente esse amor, velado em seu peito.
Alguém bateu na porta,
chamando atenção dos dois e em seguida a abriu. Era Edgar e Cândida. Pronto,
estavam preparados para decidir sobre o futuro do maior inimigo do Chiamare e
de todos eles.
Guilhermina começou revelando
que a saída de Thomás estava marcada precisamente para dali a dez dias somente.
Tudo o que estivera ao alcance dos advogados da comunidade para impedir o fato,
já havia sido feito. Necessitavam realmente pensar numa estratégia de defesa a
um possível ataque daquele criminoso.
— Meu medo maior é que ele se
aproxime dos meus filhos. — desabafou Cândida.
— E é o que provavelmente
acontecerá, afinal é a parte mais frágil dessa história, não é? — arrematou
Guilhermina.
— Ele não pode se aproximar do
Lucas! — decretou Saulo, batendo com força sobre a mesa.
— É claro que ele vai tentar
uma aproximação dos meninos. — disse Edgar, parecendo mais tranquilo que os
outros. — já que são filhos dele, não é verdade? — completou, voltando-se para
Cândida.
— Sendo ou não filhos dele,
ele não tem o direito de voltar e destruir nossas vidas mais uma vez! — Cândida
se ergueu, pondo-se diante do marido.
— Mas certamente vai querer
estar com os filhos. — continuou Edgar com o mesmo tom, numa provocação.
— E pelo jeito não se importa!
— questionou ela.
— O que espera que eu faça?
Foi você que deu ao Thomás a condição de pai dos seus dois filhos. — pela
primeira vez Edgar alterou o tom.
— Mas foi você quem os criou,
isso não conta? — Cândida quase gritou.
— Ei, ei... o objetivo aqui
não é discutirmos a relação falida de vocês. — interveio Saulo. — Não só os
meninos, o Lucas, nós, mas principalmente o Chiamare está correndo perigo com a
saída desse assassino da prisão!
— O Saulo tem razão. Nós
precisamos estar unidos, não nos digladiando. — colocou-se Guilhermina. — A
ideia é pensarmos numa forma de impedir que o Thomás chegue perto do Chiamare e
de todos nós.
— Acho que esse assunto
precisa ser discutido junto ao conselho administrativo da comunidade. — disse
Edgar. — Mais cabeças pensando pode ser mais produtivo.
— O que não podemos é perder
tempo. — afirmou Cândida. — certamente ele passou os últimos doze anos pensando
em como fará tudo agora.
— Exatamente, por isso estamos
aqui. — confirmou Saulo.
— Eu tenho uma ideia. — arrematou
Guilhermina triunfante, conseguindo a atenção de todos voltados para ela.
— O que pensou? Como vamos
impedir que Thomás destrua as nossas vidas, o Chiamare? — Saulo procurou saber.
Mais uma vez estava nas mãos
de sua secretária uma ação importante a fim de impedir a aproximação daquele
criminoso às muralhas do Chiamare e de sua vida. Na verdade, por vezes chegava
a acreditar que Guilhermina era a própria muralha capaz de protegê-lo, como a um
império, sua fortaleza. Em diversos momentos no passado, Thomás pareceu tentar
a liberdade condicional, e ela, como numa batalha, liderando uma tropa de
corajosos soldados, outorgados por seus diplomas de Direito, vencia e o impedia
de estar livre para prosseguir com seus crimes.
Guilhermina era para Saulo uma
guardiã. Não importava o que tivesse em mente, certamente seria bom para todos
e para o Chiamare. Com sua presença assertiva, sentia-se mais seguro para
enfrentar o irmão e suas artimanhas.
O anjo caído voltaria para o
inferno!
5
O barulho de grades sendo
fechadas e abertas em consonância com vozes vindas de outras celas e o som
produzido por uma estrutura de alojamentos gigantesca, seria pela última vez
ouvido por aquele homem. Ele calçou as botas de cadarço surradas, sentado à
cama metodicamente arrumada por seu companheiro minutos antes. Os dois
preferiram não se despedir, depois de tantos anos convivendo no mesmo ambiente.
Mas aquilo não importava agora, em breve o outro também sairia dali e voltariam
a confabular. Em seguida, vestiu a camiseta de um vermelho desbotado (resultado
de incontáveis lavagens) — sua melhor peça, entretanto — cobrindo o corpo
musculoso e tatuado. Nem lembrava quando adquirira o jeans que havia colocado,
de um azul esbranquiçado, pelo uso — um dos poucos que tinha. Por fim, o velho ray-ban aviador, companheiro desde de
sua chegada naquele lugar. Ainda sentia o cheiro do próprio creme de barbear.
Fizera questão de sair com o rosto limpo. Depois a mochila no ombro e, pronto!
Definitivamente estava pronto para uma nova vida.
O guarda o acompanhou por todo
o percurso, tão bem conhecido por ele em todos aqueles anos. Seus passos eram
largos e precisos, em direção à justiça. Antigos companheiros acenavam em
despedida, sem que fizesse um gesto que fosse. Não precisava levar nada mais do
que já tinha em seu peito, a dor.
Das paredes em frente, algumas
lembranças brotaram como flashes, como o dia em que chegou ali, os olhares
enfrentados, o medo despertado em cada rosto desconhecido, as pancadas em seu
corpo, as agressões e o horror do primeiro banho, completamente despido,
cercado por cretinos que o humilhou antes de violentá-lo em meio a gritos de
misericórdia.
Jamais esqueceria aqueles
absurdos. E não podia! Aquilo lhe servia de alimento, pura nutrição ao que
planejava viver. Doze anos, um mês, quinze dias e dezesseis horas. Havia
contado cada dia, cada segundo em que esteve trancado, pagando por um crime que
não cometeu.
Quando o portão de ferro bateu
atrás de suas costas, sentiu um estalo no coração. Livre! Livre daquelas
paredes, da ferrugem das grades à mostra pela tinta descascada, do barulho
ensurdecedor cotidiano, da hostilidade reconhecida em cada rosto, tanto dos
companheiros em igual condição, quanto dos funcionários, os cães de guarda, e
até mesmo em seu rosto, marcado duramente pelo destino, em imagens refletidas
pelo espelho rachado de sua cela. Nas quais imaginava ser o rosto do outro,
igualzinho ao seu, mas o do outro, o verdadeiro responsável pela destruição de
sua vida. Sim, desejou tão profundamente que fosse ele vivendo um inferno
semelhante, que conseguira diariamente vislumbrá-lo, com toda a sua soberba,
desfilando por aqueles corredores, esmagado pelo desespero resultante do
desprezo oriundo das pessoas a quem um dia amou. Perdido nos labirintos de suas
próprias mágoas, onde nem mesmo Deus era capaz de penetrar. Se Ele existisse em
amor e misericórdia realmente, claro! Mas esta era uma outra história, mais
delicada e profunda que a traição dos seus. Algo que aquele homem preferia
deixar trancado atrás de si, em seu passado, pelos mesmos carcereiros com quem
convivera nos últimos doze anos.
Caminhou da portaria até a
calçada do presídio, de onde se tinha a vista do estacionamento que desenhava-se
em frente. Lembrava perfeitamente de cada centímetro de área construída, embora
só tivesse passado por aquela entrada uma única vez. As recordações do dia em
que chegou ali, condenado, injustiçado o faziam seguir, solitário, como um
missionário. Missionário? Que ironia!
O dia havia amanhecido nublado
e parecia ter serenado minutos antes, pairando uma atmosfera nostálgica e fria
no ar, propícia àquela data. Gostava de dias como aqueles, desde criança,
quando aproveitava pra ficar na cama até mais tarde e brincar de mágica com seu
irmão. A saudade lhe invadiu o peito e por muito pouco não provocou uma
lágrima. Pedaços de seu passado que necessitavam ser restaurados.
Poucos veículos estacionados e
uma caminhonete Land Rover branca, parada a poucos metros, com o motor ligado.
Os vidros fumês não lhe permitiam visualizar quem estava ao volante. Sabia,
contudo, de quem se tratava. Ela certamente vinha cumprir o combinado. Partiu
em direção ao carro, carregando consigo o peso do mundo, da dor, da saudade,
das mágoas que lhe afogaram a alma em todos os anos em que esteve trancado
naquele inferno.
Diante do automóvel deu uma
parada, pensou em olhar para trás pela última vez e se nutrir um pouco mais de
sua raiva ancorada em cada tijolo da estrutura em suas costas. Doze anos, no entanto,
fora o suficiente! Abriu a porta do carro e teve a visão de uma linda e
elegante mulher ao volante, acolhendo-o com um sorriso que não conseguira
definir.
— Seja bem-vindo de volta ao
mundo, Thomás Sobreira! — disparou Guilhermina.
Falsa!
Como
todos eles.
Passou a língua entre os
dentes e os lábios superiores, como se procurasse palavras ali escondidas para
lhe responder à altura. Mas elas estavam em seu coração.
— Você? Esse é o mundo que me
espera?
— Vejo que não perdeu a
delicadeza. — retrucou ela no mesmo tom de ironia.
— Impossível. Você me inspira.
— respondeu de pronto, acomodando-se no banco. Em seguida, isolou-se daquele
lugar, fechando a porta do automóvel e atracou o cinto. Respirou profundamente
e agora sim, preparado para sair dali definitivamente.
Guilhermina engatou a marcha e
saiu.
Thomás foi surpreendido por um
frio na espinha, ao deixar os muros do presídio. Finalmente estava fora, livre.
— Como a liberdade nos faz
bem, não é mesmo? Está com uma cara infinitamente melhor que da última vez que
nos vimos.
Ela perdeu uma ótima
oportunidade de permanecer calada. Thomás desejou mandar-lhe calar a boca
idiota, mas preferia que Guilhermina fosse se soltando cada vez mais, assim
seria mais útil.
No primeiro minuto não teve
como não perceber o rosto estampado no reflexo do para-brisa, à sua frente. Uma
revista em cima do painel do carro, trazia a foto de Saulo em sua capa. Ele a
pegou cuidadosamente e leu a manchete.
Saulo
Sobreira, o grande Pescador de Vidas!
Na certa uma provocação.
— Olha só que distração a
minha. Acabei esquecendo a revista aí em cima. — justificou de uma forma quase
teatral, como se quisesse ser de fato notada em sua artificialidade.
As atitudes de Guilhermina
pareciam sempre muito calculadas. Tudo o que fazia ou dizia se estruturava numa
arquitetura minuciosa de objetivos obscuros. De todos os criminosos que o
colocaram ali, foi dela o primeiro rosto que vira despois de todos aqueles
anos, há duas semanas, quando o procurou, oferecendo-lhe ajuda. No discurso, o
disparate de que Saulo de nada sabia acerca de sua iniciativa, mas que o fazia
em nome da comunidade e de tudo o que Thomás havia representado para eles no
passado. Mentira! Com certeza
tramavam juntos, os dois e toda a comunidade contra ele! Mas assim já esperava.
Na verdade, não poderiam ser mais óbvios. Sem que soubessem, aquilo fazia parte
de seu plano.
— Vejo que seu chefe conseguiu
o sucesso que sonhava. — comentou de modo despretensioso, arremessando a
revista de volta sobre o painel. O que pareceu surpreendê-la, tirando-lhe o
foco da estrada.
— Não vai ler?
Pronto, entregou-se. Thomás
riu por dentro. Já conhecia a edição, carregava um exemplar consigo na mochila.
Havia lido tudo em seus mais absolutos detalhes, decorando cada vírgula, para
que depois a justiça fosse feita.
— Não, — respondeu quase
inocentemente. — nada disso me interessa. As mentiras!
— O Chiamare recebeu do
Vaticano o decreto de aprovação definitiva dos Estatutos da Associação. Não
fica feliz com isso?
— Por que ficaria?
Ela pensou um pouco e
respondeu. — Ora porque... fez parte dessa história.
— Fiz?
— Como não, Thomás? Você foi
o... o... — não encontrou palavras.
— Fundador? — completou com um
sorriso de soslaio.
— É, uma das pessoas que
esteve presente no início.
— Fundador.
— Isso...
O que aquela vaca tinha
dificuldade em assumir era a sua importância dentro daquela história. O que
Thomás Sobreira representara para o Chiamare. Foi dele a iniciativa, o chamado
na alma de constituir a comunidade, reunir irmãos e amigos, evangelizar pessoas
perdidas de si e esquecidas pelo sistema, resgatá-las de seus infernos,
proporcionando-lhes vida nova. Agora, estavam diante de uma revista, de uma
notícia mentirosa, reconhecendo outra pessoa como o Pescador de Vidas. Eles
podiam ter o mesmo rosto, mas eram completamente diferentes, sempre foram,
desde crianças. Por isso, a aproximação maior de Diogo. Eles sim, foram durante
anos os grandes pescadores de vida do Chiamare.
— Guilhermina, vamos direto ao
ponto. O que querem de mim afinal?
— Como? — a pergunta a
desnorteou por alguns segundos, fazendo com que errasse numa ultrapassagem, na
BR 116. Por pouco não colidiu com uma L 200 que seguia pela mão correta. O
outro carro, precisou buzinar para evitar o acidente.
— Cuidado, é melhor se
concentrar. Recuperei a liberdade, não quero perder a vida. — brincou,
mantendo-se com o foco na estrada.
— Não entendi sua pergunta. — insistiu
ela.
— Entendeu sim! — afirmou
Thomás, puxando o volante para a direita.
Guilhermina gritou, com
dificuldade em controlar o veículo. Acabou indo para o acostamento e parou o
carro assim que pôde. Engoliu a saliva no seco, procurou manter a calma e se
debruçou sobre o volante, ofegante pelo susto.
— Você é louco!
— Sério? Não me diga...
— Por pouco não nos matou!
— Confio em você, sempre foi
uma ótima motorista. — continuava ironizando.
Guilhermina esperou um pouco
para se acalmar.
— Quanto quer para nos deixar
em paz?
— Ora, ora... então essa é a
proposta?
— Todo mundo tem um preço,
Thomás. Qual é o seu?
— É isso mesmo que pensam, não
é? Que todas as pessoas podem ser compradas? Que tudo é dinheiro? Foi deste
modo que o Saulo roubou o meu lugar no Chiamare. A fé contra a ganância.
— Você é um louco criminoso!
Certamente está atrás de dinheiro. Precisa dele. Afinal sua vida aqui fora não
existe mais, não é mesmo? Nós temos para oferecer.
...sua
vida aqui fora não existe mais...
Aquilo ecoou em suas têmporas,
causando-lhe dor pelo que perdera, pelo que lhe fora arrancado prematuramente,
o que tinha de mais precioso, não o dinheiro, posição social, reconhecimento de
todos. Não, arrancaram-lhe em pele viva a confiança nas pessoas, o amor a Deus.
Aqueles cretinos criminosos, representados ali por aquela víbora. Desejou
esganá-la, fazê-la sentir a falta de ar nos pulmões, tirar o que necessitava
para manter-se viva. Seria um benefício à humanidade, menos um demônio à solta.
Pessoas como Guilhermina e Saulo mereciam estar longe de lugares como o
Chiamare onde podiam enganar, mentir, trair e acabar com a vida de inocentes,
quando pensavam estar fazendo o contrário, abusados em sua fé. Como o próprio
Thomás fora um dia.
— Cem mil reais. Acredito que
dá para refazer sua vida, longe daqui. — completou ela.
Podia matá-la ali mesmo e
começar a fazer jus à sua condenação. Mas não era daquela forma que havia
planejado a justiça. Passara os últimos doze anos aprendendo a controlar os
próprios impulsos e raivas, para poder estar diante de monstros como aquela
mulher e manter a calma para agir. Por alguns segundos esqueceu disso.
— Minha resposta é não. — disse
calmamente, pegando a mochila em seus pés.
— Como assim, não?
— Isso. Exatamente o que
ouviu. Afinal, o que vocês têm a oferecer — completou, sorrindo ao pular fora
do veículo.
— Ei, espera. Para onde vai?
Não podemos ficar assim.
— Não se preocupe, sei onde e
como encontrá-los.
Ouviu os gritos dela antes de
bater a porta. Distanciou-se pela lateral do automóvel em direção à traseira,
fazendo um sinal de legal para o retrovisor. Na certa ela o estava
acompanhando.
A justiça finalmente começaria
a ser feita. O primeiro passo fora dado, exatamente como havia previsto!
6
Os primeiros momentos longe da
cadeia foram de difícil adaptação para Thomás. Conseguira alugar um quarto
minúsculo, que mais lembrava um corredor, numa pensão vagabunda no centro da
cidade. O banheiro coletivo, de reboco caído, fedia a baratas, e precisava
enfrentar uma fila para utilizá-lo. Vinha trocando a noite pelo dia, devido ao
barulho e grande movimentação do local durante a madrugada. A espelunca
certamente era também usada como motel. Isso além do cheiro forte de cigarro e
maconha de um inquilino do cômodo vizinho. O dinheiro que dispunha não era
tanto, por isso não se permitira a maiores luxos. O que não se prolongaria por
muito tempo, segundo o planejado.
Após três dias chovendo,
finalmente o sol dava as caras, o que o fez aproveitar para se aventurar num
passeio pela cidade. Caminhou por horas pelo centro de Fortaleza, observando o
movimento, a dinâmica do comércio. Todas aquelas pessoas livres, podendo ir e vir
aonde quisessem, assim como ele agora. Parou um pouco na Praça do Ferreira,
onde pôde saborear o famoso pastel de carne e uma azeitona, com caldo de cana,
do Leão do Sul. Milhares de pessoas de todos os tipos e raças desfilavam de um
lado para o outro, movidas por seus próprios interesses, com a pressa de quem
se deixou escravizar pelo tempo. O mesmo tempo capaz de fazê-lo experimentar a
monotonia de quatro paredes durante anos e que parecia nunca se adiantar,
fazendo-o esquecer do quanto tudo se encaixava num funcionamento fugaz. Em
alguns momentos, parecia enxergar a realidade em câmera lenta e sem som, como
se esta fosse enquadrada por outro mundo, um universo só seu.
Foram tantos anos limitado
pelos muros do presídio, e agora não sabia o que fazer com a liberdade.
Sentia-se dominado por uma preguiça existencial, sem compreender o porquê da
falta de ânimo para recomeçar. Contara todos os segundos perdidos de sua vida,
esperando por aquele momento. Agora, simplesmente parecia não ter forças para
seguir. Sentia-se estranho, como se o mundo aqui fora não lhe pertencesse mais.
O
que fez comigo, Saulo?
Em seu único instante de
fraqueza, desde que fora preso injustamente, deixou escapulir uma lágrima.
Enxugou-a imediatamente, entretanto. Ninguém jamais a testemunharia!
Foco,
Thomás! Foco!
Em pouco mais de meia hora,
desceu do ônibus no Montese, a dois quarteirões de onde tudo começou. Constatou
de longe que a igreja do Pe. Giuseppe Giordano continuava do mesmo jeito. A
arquitetura detalhada e bonita dos anos 1930 em azul e branco se erguia
imponente logo a sua frente. Parecia ter sido restaurada há pouco tempo e
certamente fora, o padre italiano outorgava um esmero por aquela construção e
tudo fizera para que fosse respeitada em cada centímetro, como a uma obra de
arte. Estava o mesmo à frente da Paróquia Santo Antônio de Pádua há pelo menos
quatro décadas, desde quando chegara ao Brasil.
Thomás se pôs no pátio diante
do prédio e viu que a torre do sino em sua lateral direita não era tão grande o
quanto pensava, quando menino. Na época de criança, tudo parece maior! Como o
amor que sentira por Pe. Giuseppe. Quando o vira pela última vez? Nove ou dez
anos? Com certeza, desde o dia em que foi condenado e os portões do IPPOO II
dizimaram seus sonhos, sua vida, atrás de suas costas.
Podia sentir o ódio crescendo
em seu peito ao olhar para aquela igreja, tudo mantido e renovado pelo mesmo
sacerdote que pregava o amor a todos os fiéis e um dia o acolheu em sua
adolescência, juntamente com seus outros dois irmãos gêmeos, depois da morte de
seus pais.
Tudo
mentira!
Levou alguns segundos até
entrar no templo religioso. Os aparelhos de ar condicionado espalhados pelo
teto marcavam a chegada da modernidade às antigas paredes. Pe. Giuseppe adora
conforto e sempre dissera querer partilhá-lo com todos. Conseguia pequenas
fortunas em doações, vindas da Itália, e as investia na paróquia, assim como
nas primeiras estruturas do Chiamare, comunidade a qual ajudou a ser fundada.
Poucos fiéis estavam presentes
naquela hora da manhã na igreja, três ou quatro mulheres, distantes uma da
outra, sentadas ou ajoelhadas, absortas em suas orações. Qualquer barulho que
fosse, ecoava ambiente à dentro. No centro do altar, a imagem imponente de um
Cristo Ressuscitado, sobrepondo-se a de Santo Antônio de Pádua, um pouco mais a
baixo, à sua direita, e a de Nossa Senhora de Fátima, à esquerda. Tudo muito
parecido à época que deixou.
Preferiu permanecer de óculos
escuros, a fim de evitar que alguém o reconhecesse ou confundisse-o com Saulo.
Melhor assim! Ainda não era tempo de se expor. Caminhou devagar pelo centro da
igreja em direção ao altar. Os fundos da construção dava para a sacristia e
esta para a casa paroquial. Hoje seria um belo dia para velhos fantasmas
voltarem a assombrar o mundo dos vivos, dos traidores. Seguiu o caminho que tão
bem conhecia, sem que ninguém se desse conta de sua presença. Passou por um
estreito corredor por trás do altar, depois reviu a sacristia, onde iniciou seu
trabalho espiritual como coroinha, até a porta que dava para a casa paroquial.
Estava prestes a encontrar com
seu passado, separado por uma porta. Pe. Giuseppe tinha o péssimo hábito de
esquecer aquela entrada sempre destrancada. Realmente não largara a velha
mania. Ao girar a maçaneta, a porta se abriu. Numa fração de segundos, Thomás
entrou num cômodo que mais lembrava um museu. O velho adora colecionar coisas
antigas e usava aquele salão para expor suas relíquias, algumas recebidas de
presente, outras arrematadas em leilões e tantas mais compradas em suas viagens
pelo Brasil e pelo mundo. Eram os mais diversos objetos antigos, peças de
mobilha, tecnologias ultrapassadas, instrumentos musicais, acessórios pessoais,
etc. Uma infinidade de coisas organizadas nas paredes, prateleiras e móveis
feitos especialmente para elas. O piso de lajota xadrez, alternando nas cores
vinho, amarelo e cinza, e as paredes brancas, davam um aspecto envelhecido ao
ambiente gelado pelo aparelho de ar condicionado.
Thomás parou diante de uma
vitrola, recordando-se de quando aquela peça chegou ali, vinda de Recife. Pe.
Giuseppe parecia um menino, feliz ao ganhar um brinquedo novo.
Podemos
enganar o tempo ao colecionarmos objetos como esses. Disse
o italiano, há muitos anos, com sorriso no rosto, acariciando a madeira
desgastada do aparelho musical.
Por um breve instante,
sentiu-se aquele mesmo menino magricela com a bola na mão, vinte e cinco anos
atrás. Adorava estar na presença daquele homem santo, como sua mãe o chamava, e
ouvir suas histórias, de quando chegara ao Brasil, na época da ditadura, e
apoiava o movimento contra o governo, acabando por ser perseguido, preso e
torturado. Chegou até mesmo a sorrir brevemente.
— Posso ajudar?
Aquela voz... a mesma que o
orientou espiritualmente. Thomás se voltou a ela no impulso, encontrando a
imagem de um homem castigado pelo tempo. O cabelo tão alvo quanto algodão,
camiseta surrada, como de costume, calça de brim e chinelos de dedo. O mesmo
visual de sempre, exceto pela bengala. O olhar do velho imprimia uma expressão
de espanto e emoção ao vislumbrar o rosto de Thomás por trás dos óculos Ray-Ban.
— Podemos enganar o tempo ao
vivermos momentos como esses. — parafraseou-o Thomás, retirando os óculos para
encará-lo melhor.
— Thomás?
Pe. Giuseppe parecia chocado.
— Em carne e osso. — respondeu,
mostrando os braços. — Como vai, Pe. Giuseppe?
O velho silenciou por algum
tempo, observando-o dos pés à cabeça, como se quisesse se certificar da
verdade. Depois engoliu a saliva com dificuldade e falou, com a voz embargada:
— Não sabia que havia saído
da... — teve dificuldade em continuar.
— Cadeia?! — completou Thomás.
— Isso. Não sabia, meu filho.
— Tenho certeza que todos
sabiam. — retrucou, dando-lhe as costas, para apreciar outras peças. — Pelo
menos foi o que Guilhermina me disse. — trazia certa graça em seu tom.
— Como está, meu filho?
Meu
filho? Depois de tudo o que fizera para colocá-lo atrás das
grades, como tinha coragem de chamá-lo assim? Hipocrisia!
— O que o senhor acha? — permaneceu
mirando as peças do museu particular. — Acabei de sair da cadeia, depois de
doze anos, pagando por um crime que não cometi.
— Mesmo após tantos anos,
ainda insiste nessa insanidade?
Insanidade?
Aprendeu a odiar aquele homem
durante o tempo em que morreu em vida, trancado naquele presídio. Pe. Giuseppe
fora uma das testemunhas de acusação. Por sua culpa, Thomás fora condenado
injustamente.
Finalmente deixou as peças
idiotas da coleção e aproximou-se do velho.
— Durante todos esses anos,
pensei no que o motivou a mentir e condenar o garoto que o senhor acolheu na
adolescência e transformou-o em pupilo. — Procurou encará-lo profundamente. — Por
quê? O que o levou a tanto? Foi também ludibriado pelas mentiras e ambição do
Saulo? Achava também que a comunidade estaria em melhores mãos se eu estivesse
longe? Foi isso? Usou-me para fundar o Chiamare e depois me descartou por
acreditar que eu não servia mais a este propósito?
O velho o encarou firmemente.
— Desejei muito ouvi-lo, saber
seus motivos, Pe. Giuseppe.
— Por que insistir nesta
fantasia, meu filho? Eu o vi deitado com aquela mulher, cheio de sangue nas
mãos, na alma.
Proferia aquela mentira da
mesma forma que o orientou por anos como guia espiritual. Aquilo alimentava
ainda mais seu ódio.
— O senhor é como ele, o
Saulo, mente da mesma forma.
— Vejo que precisa de ajuda,
meu filho.
— PARA DE ME CHAMAR DE MEU
FILHO! — o grito foi mais forte que ele. Ao mesmo tempo, sentiu raiva, por não
conseguir manter o controle que sonhou para aquele encontro e todos os outros
que virão, com cada um deles, os traidores. Respirou fundo, entortou o pescoço
rapidamente para um lado e outro, estralando as vértebras, e recompôs-se. — Não
é necessário continuar com esse discurso idiotizado. Não sou mais um garotinho
bobo e manipulável, Pe. Giuseppe. — mais uma vez, dirigiu-se a outras peças
expostas no salão.
— O que quer afinal?
— Hum, o senhor chegou aonde
eu queria. — celebrou, tocando em seu ombro. — Todos acham que eu vim cobrar o
que é meu, não é verdade?
— Realmente criou uma mentira
para se esconder nela, mas acabou se perdendo da realidade. Vejo que acredita
verdadeiramente nessa fantasia, Thomás.
— Mentira é acordar ao lado de
uma mulher morta, sem que saibamos o que e como aconteceu aquilo, para depois
ser acusado por todas as pessoas que amamos. — Thomás caminhou até a frente do
velho. — Mentira é jurar inocência e não ser acreditado por ninguém,
trancafiado por doze anos, pagando por um crime que não cometemos. Isso é
mentira! — seu tom já era mais agressivo.
— Você matou aquela mulher,
nós dois sabemos disso.
— NÃO MATEI! — gritou
novamente, passando a mão pelo cabelo, depois esfregou a testa franzida com os
dois dedos anelares. — Vocês querem me enlouquecer!
— Não, meu filho. Você já está
louco!
Thomás olhou para o chão e
radiografou todo o ambiente com o olhar, colocou as mãos na cintura e disparou.
— Muito bem. Essa conversa não vai levar ninguém a lugar algum. O senhor mente
de um lado, eu desminto do outro e ninguém é convencido de nada. Vim aqui por
um motivo simples, Pe. Giuseppe. Quero o que é meu!
— O que quer dizer com isso?
— A velhice já comprimiu o seu
cérebro? — perguntou com um tom afobado, tocando a cabeça do padre com a ponta
do dedo. — Quero tudo o que é meu! Vocês vão me devolver, com juros e correção.
— Veio para se vingar, é isso?
— Não. Resposta errada. Vim
para fazer justiça.
— Justiça? E onde está Deus no
seu coração?
Velho
hipócrita!
— Aonde está no senhor? —indagou
com olhar fulminante, quase o empurrando com a ponta dos dedos contra o peito
do velho. — Em mim Ele ficou no passado, há doze anos, quando me abandonou.
— Você o abandonou.
— Não vou discutir religião
com o senhor. Quero que fique claro, que vim para pegar o que é meu, de todos
vocês.
Dado o recado, deixou o salão
para trás, fazendo de volta o mesmo caminho percorrido anteriormente para
chegar ali. Queria respirar, deixar aquelas paredes que travavam seus pulmões e
fomentavam o ódio carregado por ele com tanta dor e sacrifício. Não tinha ideia
do quanto aquele encontro lhe seria doloroso. Pe. Giuseppe fora como um pai, para
ele e seus irmãos. Vê-lo novamente acusando-o, provocava-lhe uma nova vivência
de toda a dor experimentada há doze anos.
Ao cruzar a porta principal da
igreja de Santo Antônio de Pádua, já quase no pátio, viu um jovem caminhando em
direção a uma caminhonete a alguns metros. Não tinha dúvidas. O tempo poderia
ter passado, os anos certamente o tinha modificado. Mas o rosto era o mesmo,
trazia a mesma serenidade de quando era um garotinho de seis anos e o chamava
de padrinho. Agora homem feito, devia ter a sua altura, aproximadamente 1,90m,
olhos puxados, como os seus, um lindo jovem! Sim, tratava-se de Lucas. Não seu
afilhado, mas seu filho. Devia ter saído de algum lugar ali perto, afinal
estavam a alguns quarteirões de uma das fábricas da obra.
...vim
para pegar o que é meu...
Lucas, o filho que não tivera
tempo de chamá-lo de filho. Ao descobrir a verdade, logo que a tragédia
aconteceu e fora preso. Tudo pela ganância e inveja de Saulo, seu próprio
irmão, bem como pela vingança de Edgar, o melhor amigo.
O destino dava-lhe a chance de
reaver o que era seu, sua dignidade. Lucas seria seu trunfo. O maior tesouro do
Chiamare, representava também sua maior fragilidade, o calcanhar de Aquiles de
todos eles. E, nada mais nada menos que seu filho. Embora ele não soubesse.
Se o chamasse será que o
reconheceria?
Experimentou um prazer quase
maldoso ao pensar em fazer aquilo. Mas não era o momento. Tinha tudo planejado,
e uma aproximação prematura com o jovem poderia pôr tudo a perder. Não, melhor
não! Preferiu observá-lo de longe entrar no carro e sumir em meio ao trânsito.
Brevemente Lucas saberia da verdade. Mas no
momento certo!
7
— COMO É QUE É, CAMARADA?
ALUGOU O BANHEIRO TAMBÉM? TEM GENTE AQUI PRECISANDO SE APRONTAR PARA O
TRABALHO! — gritou uma voz masculina rouca do outro lado da porta.
No mínimo, um cretino dentre
os muitos que também alugavam quartos naquela espelunca no centro da cidade.
Thomás sentiu-se invadido, procurava usar o banheiro coletivo somente depois
das oito da manhã, horário em que percebeu que a maioria dos inquilinos já
havia saído para seus compromissos. Poderia demorar um pouco mais e deixar
escorrer pelo ralo o cansaço das noites passadas em claro, intercaladas de
pesadelos, calor e uma melodia infernal de muriçocas aos seus ouvidos.
Fechou o chuveiro e apoiou a
cabeça no braço, escorado na parede à sua frente. Não podia se envolver numa
confusão desnecessária com um vagabundo qualquer, por mais que desejasse sair e
fazê-lo engolir cada palavra. Nesses momentos, odiava ainda mais o irmão. Se
não fosse por Saulo, não teria se transformado no monstro intolerante que se
tornou dentro da cadeia. Sua paciência era curta!
Pegou a toalha, secando o
excesso de água pelo corpo musculoso, e a enrolou na cintura. Juntou as coisas
e as despejou na sacola de supermercado, improvisada como nécessaire. Em seguida catou as roupas com as quais havia saído da
cama e abriu a porta que o separava de um homem gordo de braços cruzados, barba
parcialmente branca e cabelo desgrenhado. O sujeito não devia ter mais que um
metro e setenta de altura, mas tentava impor medo e autoridade com uma cara de
quem estava pronto para o ringue. Thomás o encarou do alto de seus um metro e
noventa, contraindo o músculo do tórax, como que para mostrar quem mandava e
tinha força. O gordo saiu da frente, embora não desfizesse por nada a cara de
gladiador. Entretanto, como aquele ou ainda piores, tivera que enfrentar muitos
na prisão.
Thomás entrou no quarto e
fechou a porta atrás de si, jogando as coisas na cama de solteiro, ainda
desarrumada, quando ouviu alguém bater. Seria novamente o gordo cretino,
tentando uma represália? Se fosse, não era muito diferente do que vivera nos
últimos doze anos. Precisava ter cuidado e ser astuto, e rápido, como aprendera
a ser. Aproximou-se da porta e a abriu cautelosamente, procurando proteger-se
parcialmente por ela, como se fosse um escudo. Fora surpreendido, não pela
imagem daquele porco asqueroso do banheiro, mas pela beleza de uma mulher alta
e elegante, impassível diante dele. Os olhos estavam protegidos pelos óculos
escuros, embora ele lembrasse daquele olhar, dos traços finos daquele rosto, e
do perfume, que certamente se espalhara por todo o caminho percorrido para
chegar até ali e talvez fosse seu “fio de Ariadne”, para retornar ao seu mundo,
depois de matar o minotauro — ele.
Tantos anos se passaram desde
o tribunal, quando a vira pela última vez. Mas sua voz reverberava em seus
ouvidos. Companheira, amiga, cúmplice e traidora!
— Posso entrar? — foi Cândida
quem perguntou.
Thomás nada respondeu, abriu
passagem para que sua ex-companheira do passado pudesse conhecer o ambiente
minúsculo que o abrigava. Em seguida bateu a porta e desejou trancá-la por doze
anos, proporcionando àquela mulher o mesmo vivido por ele no cativeiro que ela ajudou
a construir.
— Desculpa não ter um café
para te oferecer. — disse ele, apoiando as mãos na cintura.
— Não vim aqui para
confraternizar. — Cândida respondeu de pronto, tirando os óculos para encará-lo.
— E sim para saber o que quer de todos nós! — Não teve como disfarçar o olhar
para seu corpo seminu enrolado na toalha.
Thomás sorriu ao percebê-la
desconsertada.
— Desculpe também pelos
trajes, não esperava ninguém me visitar. — argumentou em ironia, chamando
atenção para o próprio corpo. Talvez ela ainda sentisse por ele o que a
impulsionou a trair o marido.
— Esta não é uma visita de
boas vindas, Thomás. Eu o vi ontem à tarde em frente à igreja. O que espera,
nos impor medo?
Ele passou por ela e se
aproximou da janela que dava para o telhado de velhos prédios do centro.
— Então me viu? O Lucas se
tornou um homem lindo.
— Não ouse se aproximar dos
meus filhos!
Quando percebeu, Cândida já
estava quase em cima dele, como uma leoa.
— “Nossos” filhos. — corrigiu-a,
sem se abalar com seu tom agressivo e imponente.
— Você é mesmo um cretino,
Thomás! Acha mesmo que tem direitos sobre os meninos, depois de tudo o que fez?
— Eu sou o pai deles.
Mantinham-se impassível, por
mais que desejasse esbravejar, taxá-la de cínica.
— Infelizmente, por castigo de
Deus!
— Na época em que o Salomão
nasceu era uma dádiva. — ironizou.
— Eu era uma tola, não sabia
de sua psicopatia.
Psicopata?
Ela
realmente acreditava no que dizia?
— Vocês são todos uns doentes!
Como descobriram meu endereço?
Ele saiu de onde estava e foi
em direção à porta.
— Precisamos nos proteger de
você.
Na certa, Thomás vinha sendo
seguido, vigiado pelos capangas de Saulo.
— Proteger de mim? Por quê? —
foi aproximando-se dela com um sorriso sarcástico, como porta-estandarte. — Vim
pegar o que é meu por direito, Cândida.
— Não tem direito a nada!
Acabou com as nossas vidas, o que deseja mais? Não pense que vou deixar você se
aproximar dos meus filhos, do meu casamento.
— Casamento? — soltou uma
gargalhada. — Teu casamento é uma farsa, mulher! — continuou rindo. — O casal
perfeito do Chiamare é uma mentira criada para enganar as pessoas, como enganou
a mim e ao próprio Edgar, fazendo-nos pensar por anos que o Lucas era filho
dele, quando na verdade era fruto de nossa traição no dia de seu casamento.
Thomás estava praticamente
colado em Cândida, e ela deu um passo para trás, para ganhar espaço.
— Foi uma traição sim, tanto
minha quanto sua.
— Mas foi você quem nos fez
pensar que o Lucas era filho do Edgar.
— Sei que errei, mas já paguei
pelo meu crime, acredite.
— Não, nenhum de vocês pagou
pelo crime que cometeram. Mas vão pagar!
— Vai embora, nos deixe em
paz! Já não basta o que fez no passado?
— Não, não fiz nada ainda! O
Lucas pensa que sou o padrinho criminoso e o Salomão, que sou o pai desnaturado
que abandonou sua mãe grávida. Mas nós sabemos que nada disso é verdade, não é,
Cândida? Eu vou provar para os meus filhos que sou inocente e mostrar para eles
quem é sua verdadeira mãe.
— EU MATO VOCÊ! — foi um grito
de Cândida. E quando ele menos percebeu, ela estava colada em seu peito. — Monstro,
assassino! — parecia mastigar cada palavra, imbuída de ódio.
“Eles” eram monstros,
assassinos! Eles mataram aquela mulher há doze anos e colocaram a culpa nele
para tirá-lo de seu caminho. O Saulo para conseguir o poder dentro da
comunidade; o Edgar para se vingar pela traição de seu melhor amigo; e Cândida
para tirá-lo definitivamente de sua vida e tentar esquecê-lo.
Thomás procurara ser honesto
desde quando percebera não sentir mais nada por Cândida, após dois anos de
namoro, pondo um ponto final na relação, sem imaginar que Edgar, o melhor
amigo, a amava. Tudo isso em meio à constituição do Chiamare, há vinte anos.
Justo com eles, os jovens fundadores. Em seguida, ela descobriu a gravidez de
Salomão e decidiu enfrentá-la sozinha, embora o próprio Thomás tenha tentado
uma reconciliação. Mas para ela, seria indigno voltar sem que ele a amasse de
verdade, visto que era assumido seu amor por outra pessoa, não revelada até
então.
O triângulo só veio à tona, depois
do nascimento da criança, quando Cândida e Edgar o surpreenderam com a decisão
do noivado. Thomás não esperava ser o padrinho de um casamento que aconteceu
como um tornado dentro da comunidade, o que o levou a uma decepção profunda.
Tinha entendido tudo errado, um equívoco existencial, e o amor que esperava
enfim viver, não seria mais possível. Seria de Cândida a chance.
Desejou esquecer eternamente o
dia daquele casamento, livrar-se de sua dor, a dor da perda de seu grande amor.
Arrependeu-se por não tentar impedi-los. Mas era tarde, nada mais podia ser
feito. Eles pareciam o casal mais feliz do mundo, principalmente após o
nascimento de Lucas. O que perdurou por sete anos, até que tudo foi descoberto,
a traição de Cândida e Thomás na própria festa de casamento.
As lembranças daquele dia
fatídico rondavam-no como flashes de um filme que alguém havia lhe contado, uma
traição afogada nas mágoas insípidas de um amor não vivido, escondidas por um
porre e desilusão.
Mas tudo havia se passado há
muito tempo. Restava-lhe somente o desejo de justiça. Poderia dizer o que lhe
engasgou por anos àquela vadia sem coração. De que adiantaria? Cândida
certamente sabia da verdade, que ele era inocente. Mesmo assim, preferiu calar
sua defesa e condená-lo ao isolamento do universo que ele mesmo havia ajudado a
construir, por puro egoísmo e proteção a si mesma, buscando talvez uma redenção
por seu pecado. Não, falar não adiantaria! Ela teria que viver, experimentar o
que estava guardado para ela. Isso sim seria justiça.
Thomás foi até a porta e
abriu.
— Deixe-me em paz. O que é seu
está guardado. — disse ele, sem rodeios.
— Não pense que não estamos
preparados.
— Não teria graça se não
estivessem.
Cândida pôs os óculos e saiu,
como uma garça, com sua elegância destoando daquele lugar.
Tudo
como planejado!
O encontro com Thomás provocou
uma implosão nos velhos escombros afetivos esquecidos no coração de Cândida. A
jovem que descobriu estar grávida pouco tempo depois de ter seu noivado rompido
pelo homem com quem esperava viver o resto de sua vida, de repente emergira de
suas lembranças afogadas em mágoas e ressentimentos de um passado longínquo,
que parecia não mais existir, e o destino resolvera trazer de volta, nas asas
de uma provável vingança. Não somente ela, mas seus filhos eram o alvo. O que a
deixou transtornada.
O Corolla de Cândida cruzou os
portões do prédio onde se situava o luxuoso apartamento da família Rebelo, no
Meireles, meia hora após sair da espelunca em que Thomás estava hospedado, no
centro da cidade.
...O
que é seu está guardado...
Aquela frase de Thomás
impregnou em sua memória, roubando-lhe por completo a atenção e por pouco não a
fez bater em uma das colunas da garagem. Não fosse pelo sinal emitido pelo
sistema de ré do automóvel, poderia ter causado um acidente.
Como
alguém pode ser tão ruim? Referia-se a Thomás, claro.
Aguardou alguns instantes até
se refazer do susto e finalmente desceu do carro. Entrando em casa, foi direto
para seu quarto. Precisava ficar sozinha, pensar no que fazer. A última coisa
que desejava naquele momento era encontrar o marido ou sogro, que certamente
perceberiam seu estado de nervos e lhe exigiram maiores explicações. Não, não
tinha cabeça para isso agora.
Bateu a porta atrás de si,
jogou a bolsa na cama e passou diretamente para o banheiro. Em seguida, lavou o
rosto e parou diante da imagem refletida no espelho em sua frente. Tantos anos
haviam se passado desde o rompimento com Thomás e lembrava perfeitamente de sua
fala justificando estar apaixonado por outra pessoa. Se ela tivesse aceitado
seu pedido de reconciliação, após descobrirem sua gravidez, talvez tudo fosse
diferente, até mesmo a tragédia poderia ter sido evitada. Tratava-se de
escolhas capazes de mudar muitas vidas. Imaginou que se soubesse
antecipadamente quais escolhas eram as mais importantes, podia evitar
sofrimentos ou desastres responsáveis por sua infelicidade.
A batida na porta lhe roubou
de seus devaneios.
— Entra. — autorizou. Talvez
fosse um dos meninos. — Salomão? — procurou saber, enxugando o rosto. — Já
desço para o almoço.
— O que estava fazendo naquela
pensão no centro da cidade?
Reconheceu imediatamente a
agressividade da voz de Edgar.
— O quê?
— Quem foi encontrar?
Cândida passou por ele,
voltando para o quarto e tentou disfarçar, tirando alguns acessórios.
— Está me seguindo, Edgar?
— Isso não importa. — acompanhou-a.
— Quero saber com quem anda se encontrando naquele lugar vagabundo!
— Depois de tantos anos as
suas desconfianças passaram a se tornar o discurso de um folhetim mexicano.
Poupe-me, Edgar!
— Se não me contar, eu mesmo
posso descobrir.
— O que espera, hein? — aproximou-se
do marido. — Que eu confesse uma traição? É isso? Como se sente em cada vez que
não consegue provar que estou te traindo? Sim, porque certamente é uma decepção
atrás da outra.
— Tenta ganhar tempo, me
enrolar. Vamos, me diga: quem foi encontrar?
Exatamente isso — ganhar
tempo. Se Edgar soubesse que se tratava de Thomás, com certeza confirmaria suas
suspeitas absurdas. Desejava evitar mais um problema desnecessário. O foco
agora era como livrar seus filhos do perigo maior que os assolava, não
administrar os ciúmes fantasiosos do marido. No entanto, se não o fizesse, ele
descobriria da mesma forma e talvez fosse pior. Esconder aquela informação
poderia representar a prova descabida de que Edgar precisava para confirmar
suas loucuras. Se contasse logo pelo menos ganharia tempo e até podiam juntos
descobrir um meio de neutralizar as maldades de Thomás. Isso, seria melhor
assim.
— O Thomás. — disse ela sem
pestanejar.
— Como?
— O Thomás. Não quer saber
quem fui encontrar naquele lugar? Então. É o Thomás que está hospedado lá.
— VAGABUNDA! — gritou,
atingindo-a com um tapa.
A reação de Edgar foi mais
rápida do que imaginava. Quando menos esperou Cândida estava sentada na cama,
com o rosto queimando debaixo da própria mão, tentando amenizar a dor que
sentira. Nem podia acreditar. Um louco!
— Não via a hora dele sair da
cadeia e se enfiar debaixo dos lençóis dele, não era? — acusou-a, embora
parecesse meio desnorteado.
— Você está louco!
— Vagabunda, isso é o que você
é!
— LOUCO! — gritou, tomada de
choro.
— Foi a primeira vez depois
que ele saiu ou já tiveram outros encontros amorosos?
— Não existe nada entre nós,
seu louco! Estava tentando salvar a nossa família!
A agressividade de Edgar nunca
havia chegado às vias de fato. Jamais encostara as mãos nela antes, nem mesmo
quando descobrira que Lucas não era seu filho, há doze anos. Agora,
ultrapassara todos os limites de sua insanidade. Sentira com aquele tapa a dor
de todas as agressões, em tantos anos de humilhação.
— Salvar como? Dando a ele o
prazer que tanto guardou?
— SAI DAQUI! — gritou, com
toda a fúria que nunca havia experimentado. E partiu para ele, batendo em seu
tórax.
Edgar tentou segurá-la para se
defender.
— SEU LOUCO! SAI DAQUI! — continuou
gritando e tentando se libertar das mãos de Edgar.
— Mãe?! O que está
acontecendo?!
Lucas entrou no quarto e
tentou separá-los.
— SAI! — Cândida estava em
surto.
— O que foi, pai? — o jovem
procurou saber, com dificuldade de segurá-la.
— Nada! — emperrou-a,
conseguindo desvencilhar-se.
Lucas a agarrou imediatamente.
— Calma, mãe! Calma! Estou
aqui! Calma!
— Sai daqui! — Cândida estava
em prantos. — Sai, sai, sai!
Lucas a segurava com força
contra seu peito.
— Calma, mãe, por favor!
Calma.
Ela nem percebeu o momento em
que aquele cretino os deixou a sós. Não conseguia parar de chorar, chorar todas
as humilhações as quais se sujeitou nos últimos doze anos. Um preço alto que
pagara por seu erro.
O filho a levou até a cama e
com cuidado lhe fez sentar, sem tirá-la do colo.
— O que houve, mãe?
Cândida chorou, até cansar e dormir em seu
colo.
8
Saulo entrou no elevador da
Comunidade acompanhado de Guilhermina. Aproveitou o espelho para ajustar a gola
do blazer, que já estava milimetricamente ajustada depois de um bom tempo se
arrumando para aquela reunião. Desejava parecer impecável, embora acreditasse
que todos os dias de insônia, desde a saída de Thomás da cadeia, deixaram-no
visivelmente abalado, ainda que a secretária afirmasse repetidas vezes que não.
— Todos presentes? — Saulo
procurou se certificar.
— Como pediu, — Guilhermina
respondeu prontamente. — todos à sua espera na sala de reuniões da comunidade.
— Ótimo. Hoje decidiremos o
futuro do Chiamare. — declarou.
As portas do elevador se
abriram e Saulo saiu imponente, como que para uma batalha. Solicitara uma
reunião extraordinária com todo o conselho administrativo do Chiamare, a fim de
traçarem estratégias para salvar a comunidade da vingança de Thomás. Precisavam
estar preparados para enfrentar o pior, e não conseguia imaginar o que aquele
psicopata tinha em mente.
Mais alguns metros e chegaram
à sala de reuniões, onde todos o esperavam. Um charmoso ambiente de 100m², com
uma grande mesa oval no centro, acolhendo os membros conselho. Sua poltrona
ficava ao fundo, de costas para um paredão de vidro que separava o salão de um
belíssimo jardim, responsável por dar um ar de graça e conforto ao requintado
ao lugar. Sentava em uma das cabeceiras da mesa, de frente para o presidente,
Dr. Juca Rebelo.
Pai de Edgar, o famoso médico
cirurgião, no alto de seus 70 anos, presidia o conselho do Chiamare desde a sua
fundação. E fora, sem sombra de dúvidas, uma peça fundamental à organização e
crescimento da obra, atraindo pessoas importantes, da alta sociedade de
Fortaleza, a integrar a comunidade. O poder concedido àquele homem sempre fora
motivo de conflitos internos na administração da obra na época de Thomás, que
acabava por acatá-lo em respeito ao Pe. Giuseppe. Que também ali estava, como
membro do conselho, sentado à esquerda de Dr. Juca.
À direita do elegante médico,
seu filho Edgar e a nora Cândida, outros dois membros. Ao lado do padre
italiano, Zica, a velha negra, primeira resgatada das ruas pelo Chiamare, responsável
por ensinar o ofício de costureira da obra e iniciar a primeira fábrica de
roupas da comunidade. Zica foi também a grande cuidadora dos trigêmeos,
assumindo em pouco tempo o papel de mãe dos meninos que a resgataram do mundo
das drogas. Há alguns anos, desde a saída de Thomás e a constituição oficial do
conselho administrativo do Chiamare, instaurando uma nova forma de gerência
participativa nos negócios, fora eleita por unanimidade a quinta conselheira,
com direito a voto ativo em todas as grandes decisões da comunidade.
Para Saulo, aquele conselho
nunca passou de um teatro desnecessário para maquiar a autoridade do Dr. Juca
Rebelo dentro do Chiamare. Todos ali sempre foram fiéis e submissos às vontades
de seu presidente, acatando qualquer uma de suas decisões, por mais absurdas
que parecessem. Aprendeu com o tempo que deveria ganhá-lo em seu gosto e
administrar a comunidade com vista nos próprios interesses, mas autorizado por
ele. Uma parceria que se iniciou antes mesmo da saída de Thomás.
Saulo iniciou a reunião dando
as boas-vindas a todos e saudando o Dr. Juca em especial. Sem muitos rodeios,
justificou o encontro com a saída de Thomás da cadeia. Pediu que Guilhermina
relatasse a tentativa em dissuadi-lo de seu propósito de vingança, a fim de que
todos percebessem a gravidade da situação. Logo depois que ela o fez, exigiu
que juntos pensassem numa forma de proteger a comunidade da loucura do irmão. O
que trouxe certo silêncio.
Dr. Juca o olhava de modo
interrogativo, com as mãos transpassadas na frente da boca e cotovelos apoiados
na mesa. Zica parecia não respirar, com olhar arregalado, como se tivesse visto
um fantasma. Edgar e Cândida, calados e cabisbaixos, como nunca estiveram. Pe.
Giuseppe, rezando seu terço de forma silenciosa, acompanhando as contas por
baixo da mesa.
— O que está acontecendo aqui?
— Saulo procurou saber de modo impetuoso. — É nosso dever pensar numa forma de
nos proteger e à comunidade. Principalmente, proteger o Lucas daquele doente. —
pronto, o que faltava para que se manifestassem. De um modo ou de outro Lucas
era o maior tesouro para todos ali, fosse pela mística vivida nos rituais do
Chiamare, fazendo do rapaz a principal pilastra da comunidade, ou mesmo pela
dimensão afetiva, sendo ele o filho e neto preferido.
— Ele não vai se aproximar do
meu neto! — declarou Dr. Juca, com ar de superioridade.
— Como o senhor pode ter tanta
certeza? — Saulo provocou.
— Ele está disposto a tudo. — Disparou
Cândida, saindo de seu mundo silencioso.
— Do que está falando? — Dr. Juca
a interpelou.
— Responde, Cândida. — Edgar a
incentivou, cabisbaixo.
Saulo percebeu que alguma
coisa havia acontecido. Os dois estavam muito estranhos.
— O Saulo tem razão, ele quer
vingança — afirmou ela.
— E como sabe? — Dr. Juca
perguntou mais uma vez.
— Não importa como sei. Apenas
acreditem! Meus filhos correm perigo! Não somente o Lucas.
— O que está acontecendo,
Cândida? — desta vez foi Saulo quem perguntou.
— A impressão é que esteve com
ele. — Guilhermina cogitou.
— Fala, Cândida. Diz como sabe
da vingança do Thomás. — insistiu Edgar, com leve sorriso, sem erguer a cabeça.
Mais
uma vez os dois estavam se digladiando certamente e aquilo deixou Saulo
enfurecido. Com certeza sabiam de algo importante.
— Parem
com isso! — exigiu ele — Não é momento para as brigas de vocês. O destino do
Lucas, do Chiamare, de todos nós está em jogo. O que sabem sobre o Thomás?
— Vai
responder ou quer que eu responda? — Edgar perguntou a esposa olhando para ela.
Cândida
ergueu a cabeça e disse:
— Estive
com ele ontem.
— O
quê? — Dr. Juca perguntou.
— Isso
mesmo. — confirmou ela. — Eu o procurei para lhe dizer que se afastasse de
todos nós e principalmente dos meus filhos. Há dois dias ele estava em frente à
Igreja Santo Antônio de Pádua, seguindo o Lucas.
— Santo
Deus! — exclamou Zica com a mão no peito.
— Ele
foi à igreja me procurar, — revelou Pe. Giuseppe. — mas não esperava que
cumprisse aquilo que prometeu.
— E o
que ele prometeu, padre? — Guilhermina se antecipou.
— Disse
que quer de volta tudo aquilo que lhe roubaram.
— Exatamente
o que ele me disse. — confirmou Cândida.
— Desgraçado!
— Saulo resmungou. Depois de tantos anos voltava para assombrar a vida de todos
eles novamente, de pessoas que já haviam sido suas vítimas e procuravam se
refazer. Como alguém tão importante na vida de tanta gente podia se transformar
num monstro como aquele? Por vezes sentiu falta do irmão e até pena durante o
tempo em que estivera preso, mas naquele momento tinha certeza de que fora um
período de paz e bem-aventurança e que certamente Deus o havia tirado de suas
vidas a fim de que se cumprisse Seu verdadeiro desejo. E agora, exigia dele uma
atitude.
Sim,
faria o necessário! Levantou-se e bateu forte com a mão na mesa.
— Esse
louco não pode ficar à solta por ai! — afirmou com severidade. — Vamos
colocá-lo na cadeia novamente!
9
Thomás procurou se concentrar
nas músicas tocadas pela estação de rádio FM, sintonizada em seu pequeno
aparelho de som importado conectado ao fone de ouvido, por todo o percurso do
ônibus, do centro da cidade à Av. Historiador Raimundo Girão, em frente ao
aterro da Praia de Iracema, onde desceu. Preferia não pensar em como seria
aquele encontro que estava prestes a acontecer. Na verdade, nem esperava que
fosse se realizar tão rápido. Já perto do almoço, pronto para sair do hotel
onde se hospedava e procurar uma refeição barata ali nas imediações, a
recepcionista gorda e de cabelo desgrenhado anunciou uma ligação para ele.
Imaginou Guilhermina do outro lado da linha. Ela descobriria facilmente o telefone
daquela espelunca. Mas jamais que ouviria aquela voz grave, tão presente em sua
memória, em seus pesadelos, nas dores de sua alma marcada pela traição.
“Alô,
Thomás? Chegou o momento do nosso reencontro!”
Não queria ter experimentado o
susto ao ouvir aquilo. Verdadeiramente, não desejava que nenhum daqueles
sentimentos confusos tivesse se manifestado naquele momento. Uma sensação de
vazio, indignação, raiva, ansiedade e saudade o calaram por um instante, o
suficiente para que um filme passasse diante dele e fosse tomado pela vontade
de reaver o motivo pelo qual estava de volta, protegendo-se na própria dor.
Odiou sentir-se frágil, à mercê daquela voz e do que ela lhe propusesse. Como
se tudo pudesse mudar ali mesmo.
Eles
me traíram! Eles me traíram! Eles me traíram!
Repetiria mil vezes se
necessário fosse, a fim de que tornasse à sua sanidade. Foi o que aconteceu.
Marcaram o encontro para o final da tarde, no espigão do aterro. Em pouco mais
de uma semana de liberdade estaria diante do terceiro traidor, colocando em
prática seu plano.
Comprou uma água de coco no
calçadão e caminhou em direção ao final do espigão, deliciando-se com o doce do
líquido e com o vento forte cortando seu rosto, de óculos escuros, jogando seu
cabelo contra a face, como se o limpasse da confusão sentimental de horas antes
ao telefone. Sim, estava pronto para mais um confronto.
O traidor já podia ser
avistado, a alguns metros, apoiando-se nas pilastras do espigão, talvez
contemplando o pôr-do-sol ou a beleza do mar em movimentos hipnotizantes à sua
frente. Trajava uma bata branca que parecia se fundir com o vento, jeans e
sapatênis, de um modo despojado, como quando jovens. Mudara pouco, exceto pela
barba fechada permanente com a qual o havia conhecido, e não mais usava. Os anos pareciam não terem passado para ele.
Por uma fração de segundos
precisou controlar o próprio coração que o traiu em acelerar um pouco mais que
o permitido. Parou, até se recompor em perfeito equilíbrio, em seguida se
aproximou e pôs-se ao seu lado, como se partilhasse do mesmo objetivo em
vislumbrar o horizonte.
— Senti falta deste paraíso. —
proferiu, acompanhando o susto de Edgar pela visão periférica.
— Você?
— Claro. Esperava outra
pessoa? — continuou mirando à Ponte dos Ingleses.
— Não, adiantou-se no tempo.
— Precisei aprender a cumprir
horários nos últimos doze anos. Como está?
— Não interessa como estou.
Como
não interessa? E a nossa amizade? E o tempo que estivemos longe? Ele realmente
não se importa? Não sente por isso?
— Thomás, não liguei para
cumprir uma social com você. Precisamos acertar nossas contas. Foi para isso
que te chamei aqui!
Ainda
é arrogante! Eu devia está-lo tratando desta forma, não ele a mim!
— E acha que vamos acertar
nossas contas aqui e agora? — ironizou, mostrando o lugar. — Sinto dizer que
sua conta está grande, meu amigo. — Finalmente voltou-se totalmente para Edgar,
tirando os óculos, a fim de encará-lo. — Não é assim que vai pagar tudo o que
me roubou!
— Não roubei nada, você
escolheu seu próprio destino.
Desgraçado!
E fala com esta calma depois de tudo o que me fez?
— Queria que pelo menos um de
vocês tivesse coragem de assumir a verdade, para que eu pudesse reconhecer o
mínimo que fosse de alguém que conheci no passado e fez parte da minha vida.
Mas mentem até mesmo para mim, como se fosse um método de me fazer acreditar
nessa mentira. Talvez uma forma de me deixar louco.
— Mas você é louco.
— Diz a verdade pelo menos uma
vez, Edgar. Vai, fala! Não tenho nenhum gravador aqui, juro! — Justificou,
vistoriando o próprio corpo.
— Onde pensa que pode chegar
com essas mentiras de perseguição?
— E você? Comigo não precisa
mais mentir. Lembra por que terminei meu noivado com a Cândida? Lembra?
— Não vim aqui para falar do
passado, Thomás. — declarou, jogando a mão para trás de modo impaciente.
— Hoje está claro que me
enganou desde aquela época. Rompi com a Cândida por estar apaixonado por quem
não merecia. E, claro, aproveitou-se disso. Na verdade, era esse seu plano.
Queria me afastar dela para ficarem juntos. — Thomás desviou o olhar procurando
uma lixeira para se desfazer do coco em suas mãos e o jogou numa lixeira de
cimento ao lado de onde estavam. Depois se reaproximou e prosseguiu. — Você me
iludiu da forma mais sórdida!
Edgar esperou que um grupo de
turistas passasse atrás de suas costas e falou, como que para evitar que
ouvissem.
— Nós já tivemos essa conversa
no passado e não nos levou a lugar algum. É o seguinte, Thomás: Para mim não
passa de um bandido mentiroso que criou essa história de complô para justificar
dentro de sua cabeça doente os crimes cometidos no mundo a sua volta. Comigo
não tem diálogo, você não me engana, ponto!
— Se não tem diálogo, por que
me chamou aqui?
Edgar se pôs diante de Thomás,
quase encostando em seu rosto, olhando-o profundamente, e deu o recado:
— Quanto quer para nos deixar
em paz?
Thomás podia sentir seu hálito
quente e tremeu. Nunca pensou estar novamente tão perto dele, do melhor amigo,
de seu maior cúmplice, de quem jamais esperou um dia a traição. Por um instante
recordou o momento em que Edgar chegou ao grupo de jovens da Igreja Santo
Antônio de Pádua, numa tarde de sábado, calado, resignado por uma crise de
abstinência de seu vício, motivo pelo qual o pai o obrigara a estar ali. Aos
poucos fora se soltando, abrindo o sorriso, entregando-se em confiança ao novo
amigo, o líder do grupo. Juntos, por anos, ele, o irmão Diogo, Cândida e Edgar,
formaram o “quarteto alegria”, como se autodenominavam, até a fundação do
Chiamare. Uma amizade que os faziam plenos, felizes.
Nós
nunca vamos nos separar! Foi uma fala de Edgar abraçado com os
três.
Os três se separaram!
Mas para Thomás, a paixão
desenfreada de Edgar por Cândida provocou fatalmente a separação! Por ela, foi
capaz de iludi-lo, fazê-lo acreditar em outra paixão, e depois incriminá-lo,
afastando-o definitivamente de suas vidas.
Poderia desmascará-lo ali
mesmo, trazer mais verdade do passado à tona e atentar-se a sua reação. Um meio
de confrontá-lo em sua trama bem arquitetada. Mas de que adiantaria afinal?
Edgar simplesmente desmentiria tudo, como fez anos antes. Não, melhor seria
seguir com o plano. Celebraria a própria força e determinação, mesmo tão perto
de seu passado ainda tão presente.
— Vim pegar o que é meu. — respondeu
Thomás simplesmente, permanecendo na mesma proximidade imposta por Edgar,
talvez como meio de intimidação, mas que para ele provocava hoje o que pensava
ter morrido na prisão.
Foi Edgar quem recuou, deu as
costas e foi até ao parapeito contrário ao que estavam, e de lá, perguntou:
— E o que acha que é seu?
Thomás se aproximou, falando
pertinho em seu ouvido. — O Chiamare, Salomão e... — fez um suspense. — O
Lucas. — foi praticamente um sussurro.
Edgar se virou precisamente para
ele, encarando-o de frente e chegou a encostar nos lábios de Thomás.
— Não se atreva a se aproximar
da minha família! — em seguida pareceu cair em si, por perceber um grupo de
pessoas passando por atrás de Thomás, e tomou distância. — Não sabe do que sou
capaz.
— Sei sim. Mas não sabe o que
me tornei ao descobrir do que você era capaz. — proferiu, sorrindo.
— Eu mato você! — Edgar
afirmou, colocou os óculos escuros e o deixou.
Thomás o observou se
distanciando e sorriu simplesmente.
— O que é seu está guardado,
meu amigo.
10
— Parabéns pelo prêmio, Laura.
Sem dúvidas seria a melhor.
Laura Ponte girou na cadeira à
frente da mesa de Chico Pedreira, voltando-se completamente a ele, para ter
certeza que viera de seu editor aquele elogio. Um homem que gostava de
alimentar a fama de mal-humorado e chefe durão, somada aos seus quase cento e
cinquenta quilos, pouco escondidos pelas roupas frouxas, as quais sua esposa
insistia que fizessem parte de seu guarda-roupa pouco variado. Ele referia-se
ao prêmio que Laura recebera, há poucos dias, por uma reportagem investigativa
acerca do crescimento do vício de drogas pesadas em crianças e adolescentes nos
últimos anos, ganhando uma capa da revista Notícia em outubro do ano passado.
— Estou mesmo acordada? — ironizou
ela, com largo sorriso. — Chico Pedreira elogiando uma de suas repórteres... NOS-SA!
“Isso” merece uma matéria.
— Não seja modéstia, garota.
Sabe que é boa. — justificou, mirando para ela com a ponta de um lápis, como se
fosse uma luneta.
— Espero que isso renda pelo
menos um aumento. Por que me chamou aqui? Vindo de você, certamente não foi só
para elogios.
— Não, mas para lhe confiar
uma missão especial.
— Hum! Essa doeu... — brincou,
fechando os olhos. — O que é a bomba agora?
Chico Pedreira sempre lhe
confiava perigosas missões, segundo ele. Geralmente trabalhos desafiadores,
como o da matéria sobre o vício de crianças e adolescentes, responsável por
conceder o prêmio de melhor reportagem investigativa e denúncia do ano passado.
O editor arremessou um
exemplar da revista Notícia em cima da mesa, diante dela, trazendo a manchete: Saulo Sobreira, o grande Pescador de Vidas, sobrepondo-se
à foto do moderador da comunidade católica Chiamare, a personalidade em
questão. De quem mesmo teria sido a ideia de extremo mau-gosto daquela
manchete? No mínimo uma matéria comprada, como muitas daquele estilo. Laura
conhecia a política administrativo-financeira de uma revista semanal do porte
da Notícia, que não se mantinha com anúncios publicitários, mas com a venda de
matérias encomendadas a fim de criar ou destruir heróis.
— Preciso de você em
Fortaleza. Saulo Sobreira é seu próximo trabalho. — anunciou ele, sem rodeios.
Fortaleza?
Jamais voltarei para Fortaleza!
Por um instante, Laura
esqueceu sua aversão por pessoas pernósticas como o homem daquela foto ridícula
na capa da revista. O destino para o qual Chico intencionava em mandá-la era o
suficiente para tirá-la do prumo e fazê-la perder o bom humor e espírito
brincalhão com que levava seu trabalho, por mais sério que fosse.
— Como assim Fortaleza? O que
quer exatamente que eu faça lá?
— Saulo Sobreira é um dos
nomes mais comentados atualmente em todo o país. — Chico jogou o lápis na mesa
e levantou-se, indo até a garrafa de café num móvel de apoio na lateral da
sala. — Ele lidera uma das maiores comunidades da Igreja Católica na atualidade.
Precisa de mais motivos? — voltou à mesa cuidadosamente para não derramar o
café que quase transbordava do copo.
Laura procurou desfocar do
local citado há pouco e concentrar-se na personalidade em questão. Tomou a
revista em suas mãos, levantou-se e leu a manchete pausadamente, como se fosse
descobrir um segredo, um subtexto, algo que justificasse sua recusa.
— O que escrever sobre esse
homem, além de que ele é um puta de um narcisista e provavelmente um charlatão?
— Ô, ô... e o faro da minha
jornalista preferida, o que aconteceu com ele? Essa comunidade está
arrebanhando milhares de pessoas muito rapidamente, crescendo de forma
extraordinária. Sem falar nos rituais enxertados de mistérios, objetos
levitando, pessoas afirmando serem curadas milagrosamente...
— Fanáticos, pessoas
descompensadas que não podem pagar um bom terapeuta. — Laura soltou a revista
na mesa. — Não, Chico, minha resposta é não!
— Eles querem você.
Matéria
comprada.
— Eu sabia! Esse doente
autocentrado quer se transformar num herói. — Laura pegou a bolsa na cadeira,
preparando-se para sair. — Sinto muito, Chico. Mas sabe que não faço esse tipo
de trabalho.
— Foi uma ordem da diretoria.
Eles querem a melhor.
Laura parou diante da porta.
— O quê?
— Vai para Fortaleza em uma
semana.
Quanto tempo fazia desde que
havia deixado a capital cearense e se aventurado no mundo? Exatos vinte anos.
Uma adolescente de 14 anos, diante de uma tragédia. Morava em São Paulo desde
então, tentando reconstruir sua vida, onde se casou e fez-se respeitar enquanto
profissional. Constituiu uma nova identidade, uma nova vida, uma nova mulher.
Acreditava que nunca mais retornaria ao universo no qual experimentou o ódio, a
decepção, o desalento, a força da morte e destruição da própria felicidade.
Fortaleza
não!
Como se o passado batesse à
sua porta e lhe chamasse inadvertidamente a uma regressão. Numa fração de
segundos, toda a dor e sofrimento, experimentados há vinte anos, voltavam a lhe
assolar. Durante esse tempo, por diversas vezes, surgiram oportunidades de
voltar, claro, e nunca quis, sempre foi possível evitar. Dessa vez, seu
trabalho, a única razão de viver, responsável pelo fim de todos os seus
relacionamentos, pregava-lhe uma peça.
Mas hoje eles precisavam mais
dela do que ela deles! Uma jornalista de seu porte tinha regalias. A decisão
estava tomada!
— Não, Chico, não vou! Dessa
vez não conte comigo. — completou, abrindo a porta.
— Se não for está despedida.
Laura olhou por cima do ombro
e o viu tomar o último gole de café. Falara com a mesma frieza que lhe era
peculiar em qualquer situação, não importava qual fosse ela.
Ele
não está brincando! E agora?
11
Diogo entrou no primeiro táxi
que encontrou disponível em frente ao hotel onde estava hospedado, na Av.
Paulista. Pediu que o motorista seguisse em direção ao centro de São Paulo,
atrasado para mais um compromisso profissional, dentre muitos naquela jornada
de trabalho como consultor, há mais de um mês fora de casa. Sentia-se cansado,
com saudade de seu canto, um confortável apartamento de 140m², localizado na
Av. Pe. Antônio Tomás, em Fortaleza, para o qual havia mudado recentemente e
nem sequer tivera tempo de aproveitar. No entanto, permaneceria na capital
paulista por quase uma semana. O que lhe esgotava as forças só em pensar.
Mantinha-se tão concentrado
nas mensagens trocadas pelo WhatsApp,
que não deu a menor atenção à conversa ensaiada pelo motorista, limitando-o a
acompanhá-lo entre uma olhada e outra pelo retrovisor. Dialogava com pelo menos
três pessoas ao mesmo tempo, através da rede social, fazendo o aparelho celular
disparar vários bipes a cada minuto, quando sentiu a primeira pontada na
cabeça. Parecia uma agulha a penetrar seu crânio e revirar o cérebro, levando-o
a comprimir a nuca, como se aquilo fosse de algum modo minimizar a dor.
— O senhor está bem? — procurou
saber o taxista, ao vê-lo contrair-se pelo retrovisor.
— Sim, amigo, nada demais. — respondeu
de pronto, tentando disfarçar. Mas veio outra pontada, forçando-o a mais uma
contração.
— Acho que o senhor não está
bem. — o motorista aparentou preocupação, acompanhando-o pelo espelho.
— Não se preocupe, é comum,
estou acostumado.
— Minha esposa tem isso, é
enxaqueca.
Desejou que fosse uma simples
enxaqueca, como partilhou o homem em sua ingenuidade. Entretanto, aquela dor
era uma velha conhecida sua. Nem lembrava sequer a primeira vez que a
experimentou, certamente um garotinho. Ela sempre anunciava quando ia
acontecer. Os oito anos como missionário consagrado da comunidade fundada pelo
irmão haviam consolidado o dom o qual negara a vida inteira e, segundo ele,
fora o mesmo responsável pela perdição de Thomás. Diogo passara os últimos doze
anos procurando se afastar daquilo a que sempre repudiou em sua vida,
transformando-o numa pessoa diferente das demais, especial, como o irmão
considerava. Os fenômenos agora aconteciam com menos frequência, ele conseguira
controlá-los com o tempo e sua maturidade, após sua saída do Chiamare.
Vieram as primeiras imagens,
elas se confundiam com a visão que tinha dos bancos e parte do painel do
automóvel, parecia uma mulher, com o braço machucando, sentada numa maca em um
hospital.
— Se o senhor quiser, posso
levá-lo a um pronto-socorro. — sugeriu o motorista, talvez assustado por vê-lo
se contorcer e tremer, com as mãos na cabeça.
Ao mesmo tempo, não tinha como
dar atenção ao homem. Os sons se confundiam entre o real e a fantasia. Buzinas
de carros, hora a poucos metros, em outro momento faziam parte de suas visões. Além
de mais imagens: a mesma mulher de segundos antes, atravessando a rua e um
carro vindo em sua direção. Novamente a dor, desta vez mais intensa, fazendo-o
escapulir um grito.
— Meu Deus, o que está
acontecendo? — o homem parecia suplicar ao volante.
— Para o carro!
— Posso levá-lo ao um
hospital, senhor! — insistiu o motorista.
Mais visões: Um aparelho
celular caindo no assoalho de um automóvel, impedindo que uma mulher ao volante
visse o sinal vermelho.
— PARA ESSE CARRO! — Diogo se
surpreendeu com o próprio grito.
O motorista simplesmente
obedeceu. Ele saltou do veículo, em plena Av. Paulista, atordoado com o
movimento e as lembranças do que acabara de pressentir. Sabia que estava ali
com um propósito, como quando ia às ruas, acompanhado do irmão.
Iria culpar-se por tempos, até
cair em seu esquecimento que mais uma vez foi contra as leis naturais da vida.
Hoje, para ele, utilizar-se daquela força desgraçada o afastava de seus
princípios éticos, de Deus.
Parou um pouco, escorou-se num
poste, respirou fundo e pensou em desistir, ir embora dali, continuar vivendo
como uma pessoa comum, que não enxerga além do que está a sua frente, sem mudar
o que é natural, o que provavelmente está para acontecer e foi permitido por
Deus. Por vezes considerou-se uma aberração diante de situações parecidas.
Afinal, ia de encontro ao que era traçado por Deus, ou servia de instrumento
Seu para mudar destinos? Aquela dúvida fizera parte de sua vida, e não precisou
mais vivê-la ao decidir seguir caminho como homem comum.
Diogo olhou para a rua e
avistou a mulher de suas visões, uma moça elegante de cabelos castanhos caídos
em cascatas, blusa branca, calça preta e bolsa a tiracolo, transpassada do
ombro direito ao quadril esquerdo. Ela aguardou que o sinal de pedestres fosse
liberado e seguiu pela passarela, como se para ele, andasse em câmera lenta. A
alguns metros à frente, um automóvel em alta velocidade chamou a atenção de
Diogo. Sabia que a mulher ao volante tirara o foco da direção para pegar o
aparelho celular que caíra no assoalho. Se Deus não quisesse a utilização de
sua força sobrenatural, a moça atravessando a rua certamente morreria.
O bem deveria ser feito!
Concentrou-se nos freios do
automóvel em disparada até ser novamente invadido pela mesma dor de outrora.
Sentiu todos os nervos retesados e o sangue a queimar na superfície da pele. Parecia
segurar o veículo com as próprias mãos, repuxadas como garras em ação.
A cena do carro cantando pneu
em direção à moça na passarela de pedestres chamou a atenção de todos na rua.
Pessoas gritaram, outras fecharam os olhos para não testemunhar a tragédia. O
automóvel não pararia a tempo.
Diogo voltou-se para a mulher
na rua e a viu ser projetada por sua própria força para trás, ganhando alguns
centímetros, para que o veículo, já desgovernado, não a machucasse.
Pessoas correram para o local
como abelhas num enxame, saindo de todas as partes. A moça caída no chão
procurou se erguer com a ajuda de um senhor. A motorista saltou do veículo
desesperada, pedindo perdão. Diogo se aproximou com dificuldade, sentia-se
fraco, exaurido.
— Você está bem? — procurou
saber da mulher, sentada do asfalto. Ela lhe olhou de um modo surpreso, como se
o conhecesse ou se admirasse por algum motivo.
Linda! Um olhar de felina,
pele branca e lábios salientes.
— Acho que sim, só o meu braço
que está doendo. — respondeu ela, investigando o machucado no cotovelo.
— Um milagre! — alguém gritou.
— Você viu? Foi por pouco! — outra
pessoa comentou atrás deles.
— O carro parecia ser segurado
por alguém, uma força... — outra voz se revelou.
— Ele parou sozinho, não fiz
nada! — afirmou a motorista, em estado de choque, com as mãos na cabeça. — Não
fiz nada! Foi sim um milagre!
— Eu a levo a um hospital, — Diogo
propôs, envolvendo-a com o braço por trás de suas costas. — consegue levantar?
— Não pode mexer com ela! — reclamou
alguém.
— Não, estou bem. — explicou a
moça às pessoas, como se o autorizasse a ajudá-la, mas continuava a fitá-lo de
uma forma curiosa, interrogativa. — Posso levantar sim.
Quando sentiu a lateral da
mulher contra a sua, finalmente Diogo entendeu porque estava ali. Um calor
descomunal tomou conta dele, descompensando os batimentos cardíacos, e poderia
eternizar aquele momento.
— Como é seu nome? — perguntou
ele.
— Laura — Fora simples e
precisa. — E você, deve ser o Saulo Sobreira. — completou.
Por isso ela o olhava daquela
forma. Estava-o confundindo com o atual líder do Chiamare. Mas até ali em São
Paulo ele era confundido com o irmão? Incontáveis vezes pessoas lhe indagavam
se era o Pescador de Vidas. Que ironia! Diogo foi missionário do Chiamare,
resgatando vidas das ruas por anos, até a tragédia responsável por afastar os
dois irmãos fundadores da comunidade.
— Não. Meu nome é Diogo. — Procurou
não dar atenção à gafe.
— Você não é o...
— Não, não sou. Vou levá-la a
um hospital.
Diogo parou um táxi mais a
frente e colocou-a dentro, com cuidado. Depois entrou junto e pediu que o
motorista os levasse ao hospital mais próximo. Laura o observava curiosamente,
tentando fazer de uma forma, sem êxito, que ele não percebesse. Ele também a
perscrutava, e sentia seu cheiro, seu calor, sua energia. Tomando a decisão de
sentir-se feliz por conhecê-la.
12
Thomás se aproximou do número
1724, na Rua Monsenhor Catão. Uma área cercada por um imenso muro de pedra que
o separava de seu passado. A propriedade fora doada ao Chiamare há treze anos
por uma rica família, a fim de que se transformasse na sede da comunidade. Na
época, tinha-se da rua, a visão da velha mansão através do meio-muro e grades
baixas. Não mais reconhecia o lugar onde morou em seu último ano, antes da prisão.
Provavelmente a clássica construção dos anos 1950, nem mais existia. Talvez
Saulo, com sua vaidade e espírito megalomaníaco, já a teria reformado, restando
um amontoado de paredes modernas, metal e vidro.
Aos poucos se pôs diante do
portão de aço, e o mesmo começou a se mover, dando espaço à visão de um prédio
gigantesco, com imensas portas de vidro, contornado por um belo jardim.
Exatamente como havia imaginado. Nada restara da casa em que havia residido.
Parecia estar diante de uma imensa nave espacial.
Impossível, no entanto, evitar
as lembranças de quando pisara ali pela primeira vez.
Que
aqui, o Chiamare possa crescer e ganhar o mundo! — Desejou,
com largo sorriso e braços abertos diante da mansão. Atrás dele, Diogo, Edgar e
Cândida, igualmente felizes.
Como tudo pode mudar? Um ano
depois, o sonho fora destruído. Thomás acusado de assassinato, tendo como
cenário do crime, o lugar no qual acreditava que seria seu aconchego. Tão
rápido quanto lamentou a transformação do local, aliviou-se por encontrar outro
ambiente e não mais a planta de sua desgraça.
Olhou para os próprios pés
caminhando, devagar, portão adentro. Sonhou com aquele momento nos últimos doze
anos e precisava ter certeza do real. Ao cruzar o muro, viu o porteiro na
guarita acenando com a mão. De alguma valia tinha o fato de ser idêntico ao
atual moderador do Chiamare. Certamente para o funcionário ingênuo não passava
de seu chefe. Assim como para o jardineiro, que o cumprimentou em seguida,
tirando o boné.
Thomás procurou se localizar,
para que ninguém percebesse sua desorientação quanto ao local. Logo se deparou
com o que devia ser a entrada, um imenso hall com três jogos de cadeiras,
muitas plantas e uma larga escada em mármore ao fundo. Ao subir os degraus,
tinha à sua direita um longo corredor, com portas subsequentes de um lado e uma
sacada que dava para o jardim interno do centro religioso. Mais à frente, uma
porta de vidro espelhado entreaberta, de onde se podia vislumbrar uma sala de
estar. O que facilitou a decisão para qual direção tomar.
Na sala, percebia-se
claramente o requinte e conforto. Obras de arte, vasos e quadros que definiam
um bom gosto e o quanto o dinheiro dos fiéis era mal empregado. Em meio ao
luxo, uma grande imagem de Cristo Ressuscitado, na parede de fundo, o símbolo
do Chiamare. Sentiu-se chamado a primeira vez em que a viu na sacristia da
Igreja Santo Antônio de Pádua, fora sua grande inspiração. Aproximou-se da
imagem e, diante dela, tirou os óculos escuros e reconheceu-a. Era ela, a mesma
de quando tinha 10 anos. Pe. Giuseppe o presenteara com aquela imagem na
inauguração do Chiamare.
De repente, o Cristo se
contorceu nas lágrimas que ele não conseguiu evitar. Sua vida estava ali
representada por aquela escultura de braços abertos.
— Por que me abandonastes? — o
pensamento se fez verbo.
— Saulo? — perguntou uma voz
atrás dele. Thomás jamais a esqueceria. Mais um reencontro. Dois dias após ter
estado com Edgar, era a vez daquela traidora. Ele enxugou as lágrimas
rapidamente, depois se voltou para a mulher.
Quando o viu, Zica arregalou
os olhos, levando a mão à boca no impulso, como se visse um fantasma.
— Booo! — disse ele, sorrindo,
como nos desenhos de fantasmas. Divertiu-se ao vê-la assustada. — Como vai,
Zica?
— Santo Deus! — procurou
apoiar-se no console ao seu lado.
— Te assustei?
Houve um silêncio, depois ela
falou. — É você mesmo? — continuava, imóvel onde estava.
— Claro. Achou que eu não
sairia mais da cadeia? — ironizou, aproximando-se dela.
— O que está fazendo aqui?
— Hum, magoou! — apertou os
lábios, zombando de Zica. — Pensei que tivesse sentido saudade. — olhou de
perto para ela e completou. — Sou o teu menino, Zica, lembra?
Ela encheu os olhos de
lágrimas e tocou-lhe o rosto.
— Thomás... — Zica pronunciou
seu nome, parecendo afetiva.
Desejou abraçá-la, sentir seu
carinho, o aconchego de seu colo, que ela lhe falasse da imensa saudade, do
quanto se arrependia, de seu amor incondicional. Após ter sido a primeira
resgatada das ruas há vinte anos, Zica assumiu para os trigêmeos o papel de
cuidadora, de mãe.
— Por que ficou do lado dele?
— pela primeira vez, Thomás falou num tom de lamentação e afeto.
— Meu menino... não escolhi
nenhum lado, apenas fiquei aqui fora. Saulo foi o que me restou.
Mentirosa! Zica
havia testemunhado contra ele. Para o juiz, veio dela a confirmação de que
Thomás e a vítima eram amantes.
Rapidamente caiu em si
novamente, tirou o rosto de sua mão num impulso e deu-lhe as costas.
— Você é igual a todos eles,
Zica. Uma traidora.
— Zica, viu a Guilhe... a voz
às suas costas logo parou. Tinha o mesmo timbre que a sua e fez seus batimentos
galoparem. Dois traidores de uma só vez. O destino não poderia ter sido mais
generoso. Doze anos depois, encontrava-se com seu maior inimigo, o responsável
pela destruição de sua vida.
Thomás estralou as vértebras
do pescoço, contorcendo-o de um lado para o outro, em seguida virou-se devagar,
como forma de saborear aquele encontro.
Saulo estava ao lado de Zica,
imóvel, com os olhos como se fossem saltar de seu rosto, e o maxilar praticamente
deslocado. Como se Thomás estivesse diante de si mesmo, mas certamente vestido
com roupas muito caras, camisa, blazer e sapatos finos. Pele limpa e bem
cuidada. Cabelo com corte impecável, fazendo daquele homem o protótipo da
vaidade e elegância masculina. Desde jovem o irmão foi preocupado com a
aparência.
— Como anda o nosso Pescador
de Vidas? — foi Thomás quem primeiro falou.
— Cheguei e ele estava aqui — explicou
Zica, meio atônita.
— E então, não vai me dar as
boas-vindas, meu irmão? — levava no rosto um sorriso que denunciava o prazer
sentido ao vê-lo espantado.
— Saulo, você está bem? — Zica
procurou saber em meio abraço.
Thomás percebeu o afeto com
que ela o tratou e sentiu raiva por isso.
— Vamos, Saulo Sobreira, diga
alguma coisa! — insistiu ele, num tom mais afobado, com raiva de si mesmo, pelo
ciúme idiota.
— O que quer aqui? — Saulo
parecia ter cuspido aquilo, quase não conseguiu pronunciar.
— Como assim o que eu quero? —
Thomás foi se aproximando, aos risos, enquanto ele dava leves passos para trás.
— Quero estar perto dos meus. Digo, do que é meu.
— Seu? — Saulo estava chocado
e aquilo lhe enchia de um prazer mórbido.
— É, meu. — confirmou, aos
risos.
— Do que está falando? — a voz
de Saulo quase não se fazia ouvir.
— Saulo, você está bem? — insistiu
Zica do seu lado, ao mesmo tempo, olhava para Thomás, assustada.
— Acho que não. — Thomás
disse, aos risos, cada vez mais próximo. Saulo estava praticamente fora da
sala, na entrada do corredor por onde havia chegado. — Hein, meu irmão, você
está bem?
— O que quer aqui? — Saulo
falou com firmeza.
— Hum, agora é o Saulo
Sobreira que conheço. — ironizou.
— DIZ O QUE QUER! — nem Thomás
esperava por aquele grito. Zica parecia muito assustada com tudo.
O sorriso de Thomás deu lugar
a uma expressão de ódio, os músculos do rosto se repuxavam. Doze anos de sua
vida perdidos por causa da ganância daquele homem. Saulo Sobreira hoje era para
ele o anjo caído. Sim, a representação do próprio demônio. Se fizesse o que
desejava, voaria em cima dele e o mataria com suas próprias mãos. Um crápula,
que seduziu a todos, tramou, mentiu e tomou seu lugar no mundo. Desde jovens
procurou não dar atenção à inveja do irmão, que sempre desejou ser ele. Mas sua
doença o levou longe demais, capaz de matar e incriminar o próprio irmão para
roubar sua vida.
Apesar do forte desejo de
fazer justiça naquele momento, levaria seu plano adiante. E daria a Saulo o que
ele verdadeiramente merecia.
— Quero o que é meu. — respondeu
simplesmente.
Saulo olhou para o ambiente a
sua volta, levando-o a fazer o mesmo e declarou. — Vê? Não há mais nada seu
aqui. Tudo é novo, diferente.
Thomás se pôs diante do irmão,
face a face.
— Pode construir palácios e
encravá-los no ouro, ainda assim terá feito nos alicerces de minha vida. Sou eu
o início de tudo isso, Saulo.
— Parem vocês dois! — pediu
Zica. — Isso não vale a pena.
— É simples para vocês, não é
Zica? De mim foi tirado tudo. — justificou Thomás — É apenas uma questão de
justiça.
— A justiça foi feita quando o
tiraram do convício com a sociedade! — acusou Saulo.
— Não, errado! Isso fez parte
de uma mentira criada por você.
— Você é um doente! — Saulo
sentenciou.
— E você um assassino,
criminoso.
— Parem, por favor! — implorou
Zica, colocando-se entre os dois.
— Só quero o que é meu. — insistiu
Thomás.
— Quanto? — Saulo perguntou.
— Vinte milhões.
— O quê?
— O que ouviu. Meu preço para
deixar todos em paz, é R$ 20.000.000,00. — anunciou na maior calma.
— Você é louco mesmo! Nós não
temos esse dinheiro.
— Claro que tem. Estão
construindo um templo gigantesco no Montese. Tem muita grana estrangeira
envolvida. Pelo que sei é o equivalente a R$ 160.000.000,00 vindos da Itália.
Claro que têm como desviar uma parte e comprar meu silêncio.
— Não, não tem. Esse dinheiro
é fiscalizado pela entidade doadora. Nós precisamos prestar conta.
— Bom, já fiz minha parte.
Pedi o que me pertence e até ensinei o caminho. Agora é com vocês.
Thomás colocou os óculos
escuros e saiu. Atrás de si ouviu o irmão lhe chamando, insistindo num diálogo,
exatamente como havia planejado. Aquilo seria o início de seu fim.
Se Deus não fora justo, ele
seria!
13
Laura estava exatamente vinte
minutos atrasada para o encontro com Diogo, apesar de morar a três quadras do
restaurante japonês proposto por ele, em Moema. Ela o viu acenando de uma mesa
a poucos metros, logo que entrou no ambiente. Um lugar pequeno e aconchegante,
onde estivera com alguns amigos uma vez há alguns anos e nem lembrava mais que
existia, surpreendendo-se ao vê-lo sugerido por Diogo.
Fazia dois dias do incidente
em que por pouco não foi atropelada e acabara por aceitar o convite para
jantar, após vários recados deixados na secretária eletrônica por seu herói
salvador. Se cedesse a imposição de seu editor em realizar a matéria sobre Saulo
Sobreira, teria a chance de começar conversando com seu irmão gêmeo que,
segundo suas últimas pesquisas, vivia distante da comunidade religiosa fundada
pelo irmão, o que a deixou intrigada. Outro fator decisivo à confirmação do
encontro foi percebê-lo um homem diferente do que imaginava ser o tal Pescador
de Vidas, moderador do Chiamare. Diogo parecia cuidadoso, solidário, gentil e
de caráter firme, diferente do pernóstico vaidoso e charlatão de seu irmão
gêmeo.
Como um gentleman Diogo a cumprimentou e fez com que se sentasse. Em
seguida pediu o cardápio ao garçom e falou do quanto estava feliz por ela ter
aceitado o convite. Foi uma noite agradável, boa comida, bom papo e muitos
risos. Diogo era sem dúvidas uma companhia maravilhosa, inteligente, bem humorado,
charmoso e, claro, muito bonito. Pensou que seria o tipo de homem com o qual se
relacionaria. Além do que, sabia quando um homem se mostrava interessado, e ele
certamente estava. Contudo, não se disponibilizaria para mais nenhuma tragédia
amorosa em sua vida, pelo menos por enquanto. Seus últimos três
relacionamentos, foram uma completa catástrofe. Queria ter com os homens a
mesma competência dispensada ao trabalho. A falta de tempo era a desculpa e o
famoso rival de todos eles.
Diversas vezes tentou ensaiar
perguntas acerca de seu irmão gêmeo ou do Chiamare. Diogo, por sua vez, saia-se
muito bem, de modo escorregadio, sem tecer nenhum comentário significativo. Até
o momento em que ela se viu sem opção e resolveu ir direto ao ponto, revelando
que decidia se fazia ou não um trabalho em que não acreditava. Uma forma de
percebê-lo melhor, em suas opiniões.
— E a matéria é meu irmão?! — completou
ele, sem rodeios, deixando-a pasma.
— Como assim?
— Precisa escrever uma matéria
sobre o “Pescador de Vidas”, correto?
Como ele sabia?
— Não foi por isso que eu
aceitei o convite, juro! — tentou justificar.
— Não, não se preocupe com
isso.
— Espera aí... como sabe
disso? Primeiro chega no momento em que quase fui atropelada, isso logo depois
do meu editor me deixar encarregada de fazer esse trabalho sobre seu irmão.
Agora me diz que sabe o que tenho que fazer. O que está acontecendo? Quem é
você nessa história?
Pensou na possibilidade de ter
sido Diogo o contratante junto à direção da revista, para a tal matéria
comprada sobre Saulo Sobreira, por isso sabia de tudo. Se estivesse certa, a
intenção do falso herói seria talvez de convencê-la a desenvolver o trabalho,
já que havia se negado ao mesmo. Quanto à retidão de caráter de seu suposto
salvador, seria ele um farsante, um cafajeste? Poderia encerrar aquele encontro
ali mesmo e se poupar de mais uma decepção. Porém algo a instigava a continuar,
saber mais sobre ele. Seu faro jornalístico não a traía nunca.
— Trabalha para o seu irmão? —
perguntou sem rodeios, por mais que Diogo já tivesse lhe explicado sobre seu
trabalho como consultor de empresas e facilitação de grupos de Biodança. Nada
tinha a ver com religião ou qualquer coisa do tipo.
— Não tenho nada a ver com o
meu irmão, — afirmou, tranquilo e completou. — exceto pela aparência,
infelizmente.
— E como sabe sobre esse
trabalho para o qual fui designada?
— Pela lógica. Você é
jornalista, passou a noite inteira elaborando perguntas disfarçadas acerca do
meu irmão, da comunidade. Depois, partilhou da indecisão de realizar ou não um
trabalho. — Tomou um gole do saquê e concluiu. — Imaginei que se tratasse
disso. Estou errado?
Não. Parecia sincero. No
entanto, intuía existir algo não revelado naquela história. Ela o olhou de modo
interrogativo, perscrutando-o. Ele riu.
— Agora estou me sentindo a
sua matéria. — brincou.
— Há de convir que existam
muitas coincidências em nosso encontro.
— Sabe, não acredito em
coincidências. Se estamos aqui é porque o universo nos reservou um alinhamento
de almas.
Ele
acredita realmente nisso?
— Acredito sim. — disse Diogo,
como se tivesse ouvido seu pensamento, o que a deixou em alerta.
Quem
é esse homem?
Diogo sorriu, desfez-se do
guardanapo sobre a mesa e anunciou.
— Serei honesto com minha
intuição, Laura. — Cruzou os dedos das duas mãos e os utilizou para apoiar o
queixo, com os cotovelos na mesa. — Precisa cumprir seu destino, não pode mais
fugir. Alguma coisa me diz que esse trabalho mudará completamente sua vida.
Pronto, conseguira deixá-la
mais espantada do que no dia do incidente.
— É uma espécie de vidente?
— Não. — respondeu, esticando
sua mão até a dela, do outro lado da mesa e completou. — Talvez o fato de estar
diante de uma mulher tão bonita aguce minha sensibilidade.
Perfeito!
Prosseguiram a conversa por mais
de uma hora. Diogo prolongou-se fazendo uma leitura de sua personalidade
através de seu signo, o que lhes provocou muitos risos. Em seguida,
acompanhou-a numa pequena caminhada até a portaria de seu prédio, onde
aguardaram a chegada do táxi, pedido por ele pelo aplicativo do aparelho
celular, enquanto dissertavam e riam acerca de ser leonina. Já entrando no
automóvel mais uma pérola:
— Teremos muitas noites
agradáveis como essa em Fortaleza. Fique bem. — Entrou e o carro seguiu seu
destino.
— Fortaleza? Mas eu não falei
Fortaleza... como ele sabe? — pensou alto.
Precisa
cumprir seu destino, não pode mais fugir. Alguma coisa me diz que esse trabalho
mudará completamente sua vida.
— Que homem é esse?
14
Thomás terminou de enxugar o
cabelo após um bom banho no final da tarde. Se quisesse evitar uma fila
gigantesca na porta do banheiro coletivo da pensão, precisava apressar-se e
evitar o horário em que a grande maioria dos hóspedes chegava da rua, o que
geralmente vinha acontecendo.
Ao procurar uma camisa em sua
bolsa, tocou na velha agenda com capa de couro, datada de doze anos atrás, que
carregava consigo desde que fora arrancado de seu mundo, trazendo entre as
folhas algumas fotografias responsáveis por remeter-lhe a um passado que
necessitava esquecer. Inúmeras vezes desejou livrar-se daquela âncora, das
lembranças aprisionantes de um passado submerso em mágoas profundas que o
faziam vacilar em seu foco.
Tomou a agenda com as duas
mãos, como se segurasse um tesouro. Depois posicionou os dois travesseiros na
vertical, um por cima do outro, preparando a cama para sentar de modo
confortável e dedicar total atenção à relíquia, num ritual experimentado
incontáveis vezes nesses últimos anos. Em seguida abriu as páginas exatamente
onde as fotografias jaziam. A primeira imagem revelada foi a dele ao lado de
Edgar, um de frente para o outro, às gargalhadas. O amigo com o cabelo grande,
encaracolado e barba fechada. Vinte anos haviam se passado desde aquele dia.
Thomás tentou, sem sucesso,
conter a lágrima. Como tanto amor por alguém podia se transformar em ódio?
Na sequência, outra
fotografia, agora com Edgar, Cândida e Diogo. Os quatro, com a mesma sintonia
em olhar e sorriso de quando foram para as ruas pela primeira vez e fundaram o
Chiamare. O irmão que tanto amou, de quem foi cúmplice a vida inteira e que o
abandonou no momento em que mais necessitou. O choro vencia a força dos lábios
cerrados, cortando o silêncio do quarto, quase como sopros ritmados,
denunciadores de uma dor enrustida.
Mais outra fotografia, com
Lucas em seu ombro, talvez com 4 ou 5 anos. O afilhado que tanto amava e mais
tarde descobriu tratar-se do próprio filho. Então, um sorriso.
Por fim, outra abraçado com
Salomão, o filho mais velho. Hoje devia estar um homem lindo, com 19 anos, mas
nada sabia sobre ele.
— Meu filho... — balbuciou,
tocando na fotografia delicadamente, como se fosse em seu próprio rosto. — Que
saudade!
A forte batida de alguém na
porta o fez emergir violentamente de suas recordações.
Quem
será? Não esperava ninguém. Talvez a recepcionista gorda da
pensão, com algum recado acerca do funcionamento da espelunca, modificado
arbitrariamente a cada dia pela proprietária, uma maníaca obsessiva depressiva
que parecia dar sentindo à sua vida inútil mexendo com a vida daqueles que lhe
garantiam o sustento.
Thomás enxugou as lágrimas,
pousou a agenda aberta com as fotografias sobre o colchão e partiu pronto para
uma grosseria a quem ousasse incomodá-lo. Quando abriu a porta, a surpresa: um
bonito rapaz; pele branca; olhos puxados; cabelo castanho claro, o resquício de
quem já foi loiro um dia; alto e robusto, com musculatura definida, resultado
provável de horas diárias em academia.
Não
acredito! Como?
Certamente ele testemunhara
sua cara de choque.
— Posso entrar? — perguntou o
jovem.
Demorou algum tempo para
manifestar qualquer reação e abriu passagem.
Salomão havia sim se
transformado num lindo homem! Diferente do irmão, moreno e um pouco mais alto
que ele. Os olhos, no entanto, não negavam o sangue.
O rapaz fez uma varredura no
ambiente com um olhar de desdém.
— Foi o único lugar que
consegui pagar depois que saí da cadeia. — justificou antes de qualquer
questionamento.
— Não me interessa! — sentenciou
Salomão, vistoriando o local. Em seguida, voltou-se completamente a ele. — Escuta
aqui, cara, não vim para saber nada da tua vida. Quero te dizer para ficar
longe de mim!
Horrível ouvir aquilo. Passara
os últimos doze anos se preparando para muitos confrontos, entretanto estar
diante do próprio filho e ser rejeitado tão diretamente, não estava em seus
planos. Imaginou o quanto Salomão e Lucas foram envenenados a seu respeito.
Não, não seria diferente!
— Filho...
— Não me chama de filho, — interrompeu-o.
— meu pai é o Edgar.
Precisou engolir no seco.
Salomão fora criado sabendo ser filho de Thomás, embora expressasse desde
menino o desejo de pertencer à família do padrasto. Mais do que nunca tinha
motivos para isso.
— Compreendo que não queira
nenhum contato comigo, — viu-o pegar as fotos dispostas sobre a agenda no
colchão. — mas tem o meu sangue e isso ninguém pode negar.
Salomão se desfez das fotos,
jogando-os onde estavam.
— Pai não é quem põe no mundo,
mas que cria.
— Não tive como fazer
diferente.
— Não me interessa! — anunciou
com mais severidade.
— Meu filho, eu fui furtado
da...
— PARA DE ME CHAMAR DE MEU
FILHO! — o jovem gritou, pondo-se diante dele. — Odeio você, sempre odiei!
— Fizeram você acreditar
nisso.
— NÃO! — outro grito. — Antes
mesmo de ser um assassino, já o odiava!
— Não sou assassino! Fui
vítima de um golpe.
— Tu acha que sou otário, meu?
Hein? Acha que vou cair nessa?
Poderia aproveitar para falar
de sua dor, do quanto sofreu todos aqueles anos na cadeia, da saudade, detalhar
sua versão. Salomão não participava daquela farsa, talvez fosse um dos únicos
que pudesse se sensibilizar e desejar uma aproximação. Sim, ele certamente
buscava aquilo, por mais que cuspisse ódio, esbanjasse hostilidade, tinha-o
procurado na perspectiva de estar perto do pai. O discurso agressivo nada mais
era que uma capa de proteção, por medo da rejeição daquele a quem não mais
conhecia. Deste modo a melhor estratégia seria ganhá-lo afetivamente e não
negar aquilo que fora ensinado a acreditar.
— Tu é bem meu filho mesmo,
igualzinho a mim, tinhoso, duro, sabe se colocar, sem medo. Não nega o sangue!
— concluiu, tocando-lhe o ombro.
— TIRA ESSA MÃO IMUNDA DE MIM!
— gritou novamente, empurrando-o para longe de si. — Tenho nojo de você, seu
assassino! Nojo! Por sua causa fui tratado a vida inteira como um bastardo!
Você acabou com a minha vida com o simples fato de existir! Por isso te digo:
Some! Morre! Vai para o inferno!
Salomão saiu e deixou-o
estático, com a mandíbula cerrada de tanto ódio.
Não, ele não tinha culpa de
nada.
— Eles vão pagar! Um por um! —
sentenciou pausadamente.
15
Saulo pôs-se de joelhos em
total reverência diante do sacrário na capela da comunidade. Tinha acabado de
enfrentar mais uma difícil reunião junto ao conselho administrativo do
Chiamare. Dr. Juca Rebelo fora categórico em negar o desvio dos R$
20.000.000,00 da construção do templo a Thomás. Desta vez, Cândida não
acompanhou a decisão do sogro, provocando mais um conflito com o marido. Ela
comungava com o posicionamento de Saulo, defendendo a ideia de que era a única
forma de se livrarem da presença daquele monstro em suas vidas e protegerem
Salomão e Lucas de suas artimanhas. Os argumentos faltaram e a reunião
extraordinária acabara por se tornar mais uma briga pessoal entre o casal
modelo da comunidade.
No fundo, sabia que o problema
era a hegemonia do Dr. Juca Rebelo dentro da comunidade. Aquilo precisava ter
um fim. Se conseguisse pensar numa forma de tomar o poder, ganhar autonomia de
decisão, seria um novo momento para o Chiamare.
Por agora necessitava manter o
foco em Thomás. Definitivamente, não sabia o que fazer, como enfrentar um
louco, capaz de tudo para destruí-lo e se vingar? O que Deus queria exatamente
em permitir que aquilo acontecesse? Poderia entregar os pontos e pagar para
ver. Talvez após Thomás iniciar sua onda de atrocidades, como no passado, eles
repensassem a decisão. Estaria ele cruzando os braços, o que nunca foi de seu
feitio, ou o desenho de uma estratégia inteligente diante do exposto?
— Sei como conseguir o
dinheiro. — anunciou a conhecida voz feminina em suas costas. Guilhermina, seu
anjo da guarda.
Saulo ergueu a cabeça em
direção ao sacrário.
— E como isso é possível?
— O conselho não precisa saber
da verdade, — respondeu a voz atrás dele, fazendo com que finalmente voltasse a
ela. — eles acreditarão em nossas prestações de contas. E serão perfeitas,
prometo.
Mas e Deus, o que pensava a
respeito?
Se o preço era esse, a decisão
estava tomada.
Ele voltou-se ao sacrário e
pôs-se a orar.
16
Thomás não pensava em voltar
tão rápido à sede do Chiamare. Tinham se passado cinco dias após o reencontro
com o irmão e recebera uma ligação cedinho de Guilhermina marcando uma reunião
para o início da tarde. A secretária de Saulo Sobreira se antecipara em
comunicar que a quantia exigida já estava sendo providenciada e precisariam de
mais alguns dias para consolidarem a transação. O motivo para o encontro era
outro e ele só saberia pessoalmente.
A própria Guilhermina foi
buscá-lo pontualmente no horário marcado, sem revelar uma só palavra durante o
percurso do centro da cidade à Aldeota. A única exigência era que ele fosse
discreto acerca das negociações, para que as mesmas não fossem prejudicadas
diante do conselho administrativo da comunidade. Certamente estavam roubando o
valor da construção do templo do Chiamare, como ele já previa que aconteceria.
Mais
previsíveis, impossível!
Tudo fazia parte de seu plano,
exceto aquela reunião.
O que Saulo estaria
aprontando? Se não tratariam do valor exigido por ele para que os deixassem em
paz, o que teria o irmão para conversar, arriscando sua presença dentro da
própria comunidade? Um contra-ataque? Por um instante pensou em não aceitar o
convite, mas não resistiu à curiosidade. Não, Saulo não teria nada contra ele.
Qualquer tentativa para impedir seu plano de justiça, seria em vão. Sentia-se
totalmente preparado para qualquer coisa. Aquilo o motivou a acompanhar aquela
mulher à cova do inimigo.
Guilhermina o conduziu à sala
de reuniões da comunidade. Logo sua curiosidade se dissolveria atrás daquela
porta. Quando entrou no ambiente, a surpresa: Saulo sentado à cabeceira da
extensa mesa, no centro, e ao seu lado estava Edgar. Cândida de pé, um pouco
mais atrás, braços cruzados, parecendo dividir em ansiedade a atenção à porta
de entrada e o jardim atrás da vidraça.
Uma
emboscada!
— Ora mais que receptividade,
os líderes do Chiamare todos dispostos a me receber. Que honra! — ironizou com
largo sorriso e braços abertos.
Edgar aprecia mais incomodado
que da última vez que haviam se visto, há uma semana. Saulo levantou e apontou
para uma cadeira ao lado da do conselheiro, sugerindo que sentasse. Cândida
soltou um suspiro e juntou-se a eles, de frente para o marido.
— Mas que bela reunião! — Thomás
insistiu na brincadeira, olhando para cada um deles.
— Bom, com licença. — pediu
Guilhermina, retirando-se da sala.
— E então, matem minha
curiosidade. — colocou-se mais uma vez, cruzando as mãos, apoiando os cotovelos
sobre a mesa.
Saulo ajeitou a gola impecável
de sua camisa e anunciou. — Nós precisamos acertar algumas verdades sobre nosso
passado.
— Finalmente! — respondeu ele
de pronto — vão assumir o crime de vocês, pelo menos entre nós?
— CALA ESSA BOCA! — gritou
Edgar — Não suporto mais essa ladainha, essa repetição idiota! Isso cansa,
cara! — levantou-se, dando as costas. — Só aceitei participar disso porque o
Saulo disse que tinha uma revelação para nos fazer.
Aquela atitude vinda
especialmente dele o matava por dentro.
— Espero que seja algo de fato
muito importante para nos forçar a estar diante deste homem novamente. — afirmou
Cândida, sem voltar o olhar um só instante para Thomás.
Desgraçados,
me chamam aqui e arrotam arrogância!
— Hum, vejo que nosso encontro
será interessante. — comentou Thomás, fazendo um esforço que somente ele sabia.
— O que querem afinal?
— Tentarei ser objetivo. — anunciou
Saulo. — Eu menti, há doze anos quando disse que o Lucas era filho de Thomás.
Que
loucura é essa?
— O quê? — perguntou Edgar,
apoiando-se na cadeira.
Aquela informação demorou
alguns segundos antes de ser processada por Thomás. E quando foi, pensou
tratar-se de uma piada, um truque.
— Que absurdo é esse, Saulo? —
interpelou Cândida.
— É isso mesmo que estou
dizendo. Não foi o Thomás que esteve com a Cândida nos jardins daquele Buffet
naquela noite. Eu menti para vocês.
É
jogo, uma nova estratégia, só pode ser!
— Você está brincando com as
nossas vidas, seu desgraçado! — disse Thomás, procurando manter a calma.
— Você está louco, Saulo! — interviu
Cândida. — Claro que foi o Thomás!
— Meu Deus, isso parece
surreal! — desabafou Edgar, com as mãos na cabeça. — O que estou fazendo aqui?
— Eu menti, há doze anos. — insistiu
Saulo. — Foi uma forma de abrir os olhos do Edgar contra o Thomás, só assim
começariam a enxergar o crápula que ele era.
— Como é que é? — indagou
Edgar.
— Não! Isso é mentira! — declarou
Cândida. — Estive com o Thomás na noite do meu casamento com o Edgar sim! Já
paguei muito alto por isso.
— Claro, isso é mais um jogo
desse canalha! — afirmou Thomás apontando para o irmão. — Ele quer nos
confundir.
— Saulo, o que está
pretendendo com isso? — Edgar procurou saber. — Se é um jogo, isso é muito
sério.
Saulo levantou a deu as costas
para eles, fixando o olhar no jardim atrás dele e revelou. — Eu me fiz passar
pelo Thomás naquela noite. Quem esteve com a Cândida fui eu.
Meu
Deus, só pode ser mentira dele!
— Como? — Edgar parecia
perplexo, como todos ali.
— Não, não! — Cândida foi
atrás de Saulo e o puxou pelo ombro. — Diz a verdade, isso tudo é mentira!
Fala, Saulo. Eu estive com o Thomás!
— Você esteve comigo, Cândida,
não com meu irmão. — confirmou Saulo.
— Meu Deus, esse cara está
jogando! — foi Thomás quem levantou. — Ou melhor, todos estão jogando. Querem
me enlouquecer, é isso?
— Meu Deus, que loucura! — Cândida
parecia mesmo desesperada, com as mãos no rosto. — Tenho certeza que era o
Thomás!
— Não, não era! — reafirmou
Saulo. — Era eu.
— E por que faria isso? — Edgar
procurou saber.
Houve um momento de silêncio.
E depois, Saulo respondeu. — Para que tudo acontecesse do modo como aconteceu.
Precisava do seu apoio, Edgar, contra o Thomás. Então fazer com que todos
pensassem que o Lucas era filho dele foi a saída que encontrei.
— Não posso ter sido enganada!
— Ficar com você, naquela
noite, Cândida, não foi um plano, — acrescentou Saulo. — foi um desejo
incontido de estar pelo menos por um momento com a pessoa pela qual eu fui
apaixonado durante anos. O que depois nos foi muito útil. Só assim começamos a
tirar o Thomás de nossas vidas.
— E por que só inventaria essa
história sete anos após o acontecido? O Lucas já tinha seis anos de idade
quando tudo foi descoberto. — Edgar parecia querer tirar a história a limpo.
— Como disse, estar com a
Cândida naquela noite não foi um plano. Só depois percebi que isso poderia ser
útil para todos nós. Somente ela pensava ter estado com meu irmão, então se de
repente o fato viesse à tona, todos se voltariam contra o Thomás,
principalmente você, Edgar.
— Mas me lembro do momento com
Cândida. — insistiu Thomás.
— Lembra-se do que os fiz
acreditar. Estava completamente bêbado naquela noite, Thomás, sofrendo por
causa do casamento. Não foi difícil convencê-lo do que na verdade havia
acontecido entre Cândida e eu. As lembranças que tem são as que contei, nada
mais que isso. Nada que uma amnésia alcoólica não justifique.
— Não pode ser! — Cândida
cobriu a boca com as costas de sua mão, estava claramente desnorteada, como se
um tufão devastasse sua mente, como todos ali.
— Então o Lucas é seu filho e
não do Thomás? — Perguntou Edgar.
— Exatamente. Não imaginam
como isso me doeu todos esses anos, saber que estava diante do meu filho e não
poder tratá-lo como tal.
— E toda essa mentira para que
o Edgar e o restante do mundo se voltassem contra mim? — Thomás tentava montar
as peças do quebra-cabeça mentalmente.
— Era uma forma de fazer com
que todos acordassem a teu respeito.
— Uma mentira, eu era
inocente! — insistiu.
Edgar e Cândida olhavam-no de
uma forma assustada, como se somente agora estivessem compreendendo o que
Thomás tentou explicar há tantos anos.
— Inocente no que diz respeito
à traição ao Edgar. — completou Saulo.
— Então mentiu para todos nós?
— o rosto de Edgar estava transfigurado.
— Foi preciso! Para que
enxergassem de uma vez por todas o monstro que estava por trás do Thomás.
— NÃO TINHA O DIREITO! — gritou
Cândida.
— Só assim abriram os olhos! —
insistiu Saulo.
— PARA UMA MENTIRA! — foi a
vez de Edgar alterar a voz.
— FOI PRECISO! — respondeu no
mesmo tom.
— CANALHA! — Edgar partiu para
cima de Saulo, pegando-o pelo colarinho. — NÃO TINHA O DIREITO DE BRINCAR COM
AS NOSSAS VIDAS!
— Aí está a prova de que fui
uma vítima desse psicopata. — Thomás procurou ressaltar. — vocês acabaram com a
minha vida por causa dessa mentira!
Uma confusão alastrou-se em
Thomás. Definitivamente fora surpreendido com a cartada do irmão. Experimentava
uma tímida alegria por ser finalmente inocentado diante do fato que ele mesmo
acreditara ter sido sua perdição. Ao mesmo tempo uma frustração por ter
alimentado uma paternidade ilusória durante tantos anos. Agora sabia
precisamente o que Edgar sentira ao descobrir não ser o pai verdadeiro de
Lucas. No fundo, por mais que alimentasse o desejo material de fazer justiça,
nutria também a expectativa de um dia aproximar-se do filho e assumir o papel
que lhe fora brutalmente roubado. Mas tudo mudara! De repente, não tinha mais
motivos para estar ali, pelo menos por enquanto.
Enquanto Edgar pressionava o
atual moderador do Chiamare contra o vidro que separava a sala do jardim,
cobrando-lhe uma ética há muito não experimentada por ele e Cândida chorava,
imóvel, de braços cruzados, como se procurasse qualquer proteção, Thomás os
deixou, seguindo pelos corredores da sede da comunidade de modo instintivo em
direção à capela, nada sentia fisicamente, exceto uma dormência que sucumbiu-lhe,
como se os sentidos tivessem parado de funcionar. A visão turva e as formas se
desenhavam com o brilho de uma imagem radiográfica.
Percebeu que todas as pessoas
sabiam de sua inocência, que fora vítima de uma mentira, da inveja do irmão.
Finalmente Saulo havia reconhecido a farsa publicamente. Thomás não via mais sentido
em continuar o plano.
Finalmente chegou à capela da
comunidade. Necessitava prestar contas com Deus.
A
justiça foi feita!
Foi tomado por um desejo
incontrolável de rir e o fez.
— Sou inocente! — balbuciou.
Depois abriu os braços e riu muito. — Sou inocente! — repetiu mais alto. — Sou
inocente” — mais alto — EU SOU INOCENTE! — Finalmente gritou, como se o mundo o
ouvisse.
O mundo!
Tão rápido quanto foi tomado
por aquela alegria, caiu em si. O mundo não sabia de sua inocência. Saulo
roubou-lhe a dignidade, a liberdade, a alegria, a própria fé. Saulo roubou-lhe
a vida!
— Não! Tá tudo errado! Ele está conseguindo me confundir. — parou e se
apoiou na porta da capela. Estava mais confuso. As cenas da prisão, o horror
enfrentado por doze anos novamente fizeram-se presentes em todas as suas
células. A dor por ele experimentada no momento da sentença do juiz.
Por
quatro votos a três, este tribunal considera Thomás Sobreira culpado!
— Também o considero culpado,
Saulo. Justiça será feita! — sentenciou.
~
Saulo deixou-se cair e relaxar
na cadeira de sua mesa, no escritório. Sentia-se exausto após a reunião e suas
grandes revelações. Mexer com o passado dele e tantas pessoas implicava também
mudanças radicais no futuro e trazia em si um peso de toneladas. Guilhermina
serviu-lhe um mate gelado com limão e depois se posicionou estrategicamente
atrás de suas costas, iniciando uma de suas massagens restauradoras. Não
somente a técnica precisa de inúmeros cursos de massoterapia outorgava a ela a
desenvoltura de mãos de fadas e curadoras, bem como o desejo devoto de puro
cuidado a ele.
— Confesso também estar
surpresa, Saulo.
— Até eu estou, com minha
coragem de trazer a verdade à tona.
— E esta é realmente a
verdade?
— Claro que sim. Acha que eu
seria louco de inventar uma história dessas?
— É conveniente agora revelar
que é o pai do Lucas, para ganhar mais poder sobre o garoto e ao mesmo tempo
afastá-lo definitivamente do seu irmão. Talvez até um caminho de conseguir mais
autonomia nas decisões da comunidade junto ao conselho. De todas as formas sai
ganhando.
— Não sou tão maquiavélico,
Guilhermina. Foi muito arriscado. Por pouco Thomás não sai de vítima na
história. O fato é que ele tem um crime nas costas. Essa é a verdadeira prova
de que ele é um monstro. E todos sabem disso.
— Pois achei ótima a
estratégia.
Saulo abriu os olhos e a fitou
um pouco de banda. Às vezes chegava a se surpreender com tamanha frieza, mas
tão necessária em meio à guerra de egos e poder travada por eles a fim de
manter de pé uma obra de tamanha proporção.
— Sou capaz de tudo pela
comunidade e, claro, pela segurança do Lucas.
Guilhermina sorriu em
cumplicidade.
— Entendi. É também uma forma
de garantir que ele suma de uma vez por todas, sem nada que o prenda aqui, — Guilhermina
concluiu. — e por falar nisso, deu tudo certo em relação ao Salomão. Conversei
com ele, conforme combinamos.
— E ele?
— Procurou o pai, como
prevíamos.
— E?
— Acredito que depois dessa
última cartada, Thomás nos deixará em paz de uma vez por todas.
— Às vezes me pergunto se esse
é o caminho certo, sabe? Nós estamos utilizando as mesmas armas que ele. Até
que ponto não somos iguais a ele?
Guilhermina parou a massagem e
disse, — Esse homem é um psicopata, nós sabemos disso, Saulo. Ele enganou a
todos nós no passado, quase destruiu a comunidade. A paixão desenfreada e a
rejeição o transformaram num monstro. O Thomás enlouqueceu, é um assassino. — em
seguida, voltou a massageá-lo.
— Ele fala com tanta verdade
que chego a acreditar.
— Esse é o poder de um
psicopata, capaz de tudo por vingança. Não caia nesse jogo, meu querido.
Saulo suspirou, tomou o copo
de mate na mão, deu um gole e o pousou novamente na mesa, retornando ao
conforto proporcionado pelas mãos de Guilhermina.
— Deus está do nosso lado.
17
Laura abriu a porta de seu
apartamento e Diogo estava do outro lado, com um sorriso contido. Em seguida,
ele a cumprimentou, pondo diante dela o buquê de rosas salmão que escondia em
suas costas. Trazendo consigo uma garrafa de vinho italiano.
Um
verdadeiro cavalheiro!
Os dois encontraram-se
diversas vezes desde que haviam se conhecido, há uma semana. Diogo estava
encerrando sua temporada de trabalhos em São Paulo e aproveitaram suas horas
vagas para realizar um tour cultural pela capital paulista. Laura adorou a
proposta de revisitar nos últimos dias os inúmeros museus e teatros, bem como
alguns lugares turísticos e bairros temáticos. A cada encontro, um passeio
diferente, com direito a livrarias e cafés.
A última noite de Diogo em São
Paulo, e ela o havia convidado para um programa diferente — um jantar em seu
apartamento. Nem lembrava quando cozinhara pela última vez, mas acreditava que
sua famosa receita de lasanha de berinjela ao vinho branco cairia bem a uma
despedida.
Despedida? Não conseguia
imaginar-se sem a companhia leve e inteligente de Diogo. Realmente lhe fariam
falta aqueles encontros. Ele sabia como se fazer presente na vida de alguém.
Como se já se conhecessem há anos.
Um
alinhamento de almas, como ele dissera?
Não, não acreditava nessas
coisas. Talvez o contato com Diogo a tenha deixado um pouco mais boba. Livre no
pensar, como ele. De alguma forma, sua companhia lhe trouxera certa
familiaridade ou intimidade que há muito não experimentava, o que a deixava
feliz. Por isso, sentiu-se à vontade a falar, mesmo que superficialmente,
durante o jantar, de seu passado. Revelando a ele que Fortaleza lhe trazia
muitas dores e deixara para trás uma mulher que não mais existia, machucada no
mais profundo de sua alma. Vinte anos não fora o suficiente para superar,
esquecer a dor das raízes perdidas, constituíra uma nova identidade, uma nova
vida, longe de tudo aquilo que lhe destruíra o coração e o afeto dos seus.
— É como se a minha vida
tivesse se apartado, dividindo-se em duas. E hoje, todas as minhas forças são
voltadas para esquecer a vida de antes e quem dela fez parte. — partilhou,
tomando um último gole do vinho, com olhos afogados em lágrimas. — Sei que fiz
muito mal a quem eu amava, mas eles não tinham o direito de acabar com a minha
vida!
Pela primeira vez falava sobre
aquilo com alguém. Nem mesmo com Eduardo Ponte, seu grande companheiro, com
quem foi casada por cinco anos, teve coragem de revelar qualquer que fosse de
suas dores, de suas chagas tão profundas.
Diogo segurou firme em sua mão
por sobre a mesa.
— É chegado o momento de
regressar, — declarou ele. — de reencontrar com os seus e juntar esses pedaços
apartados pelo ego.
Impressionante o quanto sentia-se
segura diante de Diogo. Ao seu lado, seria capaz de enfrentar esse passado
doloroso e todos que o escreveram.
Ele se aproximou e a ajudou a
se erguer, como se lhe dissesse como seria. Em seguida a acolheu delicadamente
nos braços, com uma ternura que lhe autorizou um choro de vinte anos contido.
— Não tenho forças para
enfrentá-los. — suas palavras quase não se faziam ouvir.
— Ei... estarei com você.
Enfrentaremos isso juntos.
Poucas palavras e tudo o que
necessitava ouvir.
Por que não pedi-lo para
ficar, pelo menos mais um pouco? Nunca tinha se sentido tão cuidada e protegida
por alguém, desde que saíra de casa e precisara enfrentar o mundo sozinha, aos
14 anos de idade. Na verdade, nem sabia ao certo o que estava sentindo por ele.
Seria paixão? Será que finalmente estava apaixonada por alguém, após tantos
anos perdida em suas dores? Se propusesse para ficar seria uma declaração. E se
ele não sentisse o mesmo? Pareceria ridícula.
Melhor deixar as coisas como
estavam.
Diogo tocou em seu rosto
delicadamente e aos poucos tomou a distância necessária a observá-lo, como se
contemplasse cada detalhe. Parecia hipnotizá-la. Laura sentiu um desejo intenso
e terno, ao mesmo tempo, de beijá-lo.
— Acho que já está tarde, — chutou
ela. — seu voo é logo mais e preciso acordar cedo.
Diogo pareceu meio perdido,
pegou o casaco no sofá, despediu-se em meio a algumas brincadeiras e saiu.
Laura trancou a porta e afirmou para si mesma, repetidas vezes, o quanto fora
burra. No entanto, sorriu, recordando-se de suas últimas palavras e uma leve
piscadela no olho esquerdo, já pegando o elevador.
Espero
você em Fortaleza.
— Sim, breve nos encontraremos.
— disse para si mesma.
18
Thomás entrou na Igreja Santo
Antônio de Pádua e aproximou-se do altar. Tantas vezes estivera naquele lugar,
considerado por ele sagrado, desde a adolescência até o momento em que
destruíram sua vida. Hoje seria diferente. Estar ali fazia parte do plano para
reconstruir a dignidade roubada.
Os passos em direção ao fundo
da igreja, possibilitaram-no avistar Pe. Giuseppe e o irmão conversando. A
acústica do local propagava o som de suas vozes pelo recinto, por mais que
procurassem sussurrar, a fim de não serem ouvidos. Saulo pareceu assustado ao
percebê-lo aproximar-se.
— O que ainda está fazendo
aqui? — antecipou-se o atual líder do Chiamare, antes que o irmão estivesse ao
seu lado. Combinaram que Thomás fosse embora de Fortaleza naquela tarde, com
destino a São Paulo, de onde deixaria o país em alguns dias. Os R$
20.000.000,00 conforme suas exigências, haviam sido creditados numa conta em seu
nome pela manhã.
— Meu voo é daqui uma hora, — respondeu
Thomás com sorriso e braços abertos. — precisava me despedir, irmãozinho.
Saulo demonstrava total
apreensão, talvez medo que Pe. Giuseppe soubesse da transação, que ele e
Guilhermina roubaram o dinheiro da construção do novo templo. Tolo! Não era o
momento para aquilo acontecer.
O padre olhou para os dois e
procurou compreender. — O que está acontecendo? Vai embora, Thomás?
Thomás finalmente tirou os
óculos escuros e respondeu. — Saulo Sobreira consegue tudo o que quer, Pe.
Giuseppe, até mesmo que eu desistisse de atazanar a vida de vocês.
— Não há tempo para despedidas
ou gracinhas, Thomás. Com esse trânsito pode perder o voo. — advertiu Saulo.
— Não se preocupe, breve se
livrará de mim.
— Vejo que caiu em si. — concluiu
Pe. Giuseppe.
— Caí em mim? Caí em mim há
doze anos, quando vocês me condenaram por aquele crime e tiraram tudo o que eu
tinha.
— Por que insistir nessa
mentira, meu filho? — interviu o padre. — Não há mais motivos para isso. Agora
é um homem livre, pode refazer sua vida, esquecer esse passado sombrio. Viver o
arrependimento verdadeiramente.
— Não há mais motivos para
insistirmos com isso, Thomás. Vá embora de uma vez por todas e nos deixe em
paz! — exigiu Saulo, com um tom mais enérgico.
Thomás experimentava um prazer
mórbido em vê-lo tão tenso e preocupado. Pouco diante do que estava por vir.
— Nós já sabemos que mentiu
para jogar todos contra mim, que essa história do Lucas ser meu filho era parte
de seu plano. Vamos, por que não confessa também de uma vez por todas que foi
você quem matou aquela prostituta e a colocou na minha cama para me incriminar?
— Você é um doente! — afirmou
Saulo.
— Confessa! — insistiu Thomás.
— Só estamos nós aqui. E se o Pe. Giuseppe realmente não sabe da verdade, o que
acho muito difícil, isso será um segredo de confissão.
— Isso não nos levará a lugar
algum, meu filho. — disse Pe. Giuseppe, tocando em seu ombro.
Thomás sentiu asco e
retraiu-se para que aquele crápula tirasse suas mãos imundas de cima dele. Como
um homem que se dizia servo de Deus poderia ser tão mentiroso e compactuar com
aquela farsa?
São
todos uma corja!
Queria vê-los destruídos.
Sobre o dinheiro, a ideia era
que o conselho administrativo do Chiamare ficasse sabendo do desfalque e desse
início à derrocada de Saulo Sobreira, mas podia de repente mudar os planos e já
vê-lo encurralado a partir de agora. Seria também uma forma de começar a
enfraquecer a aliança com seus aliados. Se Pe. Giuseppe logo soubesse do roubo,
certamente se voltaria contra o pupilo. Mais uma mentira do líder do Chiamare
viria à tona, ruindo seu alicerce moral.
Thomás tirou do bolso da calça
um papel dobrado e o entregou ao padre.
— Aqui um presente para o
senhor.
— O que é isso?
— Abra e veja do que o senhor
faz parte.
O velho abriu o papel
cautelosamente e se deparou com uma cópia impressa do saldo de uma conta
bancária.
— O que significa isso?
— Você não tem o direito! — Saulo
se antecipou e tomou o papel das mãos do padre.
— Uma conta no nome de Thomás?
— indagou o velho.
— Sim. — confirmou Thomás com
uma gargalhada. — Sou agora um homem milionário, graças a uma parte do dinheiro
que seria usada na construção do templo do Chiamare.
— MENTIRA! — gritou Saulo.
— Mentira? Está aí escrito.
Saulo rasgou o papel em suas
mãos.
— O que está acontecendo aqui?
— inquiriu Pe. Giuseppe.
— Nada, nada! — Saulo parecia
desesperado.
— Saulo Sobreira comprou meu
silêncio com vinte milhões de reais, Pe. Giuseppe. O que o senhor acha disso?
— Mas o conselho não aprovou
essa loucura. — afirmou o homem.
— Saulo e Guilhermina deram um
jeito, como sempre fazem.
— Isso é verdade, meu filho? —
perguntou o padre, voltando-se inteiramente para Saulo.
— A única forma de nos livrar
desse psicopata. — explicou.
— Roubaram o dinheiro da obra?
— Bingo! — ironizou Thomás. —
Eles fazem isso há anos, Pe. Giuseppe. O senhor tem o dever moral de alertar o
conselho da comunidade contra esses canalhas.
— Desgraçado! — desabafou
Saulo.
Pronto, a justiça estava
começando. Thomás colocou os óculos de volta e deu as costas aos dois em meio a
sua discussão. Pe. Giuseppe cobrando explicações a Saulo Sobreira. Aquilo
proporcionou-lhe um prazer descomunal. Em seguida, saiu da igreja e foi em
direção ao táxi que o aguardava, na rua lateral do prédio. Antes de entrar no
veículo, ouviu Pe. Giuseppe chamar por ele. Os dois estavam na frente da igreja
discutindo.
— Vocês vão pagar por tudo o
que me fizeram! — disse para si mesmo, dentro do automóvel, vendo o irmão e o
velho padre vindo em sua direção.
Esse era o momento.
~
Saulo sentia-se tomado de ódio
e, em desespero, tentou explicar, convencer o Pe. Giuseppe de suas intenções,
de que fora a única forma de livrar a todos da presença do irmão e salvar a
comunidade de sua vingança. Entretanto, o velho parecia não lhe dar ouvidos e
chamou por Thomás, indo em direção ao carro em que ele entrara, na lateral da
igreja.
Precisava impedi-lo de se
aproximar daquele veículo e deixar que Thomás cumprisse seu destino, salvando a
todos de uma vez por todas daquele louco. Segurou o velho pelo braço a alguns
metros do veículo estacionado.
O táxi em que Thomás acabara
de entrar explodiu em sua frente. Os dois foram jogados para trás, levados pela
força da explosão. Parecia esmagado contra a calçada e por um instante, nada
mais podia ouvir, como se seus tímpanos tivessem sido dilacerados junto com a
explosão, com a vida de seu irmão.
Thomás!
Finalmente teve coragem e foi
reconhecendo o cenário à sua volta, o automóvel em que estava o irmão sendo
consumido em chamas diante dele.
Agora sim tudo estava acabado.
19
O piloto anunciou no
autofalante da aeronave que o voo 245 começou a sobrevoar Fortaleza, e aquilo
provocou uma descarga de adrenalina em Laura. Nem acreditava que acabara por
aceitar o desafio de seu editor e retornar à capital cearense, a fim de
realizar a matéria sobre o Chiamare. Justo sobre esta comunidade, que lhe
provocava tantas recordações do passado que tentou apagar da memória nos
últimos vinte anos. Em alguns minutos, estaria de volta, podendo reencontrar
aqueles que destruiriam sua vida, expulsaram-na do mundo que Deus havia criado
para ela.
Olhou pela janela e encheu a
vista da beleza da Terra do Sol. Pôde apreciar, como por um cartão postal, as
lagoas, os parques, os mares, os cenários que a viram crescer e experimentar a
felicidade até a adolescência. O calor das lágrimas invadiu-lhe o rosto e seu
coração parecia pequeno para suportar a alegria e o medo de voltar.
É
chegado o momento de regressar, — recordou as palavras de
Diogo, há duas semanas. — de reencontrar
com os seus e juntar esses pedaços apartados pelo ego.
Não foram apartados pelo ego!
Ele havia se equivocado. Foram apartados pelas pessoas a quem amava. O que mais
doía!
Vamos,
Laura Ponte!
Minutos mais tarde, resgatou sua
mala da esteira do aeroporto Pinto Martins e finalmente ultrapassou o portão de
desembarque, regressando para seu passado. Ou melhor, chegando a um presente
que lhe possibilitaria uma nova escrita do que seria o futuro.
A alguns metros foi se
desenhando um grande sorriso e a beleza serena da pessoa que a ajudou a tomar
aquela decisão. Como era bom reencontrar o aconchego nos braços de Diogo.
— Seja bem-vinda de volta,
Laura! — disparou ele ao abraçá-la, sem conter a alegria por vê-la novamente.
Experimentar mais uma vez o
calor e o cheiro de seu colo a fazia parar no tempo e desejar estar ali para
sempre.
Diogo tomou sua mala e
envolveu-a com o braço pela cintura, conduzindo-a pelo saguão do aeroporto.
Eles haviam combinado que Laura ficaria inicialmente em seu apartamento e que,
pelo menos na primeira semana, repetiriam em Fortaleza a proposta que os havia
aproximado em São Paulo. Seria também uma forma de ela rever a cidade e o
quanto havia mudado nos últimos vinte anos. Sim, seria maravilhoso!
No momento em que as portas do
aeroporto se abriram diante deles, Diogo pareceu acometido de uma grande dor
que o fez emitir um gemido estranho e soltar a mala, levando as duas mãos à
cabeça, como se tentasse conter o que sentia. Por pouco não despencara no chão,
não fosse por Laura tentar suspendê-lo.
— Diogo! O que houve? O que
está sentindo? — indagou ela, assustada.
Diogo parecia sentir mais dor,
sem conseguir responder. Curvava-se, com as mãos na cabeça, como se tentasse
suportar a mazela.
— Por favor, alguém nos ajude!
— implorou ela, muito nervosa.
Um segurança do aeroporto e
algumas pessoas se aproximaram imediatamente, tentando ajudar.
— Diogo, por favor, o que está
havendo? — insistiu Laura.
— Ele está morto! — disse ele,
de joelhos no chão, com um olhar aterrorizado.
— Como assim? Quem? De quem
está falando?
— O médico já está vindo. — avisou
alguém que os cercava.
— Ele morreu! — repetiu Diogo.
— Pelo amor de Deus, o que
está acontecendo?! — Laura estava apavorada.
O celular de Diogo parecia
tocar em meio à confusão. As pessoas falavam ao mesmo tempo, procurando
tirá-los dali. E ele, com dificuldade, tentando tirar o aparelho do bolso.
— Diogo, por favor, o que
houve?! — tornou a perguntar, muito nervosa.
Até que ele conseguiu atender
ao telefone. Em poucos segundos, o terror pareceu se desenhar em seu rosto.
Lágrimas brotaram na mesma intensidade, sem pronunciar uma palavra. O que a
deixou muito assustada.
— Diogo, o que está
acontecendo?! — foi quase um grito de Laura.
— Meu irmão, — respondeu com
dificuldade. — morreu!
Ela o abraçou num impulso,
deixando-o ser tomado por uma dor que superava provavelmente o que sentira há
pouco. Diogo chorou copiosamente em seu colo.
20
Saulo entregou-se sem
restrições ao colo de Zica, sentados no sofá de uma das salas de estar da
comunidade. Guilhermina mantivera a atenção voltada totalmente a ele, no
entanto preferia acompanhar tudo com certa distância, como se procurasse não se
envolver emocionalmente, por mais que fosse difícil aquela proeza. O líder do
Chiamare e sua primeira resgatada encontravam-se visivelmente abalados com a
morte de Thomás e apoiavam-se mutuamente nos braços um do outro, num choro que
revelava não apenas a grande perda, mas a distância do irmão estabelecida em
todos aqueles anos, antes mesmo da tragédia que o havia tirado do convívio de
todos. Por mais que tentassem os dois nunca conseguiram interagir por muito
tempo sem um desentendimento, o que os fazia manterem-se distantes, mesmo
quando trabalharam juntos na obra, Thomás como o líder moderador e Saulo como
gerente financeiro. Mas tudo havia terminado, o verdadeiro fundador da
comunidade estava morto.
— Não precisava ter sido dessa
forma! — lamentou ele, em meio ao próprio choro. — Não era para ele estar
morto, Zica! Não era para ele estar morto!
— Sim, meu filho. Mas foi a
vontade de Deus. — Zica tentou consolá-lo, sem conter seu pranto.
— Foi ele, Zica, foi ele, o
Thomás que escolheu assim. — finalmente deixou os braços de Zica e levantou-se,
olhando para Guilhermina. — Nunca quis ser meu amigo, aproximar-se de mim. Era
como se só eles existissem, ele e o Diogo. — trazia em seu tom um certo rancor.
— Preferia estar morto que manter qualquer tipo de relação comigo! — cada
palavra foi proferida revelando a dor sentida em todos aqueles anos de
rejeição.
— Ele nunca gostou de você. — Guilhermina
arrematou.
— Não diga isso. — Zica
interveio. — Ele apenas se dava melhor com o outro irmão.
— Guilhermina tem razão, Zica.
Na verdade, os dois nunca gostaram de mim.
— Pensar assim não te dava o
direito de tirar a vida do nosso irmão! — declarou a voz idêntica a de Saulo,
da porta da sala.
Saulo voltou-se ao som de
acusação e se deparou com a própria imagem, parada a alguns metros dele, com
uma expressão de dor e ódio em seu rosto. Atrás dela, uma mulher de olhar
assustado.
— Diogo?! — surpreendeu-se
Zica.
Sim, era o outro irmão gêmeo,
diante de seus olhos.
— Então já soube? — indagou
Saulo, aproximando-se do irmão.
— Eu vi o carro explodindo. —
disse Diogo, imediatamente.
— Como assim? Você estava lá?
— procurou saber Guilhermina.
— Não, nós estávamos no
aeroporto. — foi a mulher, atrás de Diogo quem respondeu. Todos se
entreolharam, sem compreender direito o que havia acontecido ou quem era ela. A
mulher pareceu perceber o constrangimento e antecipou-se. — Ah, desculpem. — deu
um passo à frente. — Meu nome é Laura, uma amiga do Diogo. Nós estávamos no
aeroporto quando ele recebeu a ligação.
Saulo se pôs diante do irmão e
perguntou. — Então o viu morrendo?
— Era isso que queria, não era?
— respondeu Diogo.
— Não, deve haver algum engano.
— Laura intrometeu-se mais uma vez — Nós não estávamos no local do acidente, o
Diogo tinha acabado de ir buscar-me no aeroporto, quando recebeu uma ligação
dizendo que o irmão havia morrido.
— É você quem não está
entendendo, minha filha. — anunciou Guilhermina já impaciente.
— Você o viu morrer? — insistiu
Saulo na pergunta.
Diogo fez que sim com a cabeça
e deixou uma lágrima escapar, parecia não conseguir dizer mais nenhuma palavra.
Saulo desejou abraçá-lo. Por
mais que estivessem distantes, eram irmãos e precisavam estar juntos naquele
momento de dor. Agora eles só tinham um ao outro. Thomás não mais existia entre
eles. O que desejou a vida inteira, fazia-se verbo, não que o irmão morresse,
mas que não existisse. Sempre quis estar junto de Diogo, desfrutar de seu
afeto, da mesma cumplicidade existente entre ele e Thomás, a mesma cumplicidade
nunca experimentada por Saulo em relação a nenhum dos dois irmãos. Finalmente
Diogo sentiria falta e se entregaria em amizade a ele, como tanto sonhou.
Mesmo que o rejeitasse chegava
o momento de tentar. Saulo deu um passo à frente e Diogo desviou-se, caminhando
até o centro da sala.
— Agora sim, está se sentindo
dono de tudo o que ele construiu, não é? — provocou Diogo.
Saulo permanecia de costas,
olhando devagar por sobre o ombro.
— Como assim?
— Sempre quis tudo o que era
dele, até mesmo sua vida.
— O que está insinuando? — finalmente
voltou-se ao irmão.
— Esse acidente foi provocado
por alguém! — revelou Diogo.
— Como assim, meu filho? — Zica
tentou saber.
— Diogo, vai com calma, você
não tem certeza de nada. Ou tem? — Laura tentou intervir mais uma vez, como se
estranhasse tudo aquilo.
— Acha que eu o matei? — Saulo
perguntou.
— As imagens estão confusas na
minha cabeça, meio embaralhadas, — explicou Diogo. — mas eu vi sim uma bomba
sendo colocada no motor do carro em que o Thomás entrou.
Saulo sentiu um arrepio na
espinha com aquela declaração.
Thomás
foi assassinado!
— Exatamente, o Thomás foi assassinado!
— confirmou Diogo, como tivesse lido a mente do irmão.
— Meu Deus! — Zica cobriu o
tosto com as mãos, assustada.
— Não estou mais entendendo
nada! — declarou Laura, aproximando-se de Diogo, como se o estudasse.
— Não fui eu! — Foi quase um
grito de Saulo.
Diogo aproximou-se do irmão,
colocando-se diante do mesmo. Os dois ficaram cara a cara. Como se Saulo
estivesse em frente a um espelho e temia o que a outra imagem poderia
expressar. Na verdade, desejou que não o fizesse. Ele o magoaria profundamente,
muito além de todas as mágoas já provocadas por sua distância e falta de
misericórdia. Seu olho tremia, diferente de Diogo, que permanecia impávido,
como se o perscrutasse.
— Sabe porque me afastei de
você e de tudo isso aqui? — colocou Diogo, em resposta aos pensamentos do irmão.
— Depois que o Thomás se foi, o Chiamare perdeu completamente o sentido para
mim. Foi ele quem criou tudo isso.
— O sentido do Chiamare vai
além do Thomás. — rebateu Saulo.
— Não quando ele passa a ser
liderado por uma pessoa ambiciosa e invejosa como você.
— Só queria o amor de vocês! —
retrucou Saulo, esforçando-se para conter as lágrimas e o embargo na voz. Doía
não ser reconhecido em sua dor e afeto pelo irmão, mais até do que a própria
rejeição de uma vida inteira. Os dois sempre foram cruéis para com ele.
— Mentira! Você sempre nos
considerou dois idiotas, até quando fundamos o Chiamare. Depois que você
percebeu que a comunidade dava dinheiro, que podia ficar rico às custas do
trabalho do Thomás, do meu dom e da generosidade das pessoas, passou a fazer de
tudo para tirar o Thomás do seu caminho e chegar aonde está.
— Meu filho, isso é injustiça!
— Zica tentou acalmá-lo, acariciando suas costas.
Diogo olhou para ela de um
jeito interrogativo.
— Não sei até que ponto você é
inocente, Zica...
— Não tem o direito de ofender
a Zica! — contestou Saulo.
— Realmente não, por isso me
mantenho afastado, para não ser injusto.
— Compreendo que esteja
desesperado, acabamos de perder nosso irmão...
— NÃO CHAMA ELE DE IRMÃO! — Diogo
gritou. — Não tem esse direito!
— Estou sofrendo tanto quanto
você, não percebe? — questionou Saulo.
— Mentira! Como fez a vida
inteira, como faz o tempo todo com as pessoas, escravizando o Lucas, como
queria fazer comigo.
— Só queria o teu afeto! — foi
o que Saulo conseguiu responder, antes de se entregar ao choro.
Diogo o observou e parecia
conter a emoção e um impulso de ceder. Laura permanecia assustada, como se
procurasse nas entrelinhas uma explicação, enquanto Zica correu para dar colo
ao líder do Chiamare.
— Chega! Chega! Parem com
isso! O Thomás está morto! — clamou Zica.
Diogo tomou a mão de Laura e
encaminhou-se a ir embora e antes de desaparecer, anunciou. — Vou descobrir
quem matou meu irmão. — Diogo saiu em seguida.
O que foi como uma punhalada
em Saulo. Diogo não tinha motivos para odiá-lo tanto e fazer tanto mal! Não
bastava tê-lo negado amor a vida inteira, precisava machucá-lo ainda mais,
feri-lo de morte?
— Não fui eu, não fui, não fui
eu! — disse repetidas vezes.
Zica e Guilhermina tentaram
acalmá-lo, mas quem ele queria que acreditasse, já tinha ido embora. Cessou o
choro, procurou se recompor, limpou as lágrimas e por fim, decretou. — O Diogo
vai me pedir perdão. Vou provar que não fui eu quem matou nosso irmão!
21
Cândida preencheu o último
vaso de mudas de rosas com estrumo. Oito ao todo, na mesa à sua frente. Capaz
de passar horas na estufa construída por ela nos jardins da sede da comunidade,
ela levantou ao raiar do sol e caminhou do apartamento da família Rebelo, na Rua
Tibúrcio Cavalcante até a Rua Monsenhor Catão, como fazia sempre que possível,
ao encontro de seu oásis, seu refúgio. Aproveitava desde a longa caminhada até
a beleza indescritível das mais variadas espécies de flores as quais cultivava
ali para reestabelecer sua intimidade com Deus. Um dos poucos momentos em sua
vida que experimentava verdadeiramente a paz. Naquela manhã especialmente
necessitava mais que nunca desse aconchego.
Havia chorado silenciosamente,
para que ninguém notasse, desde a tarde do dia anterior, quando soubera da
morte de Thomás. Seu coração estava aos pedaços. Diversas vezes questionou a si
mesma se fora justa com ele, e tivera pena por suas escolhas e consequências
assumidas. Impossível não recordar-se de quando o havia conhecido, na
adolescência, apaixonados um pelo outro, partilhando sonhos e ideologias, como
o amor em Deus.
Casa
comigo? A imagem de Thomás dizendo-lhe aquilo se fazia tão viva!
Grandes heranças ele deixara
daquela época, a própria obra, e Salomão. Como não chorar o que Thomás fora no
passado? Durante anos, o grande Pescador de Vidas do Chiamare. Novamente uma
lágrima desbravou discretamente seu rosto, uma dor sem voz.
— Sofrendo pela perda de seu
grande amor?
Edgar não tinha o direito de
lhe invadir em seu recanto.
Enxugou a lágrima com a manga
da blusa e procurou concentrar-se nos vasos de rosas que inspirava cuidados.
— O que quer aqui?
— Precisava resolver detalhes
do funeral com Saulo e Pe. Giuseppe. Imaginei que estivesse aqui na estufa. — explicou-lhe.
— Como vai ser?
— Uma cerimônia simples, com
poucas pessoas, amanhã. Papai achou melhor não chamar a atenção. Pode ser ruim
para a comunidade.
— Claro, tudo pela comunidade.
— sua colocação veio pesando toneladas.
— Não tem como ser diferente.
Mesmo depois de morto esse homem pode acabar com tudo o que nós construímos.
— Esse homem foi o fundador
desta comunidade, foi ele que nos convidou a participar deste sonho, um projeto
dele. Foi dele o primeiro chamado!
Queria que ele falasse com
menos desprezo.
— Ele veio para se vingar,
acabar com todos nós, e o defende? — questionou Edgar.
— Ainda se lembra do quanto o
Thomás foi seu amigo?
Cândida não conseguiu mais
controlar a emoção reprimida há anos, pousando as duas mãos por sobre a mesa
para se apoiar e deixando sair sua dor, num choro que se escondia por trás dos
óculos escuros. Edgar finalmente permitiu-se sentir, com uma única lágrima
delatora que escapuliu de suas couraças.
— Esse Thomás já morreu há
muitos anos, Cândida.
— Desde quando pensou que
fosse ele o pai do Lucas?
— Não, desde quando ele matou
aquela mulher.
Cândida mordeu o lábio e
aproximou-se do marido. Precisava saber da verdade.
— E foi ele mesmo quem a
matou, Edgar?
— Ora que pergunta mais sem
cabimento! — desdenhou, dando-lhe as costas.
— Ele gritou tanto sua
inocência.
Edgar deu um giro, encarando a
esposa.
— E aí você acreditou? Não
seja idiota, Cândida. O Thomás foi julgado e condenado, passou doze anos na
prisão. O que quer mais para acreditar?
Cândida tirou as luvas,
jogando-as na mesa, depois tirou o cabelo do rosto e cobriu a boca, tentando
organizar os pensamentos. Momento de pôr tudo em pratos limpos. Se insistisse
talvez Edgar cedesse e falasse a verdade, o que ela sempre temeu saber e
procurou fugir, para esquecer esse grande amor. O que fora velado por tantos
anos seria finalmente desnudado. Ela, amargaria em seus remorsos eternamente,
aguardando um perdão que nunca viria, do homem que tanto amou e preferiu
esquecê-lo aprisionado em suas próprias mentiras criadas para não sofrer. Hora
de deixar a covardia, sua grande companheira de lado e voltar a ser uma pessoa
boa.
— Foram vocês?
— O quê?
— Que deram fim à vida dele?
Edgar fitou profundamente os
olhos da esposa, com pesar, depois olhou para tudo à sua volta e saiu, sem dar
uma palavra. Finalmente ela compreendeu!
Em seguida, Cândida
agachou-se, abraçando os joelhos e chorou. Lamentou por tantos equívocos e
sofrimentos cultivados nos últimos doze anos.
Infeliz!
Eu sou infeliz!
— Mãe? — Lucas procurou
ajudá-la. — O que posso fazer?
Quando o viu simplesmente
abraçou-o, deleitando-se em sua ternura.
— É por causa da morte do tio
Thomás, não é?
Cândida tomou certa distância,
o suficiente para enxergar seu rosto e o tocou delicadamente.
— Nesses momentos a gente
repensa muito de nossas vidas, filho.
— Eles não querem que eu fale
nem o nome dele, mas me lembro com muito carinho de como ele me tratava.
— Guarde essas lembranças aqui.
— pressionou firme seu peito.
— Por que tantos segredos,
mãe? Sei que o tio Thomás errou, mas vocês não tinham o direito de riscá-lo
completamente de suas vidas.
Não,
não tínhamos!
— E por que tenho a impressão
de que esses segredos têm a ver comigo?
— Talvez nós tenhamos tentado
te proteger, querido.
— Mas o filho dele é o
Salomão. O que houve em relação a mim, mãe?
— Nada, filho, nada.
Cândida procurou se aninhar no
peito de Lucas e calou.
22
Laura tomou um demorado banho
quente naquela manhã. O dia anterior tinha sido recheado de muitas emoções.
Primeiro seu retorno à Fortaleza, após vinte anos, depois o ataque de Diogo no
aeroporto, culminando com o recebimento da notícia da morte de seu irmão. Por
fim, testemunhou a delicada conversa do amigo com seu irmão gêmeo, e justo o
Pescador de Vidas, o foco do trabalho a ser realizado agora, motivo real de sua
vinda para a capital cearense. Só não imaginava o que poderia filtrar do que
faria parte da reportagem acerca do Chiamare e seu líder moderador, e o que
permaneceria velado por fazer parte da intimidade exposta de Diogo. Jamais
tornaria público aquilo que ele não permitisse!
Pôs uma camiseta leve e uma
calça de malha para tomar café e ficar a manhã em casa. Só sairia à tarde, a
fim de acompanhar Diogo a alguns compromissos. Percebeu o cuidado do amigo em
cada detalhe pensado para recebê-la. Uma mensagem de boas-vindas feita com
colagens de paisagens fixada no mural da parede na frente da escrivaninha,
seguida de parte da letra da música “Quixabeira” de Carlinhos Brown.
Tu
não faz como passarinho
Que
fez um ninho e avoou
Mas
eu fiquei sozinho
Sem
teu carinho
Sem
teu amor
E logo abaixo:
Com
afeto, Diogo.
No criado mudo, do lado da
cama, um porta-retratos com uma selfie
dos dois juntos em São Paulo.
Laura pegou a fotografia,
recordando-se com ternura daquele momento em que os dois estiveram juntos. O
encontro com Diogo fora um divisor de águas em sua vida. Ela sorriu, apoiando o
porta-retratos com carinho em seu peito. Em seguida, devolveu-o ao mesmo local,
impecavelmente arrumado para acolhê-la e foi ao encontro do amigo na sala.
O cheiro de ovos mexidos
confundia-se com o aroma de incensos espalhados por vários lugares do espaço.
Diogo parecia absorto diante do fogão. Ela sentou diante do balcão da cozinha
americana do charmoso e bem decorado apartamento e pegou uma maçã numa fruteira
logo à sua frente.
— Lindo seu canto. — elogiou
ela, mordendo a fruta.
Diogo desligou o fogo e trouxe
a frigideira até o prato no balcão. Ensaiou um tímido sorriso e despejou os
ovos mexidos no outro recipiente. Estava visivelmente abatido.
— Que bom que gostou.
— E você, como passou a noite?
— Simplesmente passei. — respondeu
após um longo suspiro. Depois levou o prato à mesa farta junto às outras
guloseimas que havia preparado. Tudo demonstrava tanto zelo.
— Assim me sinto envergonhada.
Fazendo isso por minha causa. Você é que precisa ser cuidado nesse momento.
— Não se preocupe. Assim me
distraio um pouco. Gosto de cozinha.
— E sabe cozinhar... meu Deus,
é um sonho um homem desses!
Os dois riram, tomando seus
lugares, um de frente para o outro.
— E você, como foi a primeira
noite em Fortaleza?
— Caí como uma pedra na cama.
— Foi cansativo, não é?
— E também fiquei preocupada
com você.
— Além de ter acabado
conhecendo meu irmão naquelas condições. — tocou a mão de Laura e completou, — Desculpe
por tudo! Acho que merece algumas explicações.
— Diogo, não se preocupe
comigo. Não tem que me dar qualquer explicação.
— Tenho sim. E quer saber?
Será bom falar disso.
Diogo desabafou inicialmente
acerca da dor pela perda de Thomás e dos remorsos por tê-lo abandonado na prisão
e sua eterna dúvida se não fora covarde diante da verdade. Por mais que se
sentisse traído, decepcionado ou ferido de alma, pelo crime do irmão, como
alegava, talvez devesse ter lhe dado o mesmo apoio e cumplicidade como sempre
partilharam mutuamente. Em seguida, procurou resumir a difícil relação com
Saulo Sobreira, desde a infância até a época em que estiveram juntos nos
primeiros anos do Chiamare. Laura acabou por confirmar o que ela já imaginava,
que não tinha sido o atual líder da comunidade seu fundador e que o mesmo havia
assumido o lugar de Thomás, depois de sua prisão, sem maiores explicações aos
fiéis. Tratando-se de um homem ambicioso que fez fortuna aproveitando-se da fé
das pessoas.
Com cautela, procurou saber da
veracidade acerca dos fenômenos paranormais que supostamente aconteciam nas
cerimônias religiosas do Chiamare e se estavam diretamente ligados ao dia em
que eles haviam se conhecido em São Paulo, tendo ela escapado misteriosamente
de um acidente, bem como o ataque de Diogo no aeroporto, no qual ele teria
visualizado a morte do irmão.
Ele por sua vez, hesitou um
pouco, mas acabou falando sobre o dom que o acompanhava desde a infância e que
nunca havia aceitado. Atribuindo ao padre italiano Giuseppe Giordano o mérito
de tê-lo ensinado a conviver com suas habilidades, enxergando-as por algum
tempo, como uma dádiva e não um castigo. Laura fez um esforço para acreditar no
que ouvia. Diogo tinha o dom da telecinesia, segundo ele, podendo mover objetos
com a mente. Sendo capaz também de prever o futuro e o maior de seus poderes, a
capacidade de curar a alma das pessoas, desde que estivessem abertas a isto.
Assim nasceu o Chiamare, onde ele tocava a alma dos moradores de ruas,
transformando-os nos resgatados/missionários da obra. Sendo Diogo talvez a
grande pilastra da comunidade, além da forte liderança espiritual de Thomás.
Uma dobradinha que transformou o Chiamare em uma das maiores comunidades
católicas, apesar de terem enfrentado inúmeras resistências por parte da
própria Igreja, por conta dos fenômenos ocorridos em suas cerimônias.
— Na verdade você era o grande
Pescador de Vidas! — concluiu ela.
— Não. A comunidade não
existiria se não fosse pelo chamado do Thomás e seu dom em liderar e pregar. Eu
era um instrumento. Ele abria o coração das pessoas com a luminosidade de suas
palavras e eu os transformava.
— Bom, sei que o Saulo
Sobreira assumiu o papel que foi de Thomás. O seu papel, quem assumiu? Afinal,
hoje o mundo inteiro fala dos fenômenos e das curas nas missas do Chiamare acontecendo
até hoje.
— Lucas, o filho de Cândida e
Edgar, também fundadores da obra, tem o mesmo dom. Foi criado para ser o
principal missionário consagrado da comunidade.
Filho
de Edgar? Um susto ao ouvir aquele nome. Mas procurou manter-se impávida.
— Por isso disse ao seu irmão
que ele se aproveitava desse rapaz.
— Exatamente.
— Por isso se afastou?
— Acreditei que Thomás se
perdeu de si mesmo na época do crime em que foi acusado. Nós éramos cúmplices
em tudo, inclusive na fé. Já que ele havia saído do Chiamare, para mim também
não havia mais lugar. Depois, não concordava com a administração de Saulo, nem
com o que eles fizeram ao Lucas, que era um garoto de 6 anos e acabou sendo
obrigado a dedicar sua vida à comunidade. Ele é explorado!
— Uau!
Laura levantou, fitando o chão
e esfregando o rosto, procurando organizar tudo o que ouvira. Necessitava mais
que nunca de seu talento de jornalista para sistematizar tantas informações
esdrúxulas. Sentia-se constrangida por fazer mais perguntas, mas queria e precisava
de outras respostas. Fundamentalmente, de uma confirmação de tudo aquilo. Se tudo
fosse uma fantasia, uma ficção criada para que os fiéis acreditassem? Era uma
jornalista séria e necessitava de provas. Queria perguntar e não tinha coragem,
por tudo o que havia acontecido a Diogo. Não, não poderia demonstrar qualquer
nível de desconfiança a alguém que estava sendo tão importante em sua vida. Certamente
ele entenderia dessa forma.
— Ok, sei que precisa de uma
prova. — disse ele sorrindo.
Como
sabe? Ler pensamentos? Isso já havia acontecido em São Paulo, mas
poderia ser a intervenção de uma pessoa perspicaz, que lida com a alma humana,
como ele, nos cursos e trabalhos existenciais enquanto consultor e facilitador
de grupos.
Diogo saiu da cadeira,
apoiou-se na mesa e pareceu reunir forças e concentração. Segundos depois seus
músculos contraíram-se e a face ficou vermelha, como se invadida por todo o
sangue de seu corpo. Começou a tremer como se febre sentisse.
Meu
Deus!
O fenômeno aconteceu diante de
seus olhos. Tudo o que estava na mesa levitou a uns cinquenta centímetros.
Laura podia sentir o próprio queixo cair de tão perplexa. Devagar, sem
acreditar, passou a mão no ar, entre as louças e a mesa. Sim, era real! O que
imaginava ser um truque fez-se verdade, tendo seu ceticismo como testemunha
daquilo que jamais acreditaria se alguém lhe contasse. Em seguida, a louça
girou em 360° e pousou delicadamente aonde estava antes daquela demonstração.
Finalmente Diogo descansou. Parecia exausto, ofegante e por pouco não caiu.
— Você está bem? — Laura
correu, ajudando-o a sentar. Em seguida, encheu um copo de água e lhe entregou.
— Agora acredita? — interpelou-a.
Se não fosse por ele, teria
morrido em São Paulo!
— Sim. — deu as costas e
contornou o pescoço com as suas mãos. Reconhecia o quanto Diogo era especial,
mas estava muito assustada. — Agora compreendo tudo.
Precisava de um tempo para
digerir aquilo!
23
O homem de sapatos italianos
saltou de sua caminhonete BMW e entrou no Presídio Professor Olavo Oliveira, em
Itaitinga. Depois de atravessar a portaria, foi acompanhado por um policial até
as cabines de visitação, passando por diversos detentos e carcereiros, que o
seguiam com um olhar de modo curioso. Alguns pareciam reconhecê-lo, outros
talvez estivessem surpresos pela presença de alguém com roupas tão finas dentro
daquele inferno. Conhecia mais que qualquer pessoa aqueles corredores e
paredes. Não imaginava que tão brevemente voltaria até ao local de seu
martírio. Entretanto, desta vez num outro papel, no controle da situação.
Ao sentar diante da cabine, o
homem conferiu o horário em seu Rolex, ajeitou o Cristo Ressuscitado de ouro
branco em formato de crucifixo no bolso de seu blazer, o símbolo do Chiamare, e
aguardou pouco mais de um minuto até que o detento foi conduzido por um guarda
à sua frente, do outro lado do gradeado. Juscelino tinha feição de uma pessoa
alegre, apesar de aparentar sofrimento e uma idade superior aos seus 36 anos,
calvo e 20kg mais gordo de quando chegara ali. O mesmo arregalou os olhos ao
vê-lo. Tratava-se de seu grande companheiro de cela por muitos anos.
— Parece outra pessoa! — surpreendeu-se
Juscelino.
— Esta é a ideia. — respondeu
o homem sorrindo.
— Pensei que estivesse diante
de...
— Saulo Sobreira? — interrompeu-o,
feliz pelo sucesso de seu plano.
— E como foi tudo?
— Acabei de vir de meu enterro.
— respondeu Thomás. — Aconteceu exatamente como havia planejado. Todos pensam
que estou morto. Agora colocarei em prática a segunda parte do plano.
— E a reação deles com sua
morte?
— Aparentemente abalados.
— Como aparentemente?
— Mentira. Todos fingiam dor
pela minha morte.
— E se não for fingimento?
Eles não precisavam mentir.
— Eles são sórdidos,
Juscelino. Você sabe. Encenavam uns para os outros. Senti nojo de vê-los cabisbaixos,
como se estivessem realmente tristes por me perder.
— Está bonito vestido assim.
— Pareço o líder do Chiamare?
— Idêntico.
— Ótimo.
O irônico era que um dia já
havia sido sim o líder da comunidade, não daquela forma, esbanjando riqueza com
um dinheiro que deveria servir aos fiéis, mas verdadeiramente preocupado e
coerente com a causa.
— E agora, o que vai ser? — perguntou
o antigo companheiro.
— Seguirei com o plano.
— Thomás, já tem como refazer
sua vida. Por que insistir com essa vingança? Temo por você, de acabar voltando
para cá.
— Vingança? Procuro justiça.
— É delicado quando a justiça
é feita pelas próprias mãos. Neste caso o referencial é sempre pessoal.
Impossível falarmos de justiça e não nos vermos na relação com o outro.
Portanto, o referencial não pode ser só nosso, já que também se trata do outro.
Esse referencial deveria ter sido acordado pelos envolvidos e não somente por
uma das partes. — Juscelino não perdia a postura filosófica das épocas de
professor, antes da prisão.
— Questiona os meus métodos,
depois de tudo o que passei?
— Não se trata disso, Thomás.
Minha preocupação é única e exclusivamente com você. Não acredito que vingança
nos leve a lugar algum.
— Uau! — ironizou. — Nem
parece que é o discurso de um cara que foi condenado por matar a esposa e o
melhor amigo ao descobrir que estavam tendo um caso.
Juscelino baixou a cabeça.
Thomás logo se tocou do que havia feito.
— Desculpa, desculpa! É que
perdi tudo, inclusive as pessoas que eu amava, paguei doze anos por um crime
que não cometi. Ninguém tem o direito de me falar em justiça ou injustiça após
o que sofri.
— Não quero te ver sofrer mais
ainda.
— Não vou sofrer, acredite!
— Só posso desejar que Deus te
ajude.
— Não fale em Deus.
— Estranho isso, vindo de uma
pessoa que foi o líder de uma das maiores comunidades da Igreja Católica. — comentou
Juscelino.
— Odeio Deus! — retrucou como
se expressasse todo o seu sofrimento de doze anos naquela única frase.
— Que bom. Sinal que nunca
deixou de acreditar. Apenas não compreendeu.
— Chega, Juscelino! Vim aqui
para te dizer que o advogado já entrou com o pedido de condicional para você.
Em pouco tempo também estará fora deste inferno.
— Que bom, quero voltar a
estar com você.
— Em breve estaremos juntos
novamente. Quero você do meu lado, como prometi.
— Tempo encerrado. — avisou o
guarda, atrás de Juscelino.
Juscelino levantou e estendeu
a mão para fora da grade. Thomás a apertou. Os dois trocaram olhares com a
mesma cumplicidade que os acompanhou por doze anos de parceria na mesma cela.
Tornaram-se, ao longo dos anos, a única referência de afeto e confiança um para
o outro. Tinham tanto a partilhar. Pena ter sido tão pouco tempo o reencontro. Em
breve teria seu companheiro de volta.
24
A primeira entrevista de Laura
a Saulo Sobreira foi marcada para uma semana após o enterro de Thomás.
Encontrava-se ansiosa por aquele momento, para conhecer mais de perto o grande
Pescador de Vidas e sua versão da história que o levou à liderança espiritual
do Chiamare. Sabia o que Diogo havia lhe contado, alimentando a curiosidade
para conhecer o outro lado da moeda. Fazia um esforço para não se deixar
conduzir pela parcialidade fomentada por uma consistência percebida na partilha
do amigo.
Chegando à comunidade, foi
recebida por Zica, a primeira resgatada. Aproveitou para lhe fazer algumas
perguntas acerca de sua experiência como missionária consagrada e membro do
conselho administrativo da comunidade, bem como da diferença de vida
estabelecida após a chegada no Chiamare. A mulher deixava transparecer uma
alegria contagiante por fazer parte daquela obra, acreditando ter sido
escolhida por Deus para inspirar a estruturação e manutenção do caminho de
resgate de tantas outras vidas. A hesitação veio quando Laura interpelou-a
sobre a liderança de Thomás Sobreira. Zica foi salva por Guilhermina, que
interrompeu a entrevista informal para levar a jornalista ao escritório de
Saulo.
Essa
mulher deve guardar muitos segredos...
A hora de Zica chegaria!
Laura foi conduzida por
Guilhermina até a sala de Saulo, um espaço amplo e bem decorado, com um jogo de
quatro largas poltronas na entrada e uma grande mesa ao fundo, antecedendo a
vidraça que se estendia por toda da parede atrás dele, abrindo a visão do
belíssimo jardim da comunidade, idealizado na certa por um sensível paisagista.
— Seja bem-vinda à sede do
Chiamare, Laura Ponte. — Saulo deu-lhe as boas-vindas de pé, estendendo-lhe a
mão.
— Lindo seu espaço. — disse
ela, sendo conduzida por ele a uma das poltronas no início da sala.
Guilhermina passou algumas
informações burocráticas ao seu chefe e os deixou a sós.
Impressionante! Parecia estar
diante de Diogo, eram idênticos. Os mesmo traços, a voz. Diferenciados pela
vestimenta. O despojamento do amigo, com seus jeans e sapatênis, dava lugar à
sofisticação dos ternos e sapatos de grife do irmão. Os gestos de Saulo também
pareciam ensaiados, como num balé que representava um refinamento inglês. Além
do olhar. Ah, a forma de olhar dos dois era completamente diferente. Enquanto
Diogo trazia uma brandura e verdade profunda desbravadora da alma do outro, o
irmão era mais insinuativo ou sedutor. Isso mesmo, beirava à sedução.
— E então, o que a trás aqui?
— Saulo alinhou o blazer elegantemente e sentou numa poltrona de frente para
ela, sorrindo.
Como
o que me trás aqui? Esta é uma matéria comprada por ele mesmo!
— O senhor me trouxe aqui. — respondeu,
retribuindo o sorriso.
— Como?
— Digo, a história desta
comunidade. — consertou. Não era momento de hostilidades. Ele estabelecia um
jogo de aparências, como muitas pessoas em sua posição de poder, e ela
cumpriria os protocolos, até não se sentir violentada em suas crenças e
valores. No mais, começava a gostar do desafio. A história do Chiamare trazia
muitas nuanças, além do que era passada, o que lhe despertava o entusiasmo
quando se apropriava de uma matéria.
Saulo Sobreira falava da obra
como se tivesse sido ele seu fundador, até que Laura interviu perguntando sobre
o exato momento em que assumiu a liderança da comunidade, depois da
administração de seu irmão. Diferente de Zica, ele não demonstrou nenhum
incômodo ou abalo, ressaltou o fato de que o Chiamare, apesar dos vinte anos de
existência, só começou a crescer de fato há doze anos. Algumas outras perguntas
foram ensaiadas por ela na mesma perspectiva, referindo-se à era Thomás
Sobreira ou mesmo à atuação de Diogo como missionário. Saulo mantivera-se
impávido e sereno, sem esboçar qualquer trejeito que indicasse negação ou
desconforto. Não obstante, ele não se prolongava a respeito e logo dava um
jeito de desviar o foco à sua administração. Elegante e cavalheiro, falava com
exacerbada diplomacia. Escorregadio!
Postura
típica de um grande político!
O líder do Chiamare descrevia
a história da obra a partir da espiritualidade e missão que os conduzia,
entretanto, dava sempre um jeito de ressaltar seus feitos e presença
imprescindível a transformá-la numa das maiores comunidades católicas da
atualidade, reconhecida hoje pelo Vaticano.
Pernóstico!
Para Laura, ali residia a
maior diferença entre Saulo e Diogo.
Após algumas horas, ela o
acompanhou a uma visita à fábrica de roupas que ficava a menos de uma hora de
onde estavam, no bairro do Montese, onde tudo começou. Um galpão gigantesco,
com centenas de máquinas de costura industriais e pessoas trabalhando a pleno
vapor. Tratava-se dos missionários consagrados do Chiamare, todas pessoas
resgatadas das ruas. Muitas de Fortaleza, outras de outros estados e até
países, transferidas de suas comunidades a partir da política de convivência
interna do Chiamare. A ideia era que não permanecessem por muito tempo na mesma
fábrica, a fim de que pudessem colaborar com outras realidades. Para Laura, um
princípio um pouco vazio, talvez um meio de garantir que não retornassem para o
lugar de onde vieram.
Foi percebendo que a maioria
das regras ou princípios, como eles chamavam, traduziam intenções não
declaradas. Certamente para a manutenção do poder dentro da comunidade. Como
muitas instituições e a própria Igreja fazia em prol de sua manutenção e
sobrevivência ao longo dos tempos.
— Como não se trata de uma
empresa comum, diferente das que nós conhecemos, que não visa o lucro, como se
dá a política salarial e de direitos destas pessoas? — procurou saber ela, do
alto de uma escada, de onde se tinha uma visão panorâmica do funcionamento da
fábrica — centenas de pessoas, medindo, cortando ou costurando peças de
tecidos, bem como operando o aparato de máquinas disposto ao longo de todo o
ambiente.
— Nós os resgatamos das ruas.
— começou ele a responder sem pestanejar, como num discurso decorado. — Demos a
eles uma vida nova, um lar, uma família, um motivo de vida e, fundamentalmente,
o contato íntimo com Deus.
— Falo de direitos
trabalhistas. — insistiu Laura.
— Todos são missionários,
consagrados da obra, estão aqui por um chamado. — explicou ele.
— Vocês têm milhares de
missionários espalhados por cada centro religioso inaugurada pelo Brasil e o
mundo. Todas essas pessoas trabalham de graça?
— Como disse, são
missionários, não funcionários.
— E o lucro gerado? Não existe
uma política de partilha de lucros?
— Não visamos o lucro, mas a
manutenção da obra.
— Mas essas pessoas não tem
autonomia, escolha ou condições de o fazer.
— Elas escolheram destinar
suas vidas à obra. São consagradas. A partilha de lucros seria uma incoerência,
já que temos também o voto de pobreza.
Laura olhou para Saulo e viu
um homem bem vestido, morando em um palacete, com acesso às melhores comidas e
lugares, usufruindo de uma riqueza que não lhe pertencia. Enquanto pessoas
simples, humildes, vestidas de qualquer jeito, puras de coração trabalhavam
incansavelmente para proporcionar a ele e seus administradores ou líderes de
comunidade, os “pescadores de vidas”, conforto e bem estar.
Senzala X casa grande.
Compreendia o afastamento de
Diogo e os conflitos gerados dentro da obra há doze anos, quando Thomás propôs
a divisão de lucros das fábricas entre os missionários consagrados, causando um
rebu no conselho administrativo do Chiamare. Resultando num crime inexplicável
pelo qual fora condenado e seu afastamento para a nova liderança de Saulo
Sobreira, diretor financeiro na época, que comandou a campanha contra a louca
administração do irmão, segundo ele, dentro da comunidade.
Podia questionar, insistir
acerca dos direitos daquelas pessoas e incoerência com uma proposta religiosa
que visava à manutenção da dignidade humana. Para Laura, um trabalho escravo
maquiado de uma proposta espiritualista, visando o enriquecimento de poucos.
Deste modo, seria honesta consigo mesma e poria um fim àquele jogo de aparências.
Além do que o líder do Chiamare se arrependeria pela insistência de seu nome
como jornalista para a elaboração daquela matéria. Uma forma também de dar ao
seu editor a resposta que ele merecia por tê-la chantageado.
No entanto, entregaria a outro
jornalista a oportunidade de descobrir as verdades encobertas pelo crescimento
daquela comunidade ou mesmo a chance de alguém finalmente desvendá-las. Muito
precisava ser dito e partilhado com o mundo além de discursos maquiados por
ideias ditas espiritualistas. O que fazer? Não queria ser incoerente com seus
próprios valores, mas também não podia se deixar levar por impulsos ideológicos
e perder a chance de desmascarar um charlatão.
Laura preferiu calar e ouvir
mais de sua retórica. Surpreendia-se pela estrutura do discurso, uma fala que
quase a fazia acreditar, pela beleza e poesia, aliadas a uma fundamentação
existencial e necessidades da humanidade na atual conjuntura. Sem dúvidas um
homem extremamente inteligente, preparado para estar onde estava.
Mais do que nunca, sentia-se
desafiada a descobrir toda a verdade que se escondia por trás da
espiritualidade consistente do Chiamare!
25
— O novo Saulo Sobreira, de
presente para o mundo. — disse Thomás, alinhando a gola do blazer, como o irmão
fazia, de frente para o próprio reflexo no espelho. Ensaiou um olhar mais
insinuador, como o dele, procurando se desvencilhar dos traços de dor e
amargura configurados em seu rosto.
A nova fase de seu plano de
justiça começava a ser posta em prática, com o apoio de algumas pessoas
compradas dentro da comunidade. O que lhe permitiria livre acesso a todos os
lugares, com ou sem a presença do sósia. Os R$ 20.000.000,00 desviados da obra
por Saulo para comprar seu distanciamento, seriam devidamente empregados no caminho
a ser trilhado para fazer com que todos eles pagassem pelo que fizeram.
Thomás saiu do banheiro em um
dos corredores que davam para o pátio da comunidade e quase esbarrou em Lucas,
e se o jovem conseguisse perceber, com seu dom, quem realmente estava por trás
daquelas roupas finas? O que faria? Como neutralizá-lo?
Por exatos doze anos não
estivera tão perto de Lucas. Ele havia se transformado num bonito rapaz, com a
mesma estatura que a sua. Além muitos traços que lembravam seu próprio rosto.
Alimentara a ideia de que era seu filho, durante todo o tempo em que estivera
preso, o que talvez tenha multiplicado o afeto por ele. Sempre imaginava que
não saberia como se comportar em sua frente. Agora sabia que Lucas não era
mesmo seu filho.
— Lucas? — Não sabia o que
dizer ao rapaz.
— Oi, tio. É... — parecia sem
jeito. — O senhor acha que... — como se quisesse dizer algo e não tivesse
coragem. — O Salomão me chamou para dar uma volta com ele amanhã à noite. — completou
rápido, quase sem respirar.
Os dois irmãos juntos. Seus
filhos! Não, definitivamente precisava lembrar que Lucas era seu sobrinho. Esse
amor que alimentara por anos não fazia sentido. Tratava-se da peça mais
importante do Chiamare naquele momento. Precisava se ater a isso. O sobrinho
teria um papel importante em seu plano, só!
— E pensam em ir para onde?
— Ele quer que eu conheça um
lugar. Nunca saímos, então pensei que...
— Claro. — interrompeu-o. — Será
ótimo para vocês nesse momento.
— O senhor permite que eu vá
então?
Sabia que Lucas fora criado
preso aos muros daquela comunidade, sem amigos, longe da vida normal de um
jovem e da presença do próprio irmão, exceto em alguns finais de semana,
liberado para visitar a casa do avô e estar perto da família. Deste modo, sua
primeira providência como Saulo Sobreira, seria inverter a ordem estabelecida.
Afastar Lucas da redoma construída para protegê-lo das influências mundanas
seria de fundamental importância ao enfraquecimento do poder do irmão.
— Acredito que já seja o
momento de você e Salomão se aproximarem.
O rapaz o observou de modo
assustado, sem o reconhecer certamente.
— Como assim me aproximar do
meu irmão? O senhor sempre disse que ele era uma péssima influência.
— Só sabemos se somos fortes
de verdade quando enfrentamos as provações, meu filho. — justificou Thomás.
Lucas sorriu aliviado.
— Posso dormir na casa dos
meus pais então?
— Claro que sim. Esteja de
volta no dia seguinte.
— Obrigado, tio Saulo. — agradeceu
quase saindo.
— Lucas? — chamou-o,
aproximando-se. Desejou tanto abraçá-lo. Errado, Lucas não era apenas parte
importante em seu plano, era seu afilhado, vira-o crescer. Recordou-se de
quando era um garotinho especial, necessitando de cuidados especiais para
crescer como uma criança normal, e do quanto o amava como filho de seus
melhores amigos. Depois, lembrou também da felicidade sentida ao descobrir sua
paternidade, há doze anos. Enquanto Salomão parecia não gostar da ideia de ter
um outro pai que não Edgar, Lucas e Thomás estabeleciam uma relação que ia para
além do apadrinhamento.
Se o abraçasse, talvez o rapaz
desconfiasse da energia presente. Melhor não.
— Vá encontrar seu irmão. — disse,
vendo-o desaparecer pelo corredor em passos apressados, como se fugisse da
possibilidade de uma mudança de ideia.
Sua primeira atuação como
Saulo Sobreira fora perfeita. Melhor ainda seriam as consequências daquela
saída de Lucas.
~
Lucas entrou na caminhonete do
irmão cheio de expectativas por aquela noite. Nunca saíram assim. Além de Saulo
Sobreira não permitir um contato de maior proximidade com Salomão,
considerando-o uma péssima influência à sua formação espiritual, o próprio
rapaz sempre o desprezou, e aquilo o machucava enormemente. Desde crianças, a
relação dos dois era complicada, recheada de brigas, reclamações e agressões
por parte do mais velho, que sofria por ser filho de Thomás e não de Edgar,
acusando a todos de protecionismo e mimos ao caçula, bem como insistindo num
tratamento quase sempre hostil ao mesmo. Exceto quando desejava se beneficiar
de seu dom, chantageando-o em troca de uma aproximação. Por outro lado, Lucas
cresceu alimentando grande admiração pela força, coragem e autonomia do outro —
Salomão era tudo o que ele queria ser, uma pessoa normal, não uma aberração,
como o próprio irmão o chamava muitas vezes. Desejando mais que qualquer coisa
sua amizade.
Salomão falou da noite, do que
rolava nos lugares para onde o levaria, das mulheres, que Lucas precisava se
soltar mais, sair mais vezes com ele. Tudo o que queria ouvir! Olhou para o
irmão, muito bem vestido, na moda, como um jovem de sua idade devia se vestir,
não como ele, trajando roupas de um velho.
Quero
aprender a ser assim!
Estava tão feliz em sua
companhia. Nem acreditava que Saulo o havia liberado e se não permitisse outras
vezes? Talvez fosse chegado o momento de ser como o irmão, corajoso e
enfrentá-lo.
— Tu precisa se libertar do
tio Saulo, cara! — afirmou Salomão, como se adivinhasse o que pensava. — Ele se
aproveita de ti, mah, te explora. A
droga dessa comunidade não é nada sem os teus poderes.
Droga de comunidade? Poderes?
Só não gostava quando falava assim.
— Podemos ganhar o mundo,
conquistar muitas coisas, juntos. O que acha, hein? — completou Salomão, dando
um tapinha no peito do irmão.
Juntos!
O
que mais desejava, estar junto dele.
— Tenho medo. — respondeu, com
receio do que Salomão pensaria.
— Medo? Besteira, mah! Eu te ajudo.
Sim, precisaria mesmo de sua
ajuda para enfrentar seu líder espiritual, seus pais.
Foi quando Salomão falou de
uma mulher, na qual estava interessado. Disse que ela também estava, mas temia
levar a relação adiante por conta do noivo. Afirmou ser a mulher de sua vida.
Em seguida, pediu que Lucas o ajudasse. Necessitava que usasse seu dom para
fazê-la mudar de ideia e ficarem juntos de uma vez.
Quantas vezes Salomão se
aproximou para conseguir seus objetivos através do dom de Lucas? Incontáveis.
Na verdade, parecia que só o fazia nestas circunstâncias.
— Não posso manipular os
sentimentos das pessoas, suas decisões, — Lucas tentou explicar. — meu dom deve
ser usado para curar os ferimentos da alma.
A expressão de Salomão ao
volante se transformou em impaciência.
— Que mané ferimentos da alma,
o quê? Parece frase besta de livro de autoajuda. Isso é o que o tio Saulo quer
que tu pense, mah. Tu mesmo não diz
que só pode usar esse dom quando as pessoas estão abertas?
— Isso.
— Então. A Liza gosta de mim,
me quer. Ela só não tem coragem. E covardia não é uma doença da alma? Preciso
que a cure desta doença, faça ela ter coragem.
Preferia não ter aquele dom.
Nunca agiu ou “curou” qualquer pessoa livre da sensação de manipular seu
destino, interferir no que era natural. Tirar pessoas das ruas, trazê-las para
o Chiamare e fazê-las servir na obra não seria o mesmo que negar seu livre
arbítrio? Segundo Pe. Giuseppe e outros teólogos, não. Visto que este dom da
cura da alma, só é possível quando a pessoa tem dentro de si um desejo
incontido, mas que o ego, o vício ou o mal distorce em repressão. Deus não
permitiria um dom que negasse seu princípio maior. A não ser que esse dom não
fosse algo divino.
Dar coragem a alguém trair seu
companheiro seria algo divino? O amor, como fica diante do exposto? Dúvidas que
o corroíam naquele momento. Definitivamente não sabia o que fazer, que decisão
tomar. Se não o fizesse, decepcionaria mais uma vez o irmão e decerto não teria
sua amizade. Da infância à adolescência aquilo aconteceu diversas vezes. Não
seria também uma forma de Salomão se aproveitar, como seu tio Saulo sentenciou
a vida inteira? O que faria?
Salomão estacionou o carro e disse
para acompanhá-lo, abraçando-o logo que desceram do veículo.
— Irmãozão, bom te ter aqui
comigo.
A colegagem que sempre sonhou.
Mas e o preço disso, estaria disposto a pagar?
Lucas entrou no ambiente com o
irmão, lotado de outros jovens. Gente bonita, bem vestida, como Salomão.
Algumas moças até olharam para ele. O outro, brincou com seu “dom de sedução”.
Sentia-se assustado, com medo. Nunca havia estado num ambiente como aquele.
Música alta, uma banda no palco tocava um ritmo chamado sertanejo universitário,
segundo Salomão.
Pareço
realmente de outro planeta!
O irmão parecia conhecido,
cumprimentava muitas pessoas pelas quais passavam. Eles atravessaram todo o
salão, até uma mesa perto do palco, onde estavam quatro rapazes. Conhecia dois
deles, os melhores amigos do irmão, estavam juntos quase sempre. Salomão o
apresentou e disse alguma coisa, que não conseguiu ouvir do que se tratava,
fazendo com eles o recebessem muito bem. Em seguida, um deles serviu uísque nos
copos e completou a bebida com gelo e energético, entregando-os a Salomão e
Lucas. Incialmente, negou-se a aceitar, mas o irmão insistiu. Nunca havia
provado algo tão forte, desceu queimando a garganta e bateu no estômago como
ácido.
Em pouco tempo, Salomão
pareceu avistar a moça de quem havia lhe falado e mostrou-lhe imediatamente.
— É agora que preciso de ti,
irmãozão.
O outro saiu em direção à
moça, que estava com algumas amigas e lá conversou por certo tempo, até que fez
sinal para que Lucas cumprisse o “combinado”. Não entendia por que teria que
ajudá-lo com aquilo, visto que exercia fascínio sobre as mulheres. Salomão fora
disputado pelas garotas desde cedo e nunca se acertava com nenhuma delas.
Adorava a fama de garanhão e se portava naquele ambiente como um pavão,
ostentando o charme e os músculos.
De longe, conseguiu ler os
lábios do irmão, dizendo-lhe, já de modo impaciente, para que fizesse sua
parte. Mas não sabia. Pensou em desistir e ir embora. Talvez ali não fosse seu
ambiente.
Meu
Deus, isso é certo?
No entanto, se não o fizesse,
o irmão certamente o odiaria. Apoiou-se numa cadeira, baixou um pouco a cabeça
e começou a se concentrar, visualizando a moça do lado de Salomão. Uma dor fina
foi se formando em sua nuca e se alastrando pelo restante do crânio. Seus
músculos começaram a tremer como se fossem esmagados por um choque. Alguns
segundos depois, a moça tomou Salomão num longo beijo.
Os amigos do irmão vibraram ao
lado de Lucas. Porém a comemoração foi interrompida por uma surpresa. O noivo
da moça apareceu do meio da multidão, acertando o rival com um soco. A confusão
se formou num piscar de olhos. Pessoas gritaram, outras correram e um espaço
foi aberto ao redor dos dois. O rapaz traído parecia bom de briga,
escanchando-se por sobre Salomão e o atingindo com vários outros socos em
sequência. Os amigos de seu irmão nada fizeram para impedir.
— LUCAS! — gritou Salomão,
meio sem forças, no intervalo entre um soco e outro. — LUCAS! ME AJUDA! — outro
soco — ME AJUDA! — e mais um — LUCAS!
Precisava fazer alguma coisa.
Serrou os punhos e novamente foi tomado pela mesma dor de outrora. De repente,
o rapaz em cima de Salomão pôs as mãos no próprio pescoço, como se tentasse se
livrar de algo que o sufocava, e caiu de lado, de modo que todos perceberam sua
falta de ar. Estava sendo estrangulado por uma força estranha, enquanto Salomão
teve tempo de se erguer e fugir.
De repente, Lucas ouviu alguém
falar “aberração”. Pessoas olhavam assustadas em sua direção, como se tivessem
se dado conta que havia sido ele. Os próprios amigos de Salomão o acusaram. A
música cessara e todos pareciam condená-lo.
— SAI DAQUI, MONSTRO! — alguém
gritou no meio da multidão.
— MONSTRO! — outra pessoa.
— ABERRAÇÃO! — e mais outra.
De repente, muitas pessoas
gritaram ao mesmo tempo. Então, ele correu, exausto, com medo, sofrendo por ser
um anormal.
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