"A casa dos Anjos" foi publicado nacionalmente em 2010 pela Editora Novo Século. Agora está disponível integralmente para você aqui no blog.
Uma ótima leitura!
DEDICO
A Deus. Fonte maior de minha inspiração, fazendo-me canal.
Aos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael. Em unidade,
tornaram-se inspiração para este trabalho.
A todos os Anjos. Estiveram presentes em todos os momentos de
criação, até à concretização deste exemplar.
Aos meus pais Graça e Fernando Melo. Ensinaram-me a amar.
Às minhas irmãs Germanda e Fernanda.
Com quem aprendo a arte de poder ser eu mesmo.
Aos meus sobrinhos Lucas, Maria Fernanda e Pedro. Convidam-me
a experimentar o amor incondicional.
A Geane Bonfim, grande amiga e irmã. Ao longo dos muitos anos
de amizade, partilhamos diversas interrogações existenciais. Hoje, trago várias
delas nesta obra.
A Porcina Frota. Amiga que me ensina a amar sem nada esperar.
A todos os amigos do meu grupo de Biodança. Com quem vivo o
convite permanente de partilha de nossas almas. Foram também fonte de
inspiração.
AGRADEÇO
A Marcos
Cavalcante. Amigo que amo. Despertou-me a coragem de me lançar neste sonho. Em
nossa convivência, confronta-me permanentemente em busca da minha coerência
existencial, inspirando-me a orientar este trabalho pela verdade da minha alma.
Além de me dar incontáveis idéias para o enriquecimento desta obra. E hoje, no
Espaço Fonte Viva, nos grupos de Biodança e trabalhos com Espiritualidade
Integral, facilita meu contato com a minha missão, assim como a muitas pessoas
e organizações, convidando-nos a Ser-Vir. Que muitas outras pessoas tenham esta
oportunidade. espacofonteviva@gmail.com
A Sílvia
Sousa, Dione Mesquita e Manuela Granjeiro. Irmãs por escolha, com quem partilho
meu cotidiano. Quem primeiro se debruçou sobre esta história, trazendo luz em
sua revisão.
A Luciana
Holanda. Amiga que também deixou sua marca nas primeiras revisões, fazendo com
que este trabalho, que conta a história de quatro mulheres, fosse também
revisado por quatro mulheres.
A Hertenha
Glauce. Amiga que leu parte desta história antecipadamente, e por pouco não foi
a quinta revisora.
A Ilca
Borges. Amiga de sempre. Uma das primeiras pessoas que acreditaram em minha
arte de escrever.
A todos os
meus amigos queridos que torceram pela concretização desta empreitada.
A minha irmã
Germanda e meu cunhado Valdemar. Apostaram amorosamente, com total
desprendimento e confiança na realização deste trabalho.
Prólogo
Final de dezembro de 2005
JÚLIA SERRADO
O ônibus responsável pelo transporte dos funcionários de meu trabalho
depois do expediente parou em frente à minha casa às duas e quinze da madrugada.
Eu devia ter dormido por uns vinte minutos, sendo acordada por um colega
chamando por mim. O trabalho vinha sendo intenso naquele final de ano, o que
estava me deixando muito cansada. Não via a hora de chegar e cair na cama,
depois de um banho restaurador.
Agradeci a Deus, no momento em que abria a porta, por minha filha já ter
passado da fase de acordar com fome, chorando no meio da noite. Clara havia
completado seu primeiro ano fazia três meses, e só acordava ao raiar do sol. Eu
teria ainda algumas horas de sono, antes de preparar seu leite.
Estranhei por não encontrar meu marido dormindo no sofá da sala, com a
televisão ligada. Cena que se repetia todas as noites, ao chegar do trabalho.
A árvore de natal ainda estava com as luzes pisca-pisca ligadas,
ostentando seu colorido pela sala. Eu sempre pedia à minha cunhada que a deixasse
assim. Adorava aquele clima de natal, desde criança.
Minha maior surpresa veio quando entrei em meu quarto. A cama arrumada,
sem que ninguém tivesse dormido ali. Onde estaria meu marido? Em anos de
casamento ele nunca havia dormido fora de casa. Voltei-me imediatamente para o
berço de Clara, precipitando-me até ele. Minha filha não poderia estar sozinha.
Assustei-me ao vê-lo também vazio.
Por um instante, senti um frio na espinha.
“Onde está minha filha?” Ouvi meu pensamento se transformando em
palavras: “Ah, na certa com minha cunhada no quarto dela.” Aliviei a
preocupação. Se meu marido havia saído, Raquel jamais deixaria Clara sozinha. Estaria
com ela até eu chegar.
Preferi tomar meu banho antes de acordar Raquel para pegar minha filha. Mas
em nenhum instante aquela sensação ruim deixou de me atormentar. Fiz tudo muito
rápido, a fim de que pudesse estar com Clara.
E onde estaria Joel até uma hora daquelas?
Estranho demais! Eu não estava gostando nem um pouco. Ele não era de sair
de casa à noite. Sempre me esperava chegar do trabalho, e me preparava um
sanduíche enquanto eu tomava banho.
Mal me enxuguei, vesti o roupão e tratei de ir até o quarto de minha
cunhada. Preferi não bater à porta, para não acordar meus dois sobrinhos, que
dormiam com ela.
Clara não estava com minha cunhada na cama. Raquel dormia entre os dois
filhos pequenos. E aquela cena me encheu de desespero.
- Raquel? – Chamei por ela baixinho, para não acordar os meninos. –
Raquel? – E nada. Cheguei ainda mais perto. – Raquel? – Aumentando um pouco o
tom. Foi quando ela acordou.
- Oi. Júlia? – Estava meio atordoada. – O que foi? Algum problema?
- Você sabe do Joel e de minha filha?
Raquel procurava enxergar o meu rosto através da luz que entrava pela
janela.
- Não. Ele não está aí?
- Nem ele, nem Clara. Eu estou preocupada.
Minha cunhada tratou de levantar e me acompanhar até a sala.
- Estranho, Júlia. Quando fui deitar o Joel estava assistindo televisão
na sala. Até pedi que ele olhasse a Clara.
Eu já me encontrava muito preocupada, tentando imaginar o que teria
acontecido, onde Joel teria levado nossa filha de madrugada.
- Ele não disse nada? Você não notou alguma coisa estranha? – Perguntei,
angustiada.
- Nada. Será que a Clara sentiu alguma coisa e ele a levou numa farmácia?
- Não sei, Raquel. Mas eu estou com medo. – Sentia minhas mãos trêmulas.
– Meu coração me diz que aconteceu algo grave.
- Mas se tivesse mesmo acontecido ele teria me chamado. Estranho!
Lembrei de olhar nosso quarto. E foi o que fiz, acompanhada de Raquel.
Acendendo a luz, me dei conta do pior. A porta do armário estava entreaberta.
Faltava a bolsa e parte das coisas de Clara.
Só então eu percebi o que havia acontecido.
Uma dor atravessou meu coração.
- Meu Deus!
- O que foi, Júlia? – Raquel começava a ficar preocupada.
- Joel enlouqueceu. Eu não acredito que ele fez isso!
Fui até a sala. Não sabia o que pensar, o que fazer. Voltei ao quarto,
mexendo no guarda-roupa, como se ali encontrasse uma prova de que eu estava
equivocada. E Raquel atrás de mim, procurando compreender o que havia
acontecido.
- Júlia, por favor, me fala o que houve. Você está me deixando
preocupada.
- O Joel, Raquel... – Não conseguia raciocinar direito. – O teu irmão vai
me matar se ele fizer o que estou pensando.
- Pelo amor de Deus, me diz do que se trata. – O tom de Raquel já era de
desespero. – O que o Joel pode fazer de tão grave?
Doía só de pensar. Meu rosto já estava banhado em lágrimas. E eu andava
de um lado para o outro da sala, ia até o quarto, voltava.
- Eu não acredito, Raquel!
- Em quê?
Sentei no sofá, com as mãos na cabeça, como se tentasse organizar meus
pensamentos. Podia ser loucura minha. Ele podia não ter tido coragem de tomar
uma atitude daquela.
- Eu acho que o Joel fugiu com a nossa filha. – Eu já estava em prantos.
- Fugiu? Como fugiu? Que história é essa, Júlia?
- Ele vai vender a nossa filha!
Senti vontade de morrer ao pronunciar aquilo. Mas eu sabia que era
verdade. E precisava lembrar de tudo o que havíamos vivido naquele mês de
dezembro, desde que fomos abordados com aquela proposta absurda, para encontrar
um meio de impedir meu marido de cometer aquela loucura.
E eu faria de tudo para impedi-lo!
Parte I
Dezembro de 2005 a Maio de 2006
JÚLIA SERRADO
Capítulo
1
Entrando o mês de dezembro, tudo se transformava. As
pessoas pareciam respirar as festas e preparativos de final de ano. O clima de
confraternização nos lugares onde eu
estava presente nas últimas semanas de 2005, faziam-me esquecer do grande
aperto financeiro pelo qual eu vinha passando naquele ano. Aos trinta anos, não
me lembrava de ter enfrentado situação pior, multiplicando-me na dura
administração de diversas dívidas em cartões de crédito, cheque especial e até
empréstimos bancários, que já haviam sido feitos para cobrir dívidas
anteriores, o que mostrava que o desequilíbrio já vinha de algum tempo. Com
certeza, estávamos gastando muito mais do que podíamos e era algo que se
repetia mensalmente. A coisa já tinha fugido totalmente de meu controle e eu só
havia me dado conta quando a energia elétrica fora cortada e, depois de pagar
uma das contas, tivemos que esperar horas para ser religada.
A única pessoa com quem eu podia conversar e planejar os
pagamentos era com minha cunhada Raquel, que morava conosco há dois anos, com
seus dois filhos pequenos Zezinho e Rafael. Há muitos anos eu já havia
percebido que meu casamento com Joel tinha sido um grande erro. Ele era uma boa
pessoa, sempre bem humorado, de bem com a vida, mas nunca pude realmente contar
com sua presença nas decisões importantes, na manutenção de nossa família. Meu
marido nunca parara em nenhum emprego, sempre arranjava um problema ou dizia
que arranjavam problema com ele. Por isso sempre fui responsável para manter
nossa casa.
Eu não entendia como aquele desequilíbrio financeiro
havia começado, mas sabia que havia piorado durante os três meses que passara
em casa, sem poder trabalhar, depois do nascimento de nossa filha Clara, um ano
antes. Sem falar em Raquel, que havia perdido seu emprego de auxiliar de
enfermagem, depois de doze anos de trabalho e acabou entregando o dinheiro que
recebera pela demissão ao marido, para que investisse na compra de sua casa,
mas isso nunca aconteceu, o irresponsável que ela tanto defendia e acreditava
sumira com seu dinheiro e sempre que reaparecia de suas viagens intermináveis
como vendedor-representante, segundo ele, inventava mil desculpas, até chegar
com uma definitiva que fora roubado dentro de um ônibus no interior de Minas.
O fato é que eu era a responsável para manter toda a
família, minha filha pequena, meu marido, Raquel e seus dois filhos. Mas em
nenhum momento reclamei da situação de Raquel, pois além de ser uma boa pessoa,
sempre tinha sido uma forte presença em minha vida, desde a época de meu namoro
com seu irmão mais novo, Guel, antes de meu casamento com Joel. Ela já havia me
tirado de muito sufoco, era para mim uma grande amiga, uma irmã. Esteve do meu
lado durante os últimos sete anos, mesmo contra seus irmãos. Além do quê,
Raquel saía diariamente deixando currículos, participando de entrevistas. Nunca
cruzou os braços. No entanto, acho que era uma providência do universo ela
estar passando por aquela situação. Era Raquel que cuidava de Clara para que eu
pudesse trabalhar diariamente e sempre que saía a procura de emprego, eu tinha
que ficar em casa ou pagávamos nossa vizinha para ficar com minha filha.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
2
Apesar das grandes preocupações com a falta de dinheiro,
eu esquecia totalmente de qualquer problema quando estava em meu trabalho como
coreógrafa da boate Mirage. Tratava-se de uma proposta inovadora na capital
cearense, um elegante espaço localizado na Praça Portugal, área nobre da
cidade, com proposta de espetáculo de dança desenvolvido por uma equipe de doze
dançarinos, entre homens e mulheres. Eram espetáculos temáticos, onde as
dançarinas, separadamente, viviam personagens em meio a um show de
sensualidade, sempre acompanhadas dos dançarinos que completavam a beleza e
perfeição das apresentações, nas quais as protagonistas encenavam um
strip-tease, que nunca chegava a deixá-las totalmente despidas. Era exatamente
aquilo o grande diferencial da proposta de Olívia Cordeiro e Renato Brandão, os
donos da Mirage, proporcionar um espetáculo de sensualidade e requinte, um
verdadeiro show artístico, para os finais de semana de Fortaleza.
Eu estava trabalhando na boate há quase um ano, desde o convite
de Charles Moreno, diretor artístico do espaço, que eu havia conhecido um tempo
antes, através de um projeto social de educação artística em comunidades
carentes, no Janguruçu, bairro de periferia, onde trabalhara como professora de
dança.
A dança era para mim, meu refúgio, minha imersão em meu
próprio ser, e ao mesmo tempo a possibilidade de expressão plena de tudo o que
era mais profundo em mim, o que eu guardara a sete chaves em minha alma. Sentia
uma magia ao dançar. E nos últimos quatro anos acabara transformando-me em
professora da arte que me revelava enquanto ser humano.
Desenvolvia vários projetos paralelos ao trabalho da
boate, mas era na Mirage que conseguia manter minha família, responsável pela
coreografia dos shows idealizados por Charles.
Havíamos nos tornado, Charles e eu, grandes amigos, além
de ótimos parceiros de trabalho. Algumas das meninas da boate chegaram até a
insinuar que existia algo a mais que amizade entre nós, por nossa cumplicidade
talvez. O fato é que nunca acontecera nada de mais, até porque ele não falava,
mas eu tinha certeza que gostava de homens e até escondia, penso, uma paixão
por Renato Brandão, não por trabalhem juntos há mais de quinze anos, como
sempre falavam, mas pelos olhares de Charles ao amigo, principalmente quando o
mesmo chegava à boate junto com seu companheiro, ou mesmo quando tocava em seu
nome em situações rotineiras.
Aos quarenta e cinco anos, Charles era uma pessoa
sozinha, apesar de fazer amizades rapidamente com quem conhecia, sempre
disposto a ajudar, uma cara que tinha jeito de “pode contar comigo”, mas não
tinha ninguém, alguém para viver um amor diferenciado, embora fosse um homem
bonito. Era grisalho, um pouco fora de forma, mas uma figura adorável, de boa
aparência. Eu sentia uma certa tristeza naquele meu amigo, como se esperasse uma
mudança em sua vida, mesmo não sabendo exatamente o quê.
Bem, estava eu passando por um momento tão difícil na
minha vida, que acabava por gastar o resto de minhas forças rezando que algo de
muito bom acontecesse. E aconteceu!
Charles tinha recebido um convite para realizar um
trabalho na Europa e achava que eu tinha todas as possibilidades de assumir seu
cargo na boate, inclusive me dissera que Olívia e Renato já haviam se mostrado
bem simpáticos à idéia.
Inicialmente, achei que não, que não poderia assumir
aquele cargo e também estava meio confusa com aquela notícia, e triste talvez
de perder um amigo, um parceiro. Mas eu sabia que seria para seu bem. E era
aquilo certamente que ele aguardava para dar um rumo diferente em sua vida.
Aquela notícia me deixara um pouco fora de meu eixo. No
entanto, não poderia dar vazão a meus medos. Estava perto de minha estréia como
dançarina de um show na boate, por conta do incentivo de Charles, que sempre
insistira, desde quando começamos aquele trabalho, para que eu saísse dos
bastidores e me lançasse também no palco. Charles acreditava que seria um
grande sucesso.
Estávamos ensaiando exaustivamente todos os dias até
entrar pelas madrugadas, pois ao mesmo tempo que criávamos novos shows,
precisávamos manter os que já existiam. Charles criava os personagens, o
motivo, cuidava de todo o figurino e eu criava a coreografia. Passávamos horas
naquela boate ensaiando com os dançarinos. O que me fazia esquecer de meus
problemas.
A única pessoa que torcia realmente por mim, além de
Charles era Raquel, que me dava a maior força e quando decidi estrear como
dançarina na Mirage, foi ela que deu pulos de alegria, até mais que eu mesma,
era como se fosse ela a dançarina, mesmo que nunca pudesse ver os espetáculos,
por conta das crianças.
Meu show estreara em meio a muito nervosismo e bastante
disciplina. Encarnara a personagem de uma super-mulher, idealizada por Charles,
uma andróide, com roupas prateadas e uma máscara que deu um charme todo
especial ao espetáculo. Entrei no palco
seguindo explosões que marcavam a música, canhões de luzes coloridas confundiam
minha imagem com a dos seis dançarinos, de calças e coleiras prateadas, que me
acompanhavam no número. Por um instante, num momento antes de entrar, senti
minhas pernas trêmulas e achei que não me apresentaria. A boate estava
completamente lotada em toda a sua extensão na área de mesas e na pista de
dança em frente ao palco. Era muito barulho e gritos que ficavam abafados pelo
som da música que me convidava a entrar.
Senti-me totalmente plena naquele palco como se o mundo
fosse meu. As pessoas vibravam, aplaudiam, sentiam-se provocadas a dançar
junto, a acompanhar a coreografia com cada movimento, cada gesto. Como em todos
os shows, eu ia tirando as peças de roupa em momentos marcados pela música,
dosados com movimentos de profunda sensualidade e entrega, o que deixava a
todos encantados por cada momento da apresentação, resultando em instantes de
euforia e também de total contemplação.
Fomos aplaudidos por todos de pé. Achei que não parariam
mais com as palmas e assovios. Aquele show foi um grande sucesso, como Charles
esperava, assim como minha personagem, a supermulher andróide, que se tornou
famosa da noite para o dia. A personagem era envolvida por um mistério trazido
talvez por sua máscara, despertando a curiosidade de todos.
Preferimos, contudo, deixar a minha identidade em
segredo, como forma de me proteger, de preservar minha intimidade. Visto que
todas as meninas, bem como os rapazes, viviam recebendo propostas indecorosas
de homens e mulheres, que freqüentavam a boate. Embora fosse um show apenas de
sensualidade, com muito profissionalismo por parte de toda a equipe. Pelo menos
não sabíamos de ninguém que tivesse cedido a nenhuma dessas propostas. Procurei
me preservar, já que saía dos bastidores para também subir ao palco.
Estávamos, toda a equipe da Mirage e eu, agitando as
noites de Fortaleza,. Nossos shows nos proporcionavam casa cheia diariamente.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
3
Eram tantas alegrias no trabalho que me faziam esquecer
dos problemas. Minha família e eu estávamos quase sendo despejados da casa em
que morávamos na Maraponga, depois de seis meses de inadimplência.
Mais uma notícia mexeu profundamente comigo naquela
noite de estréia, ao chegar em
casa. Raquel me esperava na sala, para conversarmos. Percebi
em seus olhos e seu silêncio que tinha algo grave para me contar. Ainda tentei
imaginar, mas o que poderia ser mais grave do que ser despejados, sem ter para
onde irmos? Não, nada poderia ser mais grave que aquilo. A não ser que fosse
algum problema de saúde nos meninos, ou em Clara? Ah, quando lembrei de minha
filha, então fiquei nervosa e logo a abordei querendo saber o que estava
acontecendo.
- Guel está de volta, Júlia.
Senti o chão sair de baixo de mim, com aquela afirmativa
de Raquel. E ela sabia que era uma notícia difícil, por isso estava apreensiva
daquele jeito, nem parecia feliz com a volta de seu irmão, depois de tanto
tempo. E de fato, acho que nem estava, Raquel sempre fora mais por mim que por
seus irmãos.
Havia sido muito apaixonada por Miguel Serrado. Tivemos
uma relação intensa, sete anos antes. Na época eu era bailarina de um grupo e ele
modelo em ascensão. Sua
carreira tinha ganhado proporções nacionais. Fora descoberto por uma agência em São Paulo e estava
fazendo muitos trabalhos fora de Fortaleza. Começavam até a surgir as primeiras
possibilidades de algum trabalho internacional.
Guel era um homem alto, talvez um metro e noventa,
moreno claro, de olhos azuis bem expressivos, destacando-se num belo rosto, que
ostentava ainda uma boca sedutora, de lábios canudos. Cabelos bem cuidados.
Ombros largos, peito saliente. Orgulhava-se ele do abdômen e das pernas bem-malhadas.
Era um homem que chamava a atenção de todos por sua beleza, dotado de um
misterioso poder de sedução. E quando chegávamos perto um do outro, parecia que
nossos corpos iam queimar. Seu calor, deixava-me trêmula. Todavia, acho que o tamanho
de minha paixão por ele fora proporcional ao sofrimento por mim experimentado
em nossa relação. Guel nunca ficara somente comigo. Na verdade, acho que nunca
experimentara o sentido da palavra “fidelidade”. Não era homem de uma mulher
só. Sabia de seu poder de sedução e o vivenciava intensamente.
Depois de ter sido preso por porte de drogas, Guel respondeu
processo acusado de estar também envolvido com o tráfico em Fortaleza. Desaparecera
há cinco anos, quando havia saído da cadeia, depois de um ano e meio detido.
Nunca mais havíamos ouvido falar de seu paradeiro.
Eu sabia que Raquel, uma vez ou outra, sentia falta do
irmão mais novo, mas procurava sempre disfarçar, em respeito a mim. Já Joel temia
que este voltasse. Era claro o seu medo de meu reencontro com Guel. Acreditava que
eu poderia deixá-lo para ficar com o irmão.
Voltar com Guel? Aquilo jamais aconteceria. Eu tinha
muito mais raiva, ódio do que vontade de reencontrá-lo. Entretanto, temia que
aquilo acontecesse. Não sabia como seria minha reação. Sentia um frio em meu
estômago, só de pensar.
Então começava a entender as atitudes de Joel naqueles
dias. Encontrava-se impaciente, pensativo, cabisbaixo. E eu sempre perguntando
se estava sentindo algo. Dele, ouvia o tempo todo a mesma resposta: “Nada, não
tenho nada”. Preocupações com as contas não era, pois nunca havia destinado nem
um segundo de seu tempo para se ocupar com aquele tipo de problema. Só poderia
ser algo muito sério, e era.
Naquela noite conversei bastante com Raquel e depois com
meu marido. Então fiquei sabendo que meu cunhado o havia procurado, já tinha alguns
dias e ele não me contara por medo de minha reação. Mal sabia ele que não seria
Guel o responsável por uma possível separação, mas sua passividade. Sentia-me
cansada daquela postura nem um pouco resoluta, de pessoa imatura, não obstante
já tivesse trinta e sete anos. Apesar de bonito, Joel não tinha o mesmo charme
do irmão. Mas, diferente do que pensava, não seriam as desvantagens físicas em
relação ao irmão que me afastariam dele, e sim sua dependência e
irresponsabilidade.
Como eu desejava evitar aquele reencontro! Não queria
que ele percebesse meu nervosismo, nem que notasse minha ansiedade. Na verdade,
nem sabia se realmente ficaria ansiosa no momento que nós nos encontrássemos,
mas mesmo assim eu temia. Ficava tentando imaginar o que ele queria de volta,
qual sua intenção de nos procurar novamente. Afinal, sempre fora desapegado,
parecia até que nunca gostara de ninguém, nem mesmo de Raquel que o criara depois
da morte de seus pais. E foi exatamente o que eu lhe perguntei no momento em
que nos reencontramos, o que não demorou muito, depois daquela noite.
Guel nos fez uma visita, num final de tarde. Quando abri
a porta, lá estava ele, parado diante de mim. Ainda continuava lindo, aos
trinta e dois anos, talvez ainda mais bonito, com o mesmo ar de sedução,
bem-vestido, com roupas que pareciam de grife, escondendo o porte musculoso. E
o sorriso lateral, que tanto me encantara anos antes. O tempo não parecia ter
passado para ele e continuava extremamente vaidoso.
Surpreendi-me com o que eu senti ao ver aquele homem,
que já tinha sido tão importante na minha vida. Nada do que pensei que
aconteceria realmente aconteceu, não experimentei nenhum tipo de nervosismo ou
ansiedade. Parecia que estava verdadeiramente curada. Aquele corpo, aquela voz,
aquele olhar, não mais mexiam comigo. Guel Serrado representava para mim um
passado. Conversamos sobre muitas coisas, como suas supostas andanças pela
Argentina, nos últimos cinco anos. Ele não conseguira me responder por que
realmente havia me abandonado e fugido, sem deixar notícias, nenhum sinal de
vida.
Joel parecia muito desconfiado durante toda a conversa,
como se tentasse perceber o que realmente o irmão queria ali, depois de tanto
tempo, procurando algum sinal, um olhar, um gesto, qualquer coisa que revelasse
o que estava por trás daquele encontro. Mas era claro o seu medo, medo de me
perder.
* * *
Demorou poucos dias para descobrirmos os motivos da
volta de Guel. Em sua segunda visita, nos fez a sua proposta imoral. Era como
se eu não tivesse ouvido direito o que ele dissera. A forte lembrança que tenho
é de minha raiva, meu ódio, misturado com medo e desprezo por ele, empurrando-o
para fora de minha casa, aos gritos. Acho que toda a vizinhança deve ter ouvido
meus berros. Se ele não tivesse saído, acho que o teria matado. Naquele
momento, esqueci-me de qualquer princípio, a única coisa que me orientava era
meu instinto materno. Depois descobri que Joel já sabia de tudo bem antes de
mim. Os dois andavam de cochichos e tiveram alguns encontros sem que eu
soubesse. Meu próprio marido era cúmplice daquela proposta, embora tentasse me
convencer que não havia concordado desde o início.
Guel estava trabalhando num bar na Praia de Iracema como
garoto de programa e pelo que pude perceber, estava também metido com uma
quadrilha de tráfico de crianças para o exterior. Sabia de nossa situação
financeira e havia nos proposto vender a nossa filha para um casal de
holandeses, que pagaria trinta mil dólares por uma criança. Na realidade,
aquele canalha via em nós, em minha filha e na ambição de Joel, a possibilidade
de ganhar dinheiro. Era esse seu motivo de reaproximação. Ele e seu parceiro
Ronie, um colega de trabalho, pareciam já ter convencido meu marido de tal
barbaridade, pelo que pude perceber, ao vê-lo defender o irmão e até arranjar
desculpas para a tal proposta, embora não tivesse coragem de assumir claramente
para mim e Raquel. A única vontade que tive naquele momento foi de agarrar
minha filha, tomá-la em meus braços e protegê-la de todo e qualquer mal. Foi o que eu o fiz, passei quase que uma
noite em claro, velando o sono daquele ser inocente, indefeso, alvo da cobiça
do próprio tio. Naquele momento tive a certeza que meu casamento com Joel estava
definitivamente acabado. Jamais continuaria casada com um homem que havia
pensado na possibilidade de vender a própria filha. Pior que aquilo, eu não
confiava mais nele.
A impressão que eu tinha naquele momento era de que o
universo estava me pregando uma grande peça e punha em jogo os meus princípios.
Nunca quis ter muita coisa, para mim, conseguir realizar-me profissionalmente,
ver minha família feliz já era o bastante. A dança já me fazia experimentar o
gosto da felicidade. Nunca sonhei em ser rica ou ter muito dinheiro, posição
social. Acreditava em princípios morais, nunca fora capaz de mexer em nada que
não fosse meu ou fosse ilícito. Exatamente por aquele motivo foi que cheguei a
achar que estava passando por uma grande provação. Pois na mesma época fui
surpreendida por uma proposta totalmente absurda.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
4
Desde o show de estréia, passei a perceber um homem
estranho, desconhecido, presente na boate todas as noites, sempre me observando
de longe. Parecia misterioso, esquisito, apesar de bonito. Notava-se ser um
homem vaidoso, bem-vestido. Certa noite, depois do espetáculo, no ponto de
táxi, fui abordada por ele. Achava que poderia ser algum gringo, confundido-me
com uma garota de programa. Mas não era!
“Júlia Serrado? Não tenha medo. Preciso muito conversar
com você!”
Senti firmeza no que dizia. Estranhei como ele poderia
saber meu nome. Certamente já havia se informado de tudo na boate. Durante
alguns segundos, tentava imaginar o que aquele homem queria comigo. Não
importava o que ele queria. Não poderia deixar me intimidar. Procurei mostrar
que não tinha medo, entrei no táxi e fui embora. Se não fosse por aquele
taxista ali, não sei o que seria de mim, acho que teria morrido de medo. A
gente nunca sabe como vai reagir numa hora dessas. No entanto, fui surpreendida
na noite seguinte, pela presença misteriosa daquele homem novamente. O que me
amedrontava, era seu olhar, como se já me conhecesse. Dizia ele que eu me parecia
muito com uma pessoa que ele conhecera no passado. O que me fez pressupor
inicialmente que se tratava de uma cantada, uma forma de aproximação de um
maluco.
A história que o estranho homem me contara naquele momento
era totalmente louca, dificultando meu entender. Ele queria que eu assumisse a
identidade de uma outra mulher, que parecia ter morrido muitos anos antes e
interagisse com um homem, para conseguir uns documentos que interessavam a ele
e supostamente estavam com esse homem. Basicamente seria isso. E para fazer tal
absurdo, eu seria muito bem paga.
Que meu marido não soubesse de tal proposta, se não me poria
louca para aceitar! Jamais eu faria uma coisa daquelas, mentir, roubar,
fazer-me passar por uma outra pessoa. A única coisa que realmente não conseguia
entender, era o porque de tudo aquilo. Por que eu estava exposta àquelas
situações absurdas. Provação do universo? Estava diante de duas possibilidades
de ganhar dinheiro e resolver todos os meus problemas financeiros. Entretanto,
estava decidida a seguir o caminho do bem e dançar, simplesmente dançar,
doar-me ao mundo através da dança, esperando que tudo se resolvesse.
“Minha resposta é não! Jamais faria uma coisa dessas. Se
o senhor continuar insistindo em me procurar, eu vou chamar a polícia.” Fui
categórica, procurando esconder o medo de Donato Pessoa. Era o nome do homem
misterioso. Soube no dia seguinte, através de Charles. Tratava-se de deputado
federal e um dos diretores da RTN – Rede de Televisão Nacional, em Fortaleza. Um homem
poderoso, talvez. Nem sei como pude, de onde tirei coragem para enfrentá-lo. De
certo aquela proposta que me fizera tinha a ver com política.
Mesmo com minha firmeza, tive medo do olhar daquele
homem. Não parecia convencido de minha decisão. Era como se tivesse certeza que
faria o que ele queria. Tive essa impressão por causa de seu sorriso irônico,
como se desdenhasse de minha atitude, desconsiderasse minha postura, ignorasse
talvez. Não entendi também por que se expunha em me procurar, poderia ter feito
tal proposta através de alguém, mas não, fizera questão de me procurar
pessoalmente, como se tivesse certeza que eu não contaria para ninguém, pois se
eu o fizesse, poderia causar um escândalo nos jornais, já que se tratava de um
político.
MARINA PESSOA
Capítulo 5
Estava caminhando pelo frio da madrugada, meus cabelos e minhas roupas
eram jogados compulsivamente para todos os lados pelo forte vento que dominava
toda a avenida do meu apartamento, que momentos parecia ser conhecida e,
segundos depois, era um lugar que nunca estivera. Todas as pessoas tinham
desaparecido, percebia-me totalmente solitária, movida pela vontade de
encontrar algo que até então não sabia ao certo o quê. Tudo estava sóbrio, era
guiada apenas pela luminosidade da lua. Lixos e restos de papeis eram
carregados como ondas através das calçadas, pela forte ventania, que jogava meu
cabelo contra o rosto, dificultando ainda mais a minha visão. Mesmo com medo,
continuava caminhando, de pés descalços, usando um vestido azul claro com
detalhes brancos, que achava que não mais existia. Os prédios,
impressionantemente, davam lugar a velhos casarões e galpões abandonados, sem
que eu tivesse tempo para precisar o momento em que aquilo acontecera. Parecia
ser eu a única pessoa viva daquele lugar, que me lembrava as cidades fantasmas
dos filmes que assistia quando criança.
De repente, avistei uma luz, longe, numa esquina. Um foco que ascendia e
apagava vertiginosamente, como que me avisasse que não era somente eu a energia
de vida, naquele momento. Era para lá que eu deveria ir e foi exatamente o que
eu fiz. Talvez aquela luz me levasse de volta para casa, respondesse de alguma
forma aquele grande enigma, o que eu estava fazendo ali, a procura de quê
especificamente eu estava. Comecei a correr em direção ao foco de luz, que
continuava ascendendo e apagando, já com menos tempo entre um estado e outro.
No entanto, quanto mais eu corria, mais ficava longe daquela luz, da saída, da
possibilidade de volta. Meu retorno parecia afastar-se de mim, embora
percebesse que continuava lá, sem sair de onde estava. A esquina daquela rua
ficava cada vez mais distante, longe do alcance de minhas mãos, que me guiavam
na busca. Em alguns momentos parecia que a luz que outrora vira distante saíam
de minhas próprias mãos, que estava à frente de meu corpo, como que quisesse
alcançar a tal luminosidade antes mesmo de chegar em seu ponto de projeção.
Percebendo que não alcançaria aquela luz, começava a repetir sem parar,
como se de alguma forma conseguisse mudar aquela situação:
“A luz, a luz... eu preciso chegar na luz... eu preciso chegar até ela,
eu preciso, eu preciso, eu preciso...”
Acordei completamente suada, tomada pelo mesmo desespero que me movia
naquela maratona em busca do tal foco de luz. Foi meu marido quem me acalmara
naquele momento. Graças a Deus ele estava ali, ao meu lado. Senti uma alegria
surpreendente de vê-lo e sentir seu cuidado, seu zelo comigo. Havia sido
somente mais um de meus pesadelos, dentre tantos outros que vinha tendo no
último ano. Donato já tinha me aconselhado a procurar um médico, para que
voltasse a ter noites mais tranqüilas.
Tranqüilidade na noite! Ah, como eu sentia falta daquilo em meu sono. Há
muito não era a mesma e precisava me encher de remédios para dormir. Ainda
assim, acordava várias vezes no meio da noite, tomada pelos pesadelos que me
colocavam em
desespero. Temia até que meu casamento com Donato se
desgastasse com os meus “espetáculos” noturnos. Acordava quase sempre aos
gritos, extremamente nervosa, suplicando por ajuda, tentando encontrar a tal
luz, que acendia e apagava neuroticamente em minha mente, na lembrança daquele
lugar que eu experimentava praticamente todas as noites, várias vezes na noite.
Sentia a paciência de meu marido, seu cuidado, mas tinha muito medo que
cansasse, e até sentia algumas vezes um tom de cansaço em sua voz, quando me
dizia, “por favor, Marina, não há nada, foi apenas um sonho!”
Sabia que Donato era um homem sem muito jeito para romantismos, às vezes
chegava até a parecer um pouco frio, mas era o jeito dele. E de um modo bem
seu, bem particular, soubera me conquistar, embora não conseguisse discernir
entre o medo e o amor que sentia por ele.
MARINA PESSOA
Capítulo 6
Donato e eu estávamos casados há quatro anos, desde quando havíamos nos
conhecido em Milão, num desfile de modas, onde eu estava trabalhando. Na época,
com apenas dezoito anos, me vi completamente apaixonada por um homem que tinha
o dobro de minha idade. Era muito bonito, no entanto, talvez o charme e
elegância superassem sua beleza. Até eu, com a inexperiência típica da
juventude, percebia sua vaidade como seu maior pecado, que não se expressava
apenas no estilo extremamente fino, com suas roupas e sapatos caros, mas também
no simples ato de caminhar, de se portar, de pegar qualquer coisa na mão, no
jeito compassado de falar. O que parecia, em alguns momentos, artificial, mas
que fazia de Donato Pessoa uma figura singular. Moreno, alto, forte, sempre em
ótima forma, de olhar penetrante e entradas no cabelo acima da testa,
prenunciando uma futura calvície. Encantava-me com sua voz rouca e o furinho no
queixo, o que o tornava ainda mais charmoso. Via-o naquela época como um galã
de cinema, meu príncipe encantado.
O que para muitos impunha o medo e a hostilidade, para mim era fonte de
desejo e paixão. Embora não soubesse até que ponto o amava ou o temia, mas era
aquele sentimento que ainda me mantinha viva.
Donato Pessoa chegara em minha vida num momento em que não pensava em
outra coisa que não morrer. Senti-me extremamente atraída pela sua maturidade,
por seu charme. Tinha a força que eu nunca tivera, nem minha irmã mais velha,
que praticamente me criara, conseguira me passar. Por muitas vezes, inclusive,
ela havia afirmado que era apenas um desejo inconsciente de encontrar meu pai
num homem mais velho. E fora exatamente esse amor o motivo pelo qual eu me
separei de minha irmã. Vanessa jamais aceitou esta decisão.
Donato e eu havíamos nos conhecido quando era ainda uma menina e ele
grande amigo de Pedro Lucena, meu cunhado, sempre estando presente com sua
esposa Maria Eugênia Gondim, na época, passando férias, em Londres, onde
morávamos, como uma família. Ao reencontrar aquele homem, já separado, pude
perceber coisas que não tinha percebido quando criança, coisas que uma criança
jamais sentiria. Creio que ele me trouxera a alegria de viver, o que os rapazes
da minha idade jamais me dariam, como Vanessa dizia que era o certo. Preferi
abandonar minha carreira, nossa vida em Londres e tornar-me a senhora Marina
Pessoa. Certamente aquela nova vida, cujas possibilidades me aguardavam de
volta a Fortaleza, traria-me novamente a felicidade.
Doía a distância de minha irmã, que fora para mim uma mãe. Sentiria falta
também de Pedro, que me compreendia e sempre destinava-me horas conversando
sobre os meus problemas, que nem eu mesma sabia quais eram, bem como de Felipe,
que vi crescer e ajudei a cuidar. Todavia, estava em jogo a minha felicidade e,
com certeza, eu a encontraria ao lado do homem que amava. Sonhava em encontrar
esta felicidade, que ainda não experimentara. Achava muitas vezes que éramos um
casal feliz, mas não sabia de fato o que era ter paz de espírito.
Em determinados momentos me achava sem parâmetros para avaliar
verdadeiramente meu estado de vida e meu casamento. Tinha consciência que meu
marido era um homem bom para mim, tudo o que fazia era para meu bem, no
entanto, muitas vezes, também me amedrontava com sua extrema seriedade, que
chegava a se confundir com mau humor, cheio de mistérios, como se guardasse
segredos o tempo inteiro, escondendo algo de mim e do mundo. Tinha muita coisa
sobre ele que eu não sabia e que talvez fizesse questão que eu não soubesse,
bem como todas as pessoas, com exceção de Luísa, sua secretária, que era sua
cúmplice em tudo. Mesmo
fora da empresa, passavam horas conversando no escritório, em nosso
apartamento, de portas fechadas, resolvendo questões importantes da política,
segundo ele, coisas que não poderiam ficar para depois.
Aquela relação saltava não só aos meus olhos, mas de todos. De uma forma
ou de outra eu sempre acabava sabendo dos comentários. Luísa morava conosco,
desde quando nos casamos, e estavam quase sempre juntos, além de olhares de
cumplicidade, que em muitos momentos eu percebia entre os dois. Por umas duas
ou três vezes, cheguei a perguntar, questionar sua presença em nossa casa,
nunca obtive mais que respostas reticentes. Ele não gostava de ser contrariado,
nunca, principalmente por mim. Tinha medo de sua reação quando se via com raiva
de alguma coisa que eu havia feito. Nunca fora realmente agressivo, entretanto,
seu jeito sarcástico me fazia ter certeza que eu não queria conhecer esse lado
e, no fundo, sabia que existia, algo reprimido que o movia e orientava todas as
suas atitudes, alguma coisa que nunca fora revelada a ninguém, nem mesmo a
Luísa, pois sentia interrogação também em seu olhar diante de determinadas
atitudes irônicas de meu marido, principalmente quando exigia uma postura ou um
tipo de comportamento, bem como de concordância no que dizia ou pensava, de um
modo que parecia educado, mas que na verdade traduzia uma atitude totalmente
contida, de uma raiva represada, que ele mesmo não permitia sair. Quando aquilo
acontecia ria para não demonstrar todo o seu ódio.
Talvez fosse aquele tipo de atitude que realmente me fazia temê-lo. Não
sabia ao certo do que seria capaz diante de uma situação em que não estivesse a
seu agrado. Nunca fora de atitudes românticas, mas quando estávamos juntos,
percebia seu amor, seu cuidado comigo, de uma outra forma que não era carícias.
Sempre achei que não teria tanto ciúme se verdadeiramente não gostasse de mim.
Donato era um homem extremamente ciumento.
Quando nós dois nos conhecemos eu era uma modelo com grandes chances de
me tornar famosa em todo o mundo. Chamava atenção por minha beleza, tinha um
perfil diferente das demais modelos, com formas bem definidas, loira de cabelos
bem longos e lisos, olhos verdes, como os de Vanessa. Era quase mais alta que
Donato, o que se salientava quando eu usava salto, embora contra sua vontade,
ele detestava quando isso acontecia, talvez não quisesse se sentir menor que a
própria mulher, que ninguém.
Para ficarmos juntos fui obrigada a abandonar a carreira de modelo e
voltar para o Brasil com ele. Meu grande sonho era mesmo amar e ser amada,
constituir uma família, viver numa atmosfera que eu nunca experimentara, a não
ser na casa de minha irmã, com sua família. Mas eu queria sentir aquilo também
numa família que fosse realmente minha, com afeto, cuidado, amor. Se aquela era
a única alternativa, eu não tinha dúvida nenhuma. Além do quê, não tinha o
menor cabimento um homem na posição que ele ocupava, como ele mesmo dizia,
marido de uma modelo, uma mulher que mostra o corpo pelo mundo, além de
freqüentar ambientes onde ele não poderia estar, por conta de seu trabalho,
seus compromissos. De fato, era estapafúrdia aquela idéia. Eu até repetia para
mim mesma sempre que lembrava, para que um dia acreditasse naquilo. Não, por
mais que eu o amasse, não conseguia acreditar, embora já tivesse feito a minha
escolha.
MARINA PESSOA
Capítulo 7
Meu marido não gostava nunca de falar de seu passado, tinha vindo de um
bairro modesto, de uma vida difícil, cheia de privações. Abandonara o colégio
no ginásio, para trabalhar e ajudar no sustento da família. Perdera os pais
muito cedo e fora, praticamente, criado pela irmã mais velha, como eu. Tínhamos
na verdade uma história de vida em comum, apesar de eu vir de uma família de
classe média alta e ter morado muitos anos na Europa, primeiro com meus pais,
depois com Vanessa e meu cunhado. Conseguira chegar aonde chegara com a ajuda
de Pedro, seu grande amigo, e o pai dele, Alberto Lucena. Haviam se conhecido
no primeiro ano da faculdade, exatamente quando voltara a estudar, depois de um
tempo parado, por precisar trabalhar. Os dois tornaram-se grandes amigos e logo
Alberto o convidara para integrar o quadro de funcionários da WM, agência de publicidade
na qual trabalhava. Foi então que conheceu Maria Eugênia Gondim, filha de
Leonardo Gondim, um dos donos da agência, grande amigo e parceiro de trabalho
de Alberto, com quem se casara pouco tempo depois, embora não se amassem na
verdade. Maria Eugênia era uma moça mimada e queria apenas chamar a atenção do
pai, casando-se pela segunda vez, mas com um homem pobre e que ainda despertava
a desconfiança na família, enquanto que Donato era um rapaz com grande ambição
e vontade de subir na vida. Talvez tenha sido o primeiro passo errado que tenha
dado em sua vida, a partir dali, dera muitos outros. Embora tenha sido um
casamento apenas de conveniências, para os dois, durou ainda oito anos.
Donato crescera profissionalmente dentro da agência de publicidade do
sogro, que mais tarde, fora vendida, mesmo contra a vontade de toda a família,
sendo constituída a Rede de Televisão Nacional – RTN, da qual ele assumira a
direção comercial. Mas era um homem guiado pela ambição, pela vontade de poder
e queria sempre mais. Lutava para conseguir a vice-presidência, cargo
pertencente a Alberto Lucena, e naquele momento, a seu filho Pedro, meu
cunhado. Embora não compartilhasse nada comigo sobre seus negócios, era de meu
conhecimento que tudo fizera para conseguir o cargo almejado. Vivia de segredos
com Luísa e por mais que eu não quisesse saber, por muitas vezes, ouvi as
tramas, os métodos que utilizava para alcançar seus objetivos. Aquilo me
deixava mal, doente, ao ficar sabendo de algum de seus estratagemas, passava dias
sofrendo, sem nada falar. Acho que nunca ele ficara sabendo que suas atitudes
não eram segredo para mim. Talvez eu preferisse que fosse daquele jeito, afinal
se ele não soubesse, não seria sua cúmplice. E eu não queria ser, por mais que
o amasse, não aprovava seus métodos para vencer, não acreditava naquilo como
objetivo de vida. Desejava que ele também não acreditasse, preferia alimentar a
idéia de que era inocente, vítima de seu próprio ego.
Meu marido queria esquecer seu passado, por isso queria se superar cada
vez mais e acabara fazendo daquilo seu objetivo de vida. Achava que o mundo era
dos espertos e todos que tinham dinheiro se enquadravam a esta categoria. Uma
pessoa esperta em sua crença, era alguém inteligente que usava as pessoas
pobres e burras como escadas para sua ascensão. Em sua concepção toda e
qualquer pessoa tinha algo por trás não revelado que a movia, seu desejo de
poder, de autoridade, de crescimento social e financeiro, para uma vida de
conforto e abundância. Ter sempre cada vez mais, era seu desejo, seu objetivo,
uma missão a ser cumprida, nem que para isso arriscasse a própria vida.
Em alguns momentos achei que Donato havia se aproximado de meu cunhado
premeditadamente, como parte de um plano para conseguir subir e ter uma chance
de um bom emprego e oportunidade de conhecer um outro universo, exatamente como
havia acontecido. Procurava fugir daqueles tipos de pensamentos que o tornavam
pequeno diante de meus olhos, preferia vê-lo como um homem cheio de qualidades,
como na época em que nos conhecemos.
Creio que tudo piorara realmente, quando Donato decidira entrar na
política dois anos antes daquela época, candidatando-se a deputado federal. Era
como se quisesse crescer materialmente nas mais diversas áreas, para todos os
lados, e o mundo fosse pequeno para ele. Então não era suficiente o poder
somente dentro da RTN, mas também no mundo da política. Vi rapidamente nosso
apartamento se tornar um grande comitê partidário, onde aconteciam repetitivas
reuniões secretas para decidir os rumos da campanha e os caminhos para se
conseguir votos. Apesar de não ser ainda naquele momento um nome conhecido,
tudo fizera para vencer as eleições e conseguir se eleger deputado. Foram
muitos conchavos, acordos milionários, negócios escusos, promessas e dívidas.
Eu não sabia ao certo como, no entanto, tinha certeza que ele havia envolvido a
RTN, sem que Leonardo Gondim soubesse, nos tais acordos políticos, com os
organizadores da campanha, bem como com outros candidatos. O que me fazia
acreditar que fora daí que Alberto Lucena havia começado a desconfiar de seu
pupilo e descoberto provas contra o mesmo, dando início à constituição do
dossiê do qual o próprio Donato Pessoa tanto falava com Luísa.
Ele dizia-se inocente, mas no fundo eu sabia que não era e que Alberto
deveria ter descoberto algo de muito grave sobre ele, provavelmente dentro da
RTN, que poderia tirar-lhe da disputa da vice-presidência da empresa, a qual
tanto desejava, e até acabar com sua carreira política, impedindo sua
candidatura ao senado, em 2006. Por isso ele queria tanto aqueles papéis, que
nem sabia ao certo quais eram e do que se tratavam, afinal, Alberto tinha
morrido há três meses, sem revelar onde estavam. Mas de uma coisa eu tinha
certeza, tivera um encontro importante com Donato antes de sua morte, no qual
lhe dissera da existência dos documentos e que logo estariam nas mãos de
Leonardo Gondim e da polícia.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
8
Nunca pensei que Joel fosse capaz de fazer o que ele
fez. Certa madrugada, ao chegar em casa do trabalho, fui surpreendida pelo
pior, deparando-me com a ausência de meu marido e minha filha. Como se já
imaginasse o que tinha acontecido, mesmo com um resquício de esperança de que
fosse mentira, fui até o armário, constatando a falta de suas roupas.
Sim, ele tinha fugido e levado Clara consigo.
Não poderia ser, ele não poderia ter tido coragem! Mas
eu estava segura que sim, embora rezasse para que alguém me dissesse que aquilo
não passava de um pesadelo. Passei a noite acordada, chorando, desesperada,
tomando chá e água com açúcar preparada por Raquel e Charles. Havíamos tentado
ligar para a polícia, mas só poderia registrar queixa depois de quarenta e oito
horas de desaparecimento. Segundo os policiais, Joel poderia ter saído para
passear. Saído para passear com um bebê de um ano de idade, de madrugada?! Que
absurdo, ser obrigada a ouvir aquilo sabendo que minha filha estava correndo
perigo.
Procurava não tentar imaginar o que havia acontecido. Só
rezava silenciosamente para que meu marido desistisse e não entregasse nossa
filha.
E tudo por causa de Guel. Sim, era ele o responsável por
aquele transtorno e talvez tivesse alguma pista do paradeiro de Joel e minha
filha. Fomos então, Charles e eu, já perto do dia amanhecer, no bar onde meu
cunhado trabalhava. Raquel sabia o endereço. Chegando lá, só conseguimos falar
com um homem chamado Nacélio, dono do estabelecimento. Descobrindo que Guel já
não trabalhava mais para ele. Pelo menos fora esta a única informação que
conseguimos arrancar daquele homem. O que não nos convenceu. Poderia o tal
Nacélio estar mentindo. Talvez até fosse cúmplice daquele pilantra, parceiros
da mesma quadrilha, juntamente com o outro, o Ronie.
Logo que voltei para casa, soube por Raquel que estavam
perseguindo um carro na estrada de Aquiraz que trazia Joel de volta a Fortaleza
e, provavelmente, juntamente com integrantes da quadrilha, talvez Guel. A
esperança reacendia em meu peito, por um instante tive a certeza que teria
minha filha de volta. Poucas horas depois, soubemos da notícia que o carro
capotara e explodira, matando todos os passageiros.
Era uma dor que me consumia a alma. Passava muitas cenas
em minha cabeça, da presença de minha filha ali naquela casa, tão pequena, tão
angelical. Nunca pensei que passaria por uma dor daquelas, era como se
arrancassem um pedaço de mim. Contudo, logo ficamos sabendo que não fora
encontrado o corpo de nenhuma criança. No decorrer do dia, Raquel, com muita
dor, foi ao IML fazer o reconhecimento de corpo e certificou-se que no carro
estava apenas Joel, de nossa família, nenhum dos outros três corpos era de
Guel, como pensávamos.
Acontecem coisas em nossas vidas, que de fato não
sabemos explicar, aquela era uma dessas. Não achava explicação para meu
sofrimento. Em alguns instantes cheguei a questionar Deus, por me fazer passar
por aquilo. Por que tantas mães perdem seus filhos e vivem com seus corações
dilacerados, esperando um dia reencontrá-los e muitas nunca o fazem? Por quê?
Não havia resposta para aquilo. Estava sem minha filha, não sabia de seu
paradeiro, se estava bem ou não, se passava fome ou cede, se estava bem
cuidada. Aquela dúvida, falta de notícias acabava comigo aos poucos. Era como
se eu morresse dia após dia.
Ficara muito abatida durante a semana seguinte daquela
tragédia. Charles me permitira ficar em casa, para que pudesse me recuperar e
diariamente me visitava, trazendo a mim palavras de conforto. No entanto, nada
me animava ou me fazia ficar de pé. O que eu conseguia mesmo era alimentar um
ódio por Guel, por tudo o que ele fizera. Tudo poderia estar bem, se não fosse
por ele. Por um momento achei que pudesse ter sido vingança. Mas não tinha
fundamento, afinal que motivos teria para isso? Não, certamente o que o
motivara fora mesmo sua ambição. E depois de tudo, ainda ficara com todo o tal
dinheiro do pagamento e eu, aos trinta anos de idade, viúva, sem minha filha.
Era estranho também pensar que não teria mais Joel em minha vida, mesmo que não
o amasse como marido, tinha-lhe um amor como pessoa, como amigo que sempre
fora. Havia sido ele, de seu jeito, meio que não estando nem aí para nada, que
me dera todo apoio e amizade na época do sumiço do irmão. Embora eu soubesse
que sempre fora apaixonado por mim e que estava ali do meu lado, tentando me
conquistar, era bom ter sua presença naquele momento. Claro que sentiria muito
a sua falta. De qualquer forma, era triste saber de sua morte. Joel Serrado
morrera jovem ainda, aos trinta e sete anos, vítima de seu próprio desespero,
do equívoco de pensar ser o dinheiro o responsável por sua felicidade. Perdera
a filha, a mim, a toda a família, perdera a própria vida por desejar ter uma
vida melhor financeiramente, e para isso, escolher um caminho de mentira e
traição.
Encontrar aquele canalha era a única chance de
reencontrar minha filha. Eu precisava ter forças para procurá-lo. Ele teria de
devolver a Clara, pelo menos dar alguma pista de seu paradeiro. Reuni então
minhas últimas energias e parti a sua procura. Vasculhava todas as pistas,
indícios, pessoas que haviam estado com ele, seus conhecidos do bar onde
trabalhava, o tal Ronie, que negara participação no caso e afirmava não saber
de Guel. Mas eu estava disposta a encontrá-lo, mais até que a polícia. E o
encontrei. Por acaso, na Praça do Ferreira, no Centro da cidade, olhando uma banca
de revistas. Corri, desesperadamente, para não perdê-lo de vista, passando por
entre as pessoas, em praça lotada, até chegar ao canalha.
- Você vai ter que me contar tudo, seu canalha, tudo,
onde está minha filha!
Agarrei-o pelo colarinho, segurando-o com toda a força
que eu tinha. Parecia até que eu conseguiria impedir que saísse dali. E no
momento em que se soltara para fugir, eu me vi gritando pela polícia, armando
um escândalo em plena praça. Nessas horas, o instinto materno fala mais alto.
No entanto, de nada adiantou todo o trabalho que tive para encontrá-lo, pois a
polícia acabara por liberá-lo, por falta de provas.
Sentia-me impotente diante daquela situação. Eu tinha
certeza do envolvimento de Guel Serrado no desaparecimento de minha filha, bem
como de sua participação na morte do irmão e nada podia fazer para impedir que
aquele bandido ficasse em
liberdade. A última coisa que me lembro foi o que lhe disse
dentro da delegacia, quando fora solto.
“Passe o tempo que passar, aconteça o que acontecer,
você vai pagar por tudo o que fez, Guel. Você não vai ficar impune, não vai! E
pode escrever o que eu estou te dizendo. Eu vou encontrar minha filha, nem que
seja a última coisa que eu faça nessa vida!”
E de fato eu não descansaria enquanto não encontrasse a
minha filha e colocasse Guel Serrado atrás das grades. Então tratei de ficar
logo de pé e retornar ao trabalho. Parecia ironia do destino, justo quando
conseguira sucesso em minha vida profissional, estava passando por tudo aquilo,
como se não me fosse permitida a felicidade completa.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
9
Logo na primeira noite de meu retorno, voltei a ser
abordada por Donato Pessoa, desta vez, acompanhado, segundo as meninas da
boate, por sua secretária Luísa. Devia ser um grande negócio, digo melhor, um
grande golpe aquele para o qual estava sendo convidada a participar. Mas o que
me surpreendera mesmo, era já ser de seu conhecimento tudo o que havia me
acontecido naquelas últimas semanas. Daquela vez, a proposta fora reformulada,
além de pagar todas as minhas dívidas, cerca de sete mil reais, de imediato e
mais treze mil no cumprimento do plano, ele me prometera encontrar minha filha,
dizendo que era um homem de muita influência e que seria fácil localizar seu
paradeiro.
O que realmente Deus estava querendo de mim? Fiquei me
perguntando durante dias consecutivos, em meio a muitas ligações do deputado Donato
Pessoa e sua secretária. Ele parecia ter razão quando falava que me devolveria
minha filha caso eu o ajudasse em seu plano. Falava com tanta firmeza, que até
parecia saber onde ela estava.
Aquilo me atormentava permanentemente, como se esperasse
uma resposta dos Céus. Pedia até que Deus me respondesse através de algum
sinal. Queria confiar na justiça, na possibilidade da polícia descobrir onde
estava minha filha, mas no fundo, não acreditava. Sabia de muitas histórias de
mães que perdiam seus filhos e nunca mais os encontrava e, de repente, eu
estava ali diante da real possibilidade de encontrá-la.
Seria aquele o sinal que Deus estava querendo me enviar?
L
Lembrava de papai me dizendo que os fins não justificam
os meios.
Mas será que esta crença se aplica no caso de uma mãe
desesperada a procura de sua filha de um ano desaparecida?
Juro que queria ouvir uma resposta de alguém, mas nem
Raquel, nem Charles se permitiram emitir nenhuma opinião. Raquel dizia que na
decisão que eu tomasse, estaria ao meu lado, como sempre.
Estava eu sofrendo com tudo aquilo, e ainda mais diante
da possibilidade de enganar alguém, de ir contra o que eu acreditava, de ferir
todos os meus princípios éticos. Queria muito acreditar em Deus e não ceder
àquela proposta tentadora. Mas quando pensava em minha filha e em como ela
estaria naquele momento, com quem estaria, sentia-me fraca, pequena, um verme!
E não seria então aquele o sinal que eu tanta clamara?
Aceitei então a proposta. Assumiria a identidade de
Mirela.
CELINA GONDIM
Capítulo 10
Parecia ter acabado de amanhecer. Os raios de sol passavam pela cortina
da janela de meu quarto, entreaberta, e iluminavam minha cama, chegando a focar
parte de meu rosto. Acordei pela calor em minha face. Mal podia abrir meus
olhos, devido à luminosidade. Pensei em puxar o lençol e me cobrir, para evitar
tamanha claridade tão cedo, sem mal acordar. Fiz um esforço gigantesco para realizar
um gesto tão simples, no entanto, um gesto que não podia mais ser feito por
mim, e por um segundo, havia me esquecido.
Há dois anos eu não podia mais desenvolver as coisas mais corriqueiras, o
que era básico para a vida de qualquer pessoa em seu dia-a-dia, como proteger o
próprio rosto para não despertar de uma forma brusca. Estava condenada a não
mais sentir o calor de minha própria mão em minha cabeça. Movimentos que para
qualquer ser humano seriam normais e bobos, para mim eram sinônimos de privação,
de não realização, de fracasso. E mais uma vez tive vontade de perguntar a Deus
por que, mas tão logo me viera aquele desejo, passou. A verdade era que eu já
sabia a resposta. Não necessitava de nenhuma explicação mais aprofundada para
descobrir os motivos pelos quais eu estava inutilizada.
Alguns minutos e foi o tempo que vi a porta de meu quarto se abrindo. Com
passos leves e muito cuidado, Dulce entrou como que para se certificar se eu
ainda estava dormindo ou não. Era daquele modo que fazia todas as manhãs.
Direcionava-se imediatamente à janela, tratando de fechar a cortina, para não
deixar o sol atrapalhar o meu sono. Entretanto, eu sempre já havia acordado,
ela nunca conseguia chegar antes do dia clarear. Mesmo assim, percebia seu
zelo, seu carinho e dedicação pelo meu bem estar.
Diariamente vinha com a mesma história, questionando-me porque de eu
dormir sempre com a janela aberta e não optar por ar condicionado. E eu sempre
tendo que dar a mesma satisfação.
- Dulce, você sabe que tenho problema de renite alérgica e acabo piorando
quando durmo com o aparelho de ar condicionado ligado.
- Que nada, acabaria acostumando. Alergia... Não sei não, viu?
Parecia uma reza matinal, sempre o mesmo texto. Chegava a rir muitas
vezes. Não sabia se ela falava sério ou brincava. Mas acabava compactuando com
o drama diário dos raios de sol invadindo o meu quarto pela janela que deixava
todas as noites aberta para sentir o frescor das Dunas preenchendo o ambiente.
O vento que sentia e via jogar as cortinas de um lado para o outro durante a
noite, trazia consigo a energia da liberdade, uma experiência que não podia
vivenciar.
E então, Dulce me ajudava a sair da cama e passar para a cadeira de
rodas, que já fazia parte da decoração de meu quarto, sempre ali, do lado de
meu leito. Mas era exatamente quando ganhava um pouco mais de mobilidade e
sentia-me menos dependente, por ser uma cadeira motorizada. Mesmo assim, todo o
meu asseio acontecia com a ajuda de Dulce, minha fiel enfermeira, que para mim,
não era mais tão somente uma profissional contratada para cuidar de mim e
garantir diariamente os exaustivos exercícios fisioterápicos, mas uma
companhia, cúmplice daquele estilo de vida que tanto odiava e que era obrigada
a aceitar. Nos últimos dois anos, havia se transformado numa amiga, em meu anjo
da guarda. Chegava a pensar em certos momentos que éramos uma só pessoa, afinal
eu não podia fazer praticamente nada sem sua ajuda cuidadosa e permanentemente
disponível, exceto quando me dava conta de que tinha a sua vida, seus anseios,
suas preocupações, suas aventuras e que eu não fazia parte desse mundo, como
ela do meu.
A vivacidade de Dulce era de chamar a atenção, sempre muito ativa,
esperta, disposta a experimentar toda e qualquer situação nova. Achava-a
corajosa. E sua energia positiva me lembrava a vida que eu não mais podia
provar. A impressão que eu tinha era que sua presença alegre, tentando me
colocar para cima de qualquer modo, deixava-me ainda mais deprimida. Afinal,
era uma mulher livre para viver sua vida da forma que quisesse e onde quisesse,
na companhia de quem escolhesse. Quanto a mim, nada poderia escolher, meu
próprio destino já havia feito a escolha por mim. E eu estava presa numa
cadeira de rodas, enquanto Dulce, assim como todos à minha volta, totalmente independente,
com um milhão de opções acerca de todas as coisas de sua vida.
Em alguns momentos sentia-me egoísta de pensar daquela forma, já que se
tratava da pessoa a qual era mais que minha enfermeira, era uma verdadeira
companheira, quem mais estava comigo, nos últimos dois anos, desde o acidente.
No entanto, achava-me no direito de sentir o que eu quisesse, até porque era a
única coisa que me restava na vida – sentir. Então aproveitaria com toda
intensidade. Eu não poderia ser má por pensar daquela forma, estava coberta de
razões para cobrar de Deus. Por que Dulce era melhor que eu. Todos nós pecamos,
assim todos deveriam ser castigados, estar numa cadeira de rodas, sem o direito
de fazer sua própria higiene pessoal sem a ajuda de outro alguém.
Freqüentemente, Dulce tentava me convencer de que ainda me restava
beleza, procurando ressaltar traços que dizia ser muito bonitos. De fato, fui
uma mulher muito bonita antes daquele acidente. Não tinha os olhos azuis de
papai, mas havia puxado a beleza de mamãe, morena, não muito alta, cabelos
castanhos bem lisos. Desprezava a figura que via naquele instante diante do
espelho, sem conseguir enxergar mais que uma imagem bizarra, de uma mulher, com
seus nervos repuxados, forçando-a ficar permanentemente cabisbaixa, pendendo
diagonalmente para a esquerda, sem o domínio sequer de seus braços,
movimentando-os esporadicamente ao jogá-los com a força que ainda lhe restava
nas mãos, seus únicos membros que ainda lhe obedeciam. Diferente do que Dulce
pensava, não concordava que me restasse alguma beleza. Minha fala era também
dificultada pela paralisia em parte dos nervos de minha boca.
Passara aqueles últimos dois anos de minha vida, lamentando o terrível
acidente que tirara de mim a liberdade de meus movimentos. As imagens daquela
noite infeliz nunca mais me saíram da cabeça, fazendo-me ré de minha própria
vida, bem como da perda de Vinícius. Nós nos amávamos e estávamos casados há
quatro anos, quando morreu. E tudo por minha culpa. A grande verdade era que eu
preferia ter morrido em seu lugar, teria sido melhor para mim e para toda a
minha família, todas as pessoas que me amavam e sofriam com minha doença. O
mundo ficaria melhor sem a “viciada” Celina Gondim, como me chamavam as más
línguas de Fortaleza.
CELINA GONDIM
Capítulo 11
Conheci o primeiro cigarro de maconha na porta da escola, quando tinha
apenas treze anos. Toda a nossa turma estava experimentando e eu não podia
ficar de fora. Com o passar do tempo, começamos a cheirar cocaína, depois
aplicações de drogas na veia, comprimidos. Aquilo transformou-se em meu único
refúgio, ao contrário do inferno que vivia dentro de minha casa, por conta da
difícil convivência com minha irmã mais velha, depois da morte de minha mãe.
Toda a turma me idolatrava, devido o meu dinheiro. Era rica e podia comprar
drogas para mim e para todos que comigo andavam, até ser descoberto por minha
família. Entretanto, já era tarde demais. Faziam mais de três anos que estava
no mundo das drogas e para mim, não poderia mais viver sem aquilo, sem cheirar
ou injetar em meu corpo. Em estado alterado de consciência, sentia toda a paz
que tanto buscava em casa.
Foram inúmeras as vezes em que eu havia sido internada em clínicas para
recuperação de dependentes químicos. Conseguia ficar longe até um tempo, mas
logo estava de volta, bastava reencontrar alguém da velha turma. Até que meu
pai decidiu me mandar para fora do país. Morei alguns anos na Inglaterra, na
casa de Pedro, filho de Alberto Lucena, parceiro de trabalho e grande amigo de
meu pai. Tenho o registro em minha mente de que fora o mais longo período que
eu havia conseguido ficar afastada das drogas. No início foi um pouco difícil a
convivência com Vanessa, a esposa de Pedro, devido os ciúmes que sentia do
marido, mas com o tempo ela foi percebendo que nós já éramos amigos há muito
tempo, desde crianças e que eu não representava nenhuma ameaça a seu casamento.
Fora uma fase muito importante na minha vida. Pedro acabara me
convencendo a lançar mão de meu potencial e escrever um livro. Desde criança, sonhava
com muitas histórias que eu mesma criava, nas quais eu me escondia e procurava
me proteger do medo que sentia de minha irmã, que nunca gostara de mim. Decidi
então a escrever meu primeiro romance, que tinha como personagem principal uma
jovem dependente química. “Entre o Amor e as Drogas” – foi o título de meu
primeiro livro. Nascia a escritora Celina Gondim.
Voltando ao Brasil, fiz de tudo para publicá-lo. Foi então que conheci
Vinícius, diretor da editora que publicaria meu romance. Vivemos um conto de
fadas, apaixonando-nos loucamente um pelo outro, até nos casarmos. Contudo,
nossa felicidade fora interrompida pelo mesmo vilão que fizera de minha vida
uma bomba relógio, durante anos de minha juventude.
Ele fora a pessoa mais paciente, mais carinhosa, mais cuidadosa que eu já
havia conhecido. Vinícius tudo fizera por mim e pela minha cura. Não me via
como uma irresponsável, como a maior parte das pessoas, mas me convencera
realmente de que eu era doente e precisava de ajuda. Pena que cheguei a esta conclusão
tarde demais, depois de sua morte.
Fora eu a grande culpada da morte do homem que amava. Estava totalmente
drogada e por isso tivemos uma forte discussão, resultando na decisão de
Vinícius de se separar de mim. Lembro-me que fiquei ainda mais transtornada,
tomada de ódio, talvez de mim mesma. Pensava em tirar minha vida e acabar de
uma vez por todas com aquela angústia e preocupação na vida de todos que me
cercavam. Então peguei o carro, na intenção de pôr um ponto final àquele
sofrimento. Não lembro muito bem de como tudo aconteceu, mas ainda consigo
sentir o alívio que tomou conta de meu coração, no instante em que estava
naquele volante, usufruindo do máximo de velocidade que meu carro podia me
oferecer. Depois que acordei do coma, no hospital, fiquei sabendo que ele
pegara seu carro e fora atrás de mim, tentando me impedir de fazer o que eu
tinha dito que faria. Quando perdi o controle de minha direção, levando meu
carro a capotar por várias vezes, Vinícius fez uma manobra perigosa para desviar-se
de mim, caindo num barranco, o que fez seu carro explodir.
Pior do que não conseguir sentir mais meus braços e minhas pernas, era
saber que não o teria mais. Chorei durante dias seguidos, sem conseguir parar.
E por muito tempo, não pude pensar no que realmente tinha ocorrido com meu
corpo. O sofrimento de perder o homem que amava não me permitia tomar conta das
seqüelas que aquele acidente me deixara. Passei quase seis meses sem ouvir
minha própria fala. Até que, aos poucos, fui retornando à vida, embora que
permanecesse morta por dentro.
Passados dois anos, estava finalmente tomando consciência de minha real
situação. Aos trinta e dois anos, era tetraplégica. Dependia de outras pessoas
para fazer a maior parte das coisas que me mantinham viva. Aquilo era terrível.
Sonhava de fato em voltar a andar, sentir meu corpo, ser dona de mim mesma. Por
isso, invejava as pessoas que não estavam na mesma situação em que eu me
encontrava. Definitivamente, não compreendia, nem aceitava tamanho castigo.
As lembranças daquela noite não saiam de minha cabeça, nem que eu
quisesse, não poderia esquecer, minha irmã Maria Eugênia não permitiria. Não
perdia a oportunidade de me culpar por tudo e lembrar-me permanentemente de
minha situação física – a sina da cadeira de rodas.
Maria Eugênia, filha do primeiro casamento de papai, nunca aceitou seu
envolvimento com mais ninguém, depois da morte de sua mãe. Parecia ter sido uma
criança difícil, de gênio forte e, passara a maior parte de sua vida,
controlando de alguma forma o destino de papai. No entanto, depois de muitos
anos de viuvez, ele acabara por conhecer mamãe, que era publicitária e fora
contratada pela WM, agência de publicidade da qual era sócio. Pela primeira
vez, Maria Eugênia não conseguira evitar que ele se relacionasse com alguém,
resultando em meu nascimento. E por isso ela me odiava, bem como a idéia de ter
uma irmã bastarda, causando a separação de papai e mamãe, que temia que me
acontecesse algo de mal. Sempre ouvi falar que Maria Eugênia era capaz de tudo
para realizar as suas vontades e que considerava papai como propriedade sua.
Na verdade, não guardo nenhuma lembrança do casamento de meus pais. Era
ainda muito pequena quando tiveram que se separar. Guardo sim o sabor da
ansiedade, do desejo incontrolável de desfrutar um pouco mais da presença
maravilhosa de papai, assim como mamãe também sentia. Sonhava em poder brincar,
ouvir histórias à noite, antes de dormir, contadas por ele, ir ao parque ou à
praia, ou ainda ser levada à escola. Fazer coisas que comumente as crianças
fazem acompanhadas de seus pais. E tudo
por causa de minha irmã e seus ciúmes. Então eu perguntava a Deus por que ela
teria o direito de desfrutar de nosso pai e eu não. E mais, por que ele
preferia ficar em sua presença? Mamãe afirmava ser complicado de responder.
Deixava claro apenas não ser uma questão de preferência, mas de necessidade.
Embora eu soubesse que ela mesma pensava de forma parecida. Presenciei, sem que
me vissem, algumas discussões dos dois, onde ela lhe cobrava uma postura mais
firme em relação à filha.
Em meu aniversário de sete anos, atrasamos o início da festa em quase
três horas a espera de papai, que só apareceu no dia seguinte, alegando ter
tido uma reunião importante. Lembro-me de passar o restante da comemoração de
cara fechada, com vontade de chorar, como se não houvesse sentido em nada
daquilo. E assim, foram muitos momentos, como natais, semanas santas, e
diversos outros aniversários. Quando ele aparecia, era uma alegria só, quando
não, lançava-me num mundo infinito de tristezas. E logo imaginava que ele
certamente estaria com sua filha verdadeira. Sim, era como se Maria Eugênia
fosse sua filha de verdade, eu não.
Vida infeliz a minha! A única coisa que me traria mais felicidade seria
um dia poder morar com meu pai, desfrutar mais de seu carinho, da doçura de sua
fala, de seu mundo, de sua vida. E aquilo eu começava a achar impossível.
CELINA GONDIM
Capítulo 12
Eu devia ter uns nove anos, quando comecei a experimentar um novo
sentimento em relação à minha vida. Passeando com mamãe certa vez, pela
feirinha da Beira-Mar, nos deparamos com um vendedor ambulante repleto de
miniaturas de casas de madeira, de todos os tipos, cores e tamanhos, presas à
sua roupa, como uma grande alegoria. E ele me percebeu encantada, fitando a
diversidade de formas em seu corpo.
- Gostou das casas, princesa?
Nunca ninguém havia me chamando de princesa. Bem que eu gostaria de ser
uma. Se eu fosse uma princesa, ordenaria que meu pai viesse morar comigo. Ele
estava enganado. Não era nenhuma princesa. Dei as costas rapidamente,
voltando-se a minha mãe, que olhava uns artigos, na barraca ao lado.
- Quer uma, princesa?
Ele insistia com aquela história de princesa. Uma o quê? E quando eu me
voltei a ele, estava com uma das casas em sua mão estendida para mim. De
tamanho médio, caberia em minhas duas mãos abertas. Achei linda a casinha. Na
cor natural da madeira, meio amarelada. Reluzia o brilho do sol de final de
tarde em seu telhado envernizado. De arquitetura simples, porta e janela na
frente, por trás das três imagens. Eram três anjos fixados na madeira, como se
guardassem aquela casa.
- Como?
- É pra você, princesa.
- Obrigada.
- Pode pegar.
Minha mãe me ensinara a não aceitar nada de estranhos. E por que ele iria
querer me dar aquilo? Ele deveria vender, não dar.
- Não. Obrigada.
- Pode aceitar, filha.
Era a voz de mamãe consentindo. A única coisa que eu estranhava eram
aquelas imagens pequenas. Eram bonitas. Mas por que estavam ali. Na verdade ele
tinha de todos os tipos e com diversos outros enfeites e novidades. Para todos
os gostos. E por que logo aquela para mim? Poderia ele ter me oferecido a de
gatinho na frente ou a dos pássaros. Mas não, ofereceu-me justamente a dos
anjos. Parecia com coisa de gente grande. Certo que eu já era uma mocinha, como
papai às vezes dizia, mas daí um presente daqueles, nada a ver comigo. Talvez
ficasse ótima, aquela casinha, guardada por aquelas três imagens, no altar de
D. Efigênia, nossa vizinha, que adorava imagens e tinha várias em sua sala.
- São os três Arcanjos, princesa.
Lembro-me bem de sua explicação, afirmando tratar-se de São Miguel, o do
meio, em roupa de soldado e espada em punho, pisando na cabeça do demônio, São
Gabriel, do lado esquerdo, erguendo um ramo, e São Rafael, à direita, com seu
cajado.
- Cada um tem um poder, mas os três juntos, podem tudo.
“Podem tudo?” Será que eles podiam trazer meu pai para morar comigo?
Desejei perguntar ao tal homem, mas não tive coragem, pela presença de mamãe. E
ele, pareceu ter adivinhado meus pensamentos.
- Podem tudo sim. Basta fazer o pedido. Você escreve seus pedidos num
pedacinho de papel e coloca dentro da casa.
Falou apontando para a fenda, como o furo de um cofre, no telhado da
casinha.
- E então, este desejo se tornará realidade. Os anjos farão com que
aconteça.
- É mesmo?
Então não poderia ser para o altar de D. Efigênia. Peguei a casinha
imediatamente do vendedor, com um sorriso largo em meu rosto. Se os três
arcanjos juntos tinham realmente o poder que ele dizia ter, então rapidamente
meu pai estaria morando conosco.
Nem pude esperar chegar em casa para fazer o primeiro pedido. Ali mesmo
na rua, tratei de escrever o primeiro pedido e depositar na casa dos anjos.
Senti um frio em meu estômago ao ver aquele pedaço de papel sumir pela fenda do
telhado de meu presente. Meu primeiro desejo, meu primeiro sonho a se tornar
realidade.
A partir de então, muitos outros pedacinhos de papel, carregando mais
desejos passaram a ser depositados ali, na casa dos anjos. O interessante era
que logo após eu deixar meus sonhos aos cuidados dos três arcanjos,
experimentava um sentimento de pura realização, como se já começasse a viver o
que fora pedido. Na grande maioria das vezes, os pedidos nunca eram atendidos,
por se tratarem de coisas absurdas, mas começava a imaginá-los realizados. O
ritual era apenas escrever o pedido, colocar na casa pela pequena fenda em seu
telhado, fechar os olhos e imaginar acontecendo. Simples. Uma sensação de
bem-estar e alegria imensuráveis. O que era tristeza, logo se transformava em felicidade. Naquela
pequena casa, residia todo o meu poder, a minha força contra um mundo injusto e
cruel. A casa dos anjos me fazia bem e me deixava feliz, embora tudo não
passasse de uma grande fantasia. E ninguém sabia, não precisavam saber. Minha
alegria era de se notar. Bastava acontecer qualquer coisa que eu não gostasse
ou concordasse, corria para meu quarto e me prostrava diante da casa dos anjos,
em meu criado mudo e ali, fazia meu pedido, vivendo antecipadamente a sua
realização. E eu era feliz.
Dentro de alguns meses, os pedidos não cabiam mais. A casa estava lotada
de sonhos, repleta de desejos. Para mim, se eu fizesse uma limpeza, tudo
poderia estar perdido, e eu correria o risco de ser infeliz novamente. Decidi
então nunca o fazer. Os rituais passaram apenas a ser pedidos mentais diante da
casa dos anjos, como uma oração, no altar de uma igreja. E eu provava da mesma
alegria, do mesmo sentimento de realização de antes. Os anjos não
menosprezariam meus pedidos somente por não estarem registrados em papeletas. Era como
se eu já conseguisse uma comunicação direta.
Depois do primeiro ano, mamãe mostrou-se preocupada. Eu havia abandonado
todos os meus brinquedos. Minha única diversão era a casa dos anjos. Com aquela
fonte de desejos eu me preenchia por completo. Nada me faltava.
Fiquei sabendo com o tempo que São Miguel, figura da casa que eu mais
gostava, era o anjo da proteção e, segundo a Bíblia, o chefe da milícia
celeste, vencendo satanás. Seu nome – aquele que se confunde com Deus. Gabriel,
o anjo da anunciação, responsável pelas boas novas, em várias passagens
bíblicas. E Rafael, o anjo da cura. Como o vendedor da casa havia dito, cada um
deles com um poder diferente. O que mais
me importava então era os três juntos, fazendo-me realizar todos os meus
desejos. A casa dos anjos me proporcionava todo o poder de que eu precisa para
ser feliz. Com o passar do tempo, não me importava mais amigos, brincadeiras,
nem mesmo a falta permanente de papai, apenas a minha casa dos anjos, que me
dava tudo isso e muito mais. Com a casa, eu vivia no mundo que eu quisesse,
bastava pedir aos anjos, fechar os olhos e desfrutar da sensação de receber a
dádiva.
Depois da casa dos anjos, creio que papai tenha ficado mais aliviado, sem
tantas cobranças de minha parte e de mamãe. Passamos a nos ver ainda menos.
Encontrava-se sempre ocupado com suas reuniões de negócios.
Passei minha infância, deste modo, longe do afeto de papai, de sua
presença, até a morte de mamãe, aos meus doze anos. Lembro-me de D. Efigênia,
sem saber como me falar. E eu já sabia. Pensar na morte de mamãe, deixava-me
sem ar, sem chão, sem referencial nenhum. Corri para meu quarto, sentei-me no
chão, escorando-me em minha cama e tomei a minha fonte de desejos, a casa dos
anjos em minha mãos.
“Que minha mãe volte a viver!”
Era tudo o que eu desejava naquele momento. E os anjos tinham que fazer
acontecer. Na verdade eles quase nunca realizaram realmente o que eu havia
pedido. E de todos os desejos tinha depositado ali em todos aqueles anos, ver
minha mãe com vida novamente era o que mais queria, mais até que ter papai
morando conosco. Miguel, Gabriel e Rafael deviam aquilo a mim! Foram anos de
crença. A única coisa que eu consegui sentir foi uma dor em meu peito, um
entalo, uma ânsia de choro e vômito ao mesmo tempo. E mais um desejo, o de
morte. Preferia estar morta que sem minha mãezinha. Pela primeira vez não
conseguia sentir alegria ao realizar um pedido aos anjos. E vi como havia sido
estúpida, por três anos. Eu já tinha doze anos e vivia um mundo imaginário,
proporcionado por uma casa de madeira idiota, com três imagens ridículas na
frente. Não tinha mais amigos, pais, mais ninguém. Perdi os últimos três anos
de minha mãe vivendo a fantasia de um mundo ideal.
Com todo o ódio de três anos perdidos de minha vida, joguei a casa de
madeira no canto do quarto, a fim de destruí-la por completo. E no entorno,
ficou apenas pedaços dos anjos, do telhado de madeira fina e milhares de
pedaços de papeis carregando os sonhos de uma época, não muito diferentes dos
últimos desejos firmados horas antes daquele terremoto. Fora o fim da casa dos
anjos e daquele mundo de felicidade.
Fui então finalmente morar com papai na mansão nas Dunas, de onde só
ouvia falar. Inicialmente foi até estranho me deparar com tanto espaço,
jardins, quadra de tênis, uma piscina gigantesca, sala de ginástica, além da
estrutura moderna e imensa que definiam a casa, com suas salas de estar,
biblioteca, sala de som e vídeo e os inúmeros quartos no andar superior.
Pareciam terem mudado para lá, muito depois de meu nascimento, depois de
morarem anos em uma cobertura, na Aldeota, desde o primeiro casamento de papai.
Passei algum tempo para me acostumar com o luxo, o requinte, as normas de
etiqueta, que tão bem definiam o perfil de minha irmã. Papai sempre dava muitas
recepções a pessoas da alta sociedade fortalezense, que estavam presentes
freqüentemente em nossa casa.
Justamente no momento em que achava que seria a época mais feliz de minha
vida, pela proximidade com papai, apesar da falta que mamãe me fazia, foi
quando minha rotina transformou-se num inferno. Sofria humilhações permanentes
por parte de Maria Eugênia, que nunca aceitara a minha existência, nem muito
menos, minha presença em seu território, deixando claro que me odiava e que desejava
me ver longe de seu mundo, de sua família. Na verdade, eu nunca consegui
entender seus ciúmes e o ódio que alimentava a meu respeito.
Naquela difícil convivência pude comprovar o que mamãe dizia acerca de
Maria Eugênia, quanto ao seu egocentrismo e a mania de achar que o mundo estava
a seus pés, pronto para lhe servir, assim como papai. Ele nunca tivera
consciência de nossa relação. Ela procurava disfarçar seu tratamento para
comigo, em sua presença, como se quisesse mostrar-lhe ser uma pessoa amável e
garantir o seu respeito. Quanto a mim, nunca tive coragem de lhe falar nada,
para não jogá-lo contra a própria filha, assim como ela dizia ser a minha
intenção dentro daquela casa.
A casa dos anjos não mais existia, porém a minha imaginação sim. Em diversos
momentos recorri a Miguel, Gabriel e Rafael para me fazerem sentir novamente um
pouco de felicidade e realização. Maria Eugênia firmara-se como meu maior
problema. A verdade é que nunca tive coragem de enfrentar aquela mulher, por
isso, caí no mundo das drogas, como uma forma de entrar em contato com um
universo onde eu fosse aceita e respeitada por todos, um novo mundo que me
proporcionasse felicidade. Foi o fim da presença dos anjos naquele momento de
minha vida, e o início de meu calvário.
JÚLIA SERRADO
Capítulo 13
Depois de aceitar a proposta para assumir a identidade
de Mirela, passamos dias estudando a minha preparação para iniciarmos o tal
plano. Pensei em desistir por várias vezes, mas no momento que lembrava de
Clara, reencontrava forças para continuar. Apesar de ir me assustando cada vez
mais ao conhecer as idéias de Donato Pessoa. A imagem daquele homem, frio e
calculista definitivamente me amedrontava. Era como se eu estivesse inserida
num roteiro de cinema americano. Ele parecia ter muita intimidade com Luísa,
sua secretária, mas tentavam não demonstrar, como se quisessem aparentar uma
relação de formalidade, puramente profissional.
Um apartamento no Dionísio Torres, pertinho da Pontes
Vieira era o local de encontro usado por Donato Pessoa, Luísa e eu, que seria
também supostamente a moradia da mulher que eu encarnaria, chamada Mirela. Não
precisava saber muito sobre seu passado, apenas que tinha sofrido um acidente
de carro há quinze anos, que me fizera ficar em coma durante quatro anos e quando
teria retornado, a idéia era de ter recebido ajuda de uma enfermeira no
hospital, uma mulher sozinha, que cuidara de mim durante todo o tempo que eu
estive no hospital. O principal era mostrar que eu havia perdido a memória após
o suposto acidente, então não precisava me preocupar muito com o passado, a não
ser os anos que Mirela teria passado se tratando dos traumas do acidente, fora
daqui, em Belo Horizonte. E
naquele momento, teria voltado à Fortaleza para resgatar sua memória. O homem
com quem eu me envolveria para conseguir os tais documentos que Donato Pessoa
tanto queria, chamava-se Pedro Lucena, era executivo, vice-presidente interino
da RTN,o canal cearense, que se tornara um dos maiores do país, disputando
audiência com as grandes emissoras do Brasil, a mesma empresa onde trabalhava
aquele homem misterioso.
Finalmente estava conhecendo os motivos daquele plano.
Donato Pessoa precisava de um suposto dossiê contra ele, que estava no poder de
Pedro Lucena, pelo menos ele achava que poderia estar. O tal dossiê havia sido
elaborado pelo pai de Pedro, Alberto Lucena, então vice-presidente da RTN, que
morrera faziam três meses. Desde a morte do pai, o tal executivo voltara ao
Brasil, pois morava há anos em Londres com a esposa e o filho, assumindo interinamente
o cargo do pai dentro da empresa. Na verdade, eles não estavam certos de que
ele estaria com o tal dossiê, mas pelo que eu havia entendido, o deputado não
queria correr o risco. Com certeza eram coisas muito importantes que constavam
nestes tais documentos, muita coisa de dentro da RTN, empresa da qual o
deputado também era um dos diretores, e que almejava se tornar o
vice-presidente.
Meu primeiro encontro com Pedro Lucena estava programado
para acontecer no grupo de Biodança, do qual fazia parte. Luísa contara com
desdém que ele era adepto de terapias alternativas, que era metido a zen e, segundo ela, um idiota frustrado,
infeliz com seu casamento com Vanessa, com quem se casara por estar grávida,
anos depois de chorar a morte da tal Mirela, seu grande amor. E era exatamente
aquilo que me deixava arrepiada, eu me passar por uma mulher que havia morrido
num acidente, justamente para mexer com os sentimentos de uma pessoa que já
tinha sofrido a vida inteira pela perda de seu amor. E quando ele descobrisse
que não era verdade, que eu não era Mirela, que eu me chamava Júlia e que nunca
ouvira nem falar realmente daquela mulher? Pensava naquilo permanentemente
antes de acontecer o tal encontro.
O grupo de Biodança funcionava num espaço na Rua José
Vilar, entre Costa Barros e Santos Dumont, nas tardes de sábados,
quinzenalmente. Na verdade, eu nunca ouvira antes falar daquela proposta, mas
deveria ser muito boa, já que tinha a ver com dança. Pelo menos conheceria algo
com o que me identificava.
Imaginava Pedro um cara como Donato Pessoa, fechado,
sisudo, sem sorrir. Estava muito nervosa, com medo talvez daquele encontro.
Seria um encontro com minha grande mentira. Na porta do espaço, ainda no carro
de Luísa, pensara em
desistir. Ainda haveria tempo de reparar a loucura que estava
prestes a cometer. Mas Luísa me fizera lembrar de minha pequena, de como
estaria e que eles já haviam contratado um detetive para encontrá-la. Então
decidi sair daquele carro e fazer o que precisava ser feito. Depois, se tivesse
oportunidade, pediria perdão, contaria ao tal Pedro Lucena o porquê de toda
aquela farsa, mas só depois, quando estivesse com Clara novamente em meu colo.
Graças a Deus minha vítima não estava presente naquele
início de sessão por algum motivo, que ninguém sabia explicar, ele não iria.
Todos ficavam em roda, sentados ao chão, alguns deitados, bem à vontade, com
roupas leves e pés descalços, falando sobre coisas que haviam vivido no salão
na sessão anterior, como se sentiam. Senti-me bastante acolhida por todos do
grupo, desde o momento em que chegara e fora recebido pelo facilitador do
grupo, que me explicou ser a Biodança uma proposta de meditação dançante e não
uma terapia como Luísa havia me falado.
A sessão era dividida em dois momentos: a verbalização,
no qual as pessoas falavam de si, de suas sensações, de sua vida, se quisessem;
e o outro que era a dança, que seria proposta pelo facilitador, a partir de
músicas e exercícios orientados pelo que ele chamava de consigna, um convite
feito pelo facilitador entre um exercício e outro. Seriam vivências, segundo
ele, nas quais poderíamos entrar em contato com nossa identidade, expressando-a
através do movimento, facilitado pela música e pela nossa emoção, momentos que
poderiam ser feitos individualmente, juntamente com alguém ou em grupo. Eram umas
quinze pessoas ali no salão. Pelo menos para alguma coisa serviria tudo aquilo,
talvez até pudesse me ajudar a curar a dor a qual sentia.
Após o momento da verbalização, começamos a dança com um
movimento em roda, vivendo a integração e acolhida coletiva, segundo a consigna
do facilitador. Todos os exercícios que vieram depois, pareciam ser pensados
para mim, era como se aquela sessão tivesse sido organizada toda para mim,
tocava em pontos que mexiam em minhas feridas, as consignas falavam de coragem,
fé, caminhada de cabeça erguida. Um dos convites era para dançarmos
individualmente, num movimento que nos fizesse ser a própria música. Senti-me
em profunda conexão com aquele convite, era como se só existisse a mim no salão,
eu era a concretização da música em movimento.
Meu rosto estava banhado em lágrimas, quando vi um homem
parado, fora do salão, olhando para mim. Tinha um jeito meio assustado,
surpreso, talvez perplexo, acompanhando meus movimentos, como se estivesse
paralisado ou encantado comigo. Continuei minha dança, mas acabei assustada, ao
percebê-lo ali diante de mim, fitando-me insistentemente, com um aspecto
interrogativo, como se me conhecesse. Vi o facilitador do grupo indo a seu
encontro e, num gesto de cuidado, fazê-lo sentar. Era um homem muito bonito,
forte, alto, moreno claro, de rosto afilado e olhar profundo, com grossas
sobrancelhas, um ar de maturidade, embora, fisicamente, aparentasse poucos mais
de trinta anos. Ao final da música, ele já havia desaparecido dali, cheguei a
procurá-lo com meu olhar, tentando disfarçar, para que ninguém percebesse, mas
não o encontrei. Passei o restante da sessão, lembrando daquela figura bonita,
de olhar paralisado em minha direção. Ele parecia fragilizado e eu senti uma
vontade intensa de lhe cuidar, de lhe dar colo.
No final da sessão o facilitador me dissera tratar-se de
Pedro Lucena, que estava me esperando num restaurante a dois quarteirões dali e
ele havia lhe prometido que me levaria lá. Parecia ter lhe contado, segundo
ele, rapidamente que me achara muito parecida com uma namorada que morrera há
muitos anos. Pedro ficara transtornado ao saber que meu nome era Mirela. Era
como se o facilitador já tivesse entendido tudo e estava disposto a ajudar,
intermediando o encontro. Meu Deus, o que eu estava fazendo? Estava brincando
com os sentimentos de uma pessoa. Como eu podia fazer aquilo, como poderia ser
tão vil? Pensei em desistir ali mesmo, não poderia continuar enganado pessoas
que haviam me recebido tão bem, me acolhido com tanto amor e verdade. Mas,
minha filha, o que seria dela? Eu precisava continuar, por ela. Eu tinha que
ir.
Fora difícil e constrangedor aquele encontro. Só Deus e
eu sabíamos o esforço que eu estava fazendo para levar aquela história adiante.
- Pedro. Pedro Lucena. – Apresentou-se ele, pouco
desconcertado, sorridente, ansioso.
- Jú... Mirela. – Engasguei. Por pouco não me apresento
como Júlia.
- Senta.
- Obrigado.
Estávamos constrangidos, sem jeito. Ele por acreditar
ser eu a tal Mirela, uma pessoa a qual pensava ter morrido. De repente,
descobria estar viva. E eu, enquanto protagonista de uma mentira.
- E então? – Falei, depois de certo silêncio e olhares
interrogativos. – O facilitador me disse que você precisava muito falar comigo.
Que talvez me conhecesse.
- Mirela... não sei como começar. Não pude conversar
quase nada com o facilitador. Não tivemos tempo. Mas quando lhe disse que
lembrava muito a Mirela a qual conheci e, morreu há muitos anos, ele me contou
de seu acidente, no mesmo período, de sua falta de memória e que procurava suas
raízes. É verdade?
Quase disse que não.
- Sim. – Respondi com dificuldade. - Comecei nova vida
após esse acidente. Tudo novo, uma nova história. Acho que nasci de novo. E
agora, quero descobrir tudo sobre meu passado.
- Não lembra de nada.
Não havia nada a ser lembrado.
- Algumas coisas.
- Meu rosto... eu não sou familiar?
Não, não era.
- Sinto algo... sinto uma coisa boa diante de você.
Isso não era mentira. Sentia-me bem por sua presença e
mal com o que eu fazia. Mas tinha ele uma energia boa.
- Não consigo acreditar!
Olhava-me de um jeito interrogativo, ansioso e ao mesmo
tempo feliz.
- Pedro, não sei se sou a pessoa que você conheceu.
Pensei em desistir.
- A gente pode analisar os fatos que você lembra, as
datas. Sei lá, acho que deve haver uma forma.
- É, pode ser.
Contei-lhe, com dificuldade, a história ensinada pelo
deputado. Meu nervosismo, a resistência em levar aquela mentira adiante,
fazendo-me confundir em alguns momentos as datas, a seqüência dos fatos, não
lhe chegavam como desconfianças. Pelo contrário. Ele compreendia enquanto
dificuldade de entrar em contato com questões importantes de minha vida, da
vida de Mirela.
E eu também fiquei ali horas, ouvindo aquele homem falar
do que tinha vivido com a tal Mirela, de seu amor, do quanto tinha sofrido com
sua morte e, de repente, descobria que tudo não passara de um engano, que ela
não tinha morrido no acidente e que estava ali na frente da pessoa que fora seu
grande amor e que nunca esquecera.
- Mirela, isso parece uma grande brincadeira do destino.
Brincadeira minha, do deputado Donato Pessoa.
- Eu também estou meio perturbada com tudo isso. Talvez
a gente pudesse se encontrar em outro momento, num outro dia, pra conversar
melhor.
- Não! – Agarrou minha mão como se me implorasse. – Por
favor, não! É muito importante para mim. Foram muitos anos, pensando que você
havia morrido, entende? Isso tudo é meio louco, mas... sei que é difícil pra
você também. É muita coisa ao mesmo tempo. Mas se você for embora agora, acho
que enquanto a gente não se encontrar novamente, eu vou enlouquecer.
- Entendo.
- Eu estou feliz demais, com muita dúvida, sem
compreender quase nada, mas feliz.
- Também me sinto assim.
Meu incômodo maior era estar ali, mentindo.
- Por isso queria que nós conversássemos mais. É... que
nós pudéssemos tentar compreender melhor tudo o que aconteceu.
Ai, meu Deus, que dor eu sentia ouvindo tudo aquilo. Em
alguns momentos via-me perdida em sua fala, fitando seu olhar apertado, que
parecia de um garoto pedindo colo, com um quê de inocência e ao mesmo tempo
maturidade, escondendo-se por trás do cabelo crescido que vez por outra era
tocado pelos longos dedos, sendo jogado para trás de forma leve, no mesmo
momento em que respirava fundo, como se tomasse tempo de sistematizar a fala
seguinte. Sua aparência não tinha o peso do escritório, como eu imaginava.
Talvez pela falta da gravata e paletó, típico de executivos como ele. Como
estava preparado apenas a participar de uma sessão de Biodança, trajava
simplesmente uma camiseta verde, com a figura de São Miguel Arcanjo na frente,
uma calça branca bem folgada, de tecido fino, e uma sandália em couro
marrom-escuro, deixando amostra seus dedos longos e unhas bem-feitas.
Quando eu conhecia alguém, gostava sempre de observar,
não sei bem por quê, as mãos e os pés. Preferia mãos de dedos longos e pés que
tivessem o dedo vizinho ao dedão em proeminência, como os de Pedro Lucena.
Coincidência ou não, quase todas as pessoas com quem já
havia me relacionado, tinham um desenho de mãos e pés parecidos, da forma que
eu gostava, bem como eram muito bem cuidados, a exemplo de Diego, meu primeiro
namorado, aos quatorze anos, e Guel Serrado, minha última grande paixão. O que
me fazia também lembrar uma vizinha nossa, quando moramos em São Paulo , papai e eu.
D. Joaquina dizia que pessoas que tinham aquele dedo do pé mais longo que o
dedão eram autoritárias, mandonas, detentoras de poder. Não sei se por ironia
de meus desejos, aquilo passou a ser, louco e ludicamente, quase um critério
para meus relacionamentos. Sendo motivo de piada para mim mesma e meus
namorados, principalmente aqueles cujos pés e mãos não se encaixavam às minhas
preferências. Aos demais, aprovados naquele critério esdrúxulo, pensava que
poderia ser um sinal verde de entrega.
Deste modo, Pedro Lucena passara no crivo. Loucura!
E por que lembrar daquelas tolices as quais só diziam
respeito a mim, justo naquele momento? Minha aproximação daquele homem seria
apenas momentânea, por necessidade, por Clara. Aquela brincadeira silenciosa,
íntima e pessoal não cabia naquele instante. Talvez até como forma de fugir,
não ouvir Pedro Lucena falando de sua vida, pensando ser eu seu grande amor do
passado, uma mulher que já havia morrido.
Tive vontade de morrer, sumir e, num determinado
momento, caí numa crise de choro, não suportei aquela situação, não poderia
continuar. Dava para perceber que aquele homem não era igual ao deputado, como
pensava anteriormente. Ele era sensível e tinha um bom coração. Com certeza
Pedro Lucena era um bom homem e talvez fosse uma vítima daquele crápula. E
quando o vi ali, fragilizado, cuidando de mim, preocupado ao me ter em prantos,
tive vontade de sair correndo daquele restaurante. Ou poderia contar toda a
verdade.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
14
Pedro e eu acabamos indo para um barzinho, não muito
longe de onde estávamos, na Rua Desembargador Leite Albuquerque, onde
conversamos a noite inteira. Em alguns momentos esqueci que era Júlia Serrado e
viajei no universo de Pedro. Era uma companhia muito agradável, uma pessoa
leve, crente no ser humano, cuidadoso, gentil, extremamente educado, falava
baixo, com tranqüilidade, além de uma beleza envolvente. E ao mesmo tempo,
trazia uma firmeza em sua voz, uma energia de determinação, de homem maduro, de
convicção e retidão em suas crenças. Parecia querer contar toda a sua vida
naquela única noite, como se quisesse recuperar o tempo perdido. Até ri algumas
vezes. Já eu, não tinha muito o que falar, a não ser a história, a qual havia
aprendido com a orientação de Luísa e alguns toques do deputado.
Pedro Lucena tinha trinta e quatro anos, morara dez em
Londres, desde que havia se casado com Vanessa. Por incrível que parecesse,
tinha se separado da mulher fazia pouco mais de um mês. Suportara a difícil
convivência o quanto pôde, mas dizia não ter mais estrutura para conviver com
os ciúmes doentios da mesma. Embora tivesse feito o possível para esquecer
Mirela, a própria Vanessa não permitia que esquecesse, pois sempre lembrava de
seu nome, por ciúmes do que haviam vivido juntos. Ela fora apaixonada por Pedro
desde a época de seu namoro com a tal Mirela e depois de sua morte, ainda
passara anos esperando uma oportunidade para ficar com seu grande amor.
Pedro e Vanessa haviam se casado após descobrirem que
ela esperava um filho. No entanto, ele me confessara que nunca a amou e que seu
casamento havia sido um erro. Aquilo, nós tínhamos em comum.
Foi muito bom ouvi-lo falar do filho Felipe, de nove
anos. Dizia ser um menino extremamente inteligente, estudioso e muito afetivo.
Pareciam ter uma relação de muita cumplicidade, principalmente no que dizia
respeito aos problemas de saúde da criança. Tinha alergias a muitas coisas,
comidas, climas, ambientes e, por causa daquilo era tratado pela mãe como se portasse
uma grave doença e não pudesse conviver normalmente com as pessoas, nem levar
sua vida de forma natural, como as outras crianças. Fora privado de levar uma
vida normal, do convívio escolar, de amigos. Parece-me que o que Pedro pôde
fazer para proporcionar uma vida de normalidade ao filho, ele havia feito. No
entanto, sentia-se limitado, pelo cuidado e respeito à esposa. Não sentia-se
negligente, mas procurava sempre resolver as situações limites em que Vanessa
aprisionava o próprio filho, de modo ponderado, sempre com muito diálogo. Mas,
pelo que dizia, parecia ser ela uma pessoa muito difícil, e em alguns momentos,
tive a impressão que os ciúmes daquela mulher também se estendia ao filho.
A decisão de sair de casa, fora tomada depois de um
escândalo de Vanessa no grupo de Biodança de Pedro. Motivada por suas
desconfianças absurdas, ela foi até o espaço onde funcionava o grupo,
exatamente no momento de uma vivência que o marido estava fazendo com uma
colega do grupo, onde, depois da dança, acabaram se abraçando, como que
celebrando o que haviam vividos juntos ali naquele momento. Pedro precisou sair
do salão, levando a mulher dali. Parecia ter sido uma situação extremamente
constrangedora para todos. Ele havia inclusive pensado na possibilidade de deixar
o grupo. Foi então que tomara coragem e decidiu pôr um ponto final naquela
relação doentia.
Pedro não havia acabado antes com aquela situação, por
preocupar-se com o filho. Temia que os cuidados excessivos de Vanessa a sua
saúde se intensificassem ainda mais e que Felipe sofresse, com as loucuras da
mãe. Ele me dissera que quando se tem um filho, a gente não pode pensar somente
em nosso bem-estar, mas que nossas decisões envolvem diretamente nossos filhos.
Aquilo até me tranqüilizava um pouco mais em relação ao que eu estava fazendo
com ele. Era como se estivesse, com aquela afirmativa, mesmo sem saber, me
absolvendo de meu terrível pecado.
Fui levada em casa quando o dia já estava quase
amanhecendo, quer dizer, no apartamento no Dionísio Torres, que supostamente
seria de Mirela. Donato Pessoa não me permitira ficar em casa, por causa de
Raquel e as crianças, até porque seria mais gente envolvida naquela mentira, e
eu mesma não queria aquilo.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 15
A noite estava fria. Sentia todo o meu corpo tremer, não somente pelo
clima, bem como pelas dores, que se manifestavam em várias partes de meu corpo.
Procurava me esconder por trás dos jarros de plantas de meu jardim, na frente
de minha casa, protegendo-me do frio e tentando evitar que alguém da rua me
visse ali. Devia já passar das onze da noite, e não percebia muitas estrelas no
céu, nem mesmo a lua estava muito a se mostrar.
Meu receio era também que meu filho chegasse e me percebesse ali fora,
separada da rua apenas pelas minhas plantas e o muro baixinho, que antecedia a
porta de entrada de nossa casa. Vendo-me ali, Nando logo entenderia o que
acontecera e seria mais um transtorno. Não, ele não poderia se deparar com
aquela cena grotesca, sua mãe encolhida no jardim de sua casa, ao relento, já
tarde da noite, vestindo apenas uma camisola, com vários hematomas por todo o
corpo. Só de pensar, ficava ainda mais nervosa. No entanto, nada podia fazer.
Chegara a pensar em procurar um vizinho, Ceiça do mercadinho talvez, mas logo
desisti. Chamaria muito a atenção e outras pessoas poderiam me ver daquele
jeito. Eu não poderia. Além das dores e do frio, sentia-me também tomada de
vergonha. De certo, muitos puderam ouvir meus gritos, como de costume e depois
fingir que nada aconteceu. E nem imaginavam o que havia acontecido realmente.
Assustei-me ao ouvir a batida no portão. Graças a Deus, Nando não me
percebera ali, escondida no pequeno jardim. Como todas as noites, deixara seu
carro na garagem de seu Olivar, nosso vizinho da esquina e vinha caminhando
quarteirão acima, até nossa casa. Quase tive meu esconderijo descoberto, no
instante em que caíram-lhe os livros que trazia na mão, tentando fechar o
cadeado do portão. Se ele olhasse para sua direita, viria nitidamente meu rosto
por entre os galhos das plantas. Só aquietei meu coração, ao ter certeza de que
entrara.
Fiquei pensando o que seria de mim ali, como sairia daquela enrascada. E
não me vinha nenhuma idéia. Mal conseguia raciocinar. Roguei a Deus por um
milagre, por uma saída para aquela situação. Não tinha como entrar em minha
casa, pois a porta estava trancada e não poderia chamar, para que Nando não
soubesse o que havia me acontecido, do mesmo modo em relação aos vizinhos. O
que faria afinal?
Já eram quase duas da madrugada, quando percebi a porta se abrindo.
Fiquei aflita achando que seria Nando mais uma vez, que de alguma forma teria
dado pela minha falta e resolvera me procurar. Mas conheci Alceu pelo chinelo,
que dava para ver por entre as plantas.
- Vamos para dentro, mulher.
Alceu estava com a mão estendida diante de mim, como que para me resgatar
daquele lugar frio, no qual me jogara quatro horas antes. Tínhamos discutido
mais uma vez por causa de nosso filho Holanda, e ele perdera o controle, como
de costume, agredindo-me com chutes, tapas e empurrões. Aos cinqüenta e oito
anos, eu já havia perdido as contas de quantas situações daquelas nós havíamos
passado durante os trinta e cinco anos em que estávamos casados.
Muitas vezes chegava a questionar o verdadeiro porque de eu suportar
tantas agressões, aflições e sofrimento. Não podia ser simplesmente pelos
ensinamentos de que “casamento é para sempre”, já que nunca havíamos sido
realmente felizes. Alceu de Holanda sempre fora um homem duro, comigo e com as
crianças, tratava-nos permanentemente com desprezo e agressões, como se nos
punisse de algum crime. Mostrava-se de uma exigência profunda nos afazeres
domésticos, cobrando-me uma única teia de aranha, que porventura, houvesse sido
esquecida por mim no canto da parede, após uma faxina, ou ainda o cardápio
variado, que jamais poderia se repetir durante a semana, no almoço e no jantar.
As crianças cresceram aterrorizadas com nossas brigas, ou melhor, com as
surras gigantescas que seu pai me dava, uma ou duas vezes por dia. Passados tantos
anos, minha situação não era tão diferente, a não ser pelos intervalos maiores
entre uma surra e outra.
Morávamos no Montese, a seis quarteirões da Av. Gomes de Matos, na Rua
Romeu Martins, desde o início de nosso casamento, antes numa casa menor, pertinho
de onde estávamos então. Ali, naquele bairro modesto, as crianças cresceram,
brincaram, começaram a namorar e despontaram para a vida, no mesmo lugar onde
passei parte de minha infância, o mesmo bairro o qual havia sediado as minhas
brincadeiras de menina juntamente com as minhas amigas e que era naquele
momento o cenário de meu sofrimento, de minha opressão.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 16
Nossa casa havia perdido a alegria emanada de nossos três filhos, na
ausência de Alceu. Morava conosco apenas Nando, o mais velho. Lembrava muito o
pai mais jovem, muito bonito e já com trinta e três anos. Mesmo assim, para
mim, era como se não tivesse crescido. Zelava por ele, como se zela por uma
criança indefesa.
Nando sempre fora considerado por todos um bom rapaz, tranqüilo e
estudioso, o único que concluíra os seus estudos. Terminara seu doutorado na
USP, em São Paulo ,
fazia pouco tempo, e estava voltando a lecionar no curso de Sociologia da
Universidade Cearense – UNICE, da qual era professor há alguns anos. Fora ele,
inclusive, quem comprara a nossa casa e nos dera de presente. No fundo, eu
sabia que sua presença era uma forma de me proteger e impedir seu pai de me
maltratar. Exceto quando bebia, Alceu até chegava a me respeitar ou tentar me
respeitar na presença do filho. Na verdade, ele se aproveitava de Nando, para
sustentar suas farras e jogatinas, e o mesmo se permitia a tal absurdo como uma
forma de mantê-lo ocupado, entretido, longe de mim.
Apesar de crescer indignado vendo as surras que eu levava de seu pai,
Nando guardava uma grande consideração para com ele e até cuidava de seus
porres, quando ultrapassava o limite, o que acontecia quase sempre. Alceu era
de fato um alcoólatra e Nando fazia de tudo para ajudá-lo, tentando lhe
convencer a procurar ajuda, embora não parasse de lhe dar dinheiro, para evitar
o pior dentro de casa.
Desde que voltara de São Paulo, onde fizera seu doutorado, Nando vinha
mantendo uma relação meio sigilosa com Olívia Cordeiro, a filha de Adriano
Cordeiro, um grande amigo do passado. Eu não sentia por parte dele uma grande
paixão, mas os dois pareciam gostar da situação. Haviam se reencontrado, depois
de alguns anos, em um vôo de São Paulo para Fortaleza. Na verdade, eu a
conhecia desde pequena, quando ainda era bebê. Transformara-se numa linda
mulher, elegante, de um estilo jovial e moderno. Dona de um corpo exuberante, o
qual a transformara numa modelo de sucesso nacional. Sendo considerada até hoje
como uma das mulheres mais bonitas de Fortaleza.
* *
*
Aos trinta e seis anos, Olívia Cordeiro orgulhava-se de ser uma mulher
independente, que criara seu filho, Alexandre, sozinha, depois de ter sido
expulsa de casa pelo pai, ao descobrir que estava grávida, com apenas dezesseis
anos, e abandonada pelo pai da criança. Ela nunca conseguira perdoar Adriano
por isso, mesmo com suas inúmeras tentativas de tentar uma reconciliação.
Perdemos o contato nos últimos anos, Olívia e eu, mas sempre que nos
encontrávamos, passávamos horas conversando sobre sua vida. Ela gostava de me
falar sobre suas tentativas frustradas de namoro e me pedir conselhos. Passara
por inúmeras relações complicadas, acabando sempre sendo abandonada ou traída
pelos namorados. Seu grande sonho, sempre fora realmente encontrar seu príncipe
encantado, alguém que a desse apoio e segurança.
Muito ocupada com sua casa noturna, que abrira em sociedade com o amigo
Renato Brandão, Olívia procurava-me freqüentemente, nos últimos meses, para se
aconselhar acerca de sua relação com o filho, de dezenove anos, com quem vinha
tendo muitas dificuldades para conviver e impor limites.
Creio que Olívia não soubera encontrar a dose exata entre proporcionar o
que considerava que fosse de melhor para o filho e ao mesmo tempo o fizesse ter
consciência de limites na vida. Acabara sendo permissiva e o transformando em
um jovem mimado e sem muitas preocupações com seu futuro. No fundo, temia que
estivesse metido com drogas, pois sua mesada nunca era suficiente e acabava
sempre lhe pedindo mais dinheiro.
A única coisa que confortava Olívia em relação a Alexandre era o seu
namoro de com Carola, da mesma idade, que parecia ser uma jovem responsável,
além da grande amizade dos dois com João Henrique e Maria Antônia, que eram de
família amiga a qual conhecia desde criança, já que Adriano, o pai de Olívia,
sempre fora grande amigo de Leonardo Gondim, o avô dos amigos do neto. Os
quatro faziam faculdade e acabaram por se conhecer quando cursavam cadeiras em
comum, antes de Alexandre trancar seu curso, no sexto semestre.
Por mais que Carola e Olívia insistissem, Alexandre não voltava a
estudar, alegando arrependimento pela escolha de seu curso – Sociologia - E
isso a preocupava profundamente, não sabia mais como agir com o filho.
Nando e Olívia vinham mantendo seu relacionamento em segredo, por exigência
da mesma. Achava que suas relações anteriores podiam ter dado certo se não
abrisse tanto a tanta gente. Por isso, resolvera manter esse novo romance em
segredo.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 17
Foi através de Nando que fiquei sabendo da volta de Tony à Fortaleza. Às
vezes, ao sair da faculdade, ele passava na Boate Mirage para ver Olívia, antes
de voltar para casa, e numa dessas idas, encontrara com a prima lá. Somente
alguns dias depois fui procurada por ela para conversar.
Tony estava com vinte anos, linda, lembrava sua mãe. Deixara os cabelos
bem longos e fizera algumas mexas loiras. Aparentava um ar mais maduro, talvez
pela maquiagem. Chamava muito a atenção das pessoas por sua beleza, desde a
adolescência.
Acabei por assumir a responsabilidade de criar Tony depois da morte de
seu pai, meu irmão Emílio, quando era ainda garotinha. Ela saíra de casa logo
que completara a maior idade, para morar com umas amigas, mesmo contra minha
vontade. Tony sempre desejou mudar de vida e ir embora de onde morávamos.
Muitas vezes, ao deixá-la na escola, quando era menina, eu me escondia, a seu
pedido, para que ninguém a visse comigo, por eu ser apenas a costureira das
mães de muitas de suas colegas.
Nosso reencontro não fora tão feliz o quanto eu esperava. Marcara comigo
em um shopping, para que não se obrigasse a voltar a nossa casa. Tony guardava
uma grande mágoa, que eu não sabia ao certo de quem era, se de mim ou de Alceu.
E isso a fazia me maltratar, agredir-me com a dureza de suas palavras
rancorosas, apesar de não falar especificamente o que lhe oprimia o coração. No
entanto, eu estava feliz de reencontrá-la.
- Como eu tô feliz, minha filha! Como eu tô feliz!...
As palavras me faltavam e eu queria beijá-la, sem deixar direito que ela
respondesse. Queria senti-la em meus braços, como a minha menina, assim como a
chamava quando era criança. Mas sua reação fora exatamente o contrário,
afastou-se, tirando minhas mãos de seu rosto.
- Calma, tia, você está estragando todo o meu penteado. Olha o que você
está fazendo, puxa.
- Desculpa, queria apenas...
- O que você queria comigo? O Nando me falou que você queria falar
comigo.
Nem me deixou concluir. O tom de sua voz era ríspido. Não entendia porque
me tratava daquele jeito, sem amor, de forma grosseira. Afinal, sempre lhe dera
todo o carinho e cuidado, a tratara como a filha que nunca tive.
- Estava com muita saudade de você, Tony. Há mais de dois anos que você
não aparecia aqui, não dava notícias. Cheguei a pensar no pior. São tantas
histórias que a gente ouve sobre pessoas desaparecidas.
Tentei mais uma vez tocar em seu rosto, mas fora mais uma tentativa
frustrada.
- Deixa de drama, tia. Eu tô bem. Estive em São Paulo , depois passei
um tempo no Rio. E agora resolvi voltar.
- Onde você está morando?
- Com o Holanda, não se preocupe.
- Com o Holanda? Mas ele não me disse nada. Ele sabia o quanto eu estava
preocupada com você.
- Eu pedi que não dissesse, puxa!
Já estava novamente irritada.
- Eu sabia que seria essa lengalenga. Eu fiz ele prometer que não diria
nada, até eu mesma lhe procurar. Não faz muito tempo, pouco mais de um mês.
- Soube que você está trabalhando na Mirage.
- É, mas eu não quero que diga nada a Olívia. Pedi a Nando também.
- Mas por que ela não pode saber? Talvez seja até melhor pra você. Ela
sabendo quem você é, pode até te ajudar lá.
- Não! Não quero que você se meta. Ela me viu, acho que ainda muito
garotinha, não lembrou de mim. E quer saber? Graças a Deus! É melhor assim.
- Não te entendo, Tony.
- Não é para entender.
Foi um encontro rápido, até porque Alceu não podia dar por minha falta,
para não se irritar. Mas senti claramente o rancor que guardava em seu coração.
E o tratamento grosseiro, impaciente me deixava pensar que era comigo, alguma
coisa que eu tivesse lhe feito, não sei.
Preocupou-me o fato de Tony não querer revelar a Olívia quem era. Pelo
que conhecia dela, estava aprontando alguma.
Tony participara de uma seleção, pouco tempo antes, para dançarina na
boate. Ficando em segundo lugar, na escolha, tratou de providenciar para que a
moça que tirou o primeiro lugar não assumisse.
Hospedada provisoriamente no apartamento de meu filho do meio, Holanda,
conhecera uma amigo dele chamado Guel Serrado, que parecia ter morado fora do
país nos últimos cinco anos, e então estava de volta. Fiquei sabendo que os
dois se conheceram mentindo um para o outro que eram ricos, dando início a uma
forte paixão. Depois que descobriram a verdade um sobre o outro, era tarde e
estavam perdidamente apaixonados. Sabia que ela não se interessava fácil por alguém
e tratava os homens como instrumentos para conseguir o que queria. Mas com esse
rapaz, parecia ser diferente, ele a deixava desnorteada, num jogo de sedução
que lhe tirava o equilíbrio. Depois de muitos anos, Tony estava completamente
obcecada de desejo e não resistia diante da possibilidade de irem para a cama.
Conseguia se realizar nos braços de Guel, como jamais se realizara com qualquer
outro homem que conhecera até então. Por isso, desistira da decisão de
abandoná-lo e lhe propôs uma parceria, na empreitada de subirem na vida juntos.
Tony era inteligente, cheia de idéias. Depois de ler alguns recortes de
jornais contendo entrevistas de Olívia Cordeiro sobre suas relações amorosas
fracassadas e de seu desejo de encontrar a pessoa certa, considerou-a alvo
fácil para seu plano. Sendo Guel um homem bonito e sedutor, aliado às suas
idéias, o jogo estaria ganho. Bastava apenas descobrir como aproximá-lo de
forma assertiva de Olívia para dar o bote. Por isso, decidira trabalhar na
boate, a fim de que pudessem descobrir mais sobre sua vida, seus passos. A
jovem Sofia que tirara o primeiro lugar e assumiria a vaga de dançarina no
grupo da coreógrafa Júlia Serrado, fora então seduzida facilmente por Guel,
engatando um pseudo-namoro relâmpago. A tentativa era de afastá-la, para que
não assumisse a vaga. Descobriram que o pai da moça era testemunha de Jeová e
jamais admitiria a filha como dançarina de uma boate. Trataram então de levá-lo
a Mirage, flagrando um ensaio do grupo. O que fez com Tony conseguisse finalmente
a vaga de dançarina.
Trabalhando na Mirage, Tony logo ficara sabendo que Olívia Cordeiro teria
um suposto namorado secreto, o que impediria seu plano. O próximo passo seria
então descobrir quem era esse misterioso namorado. O que não demorou muito, já
que desconfiava da presença freqüente, embora discreta, de Nando, na boate.
Conhecia-o suficientemente para saber que não gostava de agitações noturnas,
mas foi com a ajuda de Guel, seguindo Olívia, que descobriram a identidade de
seu namorado.
Foi então quando Tony voltou a freqüentar a nossa casa, procurando
aparecer, claro, na ausência de Alceu. Ela mesma não queria encontrá-lo e eu
compreendia, os dois nunca se deram bem, além de ter sido também vítima de sua
opressão. Eu desconfiava que tinha algo de errado com aquela reaproximação, mas
mesmo assim, procurava saborear a sua presença. E ela até se mostrava mais
paciente e um pouco mais afetiva. Afinal, as pessoas podem mudar. Evidentemente
que não era o caso. Tony estava obstinada em acabar com a tal relação do primo
com Olívia, para então promover o encontro dela com Guel Serrado.
Voltando a entrar em contato com nossa realidade, Tony lembrara da paixão
de Marluce, a jovem filha de nossos visinhos Ceiça e Rubinho, os donos do
mercadinho da esquina, por Nando. Sabendo que Marluce era então aluna dele e
quase que diariamente pegava carona com ele, para irem juntos a faculdade,
resolveu se aproximar da moça, mesmo despertando desconfianças, e incentivá-la
a lutar por seu amor de criança. Convencendo-a então a tomar iniciativa e
beijá-lo numa determinada manhã em que iam juntos para a UNICE, como de
costume. Tony tratou para que Olívia estive no estacionamento da faculdade
naquele exato momento, flagrando o tal beijo.
Tony estava certa sobre suas expectativas acerca do plano, Olívia não
perdoaria o namorado, nem permitira maiores explicações, pelas inúmeras
frustrações anteriores, na sua maioria, envolvendo traições. O caso dos dois
estava encerrado e o caminho livre para Guel Serrado.
A relação de Tony e o tal Guel Serrado realmente me preocupava. Desde que
os havia visto juntos, quando fui ao apartamento de meu filho Holanda, aquele
rapaz me chamara atenção. Parecia esconder algo por trás de seu olhar, como se
quisesse alguma coisa não revelada em seu discurso arrumado. Sentia que era uma
pessoa perigosa e não gostava de vê-lo envolvido com minha sobrinha e meu
filho.
Conversando com Holanda, descobri que eram amigos há muito tempo e que
Guel desaparecera por cinco anos e há pouco voltara ao Brasil. No entanto, não
sabia dar maiores informações sobre o passado do rapaz: o que fizera, porque
ficara tanto tempo fora, sem dar notícias, ou ainda porque voltara. Não sabia
ou não queria me contar. Afinal, era eu quem não o considerava uma boa
influência para os meninos, embora não soubesse de nada concreto que arranhasse
sua imagem. O que me tranqüilizava era saber que Tony estava morando, mesmo que
provisoriamente, com Holanda. Cheguei a lhe pedir que ficasse de olho na prima
e naquele rapaz e que tomassem cuidado com ele. Sei que em certos momentos
alguns cuidados de mãe se tornam absurdos, por não termos especificamente
argumentos concretos sobre os mesmos, por serem somente fruto de nossa
intuição. Mas não podia calar diante de meu coração.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
18
Eu tinha me mudado juntamente com Raquel para uma nova
casa, no Montese, que era de uma amiga de minha cunhada e nos tinha feito um
valor de aluguel bem mais em
conta. Casa não muito grande, de três quartos, sala e
cozinha, mas o suficiente para nossa família. Acho que tivemos muita sorte com
aquela mudança, pois era um ambiente muito agradável a Rua Romeu Martins, bem
como a vizinhança, gente bastante acolhedora e prestativa.
No dia em que nos mudamos, várias pessoas da rua se
ofereceram para ajudar e ainda muitos outros foram me dar às boas vindas.
Gostei mesmo de uma senhora muito simpática com quem encontrei ainda quando
havíamos visitado a casa. Tratava-se de D. Clarina de Holanda, que insistira
para tirarmos, Raquel e eu, o “dona” e a chamássemos somente de Clarinda. O que
para mim, era impossível. Era uma mulher simples, de meia idade, bonita e tinha
um jeito todo especial de mãe, como se fosse toda cuidado, uma energia boa.
Morava na casa rosada da frente, do outro lado da rua, vizinha a um casarão
abandonado.
Aos poucos fui conhecendo outros moradores, como D.
Ceiça e seu Rubinho, o casal dono do mercadinho da esquina, onde eu fazia todas
as minhas compras.
Seria um novo momento em minha vida, só faltava Clara
para que eu ficasse realmente bem.
Lembro-me que dormi como um anjo naquela manhã e até
sonhei com Pedro. No sonho, estávamos passeando por um jardim, e ele pegava em
minha mão, sentia uma imensa alegria de estar ali com ele. Homem de beleza
madura, porte majestoso. Os longos dedos enroscavam-se nos meus e podia sentir
a maciez de sua mão, passando-me um afeto o qual esperei por anos. Acordei tão
bem, feliz. Fazia tempo que não me sentia daquele jeito, embora tivesse naquele
estranho apartamento, sozinha. Não importava.
Tão logo acordei, fui surpreendida com uma entrega de
flores e um cartão que dizia: “Foi maravilhoso sentir sua presença ao meu lado
novamente. Acho que nunca deixei de lhe amar. Beijos, Pedro.”
Eu não sabia se ria ou chorava. Senti pena dele e ao
mesmo tempo de mim, por estar me obrigando a enganá-lo. Foi então que decidi
acabar com tudo aquilo. Só não sabia se contaria a verdade a ele, ou
simplesmente sumiria, desapareceria. Mas desaparecer, sem deixar notícias, eu
não poderia, não com ele, seria pior do que estava fazendo.
Já me preparando a ir embora, recebi uma ligação de
Luísa, dizendo-me ter recebido notícias do detetive, o qual encontrara uma das
pessoas que presenciaram a venda de Clara ao casal holandês. E aquela notícia
não só me enchera de esperança, mas me fizera desistir de revelar a farsa a
Pedro. Acabei aceitando seu convite para almoçar e foi uma tarde surpreendente.
- É como se tudo fosse um sonho, Mirela. Estou sonhando
acordado.
- Pra mim também é estranho, pode acreditar.
Nunca antes havia me envolvido em nenhuma farsa, ou
precisara mentir pra ninguém. Aquilo ia contra tudo o que eu acreditava.
- Minha falta de compreensão reside nos caminhos
utilizados pela vida para nosso crescimento. Hoje cedo fiquei me perguntando
por quê, o que houve entre nós, na nossa história. Por que desse intervalo tão
grande? E ao mesmo tempo sei que a cronologia é uma criação nossa, e não
alcança os traços de Deus. Mas foram muitos anos, entende?
- Sei bem do que você está falando, Pedro.
Pelo menos procurava compreender. Mesmo sendo difícil e
doloroso para mim, colocar-me em seu lugar.
- Ficamos longe um do outro por muito tempo, Mirela.
Ainda assim sinto a intensidade desse fogo dentro de mim, reascendendo. Você
não faz idéia de como estou desde ontem. É loucura isso!
- Também acho.
Falava de mim, do deputado e seu plano, tal Mirela.
- Sei também que o caminho não é ficar procurando
entender nada, a separação, o tempo. O maior convite agora é a entrega.
Entrega de quê? À mentira, a uma palhaçada criada por um
provável inimigo? Vítima era o que ele era, de mim, de Donato Pessoa.
- Confesso que estou muito confusa, Pedro. Talvez fosse
melhor a gente dar um tempo, para a poeira baixar e poder compreender melhor o
que aconteceu.
- Por favor, não! Sei que é complicado pra você. O
sentimento é meu, as lembranças são minhas. Você não tem como lembrar de nada.
E pra você é tudo muito estranho. Pra mim não, sabe? É como se eu tivesse
voltando no tempo, recuperando o que eu perdi. Pra mim não é estranho. Eu
consigo reconhecer tudo, você, o que eu sinto diante de você. Apesar de ser
novo, ao mesmo tempo, isso é loucura.
- Eu preciso me acostumar.
- Eu posso te ajudar.
- Pedro, você não entende.
- Pelo contrário. Sei que é difícil pra você. É
importante saber de seu passado, mas não consegue reconhecê-lo ainda. Talvez
pra mim seja mais fácil.
- É mais ou menos por aí.
- Estou em vantagem.
Vantagem que nada! Perdia-se cada vez mais em minhas
mentiras. E aquilo me doía. Precisava lembrar de Clara a cada instante, para
poder continuar.
- Mirela, tudo está voltando.
- Como assim?
- Tudo o que eu sentia.
- Tão rápido.
- O necessário.
- E como se sente?
- Feliz.
Aproveitamos para fazer um passeio de barco, oferecido
pelo hotel no qual almoçamos, de onde assistimos o pôr do sol, em alto mar,
depois de um mergulho, pertinho da Praia Mansa, e de brincarmos na água como
duas crianças. Eu tinha resistido em tomar banho, mas era tudo tão mágico,
suave e ao mesmo tempo envolvente, gostoso. Não tive como recusar. Morava em
Fortaleza há sete anos, desde minha vinda de Recife, depois da morte de meu pai
e conhecer Guel Serrado, e nunca tinha podido saborear as belezas desse lugar.
Acho que nunca me dera conta do quanto Fortaleza era linda.
Foi inesquecível nosso encontro dentro da água e, sem
que eu tivesse tempo para pensar, senti nossos lábios se tocando. O que seria
uma brincadeira inocente, transformara-se em nosso primeiro beijo! E como eu
havia desejado aquilo horas antes, quando ele me deixara em casa, depois de
conversarmos a noite inteira. Acho que naquele momento poderia o mundo desabar
e não perceberia. Lembro bem de uma sensação de inteireza, era como se o
universo estivesse ali simplesmente nos banhando com toda a sua magia, seu
esplendor.
- Pedro...
- Não fala nada. – Pôs os dedos suavemente em minha
boca. – Eu queria muito isso. É maravilhoso estarmos aqui.
Sim, e era mesmo. Estávamos em alto mar, pertinho do
barco, envolvidos na imensidão daquela água e do que sentíamos naquele momento,
como se não houvesse outras pessoas em nosso entorno, aproveitando o mesmo
banho.
Sentir seus lábios tocando os meus, seu corpo quente e
trêmulo encostar cuidadosamente ao meu. Tudo mágico.
Após o banho, Pedro pegava uma bebida para nós no bar do
barco, e pude admirá-lo, sem que percebesse. Nada poderia ser mais perfeito! A
magia daquele encontro, o que acontecia naquele instante, o beijo que durara
minutos, em pleno mergulho. E tudo em tão pouco tempo.
Estava Pedro com uma camiseta regata branca, grudando em
seu corpo ainda molhado, e uma sunga vermelho-escura, definindo perfeitamente
seu porte atlético. Ombros largos, braços fortes e pernas grossas. Mãos e pés
perfeitos, do jeito que eu gostava. O cabelo molhado caía por sobre os óculos
escuros, sendo jogado por ele de vez em quando para trás, com a ajuda das duas
mãos, num gesto charmoso, o qual se repetia freqüentemente. E eu, completamente
encantada. Passaria horas, admirando-o somente. Seus gestos, as palavras, a
sistematização precisa do pensamento diversificado, segundo ele, de aquariano,
o cuidado, o jeito afetivo, seu cavalheirismo. Além de uma beleza
inconfundível. O homem que toda mulher gostaria de ter! Seria realmente eu quem
vivia aquilo naquele momento? Eu mesma chegava a não acreditar.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
19
Pedro falava-me muito de si, de sua vida, do quanto
sofrera ao pensar que eu, ou melhor, Mirela, tinha morrido e, o quanto a amou
durante todos aqueles anos. Era bom ouvi-lo falar com sua voz doce e suave,
parecia me acalentar o coração. E cada momento, o achava mais lindo, como se o
tivesse encontrado num sonho. Era realmente um sonho o que eu vivia. Cheguei a
achar que talvez tivesse sido a providência Divina aquele encontro – Deus
escreve certo por linhas tortas – poderia ser aquilo mesmo um convite do
universo para que eu novamente experimentasse o amor, só que dessa vez, de uma
forma mais madura, mais centrada. Sem dúvida era totalmente diferente da
loucura que sentira por Guel, tantos anos antes.
Ri ao sentir meu coração acelerado abrindo a porta do
apartamento para recebê-lo, à noite. Jantaríamos fora. Ele, bem vestido,
impecável como sempre, trajava um blazer grafite, camisa verde e calça jeans.
Surpreendeu-me ainda na porta com um largo sorriso, oferecendo-me uma rosa
vermelha.
- Cheguei muito cedo?
- No momento certo.
Nada poderia ser mais perfeito. E poderia. Se tivéssemos
nos conhecido em outra situação, sem mentiras. Se o que ele sentia fosse por
mim realmente e não por Mirela.
Até minhas lamentações pelo contexto desapareciam ao nos
beijarmos. Fazia muito tempo que não sentia essa sensação, ao tocar os lábios
de alguém, como se aquele beijo fosse tudo. Inteiro, intenso, perfeito! Se ele
questionava o tempo, por sua história com Mirela, eu questionava o momento, o
que me fizera me aproximar.
Tudo estava acontecendo tão rápido que nem tive tempo de
raciocinar, discernir sobre aquilo e no que daria aquela loucura. O combinado
com o deputado Donato Pessoa era apenas de me aproximar dele para conseguir o
tal dossiê, não precisaria me envolver emocionalmente, nem ter nenhum tipo de
relação amorosa. No entanto, fui surpreendida pelo meu destino, ou talvez, quem
sabe, pelo meu próprio coração, que estava adormecido para o amor desde que
havia sido abandonada por Guel. E eu que nunca havia acreditado em amor à
primeira vista, ou da noite para o dia, estava extremamente envolvida pelo
homem o qual deveria enganar. A única coisa que me doía era quando me chamava
de Mirela e falava de “nosso passado”. Eu era Júlia Serrado e não tinha tido
passado nenhum com aquele homem, nunca o tinha visto antes. Mas de uma coisa eu
já estava certa, queria que aquela situação se prolongasse muito para que
pudesse saborear cada minuto de sua presença, de seu calor, de sua energia, de
seu perfume, da sensação inexplicável de sentir a maciez de sua mão por sobre a
minha. Era como se eu quisesse perpetuar aquele momento e continuar sentindo
aquilo para sempre.
Terminamos a noite em seu apart-hotel, na Beira Mar,
onde estava provisoriamente, desde sua separação. Não havíamos falado nada
sobre irmos até lá, simplesmente me levou e não expressei nenhuma resistência,
nem poderia. Como eu queria estar com ele!
Fiquei esperando por um instante no corredor, enquanto
entrou para preparar uma surpresa, segundo ele. E que surpresa! Senti vontade
de chorar ao entrar e ser recebida num corredor de velas vermelhas no chão. A
sala estava na penumbra, iluminada pelas chamas dançantes das velas. Ele estava
ali, diante de mim, belo, sorrindo, com a mão estendida a me receber.
“Eu quero que esta noite seja inesquecível.”
Ouvi aquilo como uma música que me convidava a me
entregar e abrir as portas de meu coração.
Sim, fora uma noite maravilhosa, moldurada por muito
afeto e delicadeza. Dancei a dança a qual a vida estava me convidando naquele
instante. Experimentava o sabor de amar e ser amada. Parecíamos uma só pessoa,
uma só carne. Acho que nunca havia me sentido tão grande, tão plena. Não
poderia não ser um presente de Deus, aquele momento. E então, por um instante,
senti-me tão feliz, tão protegida.
E como era bom sentir o sabor daquele homem, seu calor,
seu cheiro em minha pele, seu beijo quente, seu cabelo crescido caindo por
sobre meu rosto, quando me beijava. E a voz doce em meu ouvido declarando-me
seu amor. Tudo perfeito, como em um conto de fadas.
Conversamos ainda por horas após um longo banho a dois.
* * *
Pedro Lucena estava na vice-presidência da RTN há poucos
meses, desde a morte do pai, que morrera de um infarto fulminante, aos sessenta
anos. Então fora convidado por Leonardo Gondim, o dono da televisão, para
assumir interinamente o cargo de seu pai, até que houvesse uma nova eleição na
diretoria da emissora. A atitude do presidente da empresa não havia agradado a
alguns de seus diretores, que almejavam o cargo, como o ex-genro Donato Pessoa
e a própria filha de Leonardo, Maria Eugênia Gondim. Entretanto, aquela
insatisfação dos diretores não incomodava a Pedro, que já vinha de muita
experiência num canal de televisão, em Londres, do qual era superintendente.
Então, começara a entender a perseguição de Donato Pessoa a ele, pois estava em
seu caminho e tudo faria para tirá-lo.
Vanessa não havia dispensado muita força ao retorno do
marido ao Brasil, receava que suas lembranças de Mirela o afastassem dela e que
retornando ao lugar onde viveram aquele amor, poderia alimentar este
sentimento. O fato era que ela tinha toda razão, entretanto nunca poderia
imaginar que o marido estaria vivendo aquele romance comigo, embora pensando
que fosse com Mirela.
Não sabia ao certo o que estava sentindo, mas na certa
já estava completamente apaixonada. Mais parecia uma adolescente, quando
pensava em seu toque, lembrava de seu beijo ou até mesmo quando sentia seu
cheiro, seu calor ao me abraçar. Sim, estava completamente apaixonada, havia
entregue meu coração ao amor. E como era revitalizante viver aquilo. Sentia-me
outra pessoa, com forças para enfrentar tudo o que viesse pela frente.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
20
Pedro pedira para passar uns dias fora da empresa e
aproveitamos para viajar. Fomos ao Porto das Dunas, para sua casa de praia. Era
lindo aquele lugar, um grande jardim contornava a casa, que ficava de frente
para o mar, com uma imensa varanda que separava o estacionamento da área da
piscina, ponto de entrada da grande sala, dividida em dois espaços, de estar e
refeições. Os quatro quartos ficavam no andar superior, todos com varandas, que
davam um charme todo especial aos ambientes.
Parecíamos viver uma lua-de-mel interminável. Pedro e eu
estávamos sempre conversando, brincando, fazendo carinho um no outro.
Passávamos horas deitados numa rede na varanda, tentando nos proteger um no
corpo do outro do frio trazido pelos fortes ventos do litoral. Ele adorava ter
os pés massageados por mim, o que eu fazia, freqüentemente, com imenso prazer.
Ora, um de meus objetos de prazer bem em minhas mãos.
Era uma alegria imensurável conhecer os anseios daquele
homem, partilhar de seu afeto, de seu cuidado profundo. Podia perceber como as
pessoas que com ele interagia alimentavam um sentimento de profundo respeito e
admiração por sua pessoa. E, de repente, eu me via ali, podendo aproveitar de
sua intimidade, de seu carinho, de seu amor. Pensava que homens como aquele não
mais existiam, mas depois de conhecê-lo, estava certa que sim.
Eu não poderia esquecer meu objetivo, o porque de estar
ali com Pedro Lucena. Volta e meia aquilo vinha e tomava conta de meus
pensamentos, deixando-me paralisada, profundamente triste. Era como se, de
repente, o conto de fadas, se transformasse num terrível pesadelo. Pior era quando ele se aproximava de mim,
tentando saber o que eu tinha, o que me atormentava, querendo me cuidar, fazer
algo para evitar meu sofrimento.
“Mirela, eu não quero nunca te ver triste, perder a
luminosidade do teu sorriso. Ele desperta em mim o desejo de poder ser mais
alegria, mais vida. O teu sorriso desperta em mim o desejo de poder te amar e
viver plenamente esse amor”.
Bem que ele poderia falar tudo aquilo e não chamar por
aquele nome que trazia consigo a lembrança da mentira, da minha falsidade.
Sempre repetia em minha mente, como se dissesse para ele, que não era Mirela,
que era Júlia Serrado quem estava vivendo aquele amor e o convidando a dançar o
afeto, a magia da paixão.
Logo que retornamos a Fortaleza, conheci Felipe.
Havíamos nos encontrado num shopping, como que por acaso, mas percebi que fora
um encontro provocado por Pedro. Ele já havia me falado várias vezes que
desejava muito que nós nos conhecêssemos. Felipe ostentava a mesma beleza do
pai e até parecia realmente bastante com ele, principalmente os olhos castanho,
de desenho amendoado, a boca deveria ser da mãe. Mas era mesmo um doce, como
Pedro o descrevia. Parecia um adulto, maduro, observador, cuidadoso com as
palavras. E teve algo que ele me dissera, num instante em que ficamos sós, que
me deixou angustiada.
“Acho que papai sempre te amou, Mirela. Mas agora é
diferente, você está aqui. Queria te pedir, para nunca fazê-lo sofrer”.
Será que aquele garoto havia percebido alguma coisa? Um
presságio talvez. Nove anos e tanta maturidade. Era uma criança especial, como
seu pai dizia.
Teria eu realmente o direito de enganá-lo, embora que
por causa de Clara? Por que não estava apaixonada por alguém que realmente
pudesse amar como Júlia Serrado? Percebi então que o que eu estava vivendo não
era um sonho, mas um drama criado por mim mesma. Não poderia culpar ninguém,
nem Deus, nem Donato Pessoa, nem a situação pela qual estava passando. Não era
justo e, eu sabia que tinha uma forte tendência a querer culpar o mundo por
meus problemas, assim como a grande maioria das pessoas. Quando o fazemos,
parece tornar-se mais fácil a superação da dor.
Passara dias evitando falar com Luísa, que me ligava
insistentemente. Sabia que queria obter notícias, se inteirar de como estava
nosso plano. Eu era muito transparente e, esperto como esse pessoal deve ser,
logo sacaria de meus sentimentos, rapidamente constataria a minha paixão, que o
tiro saíra pela culatra. Como de fato não foi muito difícil a percepção de
Donato Pessoa em nosso primeiro encontro, depois de tudo aquilo que estava
vivendo com Pedro Lucena. Como eu previa, parecia ter visto em meus olhos que
havia sido traída por meu coração. Contudo sua reação fora diferente do que
esperava.
“Ótimo que estejam vivendo isto, assim fica tudo mais
fácil, será mais rápido do que eu pensava”.
O que me surpreendera fora a sua certeza de que eu
jamais desistiria da parceria. Ele apostara alto e não contava com uma posição
negativa de minha parte. E deixou bem claro que se eu estivesse pensando em
algum momento de sair fora, nunca mais eu viria minha filha. Novamente tive a
impressão de que sabia onde Clara estava, com quem estava, pois parecia ter
poder sobre aquela situação, da forma que falava. Mas eu não tive coragem de
insinuar aquilo, sabia que era um homem perigoso, pelo pouco que havíamos convivido
já tinha dado para perceber. Não era o tipo do homem que dava ponto sem nó.
Então me fizera outra exigência.
A RTN estava completando dez anos de existência. Então o
dono da emissora, propusera um desafio a toda a direção da empresa. Que todos
elaborassem uma proposta de programação que comemorasse este aniversário. A
proposta vencedora daria a seu idealizador o cargo de vice-presidente, ocupado
provisoriamente por Pedro Lucena. Ele mesmo já havia me falado, e que estava
preparando a proposta, por ter um forte motivo, que o prendia no Brasil.
Desconfiava de que a morte do pai fora um atentado, pois o mesmo já havia
compartilhado com um amigo que vinha recebendo ameaças. Pedro ficara sabendo
por este amigo, Adriano, das desconfianças do velho Alberto Lucena, antes de
sua morte.
O receio de Donato Pessoa sobre o tal dossiê era real,
pelo que eu ficara sabendo, de fato existia, mas diferente do que meus
parceiros naquela loucura pensavam, Pedro não estava com o dossiê, embora
também soubesse de sua existência e quisesse encontrá-lo. Ele não chegara a me
falar o nome do deputado, no entanto, pude perceber de que era dele que
desconfiava. Parecia que Alberto não havia revelado a Adriano o nome do
protagonista do dossiê, mas se mostrara decepcionado, fazendo insinuações de
que se tratava de uma pessoa que havia ajudado a crescer.
MARINA PESSOA
Capítulo 21
Não sei se por providência do destino ou pelas mãos de alguém, o fato é
que, para o bem de meu marido, o velho Alberto morrera antes de revelar o que
descobrira. E aquilo me amedrontava. Temia que o envolvimento de meu marido na
morte de seu amigo, não fosse maior do que todos conheciam. Cheguei a tremer ao
ser procurada por Pedro, logo que voltara ao Brasil, para que eu lhe dissesse o
que eu sabia sobre a morte de seu pai. Na verdade eu sabia tanto quanto as
outras pessoas, mas agi como uma louca, como se soubesse de alguma coisa que
não lhe havia sido revelada. Fiquei extremamente nervosa, trocando as palavras,
sem conseguir articular um só pensamento. O que me fazia agir daquela forma era
o medo de que Donato tivesse alguma coisa a ver com a morte de Alberto
realmente e que meu cunhado descobrisse. Senti-me depois como uma completa
idiota e se ele não pensava nada desse tipo, com aquela minha atitude passaria
a pensar. Nem coragem de comentar aquele encontro com meu marido eu tive, se
não teria que lhe explicar o porque de meu nervosismo. Eu não sabia qual seria
sua reação, nem estava disposta a descobrir.
Era melhor para mim, em todos os sentidos permanecer sem saber de nada.
Por isso via e ouvia muita coisa, mas acabava não percebendo o que era óbvio,
como o caso de meu marido com sua secretária dentro de minha própria casa.
Maria Eugênia, inclusive, havia chegado a fazer algumas insinuações, numa festa
em sua casa, a qual nós havíamos ido.
- Luísa é realmente uma grande profissional, não acha, Marina?
Fazia aquela pergunta olhando para os dois conversando num canto da sala,
em meio aos outros convidados da festa. Estava com um olhar insinuante, com um
sorriso irônico.
- Realmente, Luísa é muito competente.
- Parceiros profissionais desde a época de nosso casamento. De fato, são
bons parceiros.
Eu sentia que queria me dizer algo por trás daquele comentário. Jamais
teria coragem de perguntar o que verdadeiramente queria dizer. Sabia que Maria
Eugênia era uma mulher invejosa e nunca suportara a paixão de Donato por mim,
embora já fossem separados há três anos antes de nos casarmos.
- Se eu fosse você, procurava se inteirar mais da vida de seu marido,
querida.
Como eu tive ódio daquele comentário. Senti vontade de fazê-la engolir o
que dissera. Mas apenas sorri, procurando mostrar superioridade, embora não
conseguisse. Ela sempre me tratara como uma garotinha burra, a qual não tinha
nada mais para oferecer a ele além de sexo e um corpo bonito e que breve
enjoaria de mim. O que me deixava feliz era lembrar que ela tivera que me
aturar já por quatro anos e quanto mais esperava, torcendo pelo fim de nosso
casamento, mais meu marido parecia gostar de mim, fortalecendo ainda mais nossa
união.
Todavia, as insinuações de Maria Eugênia me valeram noites de sono, até
chegar a abordá-lo, contando-lhe o que ela me dissera. Achei que explodiria, no
entanto, riu, debochando de minha indagação.
- Como pôde cair no veneno de Maria Eugênia, minha querida, como pôde?
Olhava para mim como se olha para uma criança inocente, quando pensa algo
absurdo e tolo.
- Marina... ela nunca suportou o nosso casamento. Olhe para você, linda,
uma menina, enquanto ela, uma velha, sozinha, que paga homens para dormirem com
ela. Ora, Marina, minha querida, não fique pensando nessas tolices. Luísa,
definitivamente, não faz o meu tipo. – Ria, balançando a cabeça, desdenhando
totalmente de minha pergunta.
Senti-me uma idiota, de fato, uma criança. Não sei se realmente
acreditava no que me dizia ou queria acreditar. Talvez fosse mais cômodo
engolir as desculpas e esquecer aquela história. Contudo, esquecer não dava, afinal
Luísa estava aos meus olhos o tempo todo, sua relação de cumplicidade com meu
marido, uma cumplicidade que eu invejava e tanto desejava ter. Às vezes, me
flagrava olhando para ela, sem que percebesse, na expectativa que percebesse
algo, descobrisse alguma coisa que tirasse aquelas desconfianças de minha
cabeça.
O que mais me enciumava, além da relação que mantinham, era sua
inteligência, sua perspicácia, sua competência enquanto profissional, a qual
ele tanto elogiava. Luísa também era uma mulher bonita, aos trinta e seis anos,
vestia-se com muita elegância, com decotes discretos, mas que valorizavam seu
corpo. Tinha cabelos de bonito corte, até os ombros, com mechas loiras, que lhe
davam um certo charme. Determinada vez, cheguei a ouvir uma conversa dos dois
sobre os ciúmes que Maria Eugênia sentia dela. A conversa fora logo
interrompida assim que perceberam minha presença na sala.
Eu não entendia porque realmente morava conosco, e cheguei a lhe indagar
sobre aquilo certa vez. Como Donato, era escorregadia. Falou-me rapidamente de
uma amiga com quem dividia apartamento, mas que por algum motivo tiveram que se
separar, exatamente na época de meu casamento. Chegara a ouvir comentários que
fora ela o motivo maior do término do casamento de meu marido com Maria
Eugênia, há sete anos. Mas se era verdade, por que não ficaram juntos depois da
separação dos dois? Era aquilo que me punha dúvidas e me fazia acreditar em
suas histórias e explicações acerca daquele assunto.
Sentia-me muito sozinha, acabava tendo a companhia apenas de D. Deise,
nossa empregada, uma senhora de cinqüenta e cinco anos, que estava conosco
desde o início de nosso casamento. Era uma mulher distinta, de voz firme, que
chegava a parecer muitas vezes mal humorada, mas era uma boa pessoa. Eu sentia
que se preocupava de verdade comigo, procurando sempre preparar pratos que eu
gostava ou trazer-me revistas e filmes, para que passasse meu tempo.
Em alguns momentos sentia-me cansada daquela relação com Donato, ele me
protegia demais, me impedido de sair de casa sozinha, de estabelecer relação
com qualquer pessoa. Sempre que íamos a alguma festa, o que era muito raro,
gostava sempre de ir sozinho, ou na companhia de Luísa, pois dizia sempre se
tratar de eventos de negócios, ele ficava me cercando, como se me vigiasse, e
logo que eu conversasse com alguém, longe de seus olhos, ele agia de forma
ríspida, antecipando nossa volta para casa, o que me fazia evitar contato com
qualquer pessoa. Fazia, inclusive, pouco tempo que havíamos ido a uma festa na
casa de Leonardo Gondim, era aniversário do mesmo. Político, meu marido estava
sempre em várias rodas de conversas, levando-me consigo onde ia. Foi lá onde
aconteceu o meu reencontro com Vanessa. Pouco tempo depois de termos chegado,
vi quando ela entrou, acompanhada de Pedro. Já fazia muitos anos que não nos
víamos. Fiquei emocionada ali diante dela. Senti uma vontade gigantesca de lhe
abraçar, de sentir seu carinho, seu cuidado. Fora para mim, uma mãe, desde a
morte de nossos pais. Tinha um gênio forte, querendo as coisas exatamente do
seu jeito e brigando quando não acontecia o que queria, mas era uma irmã
maravilhosa, que me amava e fazia tudo por minha felicidade, menos apoiar-me em
minha decisão de me casar com Donato. Sofri naquela noite ao ser ignorada por
ela. Olhou bem para mim, como se me avaliasse e virou o rosto, disfarçando
falar com Leonardo. Passei toda a noite, procurando-lhe pela casa, com meu
olhar tristonho, cheio de esperança de voltar a ser amada pela minha querida
irmã. Esperei o momento certo e, quando fui deixada um instante por Donato,
tomei coragem e me aproximei de Vanessa, mesmo correndo o risco de ser mais uma
vez ignorada.
- Vanessa, eu queria muito falar com você.
Meu coração estava acelerado. Temia que minha tentativa fosse em vão. No entanto, percebi
em seu olhar, ao voltar-se a mim, seu amor, sua tristeza por estar tanto tempo
longe.
- Você está muito bonita, Marina!
Foi a única coisa que conseguiu me dizer inicialmente, com a voz meio
embargada. Vi seus olhos nadarem em lágrimas.
- Vanessa, estou tão feliz de poder te ver novamente.
- Você está bem? – Procurando esconder a lágrima que persistira em cair
pelo canto do olho.
- Precisando de você, minha irmã. Sinto tanto a sua falta!
As lágrimas já me escorriam pelo rosto. Senti uma vontade imensa de lhe
abraçar.
- Você fez a sua escolha, Marina.
- É o homem que eu amo, Vanessa. Eu não podia deixar de viver esse amor.
- Preferiu nos abandonar, a mim, ao Pedro, que sempre te teve como uma
filha, e ao Felipe, que precisou tanto de você.
- Como ele está? – Ri ao lembrar de seu rostinho. – Ele ainda se lembra
de mim, chama pelo meu nome?
- Não, claro que não!
Vanessa foi seca, me respondendo aquela pergunta, como se não quisesse
que eu pensasse na possibilidade de alguma aproximação com ele. Nossa conversa
fora finalmente interrompida por meu marido.
- Com licença. Vamos, querida, temos que ir.
Já estava com seu sorriso forçado no rosto, de quando está diante de uma
situação não desejada, contendo-se notoriamente em sua raiva. Não deu uma
palavra dentro do carro durante o percurso das Dunas, onde ficava a casa de
Leonardo e a Beira-Mar, onde ficava nosso apartamento. Estava com medo do que
ele estaria sentindo, mesmo que eu não soubesse exatamente o quê. Mas poderia
imaginar. Ele odiava Vanessa por tê-lo rejeitado, quando nos conhecemos. Como
se a atitude negativa de minha irmã a seu respeito o lembrasse de suas origens,
que tanto queria esquecer. Quando entramos em casa, a única coisa que me disse,
antes de se trancar no escritório, foi que eu estava proibida de encontrar
Vanessa, por ela desejar o fim de nossa união.
Estava casada com o homem que eu amava, no entanto, longe de minha única
irmã, de meu sobrinho querido, da família que me acolhera durante anos,
dando-me segurança e amor. E o que eu poderia fazer? Jamais poderia ir contra
aquela proibição, não sabia o que ele seria capaz, se ousasse lhe desobedecer.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
22
Pedro conhecera Donato Pessoa no primeiro semestre da
faculdade de administração, dezoito anos antes. Os dois alimentaram uma forte
amizade e em consideração ao filho, Alberto Lucena chamou o rapaz para
trabalhar com ele, dando-lhe todas as oportunidades de crescimento,
apresentando-lhe um mundo que não conhecia nem fazia parte. Pedro o considerava
como um irmão. Mas acabaram se afastando, por Donato Pessoa ter se casado com a
irmã mais nova de Vanessa, mesmo contra a sua vontade. Pedro perdera o contato
com o amigo, em consideração à esposa, que o odiava por envolver sua irmã
adolescente num romance.
No entanto, Donato Pessoa não era o que pensavam, e
Pedro estava quase certo daquilo, embora não tivesse como provar. Mas pude
perceber que estava obstinado a descobrir a verdade sobre a morte do pai e,
principalmente, descobrir onde estava o tal dossiê, para dar continuidade ao
trabalho que o pai começara e por aquele motivo morrera.
Depois de saber daquilo tive ainda mais medo daquele
homem. Estava completamente arrependida de ter aceitado sua proposta e também
desconfiada de que tinha a ver com o sumiço de minha filha. Era o jeito de
falar sobre Clara, que me levava a pensar aquilo. Não suportara muito tempo e
cheguei a afirmar o que pensava ao deputado e sua secretária. O que me deixou
ainda mais desconfiada, vendo como os dois se entreolharam no momento em que
gritei aquilo. Era como se estivessem surpresos pela minha conclusão.
Donato Pessoa exigiu que eu roubasse a proposta de
programação de Pedro, para que pudesse ajudá-lo a conseguir o que tanto queria,
o cargo de vice-presidente. Relutei, resisti, mas fora em vão. Ele finalmente me
confirmara que sabia onde estava minha filha e que nunca mais a viria se não
fizesse o que ele mandara. Eu não tinha outra alternativa. Pensava em contar
tudo a Pedro, mas ficava imaginando o que poderia acontecer a minha filha, se
não cedesse àquela chantagem. Verdadeiramente, não sabia se estava realmente falando
sério ou se era um blefe. Achava estranho os olhares entre o deputado e sua
comparsa. Quando falavam sobre aquele assunto, lançavam um olhar ansioso sobre
o outro, como se estivesse na expectativa de minha reação, para saber se eu
cairia ou não em sua armadilha. Eu só não sabia que armadilha era aquela.
Aos poucos ia percebendo que os dois já sabiam muito de
mim antes mesmo de se apresentarem e me proporem o pacto. Mas o que eles
sabiam? Fiquei me perguntando durante um bom tempo como poderia me parecer
tanto com outra pessoa, como se fôssemos irmãs gêmeas, de tão parecidas. Havia
tomado um grande susto quando vi as fotos que Pedro guardava de sua amada.
Mirela e eu éramos realmente muito parecidas, embora, supostamente, seria mais
velha que eu, se estivesse viva, estaria com trinta e três anos. A única
diferença perceptiva entre a gente, além do sinal em meu rosto, do lado
direito, que ela não tinha, era o corte e a cor de nosso cabelo. Mirela tinha o
cabelo negro ondulado, na altura do ombro e eu ruivo e liso, um pouco mais
longo. Parecia também ter sido alta, como eu. Pelo que eu sabia, o meu corpo
era também como o dela, magra e de seios pequenos. As fotos mostravam que seus
olhos tinham o mesmo desenho amendoado dos meus, bem como a boca carnuda. Definitivamente,
não entendia como éramos tão parecidas. Mas de uma coisa eu tinha certeza, o
deputado Donato Pessoa e sua secretária sabiam porquê. E até cheguei a indagar,
certa vez, num de nossos inúmeros encontros. Obviamente que não obtive
resposta, pelo menos a que eu queria. Mas eles sabiam e, mais cedo ou mais
tarde, eu descobriria. Talvez fosse também um trunfo contra mim, para me terem
nas mãos, como no caso de Clara.
Senti-me obrigada por minha própria covardia a fazer o
que ele estava me exigindo. Exatamente no dia em que Pedro me fizera uma
surpresa, lavando-me para conhecer seu novo apartamento, o qual seria o cenário
de nossos encontros, de nosso amor, tivera a oportunidade de ficar sozinha na
sala, diante de seu laptop. Imediatamente, abri meu e-mail, no próprio
aparelho, anexando os arquivos que guardavam as idéias de Pedro para a
programação da RTN e os enviei para meu próprio endereço eletrônico, não tivera
coragem de mandar ao deputado, como ele havia me orientado, como se quisesse
ganhar tempo. Em seguida, tirei o pen-drive, substituindo-o, momentaneamente,
pelo que havia recebido de Luísa, provavelmente um vírus. Como que uma
providência Divina, exatamente no momento em que devolvia o pen-drive de Pedro
à entrada de USB do aparelho fui surpreendida por ele. Acho que foi um dos
maiores sustos de minha vida. Com certeza, estaria tudo descoberto. Por um
segundo senti um alívio, como se tirasse um peso de minhas costas. Eu não
poderia continuar enganando o homem por quem estava apaixonada. Mas logo aquela
sensação de que estava tudo resolvido, foi substituída por uma tristeza
profunda. Tivera muitas oportunidades de contar-lhe toda a verdade e não o
fizera, agora ele descobrira da forma mais estúpida. Eu era uma estúpida! Acho
que me chamei de estúpida um milhão de vezes numa fração de segundos.
“O que você está fazendo aí, meu amor?”
Aquela pergunta me tirara do chão por alguns segundos,
que pareceram uma eternidade. Não entendia o que estava fazendo da minha vida,
como tinha tido coragem de enganar, mentir, fazer-me passar por outra pessoa,
brincar com os sentimentos da pessoa mais sincera que eu havia conhecido. E
tudo acabaria da forma mais idiota, num flagra de minha atitude vil.
Definitivamente eu não tinha tido sorte, ou era a pessoa mais sortuda do mundo.
Estaria aquela situação absurda resolvida sem eu precisar de dar uma palavra,
pelo menos ter que tomar iniciativa de contar.
Todavia, lembrei também dos momentos que tivéramos
juntos em nossa primeira sessão de Biodança, no dia anterior àquele. Pedro até
me apresentara seu grande amigo Adriano Cordeiro. Era um homem de sessenta e
cinco anos, grisalho, bonito, carismático e extremamente jovial, parecia que
todos ali o adoravam. Fazia parte também do grupo, mas tinha faltado na sessão
anterior, a qual havia participado pela primeira vez, por motivos de trabalho.
Era como se quisesse muito me conhecer, por já ter ouvido o amigo falar tanto
de mim.
Pedro e eu havíamos passado toda a verbalização olhando
um para o outro, sem conseguir nos concentrar no que as pessoas falavam.
Parecíamos estar longe dali, num mundo só nosso, envolvidos numa energia de
muito afeto e amor, de muita vontade de estar juntos. Dava até para perceber
que o facilitador já tinha se dado conta do que estava acontecendo e parecia
cúmplice, pois sabia da história de Pedro e Mirela. Chegamos a fazer várias
vivências juntos, quando o facilitador nos convidava a procurar um par, era
como se nos procurássemos pelo salão e até ficava sempre por perto, para
facilitar o encontro. Sentia vergonha do grupo, achava que com certeza estavam
todos percebendo, mas não conseguia me controlar, era mais forte que eu. Numa
das vivências, em que tínhamos que caminhar de olhos fechados pelo salão, numa
atitude de entrega aos caminhos da vida, tremi ao passar por ele e sentir o seu
cheiro. Era como se vivêssemos a magia de um encontro de almas, ali, e não
tivesse mais ninguém, além de nós dois. Ao passarmos um pelo outro, encostamos
apenas as mãos e sentimos o calor, o nervosismo que nos fazia tremer, paramos
por alguns instantes e, nos abraçamos intensamente, como se confirmássemos a
presença um do outro. A música que nos conduzia naquele exercício tinha uma
característica transcendente, mas também afetiva. Sentíamo-nos extremamente
convidados a viver aquela experiência do encontro. Éramos todo amor.
Tudo poderia então acabar!
CELINA GONDIM
Capítulo 23
Minha irmã tinha quarenta e dois anos e era uma mulher muito bonita,
extremamente elegante, de porte majestoso, educada, contudo, nunca conseguira
manter uma relação verdadeira de amor com alguém, desde seus primeiros
namorados. Ainda cursando o último ano da faculdade de administração, aos vinte
e um anos, casara-se com Willames Macena, dono da WM, uma das maiores agências
de publicidade do país, no Rio de Janeiro e sócio de papai em sua agência aqui em Fortaleza. Um homem
quinze anos mais velho, que não conseguira retribuir sua intensa paixão e se
privar da vida de playboy, cheia de mulheres, que o tornara famoso. Um
casamento que durara apenas dois anos, apesar dos grandes esforços de Maria
Eugênia para mantê-lo, com as duas gravidez, de Maria Antônia, motivo maior da
oficialização da união, e João Henrique. Nem mesmo cheguei a conviver com
Willames, de quem sempre ouvi falar maravilhas como pessoa, além de sua beleza
e charme irresistível. Ele acabara voltando ao Rio, passando a encontrar com as
crianças apenas nos períodos de férias.
Acredito que Maria Eugênia nunca o tenha perdoado, fazendo os filhos
acreditarem em sua irresponsabilidade e que os havia abandonado. Talvez tenha
sido exatamente por esse motivo que ela aceitara se casar com Donato Pessoa,
quatro anos depois de sua separação, apenas para provocar os ciúmes do
ex-marido e chamar a atenção de papai, ou melhor, roubá-la exclusivamente para
si. Ela bem sabia das desconfianças de todos sobre as verdadeiras intenções
daquele homem, de seu desejo de subir na vida, mesmo assim insistiu naquele
despautério. Verdadeiramente tenho minhas dúvidas se Donato não fora realmente
comprado por minha irmã, para criar uma suposta situação problema em sua vida e
ter todos os cuidados voltados para si naquele instante, o que se manteve por
oito anos, para a surpresa de todos. Tratava-se, no entanto, de uma relação
fria, sem amor, recheada de relações extraconjugais, tanto de uma parte, quanto
da outra. Era como se fosse uma aliança entre os dois e tudo faziam para
esconder a real situação de seu casamento. Eu mesma cheguei a flagrá-la aos
beijos com um funcionário da agência, na sala de ginástica, numa das festas
promovidas em nossa casa.
Minha irmã era marcada por sua amargura e frieza, parecia nunca sorrir,
pelo menos que eu me lembre, jamais a vi sorrindo verdadeiramente, a não ser
por ironia ou mesmo para celebrar alguma armação contra mim. Acho que no quesito
humor, ela realmente combinava com Donato. Para falar a verdade, pareciam ter
sido feitos um para o outro, embora não tivesse dado certo o casamento. No
entanto, permanecia a parceria de trabalho. Desde a WM, da qual papai era
sócio, até à rede de televisão, mantinham um pacto estabelecido no início de
seu casamento, quando ela descobrira algumas armações do marido dentro da
empresa, para ganhar mais dinheiro ilegalmente, sem que papai soubesse.
Tornaram-se então cúmplices, ou sócios nas negociatas.
Maria Eugênia, que também era movida pela ambição e parecia querer cada
vez mais poder, sonhava, na verdade, em assumir a presidência da RTN – Rede de
Televisão Nacional, enquanto Donato, a vice-presidência. A ascensão dos dois
dentro da empresa fazia parte do tal pacto: enquanto ela assumiria o lugar de
papai, ele ficaria com o cargo que pertencia desde a fundação da emissora a
Alberto Lucena e naquele momento estava com Pedro, seu filho. Embora essa
relação fosse conduzida pelo pacto de ascensão profissional, nunca
experimentaram verdadeiramente a amizade. Não perdiam a oportunidade de
criticarem um ao outro, bem como de se agredirem mutuamente. Na verdade, ela
não o perdoava por ter se entregado à paixão pela secretária Luísa, motivo
maior do final do casamento, quando Donato decidira pôr um ponto final naquela
relação absurda.
A vida amorosa de Maria Eugênia Gondim se fazia tabu na mansão das Dunas.
Desde o final do segundo matrimônio, havia sete anos, encarnara o papel de
mulher solitária, voltada exclusivamente ao trabalho e ao “cuidado com a
família”. Ninguém podia imaginar, contudo, as escolhas por ela realizadas a fim
de suprir suas carências e desejos mais secretos, cujos resultados levaram-na a
experimentar uma vida dupla, transformando-a, em algumas noites, de poderosa
executiva da RTN a ninfomaníaca de momentos ardentes, deliciando-se nos braços
de três ou quatro garotos de programa, simultaneamente. Montara um luxuoso
apartamento, na Beira Mar, fazendo-o cenário de suas intermináveis noites de
prazer, longe do conhecimento da família e de todos.
Naquele mesmo período de separação, Maria Eugênia fora apresentada,
coincidentemente, a Nacélio, irmão de Lorena, sua secretária, que acabava de
chegar a Fortaleza e planejava montar um bar, na Praia de Iracema, o qual
serviria de base para seus negócios. O mesmo era cafetão e agenciava garotos de
programa. A idéia do bar “Mukifo”, negócio no qual minha irmã entrara como
sócia, era de ser um centro de prostituição masculina, tendo como público,
homens e mulheres.
A misteriosa dona do Mukifo, transformara-se num mito para os diversos
rapazes que prestavam serviços ao espaço. De posse de um book, com fotografias
de todos os garotos, uma ou duas vezes por semana, ela entrava em contato com
Nacélio a fim de requisitar a presença de alguns escolhidos para suas noitadas,
em seu apartamento secreto, na Beira-Mar. O que se transformava num frisson
entre os jovens. “Quem seriam os felizardos da noite?” E isso, não apenas por
conta dos belos cachês oferecidos pela dama misteriosa, mas aquilo passara a
ser encarado pelos garotos de programa como prova de sua virilidade, de seu
potencial, poder de sedução. Havia uma disputa acirrada dentro do bar, a qual
era alimentada intencionalmente por sua sócia majoritária, em cumplicidade com
Nacélio. O que parecia fortalecer a minha irmã em sua auto-estima.
Tanto os garotos do Mukifo, quanto Nacélio só não esperavam que um dia a
poderosa mulher, que nunca pisara os pés no bar, fosse eleger alguém como
preferido. O que acontecera naqueles últimos meses de 2004, depois de conhecer
o “moreno alto de olhos azuis”, como o chamava.
Sempre que citava a pequena lista de três ou quatro nomes para suas
noites, via telefone, a seu sócio, requisitava com ênfase a presença de Guel
Serrado, fazendo-o alvo de inveja e muitos comentários dentre os demais. Este,
por sua vez, agia com soberba, vangloriando-se por seus feitos e sucesso com
todas as mulheres. O encanto de minha irmã pelo rapaz, todavia, não se dava
apenas por conta de sua beleza sedutora sobressaltada em seus um metro e
noventa de altura, de seu olhar cafajeste ou do corpo atlético que ele
ostentava, mas devido à sua performance na cama. Embora jamais admitisse, ela
sabia dele como um excelente profissional do sexo, assim como o ele próprio,
presunçosamente, considerava-se.
Foi exatamente Guel Serrado, quem conseguiu com Maria Eugênia, realizar o
fetiche do patrão. Nacélio adorava colecionar vídeos das transas dos garotos
com suas clientes. Tachando-os de incompetentes por nunca terem conseguido
gravar os momentos com a dama misteriosa, narrados por todos como
enlouquecedores. Ela fazia de tudo na cama, com quantos parceiros tivessem, à
noite inteira. E, finalmente, ele tinha também em sua coleção um vídeo da sócia
ninfomaníaca, protagonizando cenas de sexo explícito com três garotos além de
Guel.
A dona do Mukifo fora, no entanto, surpreendida, no início de 2005, pela
saída de seu principal garoto ou quase amante, do bar. Guel Serrado alegara
motivos pessoais para Nacélio, deixando o trabalho. O rapaz nem imaginara a
fúria despertada naquela mulher. Em sete anos, ela nunca havia escolhido
ninguém, e de repente, aquele nome era citado duas ou três vezes por semana
dentre os demais, os quais se revezavam. Para ela, era inadmissível aquela demissão,
sem nenhuma explicação mais esclarecedora.
Desejava encontrá-lo e descobrir então por quê. Certamente o faria.
CELINA GONDIM
Capítulo 24
Maria Eugênia sabia como intimidar a todos com seu olhar de
superioridade, ou pelo menos tentava. Era deste modo que agia comigo, em todos
os momentos em que nos encontrávamos. Às vezes, eu gostava de tomar o café da
manhã na piscina, respirando o ar puro do jardim de nossa casa, a brisa das
dunas de Fortaleza. Ela não perdia a oportunidade de se aproximar em algum
instante em que eu era deixada sozinha por Dulce.
- Ora vejam só quem está tomando sol, hoje logo cedo, se não é minha
irmãzinha caçula...
Aproximava-se com um sorriso sarcástico tomando-lhe a face.
- Onde está sua empregada?
- Não é de sua conta.
Tentava não lhe dar ouvidos, nem mesmo responder-lhe as provocações. Mas
achava injusto suas atitudes, suas agressões.
- Não devia estar trabalhando?
Perguntei como se quisesse distraí-la.
- Tem razão. Mas tive que resolver uns assuntos importantes com João
Henrique. – Já estava se sentando na cadeira ao lado – Afinal tenho uma família
também, não é? Não sou apenas uma executiva. Como sabe, minha querida irmã,
tenho muitas preocupações, muitas “ocupações”. Claro que não sabe mais o que é
isso, ter ocupações. Deve ser realmente horrível sua situação. Além de perder o
marido, não poder mais fazer nada, nem mesmo se coçar.
Podia perceber que Maria Eugênia já estava rindo, feliz em me fazer
sofrer, em destilar aquelas afirmativas venenosas. Queria ter forças e não me
deixar cair em seu jogo, o mesmo desde que nos conhecemos. Sua intenção sempre
fora de me humilhar, de acabar com qualquer possibilidade que me fizesse feliz.
- Por que não me deixa em paz, Maria Eugênia?
- Como assim em paz? Estou apenas querendo conversar.
- Sabe do que estou falando.
- De que está falando? Fale, tente falar, vamos, querida, tente, que
tentarei te entender, mesmo você com essa voz enrolada.
Maria Eugênia sabia como me atingir. Minha dificuldade de me expressar,
de me fazer entender, às vezes, impossibilitava minhas interações e aquilo me
comprimia a alma. Não aceitava minha condição e ela percebia bem aquele
incômodo.
- Engraçado como é a vida, Celina, passei minha vida inteira tentando
arranjar uma forma de tirar você do meu caminho. – estava rindo com seu
comentário – E não precisei fazer absolutamente nada, o próprio destino deu
conta dessa situação, de tal forma que hoje tenho pena de você, minha irmã,
muita pena.
- Dispenso sua pena.
- Não importa. Se fosse uma pessoa normal, faria algo para me impedir de
sentir pena ou expressar meu sentimento, mas desse jeito. – com um gesto
desdenhando diante de meu estado físico.
Por um instante entendi que minha irmã estava coberta de razão. O destino
do qual falava era Deus e Ele tinha tirado de mim o direito de me defender.
Nada podia fazer ou dizer, restava-me somente aceitar e sentir, sentir pena de
mim mesma. Só não queria que fosse ali, diante daquela mulher que tanto me
odiava e torcia pela minha infelicidade. Todavia, nem nisso Deus estava do meu
lado. As lágrimas rolavam-me o rosto e eu sentia ainda mais raiva de mim mesma,
por não conseguir evitar de expor meu sofrimento por sua vitória.
Já não conseguia mais dizer nada. Perdia totalmente o domínio das
palavras, que davam lugar ao choro embargado, dolorido, que relutava em sair.
- Está chorando? Não chore, querida. Se for se lamentar por ser inválida,
passará o resto de sua vida num vale de lágrimas.
“O resto de minha vida” – Pensei então enquanto tempo seria o resto de
minha vida, em quanto tempo teria de agüentar suas ironias, suas agressões, seu
ódio e desprezo fazendo de minha vida um inferno. Já não bastava eu estar presa
numa cadeira de rodas, sem poder mover meus braços, minhas pernas? Quanto tempo
eu ainda teria de suportar?
Eu não conseguia deixar de pensar, naqueles momentos, na possibilidade
de, de alguma forma, tirar minha vida. E aí sim, estaria tudo acabado, o
sofrimento, a dor, minha solidão, a carência. A presença doentia de Maria
Eugênia em minha vida não seria mais um peso. E eu, não seria mais um peso para
ninguém, nem muito menos para papai.
Pude perceber naquele instante quando Leonardo Gondim se aproximava.
Então tratei de engolir o choro e procurar disfarçar. Queria evitar conflitos,
principalmente por ele estar ainda se recuperando de uma estafa.
CELINA GONDIM
Capítulo 25
Papai era incansável, parecia
respirar trabalho. Talvez como meio de preencher sua solidão. Apesar de ser
ainda um homem jovem, estava quase sempre sozinho, não se permitia viver muitas
histórias de amor e, quando acontecia, acabava cedendo às pressões de Maria
Eugênia e pondo um fim à relação. Ela exercia um certo poder, controle sobre
ele, que o isolava do resto do mundo, como se lhe quisesse somente para si.
Eu não conseguia compreender em que minha irmã se recompensava com a
solidão de papai, sendo que as desculpas eram sempre as mesmas, que faria de
tudo para afastar de sua vida, interesseiras de olho em nosso patrimônio.
Contudo, o que mais me indignava era como um homem tão maduro se deixava
envolver pelos ciúmes infantis de sua filha ao ponto de abnegar-se totalmente
de viver um grande amor.
Papai era um homem bonito. Aos sessenta e cinco anos, alto e elegante,
sua calvície e barba grisalha lhe davam um certo charme, com um ar de aristocracia.
Lembro-me bem o quanto mamãe o elogiava, ressaltando não apenas sua beleza, mas
também sua gentileza e educação. Falava-me sempre do quanto era cavalheiro e
cuidadoso, o que eu podia perceber claramente em nossos encontros, antes da
morte de mamãe, que mesmo sendo rápidos, deixavam-me extremamente feliz com sua
presença calorosa, e mais tarde, quando passamos a morar juntos em sua casa,
passei a admirá-lo ainda mais.
Acreditava que papai se enterrava no trabalho como uma forma de fugir de
si mesmo e da possibilidade de viver uma história verdadeira com alguém. Por
isso passava o dia inteiro e parte da noite e, muitas vezes, entrava pela
madrugada, primeiro na agência de publicidade, depois na RTN. Transformava sua
vida profissional inteiramente em pessoal. Fora do trabalho, uma de suas poucas
diversões era sua coleção de espadas. Para ele, um símbolo do conhecimento,
como alguém um dia lhe dissera.
Ao lado do quarto de papai havia uma sala, com prateleiras e mesas com
tampos de vidro ostentando a coleção de espadas, de todos os tamanhos, cores e
modelos. Para Leonardo Gondim, uma grande paixão, fazendo-o acumular centenas,
nos últimos trinta anos. Ali estavam peças vindas de diversas partes do mundo,
de diferentes valores, que já ultrapassava milhões de dólares, segundo ele
mesmo, orgulhando-se de seu feito. Papai adorava contar a história de cada
peça, de onde havia vindo, seu valor por conta dos detalhes, e muitas vezes, a
dificuldade em arrematá-las nos disputados leilões. O que para ele era motivo
de orgulho e ainda mais valorização pelo objeto. Passava horas naquela sala
apreciando suas aquisições, chegando a esquecer do tempo. E não se cansava em
contar as mesmas histórias sobre cada espada inúmeras vezes. Querendo alegrá-lo
com um presente, bastava oferecer-lhe uma espada. Não teria erro.
“São peças belíssimas, imponentes. Lembram-me força, coragem, poder.”
Dizia ele entusiasmado.
Papai era completamente apaixonado por suas espadas. Naquela sala,
passaria horas, limpando-as pessoalmente, como se limpasse a relíquias. A cada
nova peça que chegava, mais uma alegria. Ali, esquecia do mundo, até dos
negócios.
Fuga ou não em sua dedicação ao trabalho, Leonardo Gondim era um grande
empresário. Quase trinta anos antes, fundara em sociedade com Willames Macena,
a agência de publicidade que viera a se tornar anos mais tarde a maior do
Nordeste, filial da WM, agência de Willames, no Rio, uma das maiores do país.
Nesta agência, trabalhara por dezoito anos, até a venda de sua parte para o
genro. O grande sonho de papai na verdade sempre fora abrir um canal de
televisão. E depois que conseguira a concessão com o Ministério das
Comunicações, enfrentara uma luta de poder contra Maria Eugênia, que não
aceitava sua decisão de se desfazer de sua parte na agência. O apoio de minha
irmã à empreitada de papai só veio após ela considerar aquele rompimento
profissional com Willames Macena uma vingança pelo fim de seu casamento com
ele.
Fundara então a Rede de Televisão Nacional – RTN. Na época, um pequeno
canal transmitindo programações locais de Fortaleza a outros seis estados do
Nordeste, através de emissoras afiliadas que foram também inauguradas no mesmo
período. Investira tudo o que tinha naquela empreitada, mesmo contra a opinião
de muitos profissionais que com ele trabalhavam naquela época, já que achavam
impossível a realização de seu grande sonho – transformar aquele pequeno canal
numa das maiores redes de televisão do país – e tudo por estar fora do eixo
Rio-São Paulo. Acreditava-se na época, que a RTN jamais conseguiria a audiência
nacional com uma programação local, e que seria inviável se construir uma grade
de programação que agradasse o público nacional, daqui de Fortaleza, longe dos
dois grandes centros de produções televisivas do Brasil.
Neste sentido, papai foi um visionário, reconhecido pelos grandes
empresários do país, como um homem inovador, sinônimo de criatividade, coragem,
confiança e desejo de projetar a cidade de Fortaleza como um grande centro do
país, em condições de servir seus moradores e todo o povo brasileiro de uma
vida digna e propostas de crescimento e desenvolvimento.
Ao longo dos primeiros anos de existência, a RTN foi constituindo
afiliadas em diversos estados brasileiros e, aos poucos, papai foi contratando
profissionais de renome nacional para as áreas de produções da emissora, dando
uma tônica nacional à programação até então regional.
O primeiro grande projeto da RTN foi a contratação de uma grande equipe
jornalística, de nomes conhecidos de telejornais nas áreas de apresentação, reportagem
e edição, lançando em seu quarto ano de vida o Revista Notícia – A Máquina da Informação – Um telejornal
diferente, ágil, com três apresentadores comandando o noticiário diretamente de
São Paulo, Brasília e Fortaleza, simultaneamente, saindo dos tradicionais
balcões dos demais telejornais das outras emissoras, para uma apresentação em movimento. Esta
nova empreitada tinha como característica principal uma redação clara que fosse
acessível a qualquer telespectador de qualquer classe social, além de quatro
escritórios internacionais montados em Nova Iorque , Londres, Moscou e Israel, com toda
uma equipe. E ainda trazia séries de reportagens, documentários exclusivos,
furos, denúncias e entrevistas especiais. Conseguindo durante uma hora de
duração, no horário nobre das vinte uma e trinta da noite, uma média de
quatorze pontos de audiência, chegando ao segundo lugar nacional. Fora um
grande projeto que deu certo, dando visibilidade à RTN em todo o país.
Todavia, era apenas o princípio do sonho de Leonardo Gondim. No ano
seguinte, concomitantemente com a jornada de crescimento da emissora
fortalezense em constituição de novas afiliadas por todo o país, ele deu início
a mais um grande e ousado projeto, contratando diretores, autores e grandes
nomes da teledramaturgia, para constituir o seu núcleo de novelas. Investiu dez
milhões de reais na produção de sua primeira novela que tinha como título Tiara. Ambientada na capital cearense, a
história conseguira média de apenas três pontos de audiência, no horário das
dezenove e quarenta e cinco. As cenas de estúdios eram gravadas no Rio de
Janeiro e as externas em Fortaleza.
A segunda novela, Força de Vontade,
seis meses depois, com quatro pontos de audiência a mais que sua antecessora,
exibida às vinte horas, veio confirmar a intenção de Papai, de levar a
realidade e cenários cearenses a todo o Brasil. A idéia era que todas as
novelas da RTN fossem ambientadas no Ceará, procurando mostrar ao país as mais
diversas visões acerca de nosso Estado.
Foi, contudo, a terceira novela que consolidou o sucesso da RTN com seu
núcleo de teledramaturgia, no horário alternativo das vinte e duas e trinta,
logo após o Revista Notícia – A Máquina
da Informação. Sertão, conseguira
média de quinze pontos de audiência, alcançando o segundo lugar nacional.
Assim, chegava a ameaçar, as grandes emissoras do país. A partir de então,
todas os folhetins do canal fortalezense mantinham esta média e até
ultrapassavam, muitas vezes, chegando a atingir vinte pontos. Incluindo, minha
novela, baseada em meu primeiro livro, sobre o mundo das drogas, pouco antes do
acidente.
Conseguindo visibilidade e respeito, papai colocara sua emissora no
patamar das grandes redes de televisão do país. Estendendo o sucesso de suas
novelas e telejornal aos demais horários, com outros programas inovadores, que
eram gravados em estúdios no Rio, São Paulo e Fortaleza. O que todos achavam
que não passaria de um grande sonho, transformara-se, nos últimos anos, num
imenso império, fazendo de Leonardo Gondim um dos empresários mais importantes
do Estado e do Brasil.
Podíamos perceber claramente o cansaço de papai. Naquela época, fora
abatido, segundo ele, por uma forte estafa, que o tirara do trabalho por alguns
dias, para a surpresa de todos. Até então ele só havia se afastado por conta de
viagens e reuniões de negócios. No entanto, escondia de todos nós o real motivo
de seu súbito desmaio, dias antes, no café da manhã. Eu estava extremamente
desconfiada de seu estado de saúde. Há algum tempo vinha atentando às freqüentes
dores de cabeça das quais ele se queixava, o que culminou com o tal desmaio.
Mas foi ao ouvir, sem querer, um telefonema dele para seu médico, que me
despertou, de fato, a preocupação por sua saúde.
Os dias em que papai esteve em casa, se recuperando, por ordens do
médico, mesmo contra sua vontade, mexeram com toda a família. Maria Eugênia
parecia ter até ficado feliz com a ausência dele na empresa, afinal era um
ensaio do que realmente desejava. Já Maria Antônia mostrava-se extremamente
empenhada em sua recuperação e exigia dele, permanentemente, o cumprimento
rigoroso de dieta e cuidados de repouso, orientados pelo médico. Os dois tinham
uma relação de intenso afeto e cumplicidade. Papai acabava fazendo tudo o que
ela queria. Quanto a João Henrique, ficara bastante abatido com o acontecido,
era também muito apegado ao avô e não aceitava que ele tivesse sofrido nenhum
problema de saúde, como se fosse inatingível e nada pudesse lhe derrubar.
Estranhava, na verdade, vê-lo de cama, doente, o que o indignava.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
26
Tudo o que Pedro e eu vivêramos naquelas últimas semanas
não poderia acabar diante de uma situação daquelas. Eu não queria que fosse
daquele jeito. Pelo menos que eu tivesse a oportunidade de tomar iniciativa e
revelar toda a verdade. Apostei então todas as minhas fichas, dizendo-lhe que
estava ali quando ouvi uma espécie de sinal, barulho no computador e havia me
aproximado para verificar o que era.
A sorte estava lançada. Ele poderia acreditar ou não,
quando visse o que acontecera a seu trabalho. Contudo, quando percebeu que um
vírus tinha apagado todos os seus arquivos, ficou transtornado. Dava para
perceber a preocupação, a decepção dele, com a testa franzida, ali diante da
máquina, mexendo rapidamente nas teclas, na esperança de reaver alguma coisa.
“Meu Deus, o que é isso? Mirela, parece que perdi tudo!”
Estava desesperado, fazendo várias tentativas, tentando
uma função e outra, mas o vírus tinha apagado todo o disco rígido da máquina,
inclusive os arquivos do pendrive, já que estava inserido na entrada de USB.
Tive tanta pena de ver o homem por quem eu esta
apaixonada daquele jeito, desesperado, jogando o cabelo para trás com as mãos,
deixando ainda mais livre a beleza de seu rosto, no mesmo momento em que
respirava fundo, uma atitude sua sempre que se via em situações perturbadoras.
Ele precisando de ajuda e eu ali, com tudo em meu poder, poderia apenas abrir
meu e-mail e estava lá, todo o arquivo, todo o seu trabalho de meses, pois
tinha iniciado os projetos de novos programas antes ainda da tal proposta da
RTN para eleição da vice-presidência. Era um grande profissional e estava
pensando em grandes estratégias para aumentar ainda mais a audiência da
emissora e garantir a disputa com as grandes redes de TV do país, do Sudeste. Admirava
Leonardo Gondim, o dono da empresa, por seu empreendedorismo, sua iniciativa de
transformar uma rede local num grande canal de televisão, a primeira
experiência deste porte, no país, afinal, todas as grandes redes sempre foram
do Rio e São Paulo, a RTN era a exceção.
Estava me sentindo um monstro por ter tido coragem de
fazer aquilo com o homem que eu amava. Pela primeira vez, vi Raquel não me
apoiar numa decisão. Raquel tanto tinha
me aconselhado a contar tudo, antes que ele descobrisse. Tínhamos até ensaiado
certa vez, como seria o momento. Ela torcia para que eu revelasse a verdade,
achando que se eu o fizesse, Pedro me perdoaria, se era tão bom, tão
compreensivo, maduro o quanto eu falava. Ela sempre quisera o meu bem, mesmo
quando estava contra seus irmãos, naquela situação não seria diferente. Havia
me aconselhado, me dado força e coragem naquele mesmo dia, pouco antes daquele
infortúnio. Mas eu não seguira os seus conselhos, havia preferido o caminho da
mentira, do mal. Senti-a quase que decepcionada por mim, pelo que eu tinha
feito, quando lhe contei que estava com os arquivos em meu e-mail e não os
havia entregado a Pedro, permitindo o seu desespero.
Raquel sempre me falava que quando realmente amamos
alguém, jamais permitimos o seu sofrimento. Por um momento, até cheguei a
compreender o que ela fazia com Djair, seu marido. Não tenho nenhuma lembrança
de cuidado e proteção dele para com ela, mesmo assim ela sempre esteve com ele,
nos momentos em que mais precisou. Djair sumia freqüentemente por meses,
dizendo trabalhar como representante de produtos de limpeza, viajando por
vários estados, embora nunca trouxesse dinheiro para casa e ajudasse na criação
dos dois filhos Zezinho, de seis anos e Rafael, de cinco. Mesmo persistindo
naquele casamento, era uma mulher solitária, carente de cuidado. Acho que nunca
experimentara ser amada realmente. Eu senti pena de Raquel por várias vezes,
quando a via passar noites em claro esperando Djair, que havia prometido que
viria e não aparecia, ou mesmo quando sumiu com todo o dinheiro que ela
recebera de indenização quando fora demitida do hospital, dizendo que ia
investir na entrada da compra da casa própria e depois de muitas desculpas,
chegara um dia contando que fora roubado nas estradas de Minas, dentro de um
ônibus. Eu via que ela sabia da verdade, sempre soube, mas acreditava que um
dia ele melhoraria, mudaria, ou desejava profundamente que aquilo acontecesse
um dia. Djair tinha trinta e oito anos, a mesma idade da mulher, mas gostava de
se cuidar e parecia bem mais jovem, com um jeito de malandro, sempre tivera
muitos rabos-de-saia. Apostava em seu taco e se sentia o próprio Dom Juan dos
subúrbios. Eu chegava a enojar aquela figura pernóstica, que tanto enganava a
minha amiga, embora ele se desse bem com todas as pessoas. Djair era o tipo de
homem que não se indispunha com ninguém nunca, sempre teria uma carta na manga
para se livrar de situações embaraçosas e se dar bem.
Doía ver até Raquel contra mim. Contudo, sua postura não
poderia ser diferente diante daquele fato absurdo. Talvez tenha sido exatamente
sua postura que me incentivara a não entregar os arquivos ao deputado, pelo
menos não naquele momento, apesar de sua pressão, que ia se intensificando
quando ia chegando ainda mais perto da data estipulada para entrega dos
projetos de programações. Na verdade, acho que torcia para que Pedro
conseguisse reescrever suas idéias a tempo. Mas a situação, as cobranças por
parte daquele homem horrendo tornaram-se ainda mais terríveis quando eles
ficaram sabendo, através de uma secretária dentro da empresa, que o projeto de
Pedro havia sido destruído por um vírus. É claro que fizeram a ligação e logo
se certificaram que parte de seu plano fora desenvolvido, só não contavam com a
minha mudança de planos de não lhes entregar mais os tais arquivos.
No entanto, Donato Pessoa sabia exatamente como
conseguir o que queria de mim. Trouxera-me notícias do paradeiro de Clara,
dizendo que haviam descoberto o endereço da casa de praia onde o tal casal que
compraria minha filha estava em Aquiraz, além do nome e endereço do caseiro,
que trabalhara para os holandeses naquele momento. Diante daquela notícia eu
não poderia hesitar, não poderia brincar com aquele homem, havia uma grande
possibilidade de ser verdade, e se fosse, eu seria louca de não fazer algo em
prol da minha filha. Em seguida, ele fora ainda mais direto, propondo trocar
aquelas informações pelos arquivos de seu rival profissional. De fato, eu não
sabia se poderia confiar em sua palavra, mas o fato era que não tinha escolha,
ou confiava e apostava na possibilidade de saber de minha filha ou
experimentava a lealdade com o homem a quem amava, ou dizia amar, pois naquela
situação, se o que Raquel falava fosse realmente verdade, eu não o amava coisa
nenhuma, sendo responsável pelo seu prejuízo.
Uma mãe seria um monstro por tentar encontrar a sua
filhinha de um ano, embora que prejudicando uma pessoa? Achava que a resposta
para aquela indagação que ficava em minha mente permanentemente, tirando-me a
atenção no momento presente, como se tivesse uma esperança de encontrar uma
resposta negativa, era sim. “Os fins não justificam os meios!” – Dormi noites
seguidas repetindo aquela frase em minha cabeça. Achei que fosse enlouquecer.
Acabei entregando o que o deputado Donato Pessoa tanto
queria. Pude perceber o seu olhar de vitória, num gesto de cumplicidade com
Luísa, no momento em que mandei os arquivos para seu e-mail.
“Bom trabalho, Júlia. Você foi formidável.”
Tive vontade de vomitar ao ouvir aquilo. Era como se
quisesse estabelecer uma intimidade, uma cumplicidade que verdadeiramente não
existia. Eu estava sendo forçada pelas circunstâncias a fazer aquela
barbaridade. Era a minha filha que estava em jogo, não era por eles, nunca
seria por eles. Acho que as náuseas que senti não foram bem por causa do
deputado, foram de mim mesma. Mais uma vez estava demonstrando minha fraqueza,
minha falta de princípios, de caráter. Lembrei o quanto era rigorosa com as
pessoas, com o mundo, sempre exigindo uma atitude ética, correta diante de
situações em que me indignava, fosse pessoalmente ou até mesmo assistindo um
programa pela televisão, ou uma matéria/manchete em algum jornal ou revista,
estava eu ali, julgando, culpando, punindo, estipulando penas. Minha história
naquele momento era um prato cheio pra mim mesma, para que eu pudesse destilar
a minha crítica e mostrar ao mundo que eu era a senhora sabe tudo, a senhora
justa e correta. Que ironia aquela. Podia perceber naquele instante que os meus
princípios, que acreditava serem inabaláveis, não passavam de pó e tinham sido
varridos pela minha própria fraqueza. Por um momento, não sabia mais quem eu
era, o que estava fazendo.
Poucos dias depois aconteceu a apresentação dos projetos
de programação na RTN, numa reunião especial, com todos os diretores. O
trabalho de Donato Pessoa fora praticamente o mesmo projeto de Pedro Lucena, o
qual conseguira através de mim. Quando Pedro chegou em casa, naquela noite,
estava completamente atordoado, sem saber o que pensar. Havia perdido todo o
seu trabalho, de meses, por um vírus, que inexplicavelmente entrara em seu
computador, segundo ele, e depois, se deparara com quase todas as suas idéias
sendo apresentadas por seu mais forte concorrente ao cargo de vice-presidente
dentro da empresa. Sem sombra de dúvidas, era algo, no mínimo muito estranho.
Chegara a cogitar que tudo poderia não ter passado de uma estratagema do rival,
o que me deixara de cabelo em pé e me causara calafrios, só em pensar que ele
poderia ampliar as suas desconfianças a mim. No entanto, o próprio Pedro depois
desconsiderou a hipótese, achando-a absurda, absolutamente impossível, a não
ser que tivesse sido através de mágica.
Mal sabia ele que não fora por meio de mágica, mas
através da mulher que amava e confiava. Rezei muitas vezes para que Deus me
desse coragem de contar toda a verdade, que não era Mirela e sim Júlia Serrado,
e mais, que fora eu quem roubou suas idéias e havia as entregado a Donato
Pessoa. Passados alguns dias, entretanto, os diretores da RTN foram
surpreendidos com a decisão de Leonardo Gondim, o dono da emissora, declarando
Pedro Lucena o vice-presidente definitivo da empresa. Embora seu projeto de
programação estivesse inacabado e muitas de suas idéias já tivessem sido
apresentadas no projeto de Donato Pessoa, havia demonstrado uma profunda
competência durante os meses em que assumira provisoriamente o cargo, já
implementando novos programas, séries, que dera à emissora bons pontos a mais
na audiência, elevando seu faturamento mensal.
A decisão de Leonardo causara um grande frisson nos
corredores da RTN. Todos comentavam a vitória de Pedro Lucena. Haviam aqueles
que o elogiavam, reconhecendo seu trabalho como uma brilhante atuação, e haviam
também aqueles que o criticavam, taxando-o de oportunista e ladrão de idéias, já
que apresentara seu trabalho após a apresentação de Donato Pessoa, trazendo
várias propostas idênticas as do respectivo projeto. Quem o criticava achava
que deveria renunciar ao cargo, por uma questão de ética. Na realidade, Pedro
chegara a saber, através de D. Jandira, sua secretária, que se tratava de uma
manobra política de seu concorrente dentro da empresa, assim como fazia em
todas as suas campanhas eleitorais. Verdadeiramente não entedia a posição de
Donato Pessoa e sua hostilidade para com ele, achava que uma velha amizade de
tantos anos não poderia ser trocada pelo desejo de poder assumir um grande
cargo ou manter o controle sobre qualquer coisa que fosse. De fato, não
conseguia mais reconhecer seu grande amigo, a quem tanto ajudou e que esteve presente
em tantos momentos importantes de sua vida. Chegou a procurá-lo para
conversarem, queria saber o porquê de seu afastamento, sua indiferença a ele,
se era somente pela disputa de poder dentro da emissora. Mas a atitude do amigo
o deixara ainda mais perplexo e desconfiado, pois agira como se nada estivesse
acontecendo, se não tivesse realmente nada contra ele e como se fossem
fantasias de sua cabeça. Surpreendia-se com o cinismo de Donato, não
conseguindo reconhecer aquele tipo de postura como um traço seu durante todos
os anos em que se conheciam, embora estivessem longe, sem conviver diariamente
desde sua ida para Londres.
Deus é pai! Estava tão feliz com aquela notícia. Tivemos
um jantar especial, num restaurante na Praia de Iracema, de frente para o mar,
onde brindamos ao seu reconhecimento, à sua vitória sobre a falta de sorte que
tivera em relação aos arquivos no computador. Pedro entendia aquilo como uma
forma do universo reparar a fatalidade eletrônica, rindo da situação.
“Mirela, acredito que o maior problema do ser humano é
sua falta de fé. Quando confiamos em Deus e nos entregamos verdadeiramente a
Ele, tudo acontece para o nosso bem, da forma que é melhor para nós. O que nos
prejudica, é nossa mente, no momento em que deixamos nosso ego falar mais alto.
Não conseguimos compreender que é exatamente aí que nos perdemos e nos tornamos
infelizes.”
Era como se Pedro soubesse do que se passava em minha
cabeça. Às vezes ficava perplexa com sua assertividade em relação a meu momento
existencial. Chegava a pensar que lia meus pensamentos, minha aflição.
Sentia-me precisamente como ele descrevia, perdida em minha falta de fé,
fazendo o que passei minha vida inteira achando que era errado. Ainda bem que
meu pai não estava ali, testemunhando minha completa covardia e,
conseqüentemente, falta de caráter. Não sabia se estava sendo dura demais
comigo mesma, mas com certeza seria aquilo que diria se se tratasse de outra
pessoa e soubesse daquilo. Achava então que nunca mais julgaria ninguém por
pior que parecesse uma atitude de alguém, podia existir por trás um forte
motivo que não necessariamente faria daquela pessoa alguém ruim. Das duas uma,
ou eu não era mal-caráter e estava sendo vítima de meu próprio ego, como falava
Pedro, ou era totalmente desprovida de vergonha, moral e ética. Mas não seria
aquela, a dança que a vida me convidava a dançar naquele momento, ou era eu
mesma quem estava criando aquela música? Necessitava daquelas respostas, o
quanto necessitava de respirar, para prosseguir minha caminhada.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
27
A cada dia que se passava, amava Pedro Lucena cada vez
mais. Alimentava uma admiração profunda por sua ética, seu respeito ao ser
humano, seu cuidado com as pessoas, sua solidariedade indiscutível. Pedro
sempre tentava ver o lado bom de todos com quem interagia, apostando cegamente
na verdade, na essência das pessoas. Achava impressionante quando ele tentava
entender até mesmo as atitudes de Donato Pessoa, que segundo ele, sabia que o
amigo tinha tido uma infância difícil, desprovida de condições financeiras
dignas, de uma formação de qualidade, quando criança. Era de seu conhecimento
que ele havia se revoltado muitas vezes contra a sua realidade social, e achava
que poderia ser por aquele motivo, sua hostilidade para com ele, como se ele,
Pedro, fosse a lembrança das condições sociais e financeiras que nunca tivera.
Era como se tentasse minimizar a tristeza que sentia pela falta do amigo.
O mesmo fazia Pedro em relação à Vanessa, embora ela
tivesse declarado guerra contra nosso relacionamento, ao descobrir minha
existência, o que acontecera poucos dias após eu tê-la visto pela primeira vez,
momento antes de começar uma de nossas sessões de Biodança. Vanessa nunca havia
desistido de tentar uma reconciliação e voltara a procurar por ele, prometendo
pedir desculpas ao grupo pelo que fizera ali semanas antes, quando teve uma de
suas crises de ciúmes ao flagrá-lo numa vivência de abraços com uma de nossas
colegas. Por pouco não fomos pegos por ela nos beijando, naquele dia, mas
segundos antes saí de onde estávamos, nos arredores do salão, exatamente no
momento em que ela chegava, para tentar falar com ele. Pedro era sempre muito
discreto, procurava não chamar atenção sobre sua intimidade e afastou-se do
salão para conversar com a ex-mulher. Mas pouco tempo depois, fomos flagrados
por ela num shopping.
Aos trinta e quatro anos, Vanessa era realmente linda,
como Pedro já havia me dito. Olhos verdes, cabelo curto e loiro. Uma mulher
extremamente elegante, de porte fino, apesar de perder totalmente sua classe,
quando tomada pelo ciúme do ex-marido.
Que situação constrangedora aquela. Senti um arrepio ao
ouvir aquele grito, chamando por Pedro.
- O quê que você está fazendo aqui com essa mulher,
Pedro? Quem é essa mulher? Quem é?
Estava aos berros em pleno shopping, roubando a atenção
de todos que por ali passavam. Era como se nós estivéssemos fazendo algo de
muito errado e de repente tivéssemos sido pegos em flagrante.
- Por favor, Vanessa. Nós podemos conversar mais tarde,
em outro lugar.
- Conversar? Então é com essa vagabunda que você tem
saído?
- Por favor, Vanessa...
Dava para notar o cuidado de Pedro tentando contê-la,
para que não fizesse tanto escândalo. Por um momento senti pena de vê-lo
naquela situação, tão embaraçosa. Definitivamente, ele não merecia passar por
aquilo. Senti-me culpada, mesmo sem ter provocado aquela cena, se não fosse por
mim, ele não estaria sendo tão exposto. Agradeci a Deus quando ele pediu para
que eu fosse embora e levou sua mulher dali, mesmo contra a vontade dela.
“Você não vai ficar com ninguém, Pedro, não vai! Se você
pensa que vai se livrar de mim assim tão fácil, você está redondamente
enganado, está ouvindo?”
Fiquei com aquelas afirmativas se repetindo por dias em
minha mente. Ela parecia ter muita convicção do que falava, não era um blefe,
uma simples ameaça de alguém desesperado. De fato, Vanessa começou a fazer de
nossas vidas um inferno. Proibira a entrada de Pedro em sua casa, para que não
visse Felipe, exigindo o término de nosso relacionamento. Ligava
permanentemente para o apartamento dele e numa dessas ligações, dissera-lhe que
o filho tivera outra crise de suas alergias e quase fora levado ao hospital,
com a garganta praticamente vedada, sem conseguir respirar, depois de provar
num prato de camarão que estava na geladeira. Eu sabia que Pedro estava
extremamente preocupado, quase que desesperado, apesar de procurar manter a
calma, nem havia me falado detalhes do acontecido, para que eu não me sentisse
culpada, mas acabei ouvido uma de suas conversas pelo celular com seu amigo
Adriano, pedindo-o para que procurasse falar com Vanessa e tentasse ver o
menino. Estava disposto a não ceder às chantagens da ex-mulher, mas sofria,
passava noites em claro, preocupado, tentando ligar para ela e depois de muitas
tentativas frustradas, conseguia falar, embora que para ouvi-la reafirmar suas
reivindicações de retorno ao casamento.
Eu não poderia compactuar com aquilo. Entrara naquela
história por causa de minha filha, jamais permitiria que alguém, muito menos o
homem por quem estava completamente apaixonada passasse pela mesma situação
pela qual eu estava passando, sendo impedido de conviver com seu filho. Sabia
que aquela mulher levaria suas promessas às últimas conseqüências, e Felipe
precisava do pai. Não seria eu quem permitiria aquela barbaridade acontecer.
Pedro estava sofrendo muito e eu podia ajudá-lo. Não me importava mais o plano,
aquele maldito plano que me colocara dentro daquela relação. Deus me mostraria
um outro jeito de reaver minha filha, não poderia ser com base no sofrimento de
Pedro. Sem falar que era um ótimo momento para acabar com tudo aquilo sem
causar grandes danos à vida dele. Talvez não precisasse saber que eu não era
Mirela, sua amada, poderia ter conhecimento de minha real identidade somente
mais tarde, quando já tivesse acabado o que sentia por mim. De certo, sofreria
menos e eu não teria que enfrentar sua raiva, sua decepção. Poderia ser mais
uma atitude egoísta de minha parte, mas diante daquela situação eu já não sabia
mais onde estava toda a coragem que me acompanhara durante toda a minha vida e
me fazia ter forças para lutar pelo que eu sempre almejei. Sempre fui uma
mulher forte, que trilhava o caminho do bem e de repente me via fraca, um
verme, como se todas as minhas crenças tivessem desaparecido. Nunca antes teria
sido capaz de mentir, enganar, viver uma falsidade. Naquele momento, me via
totalmente afogada em uma trama sórdida, como se tivesse caído num filme e
vivesse uma personagem que até então eu não conhecia. Sim, seria o momento
certo de acabar com aquilo, com o meu sofrimento e com a angústia do homem a
quem amava.
Juntei alguns pertences pessoais, algumas roupas, que
deixava ali no apartamento de Pedro e decidi sair de uma vez por todas de sua
vida.
- Eu não poderia permitir jamais que você ficasse longe
de seu filho. A Vanessa não está brincando e o Felipe precisa de sua presença,
de seu cuidado. Um filho deve estar acima de qualquer coisa, de qualquer
situação.
Fazia um esforço sobre humano para manter-me firme, sem
chorar ou hesitar.
- Você não entende. Eu te amo e não vou ficar bem, longe
de você. Eu preciso de você ao meu lado. Nós não podemos desistir diante da
primeira dificuldade.
- Não se trata de uma simples dificuldade. Vanessa não
está brincando.
- Nem eu. Mirela, passei minha vida inteira contendo os
ciúmes, as manipulações da Vanessa. Meu casamento foi uma grande mentira.
Definitivamente, não quero mais isso pra mim.
- Felipe precisa de você.
- Eu sei. Tenho feito tudo o que posso para cuidar dele.
Mas não é cedendo a chantagens. O caminho não é cair novamente numa vida de
mentiras, entende?
- Não há outra chance.
- Sempre há.
Parecia estar dizendo para mim, em relação à mentira que
o havia envolvido.
- Então, o que fazer?
- Ainda não sei. Mas podemos descobrir juntos.
- Não existe o que fazer a não ser isso.
- Deve existir sim.
- Pedro, você não merece isso.
- Nós não merecemos, Mirela.
- Falo de você.
- Falo de nós.
- É seu filho.
- Não o estou preterindo. Apenas dei um basta nas
manipulações de Vanessa. Ela precisa compreender que não pode tudo.
Infelizmente Felipe está sendo atingido, mas descobriremos uma forma de fazê-la
enxergar a maldade com nosso filho.
- Eu tenho medo, Pedro.
- Mas eu estou aqui.
Sentia-me pior diante de tal fortaleza de sua parte. De
sua crença em “nós”.
- Sinto muito, sinto muito mesmo!
E como eu queria ceder àquele apelo, abraçá-lo,
beijá-lo, sentir seus lábios mais uma vez. Mas não poderia, tinha que acabar
logo com aquilo, pôr um ponto final naquela farsa, para a nossa felicidade.
Fui embora naquela tarde, mesmo contra a minha vontade,
e apesar de diversas tentativas de Pedro de me dissuadir. Todavia, eu estava
completamente decidida a abandonar o papel de Mirela e voltar à vida real. Até
porque eu teria que retornar à boate também, pois o prazo de afastamento que
havia conseguido com Charles já estava terminando e eu precisava retornar aos
palcos, bem como ao meu show, do qual havia me afastado exatamente num momento
de grande sucesso. Era hora de retomar minha vida, minha história real e deixar
aquele sonho para trás. Foi o que eu fiz.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 28
Meu filho Nando era um homem maduro, tentara se explicar por diversas
vezes, mas por fim, acabara aceitando o término da relação com Olívia, embora
injustiçado, compreendera a situação e sua dificuldade em lidar com aquele tipo
de problema. No fundo, eu desconfiava que Tony tinha alguma coisa a ver com o
que acontecera, mas preferia não alimentar aqueles pensamentos, até para que
Nando não se chateasse com ela.
Na verdade até gostei, não do desfecho de tudo, mas de Olívia e meu filho
terem terminado. Sabia o quanto ela esperava de um homem e, definitivamente,
Nando não responderia às suas expectativas. Seria, de uma forma ou de outra,
mais uma frustração. Como ele mesmo findara pensando, foi bom tudo ter
acontecido antes que estivessem mais envolvidos.
Em meio a toda aquela confusão armada, sem que soubéssemos, por minha
sobrinha, Nando ainda tinha tempo para se preocupar com seus desentendimentos
ideológicos com Maria Antônia, amiga de Alexandre, aluna do curso de Sociologia
da UNICE. Parecia ser uma jovem da idade de Tony, e meu filho a descrevia como
uma patricinha mimada, menina rica, que achava poder tudo, por conta do
dinheiro de sua família. E ainda por cima, metida, segundo ele, a intelectual,
procurando sempre que possível, no ambiente de sala de aula e acadêmico,
desfazer de suas idéias socialistas. Uma vez ou outra estava Nando falando-me
de seus incômodos em relação àquela garota. Eu não a conhecia ainda, mas já
dava para perceber que se tratava de uma jovem inteligente e determinada, que
vivia confrontando seus conceitos e opiniões, acusando-o de não tirá-las do
papel e viver somente um discurso pronto e acabado.
Era notório o incômodo mútuo que se manifestava nos encontros de Nando e
Maria Antônia, nos corredores da universidade ou em qualquer lugar em que se
cruzassem. Um incômodo que surgia de uma admiração não revelada tanto de uma
parte quanto da outra, pois enquanto meu filho dispensava um bom tempo para corrigir
especialmente os trabalhos de Maria Antônia, esta por sua vez, deliciava com a
leitura minuciosa da tese de Nando.
Nando permitia-se absorver completamente pelos problemas da academia, o
que o deixava bem, mesmo depois do término da relação com Olívia.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 29
Parecia que minhas alegrias nunca eram completas, sempre faltava algo.
Fui ao apartamento de Holanda, poucos dias depois de minha última discussão com
Alceu, quando fui expulsa e passei horas ao relento, no jardim de minha casa.
Ainda tentava esconder alguns hematomas, resquícios das agressões de meu
marido, mas sem nenhum sucesso, Holanda logo percebeu as marcas em meu braço,
impulsionando-se a vê-las melhor.
- Ele te bateu novamente, mãezinha?
Sua voz já estava carregada de indignação. Hesitei antes de tentar
inventar uma história que roubasse sua atenção.
- Não tenta me esconder, mãezinha! Eu sei que ele te bateu novamente. Eu
só quero que a senhora me diga.
- Não é o que você está pensando, meu filho.
- O que foi? Caiu e bateu o braço, a perna, o pescoço? Foi isso,
mãezinha?
Sua indagação tinha um ar de ironia e revolta.
- Já tem algum tempo, filho. Não quero que você se preocupe com isso.
- Algum tempo?! Que tempo?
- Ele me prometeu que não faria novamente.
- Ele sempre promete isso.
Já estava de pé, com as mãos na cabeça, como se procurasse compreender o
porquê. Por um instante me arrependi ter ido àquele encontro. Poderia ter
deixado passar mais uns dias, para que não percebesse. Não queria jogar os
meninos contra o pai.
Holanda não compreendia o motivo que me levava a continuar com Alceu,
diante de tantas atrocidades cometidas por ele, durante todos os anos de nosso
casamento. Indignava-se ao saber das surras que eu continuava levando.
Desenvolvera um certo ódio pelo pai, por
esse motivo. E saíra de casa depois de uma grande briga na qual foi impedido
por Nando de retribuir as agressões físicas do pai, o que já havia acontecido
há quatro anos. Gênio forte, por isso não conseguira conviver com o pai. E eu
sofria com nosso afastamento desde então. Alceu me proibiu de encontrá-lo e
sempre que o fazia, tínhamos a ajuda de Nando, que era o elo entre nós. Os dois
sempre foram cúmplices, amigos e nunca perderam a amizade.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 30
Meu filho Francisco havia completado trinta e dois anos há pouco tempo e
gostava de ser chamado pelo sobrenome Holanda desde a adolescência. Talvez mais
bonito que Nando, ou pelo menos se cuidava melhor. Vaidoso, gostava de
academia, boas roupas, ótimos perfumes. Lembro-me que ainda menino,
orgulhava-se quando apaixonava alguma garotinha. Uma vaidade inocente, no
entanto, que nunca chegara a fazer mal a ninguém, a não ser a ele próprio.
Holanda não chamava atenção apenas de mulheres mas também de homens, com
sua beleza ou seu jeito doce e ao mesmo tempo sedutor. Na mesma época em que
saíra de casa, havia conhecido o empresário Renato Brandão, treze anos mais
velho, apesar de não aparentar, com quem iniciou uma grande amizade, a qual
acabara se transformando num romance. Tratava-se de uma relação em que Holanda era
beneficiado não apenas com a possibilidade de ter acesso a um mundo
sofisticado, com o qual sempre sonhara, bem como de crescer profissionalmente.
Renato logo lhe abriu todas as possibilidades de trabalho, conseguindo-lhe uma
colocação na agência de publicidade WM, a maior de Fortaleza, da qual era sócio
com Willames Macena, ex-genro de Leonardo Gondim, o dono da RTN.
Meu filho crescera profissionalmente e ocupava então um cargo importante
dentro da agência, e até voltara a estudar, concluindo a faculdade de
Publicidade. Contudo, mantinha uma relação complicada com Renato, com quem
morava desde que saíra de casa, fazia quatro anos. Diferente do parceiro,
Holanda não se considerava mais apaixonado e se permitia ainda àquele convívio
somente por pura gratidão a tudo o que seu companheiro lhe proporcionara
enquanto profissional. Visto que Renato investira alto na carreira de meu
filho. E foi exatamente esse o motivo da última briga de Alceu e Holanda.
Naquela altura do campeonato, Holanda não suportava mais a relação
absurda com Renato e chegava a lamentar profundamente o dia em que o conhecera.
Falava-me do desejo de poder voltar atrás e fazer tudo diferente.
- Consegui tudo o que eu queria de material, mãezinha. Mas não consegui
paz no meu coração.
- Ainda é tempo de voltar e consertar.
- Não! Não é mais possível. -
Deixou uma lágrima escorrer em seu rosto. - Seria muito doloroso para o Renato.
Eu não posso, não depois do que ele fez por mim. Não posso agora de uma hora
para outra, deixá-lo.
- Filho, mas isso é ainda pior.
- Não, mãezinha, não é. Ele gosta de mim, muito!
- Exatamente por isso, filho. Você deve isso a ele.
- O quê, ingratidão? Não, eu não posso. - Ele fitava um copo em sua mão,
como se procurasse naquela transparência a resposta. Não conseguia falar no
assunto olhando em meus olhos. Era claro o seu incômodo, voltando-se a todos os
cantos da sala, menos para mim. - O Renato não merece.
- Com certeza ele não merece viver uma mentira por tanto tempo e continuar
vivendo, acreditando ser uma verdade. Isso é muito pior que ele saber que você
não quer mais continuar. Você não percebe, filho? Vocês estão vivendo uma bola
de neve, que não terá fim, se um de vocês não der o basta. E quem deve dar esse
basta é exatamente você.
- Eu queria que ele percebesse.
- Porque seria mais fácil pra você.
- Não! Para ele sofrer menos.
- Porque seria mais fácil pra você! - Apertei-lhe as mãos, fitando-lhe
bem os olhos. - Você me pergunta por que permaneço com seu pai, convivendo
tantos anos com sua dureza, sua agressividade, sua violência. Pergunte-se por
que convive com Renato há tanto tempo, sem lhe dar a oportunidade de saber que
você não o ama mais, para que possa escolher continuar ou não.
- Gratidão. - Respondeu-me subitamente.
- Veja realmente no fundo do seu coração, pois o cuidado que diz ter não
é com Renato e sim com você mesmo.
Sei que meu filho não compreendia o que estava lhe dizendo. Mas o que
achava que era cuidado para com o parceiro, era na verdade medo de enfrentá-lo,
de se ver causador de seu sofrimento, de se perceber vilão numa história na
qual acreditava ser mocinho. Queria que
enxergasse, mas não podia lhe dizer assim, não acreditaria e logo encontraria
um subterfúgio, para se resignar da culpa.
O fato é que nos quatro anos em que convivera com Renato Brandão, Holanda
não se permitiu viver nenhuma história com mulheres, mesmo diante de seu
instinto e de inúmeras oportunidades que tivera. Devia-lhe fidelidade, era o
mínimo que podia fazer, além de sexo e oferecer-lhe sua companhia.
Encontrava-se, contudo, cansado, exausto não somente das obrigações sexuais com
Renato, bem como das privações amorosas, quando se sentia atraído por alguma
mulher. Lamentava tudo o que sentia naquele momento. Se pudesse escolher seus
sentimentos, escolheria com certeza amar seu parceiro, ou pelo menos estar mais
empolgado como quando haviam se conhecido. Formavam um belo par. Renato também
era um homem muito bonito, de aparência jovial. Como meu filho, gostava de
cuidar de seu corpo e beleza, além de investir bastante em alimentações
naturais e terapias alternativas. Um homem generoso, de coração puro, segundo
Holanda. Talvez o que tenha o encantado e o estimulado a começar aquele
romance, quatro anos antes. Não somente o poder que ele seria capaz de lhe
proporcionar. Meu filho, na época em que o conhecera, realmente parecia ter se
envolvido emocionalmente.
JÚLIA SERRADO
Capítulo 31
Deixei para trás todo o meu sonho de viver um grande
amor. Só não imaginava o quanto sofreria com minha própria decisão. Era difícil
ficar longe, quando na verdade queria estar perto. Conseguia esquecer um pouco
a falta que Pedro me fazia, somente em meu trabalho, mesmo porque precisava
estar inteira nos ensaios, na criação dos passos, dos movimentos. Esquecia a
falta, a dor, mas não sua imagem, o desenho de seu corpo sobre o meu, a
delicadeza de seus lábios deixando-me trêmula. As lembranças eram minha fonte
inspiradora na criação das coreografias, que fizeram de meu show ainda mais
intenso.
Entretanto, não conseguia saborear o sucesso de meu
trabalho, não somente por estar longe do homem que amava, mas também por conta
da pressão do deputado Donato Pessoa, ao saber de minha desistência acerca do
nosso plano contra seu rival na RTN. Estava seguro que Pedro havia encontrado
os tais documentos que provavam suas transações ilegais, que deixavam
transparecer seu conhecimento de determinados conteúdos, como uma provável
relação do departamento comercial da emissora com campanhas eleitorais de
alguns deputados e prefeitos. Ele estava transtornado e me impunha ainda mais
medo. Mas eu me encontrava irredutível, mesmo diante da informação de que tinha
descoberto que o tal casal holandês que comprara minha filha, não tinha ainda
saído do país e, provavelmente, estivesse em São Paulo. Eu não podia mais
acreditar naquele homem sórdido, ele era capaz de tudo e poderia muito bem
estar mentindo também para mim. Eu queria confiar em Deus, eu tinha que confiar
naquele momento. Eu o temi ainda mais quando afirmou que se eu não fizesse o
que ele queria e encontrasse os tais documentos, acabaria com a minha vida e
também com a da minha filha. Às vezes eu tinha a impressão de que ele sabia
onde Clara estava, ou que tinha a ver com seu sumiço, apesar de aquilo parecer
absurdo, afinal ele não sabia nada sobre mim, antes de Clara ter sido roubada
pelo próprio pai num conchavo com seu irmão. Ou sabia? Não, não poderia, era de
fato ridículo pensar aquilo.
Pedro não poderia me encontrar, pois o único endereço
que dispunha era o do apartamento que Donato Pessoa havia me arranjado como
suposta moradia de Mirela, e eu nunca mais havia voltado lá, nem ligado o
celular que usara no plano, embora tivesse muita vontade e por várias vezes
pensasse em usá-lo para saber como estava. Mas pelo menos soube através de
Luísa que Vanessa lhe permitira voltar a ver Felipe.
Embora soubesse que era melhor para nós dois não mais
nos encontrarmos, parece que o destino resolvera dar uma forcinha e promover o
nosso reencontro. Estava chegando à boate numa tarde, quando Pedro me avistou,
de dentro do carro, ao fazer o giro na Praça Portugal. Tentei me esconder por
trás de alguns carros que ali estavam, na frente de um shopping, mas quando o
vi saindo do carro em pleno trânsito, gritando por mim, prestes a sofrer um
acidente, não podia continuar fugindo, corri ao seu encontro. Estava nervosa,
trêmula, com as mãos transpirando, meu coração acelerado diante daquele homem,
que mexia comigo profundamente. Parecia ainda mais lindo, ficava também
belíssimo de paletó e gravata, alto, numa elegância natural que emoldurava a
sua beleza. Seu olhar de tensão, logo dera lugar a um sorriso sedutor. Era como
se minha simples presença tivesse desfeito toda a tristeza que sentira durante
aquela semana, a qual passamos longe um do outro. Sem que eu pudesse dar conta,
já estava em seus braços, desfrutando de seu calor, de sua alegria ao me ver.
Nem entendi como pude passar tanto tempo sem aquela presença amorosa, sem
sentir seu carinho, sem ouvir sua voz afetiva afirmando permanentemente que me
amava.
- Você não sabe como me fez falta, Mirela!
- Eu também senti muita falta.
- Não quero mais ficar longe de você.
- Nem eu.
Beijamo-nos em plena rua, sem nos importar com as
buzinas reclamando de seu carro aberto em meio ao trânsito da Praça Portugal.
Eu achava que poderia viver aquele amor. Era muito forte
e pela primeira vez, senti algo tomando conta completamente de mim, de minhas
forças, de meus pensamentos. Só precisava naquele instante encontrar um bom
momento para contar a verdade a ele, sobre os motivos que me fizeram aceitar a
fazer parte do plano de Donato Pessoa, para seduzi-lo e roubar os tais
documentos comprometedores sobre sua vida. Eu queria finalmente viver a
verdade, como ele sempre falava e convidava a todos a sua volta. Precisava ser
honesta, mas não podia estragar tudo e perdê-lo, de contra partida, sabia que
se não contasse logo, aí sim estaria tudo acabado e perderia de uma vez por
todas a oportunidade de viver aquele grande amor. Estava disposta a enfrentar a
todos, mesmo que o deputado viesse com sua fúria, que Vanessa nos importunasse
com sua loucura, ainda assim, os enfrentaria para ficar com Pedro e lutar pelo
seu perdão.
JÚLIA SERRADO
Capítulo 32
Vanessa jamais perderia a oportunidade de descobrir a
verdade sobre a mulher que, segundo ela, lhe roubara o marido e ter um trunfo
para tentar acabar com aquele romance. Exatamente em minha apresentação, com a
boate lotada, fui surpreendida com sua presença infeliz assistindo o meu
espetáculo. O mundo parecia ter saído debaixo dos meus pés, a impressão que eu
tive, foi que, por alguns segundos, que pareceram uma eternidade, não ouvi a
música, que me conduzia. Achei que de fato seria o fim. Nem lembrei que estava
com máscara e que talvez nem estivesse me reconhecendo. Foi então que relaxei
um pouco e prossegui minha apresentação, embora preocupada. Ela acompanhou todo
o número, como se soubesse quem era, tinha um olhar firme, de quem tem outra
intenção além de apreciar um show. Ao terminar aquela apresentação, corri para
o camarim, precisava me trocar rapidamente e sair dali, antes que tivesse tudo
acabado e Vanessa me flagrasse. Poderia nem ser o que eu estava pensando, era
possível que ela só estivesse passando o tempo e tivesse ido assistir ao show
que estava tão badalado em
Fortaleza. Mas eu sabia, pelo pouco que Pedro me falara dela,
que não sairia sozinha, para uma proposta daquelas, embora a boate fosse muito
bem freqüentada, com certeza, não seria um ambiente para ela, parecia não
gostar de badalações em locais públicos. Mesmo assim, fiz de tudo para dar
tempo de sair logo da Mirage, antes de encontrar com ela. No entanto, Vanessa
mais uma vez me surpreendeu, estava bem ali, diante de mim, no momento em que
abri a porta do camarim, para ir embora.
“Seu show foi ridículo, Júlia Serrado!” O tom agressivo
de Vanessa deixava claro porque ela tinha ido à boate. Já sabia de toda a
verdade e queria tomar satisfações.
Como eu já
esperava, Donato Pessoa não deixaria barato depois de me ligar cobrando minha
resposta se continuaria em seu plano sórdido contra Pedro. Ficara enlouquecido
ao ouvir meu categórico “não” e afirmou que eu me arrependeria daquela decisão.
E como que para me dar uma amostra do que era capaz de fazer, contou a Vanessa
sobre minha identidade. Era um plano perigoso, pois sabia que poderia pôr em
risco todo o estratagema para conseguir os tais documentos. Todavia, o deputado
era um homem inteligente, calculista e não tinha medo de jogar alto, ainda que
comprometesse sua posição, seu poder. Era apenas um aviso para que eu não
pensasse que sairia sem lesões.
“Eu vim aqui apenas para te dizer que saia de uma vez
por todas da vida do meu marido, sua vagabunda.” Vanessa fez aquela afirmativa
trancando a porta do camarim. Parecia ter feito alguma coisa para segurar os
demais dançarinos lá fora e não deixá-los chegar perto. O que me passava pela
cabeça era apenas o medo daquela mulher fazer mais um escândalo e me prejudicar
em meu ambiente de trabalho. Se ela resolvesse contar tudo ali, ou gritar
falando que eu estava me fazendo passar por Mirela para lhe roubar o marido, eu
estaria, além de perder o homem que amava, perdida também em meu trabalho.
Olívia Cordeiro, a dona da Mirage, nem mesmo Charles, não admitiriam trabalhar
com uma bandida, como Vanessa também me taxava. Que situação, meu Deus! Via-me
completamente perdida. Acho que minha maior sorte era Vanessa estar segura
demais com o que havia descoberto sobre mim, não parecia ter dúvida que logo me
desmascararia e acabaria o meu romance com seu ex-marido, por isso não agiu com
histerismo como da outra vez, no shopping, quando nos encontrara pela primeira
vez juntos.
Vanessa me disse que estava sabendo de tudo, que eu não
era Mirela e sim Júlia Serrado e que tinha seduzido seu marido para roubar-lhe
o projeto de programação, com o qual Donato Pessoa quase conseguira a
vive-presidência da RTN. Eu sabia que ele jamais teria lhe falado todo o plano,
não poderia, se não ele também estaria perdido e a oportunidade de estar com o
dossiê que, nas mãos de Pedro, podia servir de arma contra si mesmo.
- Você é vulgar, pior do que eu pensava.
- Acho que podíamos conversar em outro lugar.
- O momento é agora, sua vagabunda.
- Vanessa, aqui não é o lugar, nem a hora.
- Não entendo como um homem do porte de Pedro pôde se envolver
com uma mulherzinha vagabunda como você, do seu nível.
- O que sabe sobre mim? – Começava a perder a paciência.
- Que você é uma vagabunda.
- Olha aqui, chega! – O nível da minha voz já se fazia
ouvir mais alto.
- Ah, está ficando com raivinha?
- Eu entendo você, mas...
- Entende? Não. Você não me entende nada. Não faz idéia
de como estou.
- Eu sei que é difícil.
- Difícil o quê, perder o marido para uma vagabunda como
você?
- Chega!
- Chega dessa aventura, vagabunda.
- Você não sabe quem eu sou.
- Sei, claro que sei. É uma prostituta, contratada para
seduzir meu marido e lhe roubar. É isso que você é.
- Agora chega!
Eu não poderia permitir que aquela mulher me agredisse
daquela forma. Sabia de minha atitude com Pedro, mas nunca fui mal-caráter, nunca
fizera nada contra ninguém, antes de ter tido minha filha seqüestrada, roubada
de mim.
- Fora daqui! Você não tem o direito de invadir meu
local de trabalho, vir me agredir.
- Tenho, claro que tenho, sua vagabunda! Você roubou o
meu marido...
- Não roubei ninguém, você está fora de si.
- Sou louca pelo Pedro. Sou capaz de qualquer coisa por
ele.
- O casamento de vocês já não existia há muito tempo. Ou
melhor, nunca existiu.
- Quem pensa que é para julgar minha vida, meu
casamento.
- Agora nós estamos juntos.
- Não por muito tempo.
- Sinto muito, Vanessa.
- Não sinta. Serei motivo de muita tristeza pra você,
sua vagabunda.
Sei que de fato seria. Se não, não teria acabado com o
próprio casamento, por sufocá-lo com seus ciúmes doentios. Tinha um ar esnobe
na fala, como se se sentisse superior, melhor do que eu, como se estivesse
acima de meu mundo.
- Não tenho mais tempo pra você, Vanessa.
- São dez anos de casamento. Você acha realmente que ele
vai jogar fora uma família, o amor do Felipe pra ficar com uma prostituta?
Dei-lhe um tapa!
Entreguei-me ao meu instinto e quando percebi já havia
lhe agredido. Não pude conter, foi mais forte que eu. Era como se aquela mulher
estivesse agredindo toda a minha vida, a minha história, minha dignidade. Não
poderia compactuar com aquilo.
- Saia já daqui! – Era eu quem estava gritando.
- Desgraçada, você vai se arrepender, eu prometo!
- Vai embora daqui, sua perua mimada!
- O Pedro vai ficar sabendo de tudo isso, ah se vai...
Vanessa saiu furiosa. Mas não poderia ter sido
diferente. A única coisa que eu conseguia pensar era em Pedro e no que
aconteceria dali para frente. De certo, contaria imediatamente tudo a ele e
faria sua cabeça contra mim. Talvez fosse melhor assim, pelo menos eu deixaria
de sentir o peso gigantesco que carregava em minhas costas com aquele segredo.
Só não esperava tudo terminar daquele jeito, Pedro sabendo através de outra
pessoa e logo por Vanessa.
Eu não tive coragem de me encontrar com ele, como
havíamos combinado, que depois de meu trabalho, meu ensaio com um grupo de
dança, como dizia a ele, nos veríamos em seu apartamento. Fui direto para minha
casa, quase que correndo para o colo de Raquel. Lembro-me ter passado a noite
em claro, chorando, imaginando como o enfrentaria depois de tudo. Com certeza
já estava sabendo sobre mim e o projeto de programação e que era cúmplice de
Donato Pessoa, ou melhor, que eu era sua grande parceira naquele plano sórdido.
Raquel acreditava que ele entenderia e me perdoaria, mas era difícil para mim
aceitar essa possibilidade. Não, pessoas como Pedro, que acreditam nas pessoas,
quando descobrem que estão sendo enganadas, perdem completamente a confiança. E
mesmo que perdoem, sempre ficará aquela dúvida, sempre.
Acabei atendendo uma ligação de Pedro, depois de muitas das quais não
tinha tido coragem de atender. Fomos almoçar juntos naquele dia, momento em que
ele aproveitou para me contar que tinha sido procurado por Vanessa, como eu
previa e ela afirmara que faria, para lhe contar sobre minha verdadeira
identidade.
MARINA PESSOA
Capítulo 33
Algumas vezes, em meu sofrimento, chorando calada, sem que Donato visse,
questionava o significado real de um casamento, ou melhor, do nosso casamento,
já que não via ninguém sendo tratado como se fosse uma propriedade, sendo impedido
de falar com as pessoas, de sair na rua sem ser acompanhada por alguém. Era
aquela situação que me sufocava cada vez mais, que me entristecia e fazia
duvidar de minha vontade de permanecer vivendo aquela relação. Sentia-me muitas
vezes como uma prisioneira dentro de minha própria casa, e ele sempre dizendo
que queria me proteger, cuidar de mim.
Na noite daquela festa, demorei muito a dormir. Minha cabeça parecia que
ia explodir, depois de tanto chorar, não somente pela forma com que Vanessa
havia me tratado e afirmado que Felipe me esquecera, mas também pela proibição
de Donato. Sabia que eles, morando aqui no Brasil, seria fácil de me
reaproximar, conseguir o perdão de minha irmã e estar mais uma vez perto de meu
sobrinho. Todavia, meu próprio marido era então o único e forte empecilho.
Creio que era exatamente aquelas insatisfações reprimidas que faziam de
minha noites, verdadeiros infernos, com meus pesadelos que pareciam uma
vivência real de situações banais aterrorizantes.
Levantei-me de onde estava, num canto de um muro escuro, na madrugada,
vestida apenas de camisola e pés descalços, como fora dormir naquela noite.
Aproximei-me de um portão que separa aquele lugar sombrio da rua, caminhando
com cuidado para não machucar meus pés, nas pequenas pedras que estavam
espalhadas por todo o chão que minha vista alcançava. Ao chegar no velho portão
coberto de ferrugem, fui tomada por um desespero, percebendo que estava
impossibilitada de passar, por estar trancado, ou melhor, emperrado pelo
ferrugem, pois não tinha fechadura aparente, então não compreendia porque
realmente não conseguia abri-lo. O formato do velho portão lembrava as grades
de uma prisão e aquilo me enchia de desespero. Do outro lado, sentado na beira
da calçada, de frente para mim, pude avistar um garotinho, de cabeça baixa,
voltada às pedrinhas que tinha na mão e brincava com elas. Percebi que eram
iguais às pedras nas quais havia sido obrigada a pisar para chegar ali. Era
como se tivesse sido aquele menino que jogara as pedras, impedindo minha
passagem.
- Ei, menino, por que fez isso? – indaguei-lhe, ainda forçando a abertura
da grade. – Por favor, me ajude, eu preciso sair!
Vi aquele garoto levantando a cabeça lentamente, como se quisesse
esconder algo. Estava com os olhos vermelhos, de alguém que chorou muito. Era
loirinho, deveria ter uns cinco anos apenas, tinha o cabelo meio assanhado e
vestia apenas uma bata branca, tipo de hospital, um pouco suja de sangue já
envelhecido. Senti um medo aterrorizante ao fitar os olhos daquela estranha criança,
como se pudesse ver uma tristeza profunda em seus olhos.
- Ajude-me a sair daqui, garoto! – Tornei a insistir.
Ele voltou a baixar a cabeça, fitando as três pedrinhas que tinha em sua
mão. Então vi uma lágrima cair e molhar suas pedrinhas.
- Ei, garoto, por que você está chorando?
Queria ajudá-lo. Mas estava impedida pelo grande portão. Chegava a sentir
as ferrugens das grades, arranharem meus braços que estendia e balançava de um
lado para o outro, como se quisesse alcançar aquele menino ou forçar a minha
passagem, atravessando aquele obstáculo. Num só momento que baixei a cabeça,
voltando-me a uma pedra que estava encrava em meu pé, o pequeno garoto
desapareceu dali. Já não conseguia mais ver sua imagem, nem para onde teria ido
e, de repente, também já não existia mais o grande portão que outrora me
impedira de chegar até aquela criança. Corri, então até o outro lado da rua
escura, onde o garoto estava, encontrando apenas as três pedrinhas, com as
quais brincava segundos antes. Vi que estavam sujas de sangue, o que me causou
um grande arrepio. Sem que eu pudesse perceber ao certo o exato momento em que
aconteceu, era eu quem estava coberta de sangue, minhas mãos, pernas, meu
rosto, tudo estava sujo. Comecei então a gritar desesperada.
- Alguém me ajude! Por favor, alguém me ajude! Alguém me ajude, por
favor! Alguém me ajude!
Contudo, estava completamente só no meio da madrugada. Sentia muito frio
e medo. Encolhia meus braços para que pudesse me resguardar um pouco do vento,
que se intensificava cada vez mais. Vi então o pequeno garoto, de momentos
antes, entrar no prédio em frente, de onde supostamente eu teria saído. Havia
me dado conta de que se tratava do prédio onde eu morava. Então a calçada onde
estava não era mais a mesma e sim o calçadão da Beira-Mar, totalmente deserto.
Corri para atravessar a rua e quase fui atropelada por um carro velho e, ao
olhar quem estava na direção, assombrei-me ao ver a figura de Donato, sorrindo
para mim, com seu velho sorriso forçado, de quem carrega consigo outro sentimento
que não o aparente naquele momento. Meu medo aumentou ainda mais, quando vi no
banco detrás do carro, o mesmo garoto que há pouco entrara em meu prédio,
brincando com as mesmas pedrinhas de momentos antes.
- Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh! – Acordei com meu próprio grito, trêmula, com a
respiração ofegante.
Podia ouvir as batidas de meu coração, quebrando o silêncio do grande
quarto. A porta da varanda estava aberta e o vento forte da madrugada jogava as
cortinas de um lado para o outro. Logo me atentei que estava sozinha na cama,
como quando havia me deitado. O relógio digital da mesa de cabaceira marcava
três e vinte e quatro, quarenta minutos a mais de quando eu começara a dormir.
Estava meio desnorteada, sem entender bem o que acontecera. Tentei imaginar
onde meu marido estava e logo lembrei que o havia deixado no escritório,
chateado pelo meu encontro com Vanessa na festa. Tomei um pouco de água
rapidamente, o resto que estava no copo, do lado da cama e me precipitei em
direção ao escritório.
Eu estava prestes a encontrar meu marido e Luísa sem roupa, no sofá, num
clima de muito erotismo e intenso prazer. Ele parecia se realizar sexualmente
com aquela mulher. Tinham, segundo ela, como ficaria sabendo mais tarde, uma
química perfeita, que os fazia completar-se e esquecerem do mundo, no instante
em que transavam. Era um homem violento na cama e ela permitia que desse vazão
a todas as suas vontades, diferente de mim, que cuidadosamente lhe impunha
limites, procurando deixar claro meus incômodos frente às atitudes bruscas que
se revelavam uma vez ou outra. Na verdade, Luísa parecia até gostar, apesar de
sentir fortes dores, principalmente quando faziam sexo anal. Eram como dois
animais brutos, fazendo daquele escritório um ambiente de dor e prazer.
Eu até podia ouvir os sussurros e gemidos ainda do corredor, bem antes de
chegar na sala, que separava aquela dependência de onde eu estava, embora não
soubesse o que era, bem como de quem se tratava. Sentia-me ainda desorientada devido o
pesadelo. Mas precisava encontrar alguém e pôr um fim ao medo que me dominava
naquele momento. Não sabia ao certo o quê, entretanto olhava para todos os
lados, para trás, temendo algo que não conseguia definir. Como se o que
experimentara minutos antes, dormindo, pudesse voltar de alguma forma.
Ao chegar na sala, pude ouvir um forte gemido, que vinha exatamente do
escritório, embora não tivesse como perceber que era de Luísa, bem no momento
que culminavam o seu prazer.
O destino de meu casamento estava a alguns passos dali, mesmo que eu não
tivesse consciência. Era como se uma força estranha me chamasse para ver o que
estava diante de meus olhos há anos e não conseguia enxergar.
Claro que meus sentidos pareciam mais estar voltados naquele momento para
o que eu sentira pouco tempo antes em meu pesadelo. Jamais poderia imaginar o
que se passava realmente naquele escritório. Por mais que tivesse minhas
desconfianças, eu preferia acreditar que se tratava apenas de uma boa relação
profissional, como ele sempre afirmava.
No instante em que ouvi aquele gemido, cheguei a pensar que tivesse algo
a ver com o pesadelo, ou até mesmo que eu ainda estava dentro dele e que o
menino poderia aparecer a qualquer momento. Era horrível pensar aquilo. Por um
instante não tinha mais a consciência do que era real ou fantasia. Estava
totalmente atormentada, sem saber de fato pelo quê ou por que. Cheguei a
hesitar em continuar, afinal poderia me deparar com o que eu não queria naquele
escritório – encontrar aquele garotinho ou algo que me lembrasse detalhes daquele
sonho terrível. A única coisa que não me passava pela cabeça era que fosse meu
marido e sua secretária, vivendo um momento de intenso prazer.
No entanto, logo tomei coragem e segui adiante. Precisava acabar logo com
aquilo. Se fosse mais um instante de meu pesadelo, que eu me deparasse
finalmente e enfrentasse, se não, descobriria que barulho era aquele.
Aproximei-me então da porta, pronta para descobrir do que realmente se
tratava e pôr um fim àquela angústia.
JÚLIA SERRADO
Capítulo 34
Vanessa havia contado tudo a Pedro. Meu Deus, que aperto
senti em meu coração. De repente, estava com a boca seca, faltando-me também o
ar. Pensei que pudesse ter ali um buraco para que tivesse pelo menos o direito
de me esconder e não sentir tanta vergonha, tanto constrangimento. Acho que
estava vermelha, pois o sangue parecia ter me subido a cabeça e um calor tomara
conta de todo o meu corpo. Numa fração de segundos, senti uma gota de suor
cortar-me as costas. Acabara a minha angústia de todos aqueles últimos meses,
mas junto com ela também fora embora a possibilidade de viver um grande amor.
Era o fim!
- Mas não se preocupe com nada disso, meu amor, eu já
esperava que Vanessa não se rendesse aos fatos e não aceitasse a nossa relação,
assim tão fácil.
Será que eu estava de fato ouvindo aquilo ou era um
sonho?
- Mas, Pedro...
- Eu te amo, muito.
- Você não acreditou nela?
- Devia?
Devia. Ela estava coberta de razão.
- Ela é sua esposa.
- E você a mulher que amo.
- Pedro...
- Juntos, nós vamos enfrentar todos os obstáculos. Não
serão as mentiras da Vanessa, os seus delírios que vão nos separar.
De fato, não poderia ser verdade aquilo. Justo quando
pensava que estava tudo acabado, sou surpreendida com aquela declaração. Não
podia ser apenas por causa de Mirela, afinal quem estava ali na sua frente não
era ela, mas sim eu, com meu jeito de ser, de pensar, de agir. Com certeza
éramos completamente diferentes enquanto expressão. Não sabia nada daquela
mulher que já morrera tantos anos antes, até porque não necessitava saber, já
que para o plano, eu teria sofrido amnésia, depois do acidente. Acho que ele
jamais teria mantido seu relacionamento comigo se realmente não tivesse se
apaixonado pelo meu jeito, por mim, Júlia Serrado.
Não sei se estava feliz ou triste, mas o beijei tanto
que acredito que ele tenha percebido que era uma atitude dissociada. Talvez
sentisse as duas coisas. Amava-o e era, de qualquer maneira, bom ouvi-lo falar
daquele jeito, como se nada nem ninguém pudesse abalar nosso amor. Até cheguei
a pensar que Raquel tinha razão e ele me perdoaria quando soubesse de tudo. Mas
sabia que Pedro via o amor como algo sagrado, e minha atitude profanava a
nobreza de seus sentimentos.
Eu estava decidida a contar tudo naqueles dias. Tive
coragem de me abrir com minha nova vizinha, D. Clarinda, que parecia ter a
clareza da maturidade, além de me passar uma energia de mãe, de cuidado, de
proteção em seu olhar tristonho. Diferente do que pensava, em nenhum momento me
julgou nem condenou, pelo contrário, entendera tudo o que eu tinha feito e até
estava feliz pela descoberta do amor.
- D. Clarinda, eu lamento a chegada de Pedro na minha
vida logo agora, nessas condições.
- É Deus quem coloca as pessoas em nossas vidas para que
possamos ser felizes com elas. Não acredito que tenha sido por acaso, nem que
tenha sido uma fatalidade o encontro de vocês dois. Essa situação existe, com
certeza, para que vocês possam aprender com ela e crescer com ela. Não acredito
em destino, Júlia, mas creio que Deus providencia para que sejamos felizes.
Vocês tinham que se encontrar.
- E essa mentira?
- Essa é a história de vocês.
Era confortante ouvir aquilo, mas difícil de acreditar
verdadeiramente, diante da situação em que estava metida. Por que então
descobrir um amor em meio a tantos empecilhos, se era para nos entregarmos e
vivenciá-lo somente? Não tinha certeza se D. Clarinda realmente tinha razão.
Mas pedia uma luz, um sinal do universo, que me respondesse o porquê de tudo
aquilo pelo qual estava passando.
Pedro tinha razão quando pensava que Vanessa jamais
aceitaria nossa relação de bom grado, calada. Mesmo que ele não tivesse
acreditado em suas revelações, não poderia me despreocupar, pelo menos enquanto
eu tomasse coragem e contasse toda a verdade, o que eu queria fazer muito
breve. Queria ganhar um pouco mais de tempo, embora tivesse dito a Donato
Pessoa que não podia mais contar comigo em seu plano, ele acreditava que eu
ainda o ajudaria, e enquanto acreditasse nisso, eu poderia ter alguma notícia
de minha filha, pois estava esperando notícias de São Paulo, onde disse ter
sabido do paradeiro do tal casal de holandeses que comprara Clara. Se eu
abrisse o jogo logo, poderia pôr tudo a perder. E ele sabia que eu podia
conseguir os tais documentos, pois eu já havia comentado que realmente achava
que Pedro estava com eles, devido os comentários que fazia sobre o deputado.
Naquele exato momento eu me dava conta do meu jogo
contra Donato Pessoa ou a favor de minha filha. Mas estar jogando me fazia mal.
Nunca acreditei no jogo de conveniências como caminho para nada, mas estava
ali, fazendo o mesmo que ele. Pensei várias vezes em desistir e contar a
verdade, falar de meus reais objetivos, que com certeza não eram mais continuar
procurando os tais documentos e trair mais uma vez o homem que amava.
Consegui alguns dias sem trabalhar novamente na boate,
tentando evitar que Vanessa me surpreendesse mais uma vez. No entanto, não
poderia adiar por muito tempo, logo tive que retornar ao trabalho e
precisamente no momento em que entrei no palco, iniciando meu show, dei de cara
com Pedro, parado ali na minha frente, ao lado de Vanessa. Meu Deus, que
situação aquela! Ele tentando me descobrir por baixo da máscara, com um olhar
interrogativo, curioso, tenso, e eu ali, assistindo a um filme em minha cabeça,
numa fração de segundos, pensando no quanto o amava e que ele não compreenderia
o que eu havia feito, porque havia feito. Foi a primeira vez em que não me
senti inteira no palco, fazendo o meu trabalho. Não conseguia parar de pensar
no quanto eu havia sido idiota, em não revelar a verdade enquanto ainda tinha
tido tempo. Era tarde e Pedro me falaria aquilo, decerto, logo após minha
apresentação. Ainda haveria tempo de me salvar?
CELINA GONDIM
Capítulo 35
Mesmo com meus limites de expressão, procurava me fazer presente na vida
de meu sobrinho. Gostava também muito de Maria Antônia, mas era João Henrique,
o caçula, que demonstrava uma necessidade maior de apoio emocional. Tinha
sofrido muito durante os anos em que sua mãe estivera casada com Donato Pessoa,
que o maltratava e o oprimia com castigos e ameaças, por não gostar da criança.
Além de tudo, sempre sentira falta do pai, que morava no Rio e viajava
permanentemente a negócios. Transformara-se, com isso, num jovem tímido, com
dificuldades de se relacionar e demonstrar seus sentimentos e opiniões,
principalmente quando se via no meio de outras pessoas fora de seu núcleo de
intimidade. Sem falar em sua mãe, a quem temia enfrentar e contrariar diante de
qualquer situação.
Minhas investidas não eram muito bem sucedidas, mas às vezes João
Henrique acabava me falando um pouco de sua angústia e da vontade de dizer para
o mundo o que pensava realmente sobre a vida, sobre as coisas, falar de seus
sentimentos, ter coragem de ir contra a mãe e fazer o que realmente desejava e
sonhava.
Aos dezenove anos, João Henrique acumulava muitas dúvidas sobre seus
sentimentos. Escondia-se atrás dos óculos, que lhe davam um aspecto intelectual
e encobria um pouco a sua beleza, embora chamasse a atenção de muitas garotas
na faculdade e em outros lugares. Tivera poucas namoradas, todas indicadas e
arranjadas por Maria Eugênia, que procurava, segundo ela, cuidar das boas
relações de seu filho, já que não conseguia exercer o mesmo controle na vida de
Maria Antônia. Com sua timidez, João Henrique sentia uma profunda dificuldade
em suas relações de par. Conquistava muitas colegas, das quais se aproximava
nos trabalhos da faculdade ou por estarem com algum problema em seus namoros,
as quais acabavam transformando-o em seu confidente, e quase sempre,
interessavam-se amorosamente por ele. Sua timidez só não encobria seu aspecto
afetivo e cuidadoso, o que encantava a todos e fazia com que suas colegas
terminassem apaixonadas por ele, mesmo sem intenção de conquistá-las.
João Henrique estava quase sempre acompanhado do amigo Alexandre, da
mesma idade, neto de Adriano Cordeiro, um velho amigo da família. Uma amizade
que lhe fazia, ao meu ver, muito bem. Alexandre era exatamente o seu oposto, um
jovem extrovertido, de fácil comunicação com todos, bem humorado e metido a
conquistador, apesar de se dizer apaixonado pela namorada Carola, também amiga
e colega de faculdade de meus sobrinhos. Embora fosse perceptível a falta de
responsabilidade de Alexandre e até ressaltada permanentemente por Maria Antônia
e mesmo por Carola, talvez fosse um pouco disso que meu sobrinho precisasse,
naquele momento, para dosar a sua repressão interna, trazendo-lhe um equilíbrio
que precisava para sobreviver naquele instante.
CELINA GONDIM
Capítulo 36
Além de mim e da relação de profunda amizade e cumplicidade com a irmã
Maria Antônia, João Henrique encontrava em Mena, nossa cozinheira, o colo de
que precisava em muitos momentos. Ela estava sempre cuidando dele e de todos
nós através de seus pratos deliciosos e de seu carinho, percebido até quando
calava, frente às conversas e decisões familiares importantes.
Mena era baixinha e gorda, uma negra de cabelos já grisalhos, aos setenta
anos, uma idade que parecia não lhe pesar. Sua vitalidade irradiava-se da
cozinha para todos os espaços daquela imensa casa, como se tudo tivesse
realmente a sua cara, seu jeito. Estava com papai desde seu primeiro casamento,
antes mesmo do nascimento de Maria Eugênia. E nos tratava como se fôssemos seus
filhos, o que irritava profundamente a minha irmã, exigindo-lhe uma postura
profissional, sem essa proximidade pessoal, evidente em seu tratamento para
conosco. Fora Mena, sem dúvida, a pessoa que mais me apoiara em minha chegada
àquela casa, a quem eu dediquei muito o carinho e consideração desde então.
Creio que a partir daí, Maria Eugênia tenha alimentado uma certa repulsa a ela,
por sua proximidade e cuidado para comigo. O que resultou na contratação de
Lorena, a secretária de minha irmã, também como governanta de nossa casa, para
tirar de Mena o controle e administração da mesma.
A intenção era que Lorena assumisse o cargo, criado por Maria Eugênia,
provisoriamente, até a contratação de uma nova governanta, até porque ela já
era sua secretária e não poderia se dedicar como queria. Uma situação que já
vinha se arrastando por cinco anos e resultou na mudança de Lorena para nossa
casa, para que pudesse exercer a função de governanta sem deixar de ser a
secretária de minha irmã.
Lorena tratava a todos os empregados a mão de ferro, inclusive a Mena,
que parecia não se importar. Era uma mulher sábia e tinha a consciência de que
se tratava de uma estratégia de Maria Eugênia para lhe atingir e afastar-lhe de
mim.
Mesmo sendo uma pessoa mal humorada, Lorena chegava a ser engraçada.
Podia-se perceber claramente o quanto se devotava a Maria Eugênia e a
endeusava, como se fosse seu grande ídolo. Vestia-se semelhante a ela e fazia
alguns gestos como arrumar o cabelo discretamente no meio de uma conversar ou
ajeitar o brinco, que eram de sua patroa.
Aos cinqüenta anos, ainda que se vestisse muito bem, não era um exemplo
de beleza, mas considerava-se bela e sedutora, o que lhe dava um ar de
arrogância, que só se desfazia na presença de Maria Eugênia, a quem temia. Mas
era Dulce quem conseguia tirá-la realmente do sério.
Travou-se um verdadeiro clima de rivalidade entre Lorena e Dulce, desde
que esta entrara em nossa casa pela primeira vez, como uma guerra de ego e
vaidade. Dulce sentia-se profundamente incomodada com a postura esnobe da
outra, e esta, por sua vez, procurava impor limites arbitrariamente em sua
expressão dentro de casa. Chegava a ser engraçado e eu, confesso, me divertia
com a birra das duas. Só comecei a achar a situação delicada, ao saber do
envolvimento amoroso de Dulce e o nosso motorista Djair. Ela, que tentara me
esconder a relação, bem como de todos na casa, para não prejudicar, segundo a
mesma, o rapaz, confessara-me não querer nada sério com o ele. O problema é que
acabei por descobri-lo aos beijos com Lorena no escritório, fazendo-lhe juras
de amor e fidelidade.
Parecia ironia do destino, Dulce e Lorena, que tanto se detestavam,
disputando, de certa forma, mesmo sem saber, a atenção amorosa do mesmo homem.
E tudo, sem que Maria Eugênia soubesse. Para falar a verdade, acho que somente ela
não sabia do envolvimento de sua secretária e o motorista. Caso descobrisse, o
mandaria embora com certeza.
Dulce se mostrava empolgada com aquela relação. Não para um envolvimento
mais sério, mas no intuito de atiçar ainda mais seu fogo, por considerar Djair
um vulcão.
Minha enfermeira acabava passando um pouco seu tempo implicando com nosso
jardineiro Zeca, um homem reservado, porém bem-humorado, que cuidava de nosso
jardim com um zelo que jamais pude perceber em outro profissional. Não sabíamos
muito sobre ele, exceto que tinha uma noiva, que morava em outro estado, com
quem se correspondia freqüentemente através de cartas e telefonemas.
Aos trinta e seis anos, Zeca cultivava um ar misterioso que chamava a
atenção de minha enfermeira. Mesmo preservando bastante sua intimidade, vivia
cantarolando em seu trabalho, como se quisesse partilhar de algo seu, um
sentimento, que não sabíamos bem qual era, com todos a sua volta. E sempre que
dava, isolado em seu quarto, ensaiava algumas notas no violão, seu companheiro
de anos, segundo ele.
Tudo era motivo para alimentar as implicâncias de Dulce a Zeca, como o
som do violão, nas poucas vezes que se podia ouvir as belas notas se propagando
na ala dos profissionais de nossa casa. Ela sempre alegava estar com enxaqueca,
para justificar sua presença na porta do quarto do rapaz, requisitando, de
forma autoritária e sarcástica, o fim da “cantoria”, segundo ela.
- Não sei não, viu, meu filho? Talvez fosse necessário você ter umas
aulinhas de violão, para não tirar o sossego das pessoas, exatamente no horário
em que estão tentando descansar. Esse som é horrível!
Sabíamos todos ali que ela não tinha razão. Zeca tocava muito bem, belas
e variadas melodias, além de muitas vezes acompanhá-las com a boa afinação de
sua voz. Não somente eu, mas Mena e os meus sobrinhos, quando tínhamos a
oportunidade de ouvi-lo em sua expressão, acabávamos não compreendendo por que
a falta de interesse e manifestação de sua parte para tornar conhecido o seu
trabalho. Podíamos perceber claramente que se tratava de um artista, enrustido,
por algum motivo, que não conhecíamos.
Embora não desse muito cartaz às implicâncias de Dulce, aumentando ainda
mais seu incômodo em relação a ele, Zeca, uma vez ou outra, rapidamente, a
provocava, afirmando ser ela uma mulher frustrada pela solidão ou pela falta de
um companheiro, principalmente por já estar beirando os quarenta anos. E aquilo
realmente a deixava enfurecida, procurando imediatamente retrucar com negativas
e classificações a ele, como um homem machista e boçal.
- Quem diz o que quer, ouve o que não quer. Minha mãe já dizia.
* *
*
Eu acabava me divertindo com aquelas historias, dando um pouco mais de
sentido a minha vida, já que não experimentava mais do que um grande vazio
depois do acidente. Era como se eu me misturasse à vida daquelas pessoas,
preenchendo-me com sua historicidade, fazendo de suas vivências a minha. Diante
da vitalidade que sentia em meus sobrinhos e meu pai, em nossos empregados,
criava um mundo em minha mente, no qual só eu poderia entrar e ficar a salva de
tudo o que me lembrava a minha invalidez.
Tinha muitas vezes, uma vontade enlouquecedora de transformar aquele
mundo criado dentro de mim, inspirado pela vivência das pessoas à minha volta, em
uma nova história. Pulsava em meu peito o desejo profundo de voltar a me
expressar e transcender os limites que a vida me impusera. Papai, em vários
momentos, até me incentivara a voltar a escrever e trabalhar, trazendo-me de
presente certo dia um novo laptop.
Desejei arremessar aquele presente na parede, ao abri-lo. A escritora
Celina Gondim morrera naquele maldito acidente juntamente com seu grande amor.
Desde então, nunca mais havia sentado diante de um computador e digitado uma só
palavra. Ganhar um computador naquele momento parecia uma provocação, uma
gozação ao meu estado físico, à minha condição inerte. Só não o fiz em
consideração a papai, sabia de sua intenção e que jamais brincaria com meus
sentimentos.
As palavras de Maria Eugênia acercada daquele presente de papai, ficaram
se repetindo em meu pensamento.
- Ficará ótimo como enfeite de sua escrivaninha.
Papai ainda chegou a repreendê-la, mas minha irmã tinha toda razão.
Aquele computador, para mim, não passaria de um enfeite. E por vários dias, não
tive coragem de abri-lo. Até que certa manhã, ao acordar, aproximei-me da mesa
onde ele estava, em meu quarto e depois de um pouco de esforço, consegui erguer
seu visor. Hesitei, lembrando de quanta história já havia escrito em meu
passado, antes daquele terrível acidente, que me tirara os movimentos, a
mobilidade com minhas mãos. Pensei por um instante em fechar aquela máquina, a
qual me lembrava ainda mais de minha inutilidade, mas era mais forte que meus
limites físicos. Acabei por ver a imagem na tela se abrir, depois de apertar o
pequeno botão, com o qual parecia ligar minha própria vida. Tremia e sentia as
lágrimas banharem-me o rosto. Estava eu ali, no limiar, diante da possibilidade
de me fazer viva novamente.
JÚLIA SERRADO
Capítulo 37
Logo após o espetáculo, Vanessa não hesitou em levar Pedro ao camarim
para provar a minha farsa. Deparando-se com uma mulher extremamente parecida
comigo, de cabelos longos, lisos e ruivos como os meus, alta e magra, de rosto
afilado, dizendo-se ser Júlia Serrado, a mulher andróide do show, descrição
idêntica a que Vanessa havia feito. Pedro tinha ido à boate depois de muita
insistência da ex-mulher, que lhe prometera deixá-lo em paz depois daquela
noite.
Fiquei sabendo de toda a cena constrangedora de Vanessa
e Pedro abordando minha sósia, logo depois, quando me encontrei com ele. Estava
muito envergonhado, por ter se prestado a tal papel, mas vira naquela atitude
uma possibilidade de nos vermos livres de uma vez por todas das perseguições da
ex-mulher, que ficara enlouquecida diante de Leila, minha colega dançarina na
boate, que era muito parecida comigo, a quem, num momento de desespero, tivera
coragem de pedir ajuda, fazendo que ela se passasse por mim. Vanessa ainda
tentara levar o ex-marido para falar com Olívia Cordeiro. Por sorte, ele não
aceitara dar continuidade àquele absurdo.
Não sei se foi uma idéia de Deus ou do diabo, mas
daquela situação eu tinha conseguido me livrar. Queria apenas naquele momento,
ter coragem e finalmente contar a verdade. Poderia falar de Clara. Exatamente,
poderia começar falando do roubo de minha filha por Joel e Guel Serrado, e
somente depois contaria sobre o deputado Donato Pessoa. Assim, primeiro eu o
sensibilizaria, para depois revelar que fora enganado. E então, percebi que
mais uma vez estava tramando, jogando com um homem que sempre fora sincero,
verdadeiro. Era o momento de contar-lhe, exatamente naquele instante.
- Eu preciso muito falar com você, Pedro. Não podemos
mais adiar essa conversa. Você precisa saber da verdade sobre mim.
- Muito bem. Sou todo ouvidos.
Ele estava parado diante de mim, atento, surpreso com o
jeito como eu havia começado a conversa. Com um olhar curioso, de quem quer
logo descobrir que revelação poderia ser feita naquele momento.
Eu não sei se fui salva ou atrapalhada pelo universo.
Felipe tivera mais uma crise de alergia e parecia estar mal em casa, pelo menos
foi o que Vanessa conseguira dizer pelo telefone, naquele exato instante em que
eu iria contar tudo a ele. Agradeci a Deus e lamentei ao mesmo tempo, não por
Felipe, claro, mas por não ter que enfrentar aquela situação. Lembrei de quando
era criança, que ficava com medo de contar a meu pai quando fazia algo de
errado, temendo ser repreendida ou ficar de castigo. Meu castigo para aquele
pecado seria muito grave, talvez até o afastamento total de Pedro. Ele não me
perdoaria!
Sendo ou não perdoada, eu lhe contaria tudo assim que
voltasse de sua casa. Estava farta daquela situação, de tantas mentiras, de
tantas situações perigosas, de tanta tensão e preocupação. Queria ter paz e
poder deitar a cabeça em meu travesseiro tranqüila. E foi exatamente o que
afirmei ao deputado, assim que o dia amanheceu, quando me procurou mais uma
vez, para tentar me dissuadir a continuar em seu plano sórdido. Não me trouxera
nenhuma novidade sobre minha filha, com certeza estava mentindo, não sabia de
nada, usava a história apenas para garantir a minha parceria no jogo.
- Se não vai ser através de você, será de outra forma,
mas eu conseguirei este dossiê, antes de Pedro. E quanto a você, minha cara,
vai se arrepender amargamente de estar contra mim. Nunca mais verá sua filha,
eu te prometo!
- O que o senhor sabe realmente sobre minha filha,
deputado?
- Mais do que você pensa.
Só podia ele ter algo a ver com o seqüestro. A forma
como falava, deixava-me com muitas dúvidas.
- Foi o senhor?
- O quê?
- Foi o senhor que mandou roubar minha filha?
Pronto. Tivera coragem finalmente de enfrentá-lo.
- Ficou louca?
- Só pode. O senhor parece saber demais realmente quando
me ameaça.
- Sou apenas uma pessoa inteligente.
- Inteligente e perigosa.
- Disso você entende. O que fez com Pedro lhe coloca
numa classificação parecida com a minha, não acha?
- Não. E fiz pela minha filha.
- E eu pelo meu emprego. O que nos diferencia?
- O motivo.
- A nobreza dos motivos? Os fins não lhe fazem melhor do
que eu. Os meios pelos quais você tenta conseguir seu objetivo lhe fazem tão
suja quanto eu.
- Isso não é verdade. Eu sou uma mãe desesperada. Perdi
minha filha bebê.
- E isso lhe concede o direito de mentir, enganar, roubar?
- Não, mas...
- Não é melhor do que eu coisa nenhuma, moça!
- Quero apenas minha filha.
- E eu os documentos de que preciso. E aí? Isso é
importante para mim como essa criança é para você. Somos duas pessoas lutando
para conseguir o que consideramos importante a nossas vidas.
- Eu só preciso saber se o senhor tem realmente alguma
coisa a ver com o sumiço de minha filha.
- Pode ser que sim, pode ser que não.
Ele tinha um riso cínico o qual me enojava.
- Só me resta procurar a polícia.
- Faça. Acabará o resto dos seus dias atrás das grades.
- Será um escândalo e não será nada bom pro senhor.
- Certamente que não. Mas logo tudo estará esquecido,
como tudo o que acontece a qualquer político neste país. Quanto a você, minha
cara, encontrarei um modo de fazer com que apodreça na cadeia. Falsidade
ideológica é crime, sabia? No mais, ficará sem sua filhinha, para o resto de
sua vida.
Eu tive vontade de esbofetear aquele homem asqueroso,
canalha. Mais uma vez eu tive a impressão de que ele sabia de Clara, de seu paradeiro,
ou melhor, que tinha a ver com seu sumiço. Talvez tivesse de armação junto com
Guel, querendo me convencer a estar ao seu lado no plano, por eu ser tão
parecida com a tal Mirela, contratou Guel para ajudá-lo a tirar Clara de mim e
assim conseguir a minha participação. Mas como, como sabia de mim, como teria
pensado em tal plano? Não! Era muita fantasia de minha cabeça. Ele poderia
estar blefando somente. De qualquer forma Guel seria a chave para desvendar
esse mistério.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 38
Fui aprendendo, com o tempo, a me preocupar cada vez mais com a vida de
meus filhos e ir me afastando de meus interesses enquanto mulher, como se minha
felicidade fosse exclusivamente as suas vidas. Procurava diariamente não pensar
sobre os porquês de minha existência, mas se meus filhos estavam bem ou
precisando de algo. Deste modo, meus
medos, angústias deixavam de se estruturar na difícil convivência e violência
de meu marido, passando a se originar na ausência e mágoa de Tony, por algo que
eu não sabia ao certo o que era, bem como dos caminhos escolhidos por ela a fim
de conseguir subir na vida; ou ainda no afastamento forçado de meu filho
Holanda, depois de cortar relações definitivamente com o pai, e de seu
relacionamento errôneo com Renato.
O que também tirava-me o sono, era a falta de notícias de Ronie, o
caçula, de quem eu ficava sabendo alguma coisa apenas quando procurava os
irmãos em busca de dinheiro. Era na verdade quem mais me preocupava, naquele
momento. Já não o via há mais de seis meses. E eu sabia de seu vício.
Fora Ronie quem mais me dera trabalho nas épocas de colégio, com suas
confusões constantes, freqüentes expulsões e falta de interesse pelos estudos.
Valia-me de Nando para ensinar o irmão em casa, bem mais que Francisco, na esperança
de que se recuperasse e conseguisse passar de série. O que se repetia ano após
ano. Os problemas se complicaram ainda mais em sua adolescência. Vivia
envolvido com as piores amizades, garotos que sabíamos não serem de boa família
e estarem metidos com roubos pela vizinhança. Certa vez a turma de que meu
filho fazia parte, entrara no supermercado de Ceiça e Rubinho, levando todo o
dinheiro da caixa registradora. Rezei para que meu filho não tivesse nada a ver
com aquilo, embora soubesse que todos na rua desconfiavam com quem ele estava
envolvido sim, pois o viam junto com esses outros adolescentes permanentemente,
inclusive Ceiça, que passara a me olhar com desconfiança, quando ia no
mercadinho comprar algo. Lembro ainda que Alceu dera uma grande surra em Ronie,
por conta da desconfiança. No entanto, só comecei a ter as confirmações,
semanas depois, no momento em que aparecia um dia ou outro com roupas novas,
saídas constantes para shoppings e praia. Não podia ser de outro lugar a fonte
de seu dinheiro.
Depois de adulto não era diferente, Ronie continuava se relacionando com
pessoas perigosas e mal-quistas na rua. Já fazia três anos que saíra de casa
para dividir apartamento, segundo ele, com um colega, a quem nunca cheguei a
conhecer. Fiquei sabendo através de Holanda que estava trabalhando de garçom
num bar na Praia de Iracema, o que pelo menos já me tranqüilizava, embora
vivesse recorrendo aos dois irmãos para que o ajudassem a pagar uma conta ou
outra, as quais meu coração me dizia tratar-se de despesas com drogas. Ele
tinha dezesseis anos quando o flagrei com um cigarro de maconha dentro do
quarto.
Na verdade o trabalho que dizia ser de garçom, servia apenas como
disfarce para o que realmente fazia. Aos vinte e sete anos, era um homem muito
bonito, corpo atlético, moreno e jeito de sedutor misturando-se a um ar de
menino levado, e se aproveitava de seu sucesso com as mulheres, para ganhar a
vida. Nunca gostara de trabalhar no pesado e sempre procurou uma forma de
ganhar dinheiro fácil, sem ter que o fazer.
Logo que soube do endereço do tal bar, onde Ronie dissera a Holanda que
estava trabalhando, tratei de procurá-lo. Inventei para Alceu que iria visitar
uma cliente, a qual teria me encomendado uma roupa, lá pelos lados da Praia de
Iracema, onde na verdade ficava o bar “Mukifo”. Evidente que o nome não
espelhava o ambiente, o qual tinha uma estrutura requintada. Com certeza, era
freqüentado por pessoas de muito dinheiro, talvez turistas. Depois de ser
atendida por um dos colegas de trabalho de meu filho, conheci seu Nacélio, o
gerente, um homem de meia idade, cabelos grisalhos, vestia-se com camisas
soltas floridas. Chamou-me atenção o seu sotaque carioca bem carregado. Gentil,
parecia boa gente. As aparências enganam muitas vezes, já dizia a mamãe. Decerto,
agenciava todos aqueles garotos de programa. Era final de tarde e o bar
preparava-se para abrir. Vários rapazes de boa aparência, bem vestidos, estavam
ali, conversando, rindo e falando das clientes com as quais saíram na noite
anterior. Pude ouvir algumas histórias, no momento em que entrei, sem que
percebessem a minha presença. Só depois de falar com seu Nacélio, pude
encontrar meu filho, que havia dado uma saída rápida e logo voltou. Percebi seu
constrangimento de me ver ali, como se tivesse sido revelado o seu segredo,
embora eu tentasse agir com naturalidade. Estava feliz de vê-lo bem, pelo menos
fisicamente. A única coisa que queria naquele momento era abraçá-lo, nada mais.
Nem precisavam explicações, mentiras, as histórias que se sentia mobilizado a
criar para me fazer acreditar que não fazia nada demais. O que eu desejava
naquele instante era poder tocá-lo, sentir sua cabeça em meu peito, protegê-lo
de qualquer mal.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 39
Sonhava um dia em viver novamente junto de meus filhos e vê-los todos
bem, sem problemas, num clima de paz e harmonia, coisa que nunca experimentara
em minha casa. Estava com cinqüenta e oito anos de idade e trinta e cinco de
casamento, e naquele momento a única felicidade que provava eram os reencontros
com meus filhos, o que aconteciam em grandes intervalos de tempo e marcados por
tensão e medo. Alceu jamais poderia descobrir de meu contato com Holanda e
muito menos com Ronie. Ao primeiro chamava de viado, ao caçula de bandido e me
proibira de me relacionar com os dois.
A última discussão que Alceu e eu tivemos, a qual me rendeu uma noite ao
relento, depois de muitos machucados, foi exatamente por causa de Holanda. Não
suportei vê-lo falar que desejava a morte do filho pela escolha de viver com um
outro macho, segundo ele. Exigia de mim pensamento semelhante e por isso
começaram as agressões. Na verdade ele não necessitava de motivos concretos
para me bater, bastava chegar em casa embriagado, depois de ter perdido nas
mesas de baralho do colega Quaresma, para começarem as agressões. Chegava a
rezar para que não perdesse ou que seu
rival se saísse mal nas jogadas. Deste modo, chegaria bem em casa e nem falaria
comigo, a não ser para cobrar seu jantar e as roupas limpas em cima da cama,
depois do banho.
Sempre que Holanda ou Nando me questionavam, sobre o porquê de minha
permanência naquele casamento, chegava também a me perguntar, a procurar dentro
de mim uma resposta. Seria medo do que Alceu poderia fazer comigo, acomodação
ou realmente pena dele, como falava muitas vezes? Era difícil responder. Eu era
simplesmente infeliz e nada fazia para mudar aquela realidade.
Sabia que Alceu guardava um ódio dentro de si, que lhe movia em suas
atitudes violentas. Um sentimento de frustração e inveja de mim e do amor que
sentia por Adriano Cordeiro na época de nossa juventude. Éramos todos amigos de
escola, inclusive Alceu e Alberto Lucena. No entanto, ele nunca aceitara esse
amor e vibrou quando Adriano foi forçado pelo pai a se casar por ter
engravidado sua ex-namorada. Fora a maior decepção de minha vida, levando-me a
engatar namoro com Alceu de Holanda.
Pouco tempo depois do nascimento de sua filha Olívia, Adriano se separou
da esposa, mesmo contra a vontade de seu pai, na esperança de reatar comigo.
Sua decisão fora a maior prova de amor que poderia me dar. Contudo, meu pai
jamais aceitaria me ver casada ou namorando com um homem separado, para ele era
como se eu estivesse acabando com um casamento, união sagrada. Mesmo assim, pus
um fim no noivado com Alceu, que não aceitava minha decisão.
Certa vez, numa viagem de papai e mamãe ao interior, para a casa de seus
pais, fui surpreendida com a visita de Alceu, em mais uma tentativa de
voltarmos o noivado. Mas eu estava decidida, mesmo diante da proibição de papai
a meu romance com Adriano. Não suportava mais ficar com alguém sem gostar
realmente. Alceu não aceitava e insistia no retorno. Tentou então me beijar,
tomando-me em seus braços bruscamente. Minha tentativa foi de correr e logo
percebi que a porta estava fechada. Ele sabia bem o que estava fazendo, tinha
pensado em tudo, agiu na ausência de meus pais e meus irmãos. O desespero
começou a tomar conta de mim e senti um frio em meu estômago. E mais rápido que
lembrasse de gritar, ele já estava tapando minha boca e me deitando ali mesmo
no tapete da sala, entre a mesinha de centro e o sofá. Prendia-me com peso de
seu próprio corpo por sobre o meu, segurando meus braços com uma mão e tapando
minha boca com a outra. Não acreditava no que estava acontecendo, mais parecia
um pesadelo. O amigo que fora durante tantos anos, com quem depois dividi anos
de intimidade e cumplicidade em namoro e noivado, violentando-me, roubando-me a
honra. Gritei por dentro ao sentir-me rasgada em minhas entranhas! Não demorou
muito e logo tudo estava terminado. Quando levantou vi seu pênis sujo de
sangue, recaído para fora do zíper. Seu olhar era de ódio, totalmente
transtornado, como nunca antes o vira, depois de tantos anos de amizade, namoro
e noivado. Recompôs-se rapidamente e me deixou ali mesmo, jogada ao chão,
tomada por um choro compulsivo.
O que seria de mim depois daquilo, como enfrentaria papai e minha
família, como todos me olhariam após aquele absurdo? Acreditaria papai se lhe
contasse que o que acontecera fora sem a minha vontade, que havia sido
violentamente agredida pelo homem que havia me jurado fidelidade e cuidado, se
se casasse comigo? Não sei se realmente acreditaria. Lembrei-me de um fato, de
uma moça que teria sido estuprada no Montese há alguns anos, na época ainda de
minha adolescência e, vi papai denegrindo sua imagem, sem acreditar que fora de
fato um estupro, e se tivesse sido realmente, era uma mulher sem honra, segundo
ele.
Senti-me enojada de pensar daquela forma. Mas lamentavelmente era assim
que a sociedade pensava. Eu havia sido vítima de uma violência e teria de me
calar se não quisesse ver meu nome sujo, ou ser até mesmo rejeitada pela minha
própria família.
Os dias que se seguiram após aquela monstruosidade foram marcados por uma
tristeza profunda. Lembro que não tinha vontade de comer ou falar com ninguém.
Queria apenas viver minha dor. Alceu levara de mim, não apenas minha
virgindade, bem como meus sonhos, minha pureza. Algo dentro de mim havia mudado
e eu não sabia bem o que era.
Assim que meu pai voltou de viagem, tivemos a presença de Alceu
no almoço. Depois
de passarem mais de uma hora conversando na sala, sozinhos, fui chamada
juntamente com mamãe, sendo comunicadas que dali a um mês eu seria a senhora
Clarinda de Holanda. Senti náuseas e corri para o banheiro. Estava condenada a
passar o resto de minha vida ao lado daquele monstro. O que mais me magoara era
o fato de papai não se importar com meu bem estar e exigir minha união com ele.
Somente depois de nosso casamento, fiquei sabendo que Alceu não havia
falado a verdade a papai, e sim que tínhamos cometido o pecado da carne, mas
que estava disposto a reparar o erro, casando-se antes que alguém soubesse.
As palavras me faltam para expressar o que senti ao saber daquele
absurdo. Estava totalmente indignada e não hesitei em tentar agredi-lo. Foi a
primeira vez que Alceu me bateu, depois de nosso casamento. Dias depois,
descobri que estava grávida, fruto do pior momento de minha vida. Questionei se
era da vontade de Deus o nascimento daquela criança e senti vontade de tirá-lo,
livrar-me daquela marca que me acompanharia para o resto de minha vida.
Passara então os últimos trinta e cinco anos vivendo a tristeza de estar
casada com o homem que roubara de mim a esperança de minha felicidade,
lamentando a frustração de não ter podido viver esse grande amor com Adriano. E
Alceu sempre soubera de meus reais sentimentos para com ele, talvez por isso
nunca tenha me perdoado e admitido a minha indiferença, nem o amor que
carregava comigo ainda em meu coração.
Durante muitos anos ainda tivemos contato com Adriano Cordeiro, que uma
vez ou outra aparecia para nos visitar, por conta da grande amizade que existia
entre nós, e até mesmo entre ele e Alceu. A cada visita do amigo, meu marido
ficava cada vez mais agressivo, acusando-me de flertar com ele, durante todo o
momento em que estivera conosco. Com o tempo, comecei a pedir que não viesse,
na tentativa de acabar com o inferno que estava se tornando a minha convivência
com Alceu. Por mais que sofresse em ficar longe de mim, Adriano não queria me
ver sofrer e logo tratou de atender os meus apelos. Passávamos então anos sem
nos ver, até que o destino, de uma forma ou de outra nos colocava um na frente
do outro, em encontros inusitados e relâmpagos, nos quais mal podíamos trocar
algumas palavras. No entanto, a cada um deles, eu sentia o meu coração bater
mais forte, toda a emoção do início ainda se fazia presente, pelo menos de
minha parte.
Adriano nunca ficara sabendo o que realmente acontecera, para eu decidir
me casar com outro homem. Inicialmente, acreditava que eu tinha me descoberto
apaixonada por Alceu, assim como eu tinha dito, depois percebeu que não. Com o
tempo, parou de tentar entender, inclusive o motivo que me levava a manter
aquela relação estúpida com um homem de quem eu não gostava e ainda me fazia
sofrer permanentemente.
Nem ele, nem ninguém nunca saberia o que me fazia permanecer ao lado de
Alceu. Achava que era um segredo que levaria comigo para o túmulo. Acho que nem
mesmo o meu próprio marido entendia, e chegara a expressar essa dúvida vez ou
outra, quando arrependido das atrocidades cometidas no dia anterior.
JÚLIA SERRADO
Capítulo 40
Era chegado o momento de acabar com toda aquela farsa e
contar a verdade a Pedro. Fui direto para seu apartamento, decidida a pôr um
ponto final no plano de Donato Pessoa. Fui, no entanto, surpreendida por
Vanessa, que já estava de saída.
- O Pedro já sabe de tudo, sua vagabunda. Eu quero saber
agora que mentira vai inventar para se livrar dessa.
Não podia ser mais um de seus devaneios. Ela sabia bem o
que estava dizendo. Mas como teria conseguido provar alguma coisa? Não
importava como, se ele já estava sabendo ou mesmo que não soubesse, saberia
naquele momento por mim. Pedro estava na sala, sentado no chão, segurando
algumas fotos, como que perdido em meio a várias outras fotos e papéis à sua
volta.
- O que houve, meu amor?
Dava para perceber que chorava, mesmo calado. Nem
conseguia olhar para mim. Senti uma dor profunda ao vê-lo daquela forma, sofrendo,
com um olhar perdido, sem conseguir fixá-lo em lugar nenhum. Suas mãos
percorriam sua cabeça, jogando o cabelo para trás, numa coreografia que se
repetia, como sempre fazia em situações perturbadoras. Pensei que tivesse
acontecido algo com Felipe, talvez uma forma de fugir da realidade, do que
realmente eu sabia que estava acontecendo. Tinha descoberto tudo e estava
sofrendo por isso. Os papéis e fotos eram tudo sobre minha vida, sobre minha
real identidade e a verdadeira ligação entre a tal Mirela e eu.
Pouco tempo depois de meu nascimento, meu pai recebera
uma carta anônima delatando um romance secreto de minha mãe e um primo seu,
pondo em xeque a paternidade de minha irmã mais velha – Mirela. Pensando ter
sido traído pela esposa, meu pai fora embora, levando-me consigo. A verdade
nunca viera à tona. Nossa família fora separada pela dúvida da traição. Fui
criada somente por meu pai, viajando de cidade em cidade, sem nos fixarmos
muito tempo em lugar algum, por conta de seu trabalho como general da marinha. Eu
então vim morar aqui depois de muitos anos, mesmo sem saber da existência de uma
família em
Fortaleza. Já Mirela , anos após a morte de nossa mãe, havia
morrido em um acidente de carro, sem saber por onde andávamos papai e eu.
Estava completamente chocada diante daquelas revelações.
Era como, se de alguma forma, uma parte de mim não fosse conhecida por mim
mesma. Sentia-me estranha, desconsertada, sem saber ao certo o que pensar. Por
um momento esqueci que Pedro estava ali na minha frente, de posse de toda a
verdade também, sabendo que Mirela de fato estava morta e que meu nome real era
Júlia Serrado, coreógrafa e bailarina da Mirage, como Vanessa tentara lhe dizer
tantas vezes antes.
Era tudo muito confuso para mim. Não sabia se me
preocupava com Pedro ou com aquela nova história sobre minha vida. Afinal, eu
tinha assumido a identidade de minha própria irmã, passando-me por ela e vivido
um romance com seu grande amor. Era realmente tudo muito louco. Não somente ele
estava diante da verdade, mas eu também estava sendo surpreendida com aquela
revelação. Havia sido usada por Donato Pessoa, sem saber de nada. No entanto,
ele sabia exatamente o que estava fazendo e não contara nada antes, para usar
aquela informação no momento que achasse oportuno, como aquele. Estava certo
quando dissera que não deixaria barato a minha desistência de seu plano para
enganar o concorrente dentro da empresa. Tinha entregue todos aqueles
documentos sobre minha vida a Vanessa para que ela acabasse comigo.
Bem, mas eu precisava apenas contar a Pedro sobre Clara
e meu sofrimento, os motivos que me levaram a entrar naquele jogo.
- Pedro, você precisa saber da verdade.
- De qual verdade? - Finalmente pude ouvir sua voz. –
Quem está falando agora, é Mirela ou Júlia Serrado? - Aquela pergunta chegou-me
como um balde de água fria. – Já sei de toda a verdade, Júlia. Sei que fui um
pateta nas suas mãos, que me enganou, tripudiou o quando pôde encima de mim,
dos meus sentimentos, do amor que sentia por Mirela.
- Não, eu nunca tripudiei...
Estava entrando em desespero, não era possível que ele
estivesse achando que eu não o amava.
- Como não?
- Pedro, acredita em mim, eu te amo!
- Acreditar em você? - Estava mais alterado. – Quem você
é, garota? O que você é, afinal? Eu não sei com quem eu estou lidando.
Acreditava estar diante da mulher que amei a vida inteira. E agora, isto.
- Isso não é verdade. Você não estava diante da Mirela.
Eu posso até parecer muito com ela, fisicamente, mas não por dentro. Você
estava agora apaixonado, não por ela, mas por mim.
- Eu estava apaixonado por uma mentira.
Ele levantou-se e, por um momento, achei que iria me
agredir.
- Eu entreguei meu amor a uma farsa, porque eu acredito
nas pessoas, acredito que todo mundo fala a verdade, vive a verdade, como eu
procuro viver.
- Eu também sempre procurei viver a verdade.
- Se fazendo passar por sua irmã?
- Não! Eu preciso te explicar.
- Que mentiras vai inventar agora? A Vanessa tinha toda
razão sobre você. Desde o principio ela soube que era uma impostora, que não
era Mirela, sempre me disse isso e eu, burramente, não acreditei, não a
escutei.
- Eu fui obrigada.
- Ele te ameaçou?
- Não, não foi isso. Mas eu precisava encontrar a minha
filha.
- Que filha?
- Ah, isso eles não te falaram?
- Eu estou começando a achar que você precisa de um
médico, garota.
Era desesperador vê-lo falar daquele jeito, com tanto
desprezo de mim.
- Não fala assim comigo, Pedro. Minha filha foi roubada.
Donato Pessoa prometeu encontrá-la se eu...
- ...me seduzisse, me enganasse? Ora, Júlia Serrado,
você acha realmente que eu vou acreditar nessa história mirabolante, depois de
tudo o que eu soube sobre você?
- Você tem que acreditar! – Meu tom já era de quase
desespero. E me vi segurando-lhe pelo colarinho, como que para ele não
escorregar das minhas mãos, sair da minha vida.
- Me solta. Não sei quem você é. Não acredito em nada,
nenhuma palavra. – Falava com certo asco.
- Eu estou falando a verdade, Pedro. Entrei nesse plano,
mas acabei me apaixonando por você.
- Isso é pior do que eu pensava. – Levantando-se de onde
estava.
- Acredita em mim, por favor!
- Eu juro que eu queria.
- Eu te amo, Pedro. – Minha voz já era embargada pelo
choro.
- O que eu sinto agora, é uma dor profunda, que você não
tem idéia.
Eu vi seus olhos encherem-se de lágrimas. E com a voz
entrecortada pelo choro que insistia em lhe tomar:
- Vai embora. Me deixa aqui, eu preciso raciocinar,
pensar em tudo isso.
- Se você soubesse o quanto eu estou arrependida. - Tomada
completamente pelo choro. - Eu vinha te contar tudo.
- Vai embora, por favor, não piore as coisas.
- Pedro, acredita em mim.
- Saia daqui, por favor.
- Eu tenho uma filha. Ela agora tem quase dois anos. Meu
marido a roubou com a ajuda do irmão. Queria vendê-la a um casal de
estrangeiro.
- Meus Deus, que família! Com quem fui me meter?
Era como se o que eu revelasse piorasse ainda mais minha
situação.
- Fui vítima também, droga!
- Vítima? Não sei, não sei mesmo o que pensar. –
Caminhando de um lado para o outro. Passava a mão no cabelo, no rosto.
- Esse Donato Pessoa chegou me falando que poderia me
ajudar a encontrar a Clara. Acreditei que podia assim descobrir onde estava
minha filha.
- É muita coisa para minha cabeça, de uma vez só. Sinto
muito.
- Pedro, acredita em mim. É o que te peço.
- E se eu acreditasse, do que adiantaria? Mentiu, me
enganou, me traiu.
- Foi por uma boa causa.
- Então é capaz de matar, se julgar ser por uma boa
causa?
- Não. Não é assim. Está sendo muito duro comigo.
- E o que esperava que eu fizesse?
- Que acreditasse em mim.
- Acreditei. E no que deu?
- Não sei o que dizer.
- Pois eu sei. Acredito nas pessoas até que elas me
provem o contrário. E você o fez. Fazer-se passar pela irmã morta, trazendo uma
história à vida de uma pessoa anos depois que já havia se refeito desta dor...
Não! Isso é absurdo! É monstruoso! Eu não acreditava que isso poderia acontecer
na vida real.
- Me perdoa.
- Saia daqui, por favor.
- Pedro...
- Saia daqui, eu lhe peço.
Ainda tentei me aproximar e ele se afastou. Queria
distância de mim. Como doeu aquilo. Via-me desesperada, sem conseguir
mostrar-lhe todo o meu amor, e o quanto eu também havia sofrido com tudo
aquilo, o quanto eu pensei e tentei lhe contar a verdade.
Entedia plenamente, no entanto, sua atitude. Não
conseguia acreditar em mais nada do que eu falava, e quando mais eu tentava me
explicar, era como se quebrasse ainda mais a magia, a verdade do que havíamos
vivido naqueles meses.
Saí daquele apartamento como que tivesse uma faca
cravada em meu peito, tamanha era a dor que levava comigo, a qual se
intensificava ainda mais ao lembrar do rosto do homem que amava chorando,
sofrendo com tudo aquilo. Definitivamente, ele não merecia, e era o que me
fazia ainda pior. Estávamos separados pela minha covardia, minha burrice, minha
falta de fé.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 41
Acabei por me isolar na solidão de meu casamento, no dever de minha
religião e nas preocupações com minha família. Temia que um dia alguém
soubesse. Apesar de ter morado minha vida inteira na mesma rua, no Montese, não
era muito de amigos íntimos. Não conhecia quase ninguém da vizinhança e tinha
como amiga mais próxima, Ceiça, proprietária do mercadinho da esquina. Uma
mulher que não se preocupava com a vida das outras pessoas. Sabia de seu
conhecimento sobre a minha situação e até me ajudara algumas vezes, contudo,
nunca tocara no assunto diretamente, para me preservar.
Ceiça era uma senhora bem humorada, de meia idade, porém bem cuidada,
aparentando ser bem mais jovem que eu. Vestia-se bem, embora com roupas
modestas. Todos na rua sabíamos que sua situação financeira melhorara bastante,
com o aumento das vendas no mercadinho, embora não gostasse de ostentação. Era
casada há mais de trinta anos com Rubinho, pouco mais velho, por quem tinha uma
completa veneração. Achava difícil ver um casal junto há tanto tempo e
continuarem tão apaixonados um pelo outro. Formavam um simpático casal. Ele era
um homem magro, calvo, de cabelos grisalhos, detestava quando alguém chamava
atenção para sua careca.
O mercadinho de Ceiça e Rubinho funcionava como pointe da rua Romeu
Martins, onde todos se encontravam em horários diferentes, no momento das
compras, para colocarem o papo em
dia. Mesmo sendo uma mulher que não gostava de fofocas,
acabava sabendo da vida de muitas famílias do Montese, através das próprias
pessoas, que transformavam suas compras numa espécie de seção terapêutica.
Ceiça e Rubinho acabaram se transformando em figuras folclóricas do
bairro, devido à veneração dela pelo marido. Não se cansava de afirmar a todos,
em todos os momentos, o quanto era um homem bom, de boa índole, honesto, fiel,
corajoso e um amante maravilhoso. Ela era completamente fã do próprio marido.
Eu, assim como muitas pessoas, não suportava vê-la elogiar o esposo
permanentemente, em cada história, em cada segundo de sua fala, acabando por
não segurar o riso. Às vezes tinha vontade de dar boas gargalhadas.
No fundo, eu os admirava. Exagero ou não, Ceiça e Rubinho experimentavam
a felicidade. Claro que em alguns momentos, no intervalo de um elogio ou outro
ao marido, ela mostrava-se preocupada com os filhos.
Dorival, o filho mais velho de minha vizinha, de trinta anos, policial
por desejo da mãe, também já era alvo de seus elogios exagerados,
transformando-o num grande herói, por ser, segundo ela, um homem extremante corajoso,
dotado de inúmeras virtudes, capaz de entregar a própria vida em prol da lei e
da justiça. Além de uma beleza estonteante, lembrando seu grande ídolo do
cinema Marlon Brando, de quem mantinha um enorme quadro na sala de sua casa, ao
lado das fotos de tamanho similar do marido e do filho.
Bem, que Dorival realmente era muito bonito, isso sem sombra de dúvidas,
mas daí ser parecido com Marlon Brando, já era exagero seu. Apenas minha
vizinha conseguia perceber a tal semelhança.
Ceiça não suportava o fato de Dorival, um rapaz tão virtuoso e belo,
estar se envolvendo com Salete, a bela mulata que se mudara para a casa em
frente ao mercadinho. Sabia-se que a moça era solteira e a rua comentava que
gostava de ter muitos namorados. O que mais incomodava à Ceiça talvez fosse o
jeito meio vulgar, segundo ela, com que a moça se vestia e falava, sempre
maquiada em qualquer hora do dia, fumando um cigarro atrás do outro. Andava
acompanhada freqüentemente de Vera Sheila, moça mal falada de nossa rua, com
quem todos os rapazes da vizinhança haviam perdido sua virgindade. E o pior,
para minha vizinha, Salete parecia já estar falando em casamento. Aquilo
estava lhe tirando o juízo, completamente. Dizia baixinho para mim que seu
filho, tão bonito, inteligente, bom homem, não poderia jamais se casar com uma
mulher tão vulgar, usando roupas tão curtas. Eu chegava a rir, algumas vezes,
de suas colocações, quase ingênuas. Mas preocupação de mãe não se explica.
A outra filha de meus vizinhos, também lhes dava um pouco de trabalho.
Marluce se mostrava completamente alucinada por meu filho Nando, e não perdia a
oportunidade de estar ao seu lado, tentando me ajudar nas costuras ou nos
afazeres domésticos, o que me deixava, diversas vezes, constrangida, ou ainda
tentar momentos de estudos com ele. E tudo para ficar mais perto de sua paixão,
que parecia se cansar dela cada vez mais, principalmente depois de tê-lo
beijado dentro de seu carro, no estacionamento da faculdade, causando o fim do
namoro de Nando e Olívia Cordeiro. Assim, como ele, Ceiça achava a filha
inconseqüente e pedia-me ajuda para colocar mais juízo em sua cabeça.
* *
*
A outra vizinha de quem senti também desejo de me aproximar mais foi
Júlia Serrado, que chegara na rua, morando na casa de frente à minha. Existem
coisas que não sabemos explicar. Desde quando nos conhecemos, no dia de sua
mudança, senti algo de bom em sua presença. Devia ser uma boa moça. Pelo menos
trabalhadora era, parecia ser ela quem sustentava a casa, com a cunhada e os
dois sobrinhos. Eu ficara sabendo do roubo de sua filha, através dos
comentários de duas vizinhas, que conversavam no mercadinho. Nunca tive um
filho roubado, mas sabia bem o que era não poder vê-los ou conviver com eles.
Sendo que o caso dela era ainda mais grave, por ser apenas um bebê. Minha
intuição nunca falhou. Desde o primeiro momento em que conversamos, Júlia e eu,
percebi uma certa tristeza que carregava consigo. Queria poder lhe ajudar de
alguma forma.
* *
*
Acho que procurava me envolver nas histórias de minha família e vizinhos
somente, como forma de esquecer o vazio em meu coração. Não era somente o fato
de permanecer ao lado de Alceu, mas também a distância de meu grande amor.
Adriano Cordeiro já estava com sessenta anos, e era um homem que carregava
consigo muito charme e beleza, pelo menos eu achava na última vez em que nos
vimos, que faziam cinco ou seis anos. Mesmo depois que me reaproximei de
Olívia, não obtinha notícias dele, sendo ela brigada com o pai, desde sua
gravidez, fazia vinte anos. Sabia apenas que ele continuava morando com D.
Norma Mesquita, uma senhora de oitenta anos, de quem administrava todos os
bens, através de uma imobiliária, criada especialmente para este fim, desde a
morte de seu marido, dez anos antes. D. Norma era para ele, como uma mãe, e ela
o considerava também como filho. Nunca cheguei a conhecê-la, mas ele falava
muito e com bastante admiração, de sua firmeza, beleza e verdade. Devia ser uma
figura realmente interessante. Desejava conhecê-la um dia. Isso, se um dia, nós
ainda nos reencontrássemos.
Pensar na possibilidade de nunca mais reencontrar Adriano, doía-me na
alma, como se eu mesma arrancasse de mim, a última oportunidade de ser feliz um
dia. Embora achasse ou soubesse que seria realmente impossível ter ainda alguma
coisa com ele, mesmo que qualquer tipo de relação. Jurara para mim mesma que
ficaria com Alceu até o dia de sua morte. Não poderia nunca pensar em quebrar
aquela promessa, embora me custasse a própria vida. Meu próprio desejo era meu
algoz! Afinal, éramos casados. E casamento é para sempre, como diziam meus
pais.
Parte II
Junho a Agosto de 2006
JÚLIA SERRADO
Capítulo 42
Chorei a noite inteira, depois de sair do apartamento e
deixar Pedro para trás, de posse de toda a verdade, ou parte dela. Sabia
finalmente que não havia retornado seu romance com o grande amor de sua vida,
Mirela, mas que tinha entregado seu coração a uma mulher que se fizera passar
pela própria irmã para enganá-lo. Não acreditara em uma só palavra que eu havia
tentado lhe dizer, os motivos que me fizeram tomar aquela atitude, ou até mesmo
o porquê de Vanessa ter conseguido as provas contra mim.
Deitei no colo de Raquel naquela noite, falando
repetidamente sobre o quanto eu estava arrependida e quanto amava Pedro Lucena.
Poderia me lembrar que por diversas vezes aconselhou-me a contar a verdade, mas
não o fez. Escutava-me com toda a paciência do mundo, acariciando minha cabeça,
debruçada em seu colo.
- Não se preocupe, Júlia, logo tudo estará resolvido.
Pedro vai saber da verdade sobre Clara e vai entender. Sei que é um homem bom,
além de te amar.
Raquel só não pensava naquele instante que também era um
homem traído, que entrara em contato pela segunda vez com a notícia de que
Mirela estava morta, que os sonhos os quais se reacenderam dentro de si haviam
novamente sido apagados e justamente por mim. Não pensava com tanto otimismo
quanto Raquel. E era exatamente isso que machucava o meu coração ainda mais.
Sei que ninguém nunca morrera de amor antes, no entanto,
a dor que experimentava naquele momento, chegava a me sufocar, a doer
fisicamente. Lembrava-me dos momentos em que estivemos juntos nos últimos
meses, a cumplicidade, o afeto, o carinho, os sonhos, os planos, a
possibilidade da felicidade eterna. E então, tudo estava acabado. Pensar que
não teria mais o seu calor, que não sentiria mais o cheiro, que não
compartilharíamos mais nossas idéias, nosso dia-a-dia, fazia-me entrar em
contato com um vazio, que disparava descargas de adrenalina em meu corpo,
adormecendo-me as pernas.
Para Pedro a situação não se desenhava diferente. Há
muito tempo não entrara em contato com tamanha dor. A última vez a qual passara
por coisa parecida, fora realmente na perda de Mirela, há quinze anos. Desde
então, não vivera nada tão intenso que lhe fizesse sentir tamanha falta. Esteve
casado com Vanessa por dez anos e dedicara-se somente ao filho e ao trabalho,
bem como tentar conviver com os ciúmes da mulher. Nem mesmo a morte do pai,
seis meses antes, trouxera-lhe tanto sofrimento. Na verdade, não conseguia
chorar desde a morte de Mirela. Embora tivesse uma relação de muita amizade com
o pai, não experimentara o vazio o qual sentia naquele instante. E aquilo o
deixava ainda mais angustiado.
Depois de passar horas vendo e revendo cada foto, cada
linha do relatório sobre a minha vida, ou pelo menos sobre o meu envolvimento
num plano para dar a Donato Pessoa a vice presidência da RTN, Pedro decidira
sair e encontrar, embora que de madrugada, com o amigo Adriano Cordeiro, em quem
se apoiara, em seu momento de dor. Finalmente conseguira colocar para fora toda
a sua angústia, seu desespero, sua tristeza, num choro compulsivo, como se
chorasse todos os seus infortúnios dos últimos quinze anos.
- Tenho muita consciência de que não choro nesse momento
pelo que ela fez comigo somente, mas por cada perda, por cada dor, dos últimos
anos da minha vida, Adriano.
- O universo, muitas vezes, nos mostra saídas um tanto
tortuosas, meu amigo. A moça precisou chegar na sua vida, pra te fazer essa
limpeza. Na verdade, você estava necessitando de algo que te impulsionasse a
acordar para o que é real em seu coração. Você fugia disso há anos, Pedro.
- Eu sei.
O choro ainda lhe veio de forma compulsiva,
dificultando-lhe a fala.
- Talvez tudo isso tenha sido muito bom ter acontecido
exatamente agora...
Hesitava um pouco e continuava.
- ...pra que... pudesse destampar essa pedra que... que
me impediu de “sentir” durante tantos anos. Mas dói muito, amigo! Dói muito!
Muito mesmo!
Falava aquilo, procurando enxugar as lágrimas em seu
rosto.
Estavam praticamente sozinhos no bar, na companhia
apenas dos garçons e demais funcionários. E o dia já estava quase amanhecendo.
Podiam ouvir os primeiros cantos dos passarinhos, nas árvores da calçada do
ambiente, que ficava na Avenida Virgílio Távora, pertinho da Dom Luís.
E Adriano bem sabia do que Pedro estava lhe falando.
Lembrava-se do quanto sofrera com seu afastamento do grande amor de sua vida,
D. Clarinda, bem como do quanto sofria com a distância de sua filha, Olívia,
desde que a expulsara de casa grávida, fazia vinte anos, de quem desejava poder
se reaproximar novamente. Chegava a ficar também emocionado de ver o amigo
daquela forma.
- Sabe o quanto eu gosto de você, Pedro. Seu pai e eu
fomos grande amigos, desde garotinhos. Praticamente vi você nascer. E hoje,
somos também grandes amigos. É como se você fosse para mim um filho. E me dói
profundamente vê-lo dessa forma. Eu queria muito poder te ajudar, amenizar o
que você está sentindo. É isso que um pai sente, quando vê um filho sofrer.
E deixou que uma lágrima rolasse pelo seu rosto.
- Mas eu sei que é muito importante o que você está
sentindo nesse momento, Pedro. Importante que eu digo, para o seu crescimento
como pessoa, como ser humano. O sofrimento é apenas como nós nos posicionamos
diante de certos convites do universo, os quais consideramos desagradáveis.
E Pedro, ainda tomado pelo choro:
- Eu fico ainda tentando não encontrar subterfúgios que
proliferem essa dor, mas é quase impossível não pensar que poderia ter sido
diferente... e eu nem sei como poderia ter sido diferente. Pior, não haveria
como ter sido diferente. Era tudo uma grande mentira, uma grande farsa...
Baixou um pouco a cabeça, entregando-se ao choro. E
então continua:
- Eu não posso fechar os olhos e imaginar que isso tudo
não passa de um grande pesadelo, entende? Que não poderia ser diferente,
porque... a Mirela...
O choro lhe interrompia diversas vezes.
- ...a Mirela, na verdade... ela está morta!
- Eu compreendo exatamente o que você está sentindo,
Pedro. Essa coisa da gente de repente imaginar que fosse diferente, é como se,
por alguns segundos, a gente trouxesse a felicidade de volta, e conseguisse de
fato transformar a tristeza, deixar de senti-la. São mesmo subterfúgios para enganar
a dor.
- E eu sei que isso só dificulta ainda mais o processo.
A gente acaba adiando o que é inevitável, o fim.
- Na verdade, o que queremos adiar, não é o fim, e sim a
dor que ele nos provoca. Você precisa ser muito forte, meu amigo.
Pedro pensara no quanto a vida era inusitada. Parecia
ter vivido num conto de fadas, nos últimos meses, reencontrando seu grande
amor. E de repente, deparou-se com a triste realidade que não apenas Mirela
estava realmente morta, mas também havia sido vítima de um golpe de seu melhor
amigo, embora estivessem afastados nos últimos anos, ainda o considerava assim
e gostava de Donato Pessoa como um amigo.
Era como se fossem vários golpes simultâneos, uma
decepção que se dividia em muitas outras.
Na verdade, Pedro chorava ali, na companhia de Adriano,
a dor pela morte de Mirela, a saudade que sentira do pai desde que fora morar
em Londres, a pressão do casamento com Vanessa, o afastamento de Donato Pessoa,
os problemas de saúde de Felipe, a sua separação, e mais tarde, a morte do pai,
a decepção com o melhor amigo de sua vida inteira, e finalmente, a desilusão
com a falsa Mirela.
Quando o dia amanheceu eu estava queimando de febre.
Raquel se dividia em cuidar dos filhos, ajeitando-os para irem à escola e me
dar assistência, até lembrar de chamar a vizinha, D. Clarinda de Holanda. Ela
já estava a par de toda a história, eu havia lhe contado há algum tempo, pouco
depois de nos mudarmos ali para o Montese. Diferente de Pedro, ela não só
acreditava em minha inocência, como ficara do meu lado, tratando para que a
febre baixasse. Em alguns momentos, cheguei a delirar, enxergando meu grande
amor entrar procurando por mim. Os delírios se revezavam com breves momentos de
lucidez, que me traziam de volta a dor pela perda de Pedro, fazendo-me soluçar
num choro compulsivo. Lembro-me bem de D. Clarinda tentando me acalmar.
- Filha, logo tudo ficará bem. Não se preocupe.
Era como se não falasse apenas para me deixar melhor,
assim como fazia Raquel. D. Clarinda parecia saber realmente do que estava
falando, como se tivesse certeza de sua afirmativa. E aquilo me deixava mais
calma. Embora segundos depois soubesse que não.
- Não, D. Clarinda, ele não vai me perdoar! Não vai!
Ouvia mais meu próprio choro, que o barulho de meus
sobrinhos Zezinho e Rafael se negando a escovar os dentes, logo ali do lado, no
banheiro. Não sabia ao certo se o que Raquel lhes dizia era realmente para eles
ou se se referia a mim, num desabafo.
- A gente não pode fazer tudo o que a gente quer na
vida. Vamos... Agora!
Desejei ter alguém que me tivesse impedido de fazer o
que eu fiz com o homem que eu amava, assim como Raquel estava interferindo no
desejo das crianças. Deste modo, eu não teria me machucado tanto, nem teria
causado tanto sofrimento em alguém que jamais merecia estar passando por
aquilo.
- Eu fiz o que há de pior no mundo com o homem que eu
dizia amar, D. Clarinda!
- Você fez o que achava que era certo, filha.
- Eu não podia tê-lo enganado!
- Às vezes erramos porque somos mães, Júlia. - Ela
retrucava, enxugando-me as lágrimas. - Não se culpe ainda mais, filha.
Lembre-se dos motivos que lhe levaram a fazer o que fez. Eles nunca foram uma
mentira.
- Foram fraqueza!
- Mas não foram mentira. Eles eram reais e você sofria
com eles.
- Eu fui fraca!
- Não tinha obrigação nenhuma de ser forte.
- Como não?!
- Ninguém tem. Seria melhor ser forte, mas nem sempre
somos. - Ela sorria, acariciando-me a cabeça. - Júlia, você sabe o quanto
sofreu durante todo esse tempo em que carregou esse fardo, essa farsa. Nunca
fez por mal, por querer se dar bem em cima de ninguém, e muito menos de Pedro.
Pelo contrário, preocupou-se com ele sempre. Queria ter lhe contado...
- Mas não contei na hora certa.
- A hora certa é a hora da verdade, mas nem sempre
conseguimos enxergá-la diante do medo, principalmente do medo de uma mãe, de
não mais ver sua filha. Júlia, eu não quero tirar aqui a sua responsabilidade
diante do que aconteceu, mas não tem, neste momento, que ficar pensando no que
deveria ter feito e sim, no que vai fazer daqui para frente.
- Eu preciso aprender, D. Clarinda.
- O passado é para nos servir de lição, não para ser
vivido. Olhar o passado é vida facilitada, viver no passado é tempo perdido.
E eu sabia bem o que D. Clarinada procurava me dizer. O
meu sofrimento se pautava na idéia de que não poderia mais voltar e fazer tudo
de forma diferente. Era isso que ela chamava de perda de tempo. Mais uma vez
estava distante do que era real. Primeiro fiquei presa nas armações de meu
próprio ego, em meus medos de achar que era aquele o caminho para reencontrar
minha filha, em minha falta de fé. Depois encontrava-me perdida na dor por não
ter vivido uma situação que considerava como ideal e deixava de pensar no que
era verdade naquele instante. Funcionava como uma forma de adiar a vivência
daquilo que realmente era verdade e, consequentemente, de tentar mascarar a dor
pela não entrega a este convite.
Devo ter passado uns dois dias em casa, procurando me
recompor. Meu objetivo não era simplesmente viver a dor, como achava Raquel,
mas encontrar-me comigo mesma, rever meus valores, meus princípios de vida, dos
quais havia me perdido, na relação com Pedro. Passei minha vida inteira
acreditando na verdade como condutora das relações e de meus atos e, de
repente, havia me permitido a viver uma história totalmente mentirosa e enganar
as pessoas, para conseguir alguma coisa em troca. Antes de
aceitar a proposta de Donato Pessoa e Luísa a assumir a identidade de minha
irmã Mirela, eu ficava me questionando se os fins justificavam os meios.
Naquele momento optei por pensar que era mais importante a possibilidade de
reencontrar a minha filha, legitimando o pensamento em questão, isto é, negando
tudo o que eu acreditei durante toda a minha vida.
Chegava à conclusão de como era fácil errar e justificar
os meus erros, ou melhor, minha falta de coerência, fazendo de minha vida algo
sem sentido. Lembrava-me de papai me dizendo que nós somos aquilo que pensamos
e fazemos. Deste modo, somos seres eternamente em transformação, já que nossos
pensamentos hoje fazem sentido, amanhã não. Sendo estes pensamentos os
condutores de nossos atos, tornamo-nos aquilo que sentimos, em cada momento. E
então, chegava a me questionar sobre a minha identidade. Quem sou eu realmente
ou como posso saber qual é a minha identidade, se é que tenho alguma identidade
verdadeiramente definida na vida?
Deparava-me com uma série de questionamentos, aos quais
não obtinha respostas. Chegava apenas à conclusão de que me encontrava
completamente perdida, sem referenciais de valores claros. Contudo, necessitava
retornar à minha vida, às minhas responsabilidades, trabalhar, encontrar minha
filha.
MARINA PESSOA
Capítulo 43
No exato momento em que eu ia abrindo a porta do escritório, onde eu
achava ter visto meu marido e sua secretária transando, fui abordada por dona
Deise.
“A senhora está bem, D. Marina?”
Foi uma mistura de susto e alívio, simultâneos. Mas pelo menos alguém
presente que pudesse trazer-me de volta ao mundo real, visto que eu não sabia
ao certo se estava dormindo, em meio a um pesadelo, ou acordada. A única coisa
que eu fiz foi abraçar aquela mulher, como se fosse um pedido de socorro e até
agradecimento por estar ali diante de mim. Fui conduzida por D. Deise até meu
quarto, como uma mãe faz com um filho, que levantou da cama no meio da noite.
Às vezes, sentia isso em relação a ela, fazendo coisas e tomando atitudes que
pareciam ser minha mãe.
O cuidado de D. Deise e o alívio pela certeza de não estar mais dentro do
pesadelo, fizeram-me esquecer completamente do barulho no escritório. Devo ter
ficado por quase uma hora na companhia daquela boa senhora, até Donato voltar
ao quarto. E aí, eu já estava quase dormindo, exausta pelo acontecido, que mal
o vi chegando. Lembro-me de tudo como um sonho.
Logo cedo, no café, Donato e eu falamos sobre a possibilidade de eu
voltar a procurar Vanessa. Necessitava reatar com minha irmã e me reaproximar
de minha família. Estava também curiosa de saber como Felipe estava e poder
desfrutar de sua presença. Uma criança nesse momento talvez me fizesse bem. Mas
não poderia fazer isso sem que meu marido soubesse, já que não concordava com
essa reaproximação.
Meu marido achava que era Vanessa quem devia nos procurar e tentar se
retratar diante de nós dois, visto ter sido contra a nossa união e até ter tentado
nos impedir de ficar juntos. Não admitia de maneira nenhuma que eu a
procurasse, até porque a considerava nociva ao nosso casamento. A via de fato
como uma inimiga. Tentei falar-lhe de minha necessidade de voltar a me
relacionar com minha família e da saudade de Felipe, a quem ajudara a criar,
mas ele estava irredutível e nem me dava a devida atenção, considerando ser um
assunto absurdo e que não merecia gastarmos tempo falando naquilo. Respondia-me
em intervalos, entre um comentário ou outro com Luísa sobre os clientes da
empresa.
Minha vontade foi de sair correndo daquela mesa e gritar, exigindo
atenção e respeito a meus sentimentos. A impressão que eu tinha, muitas vezes,
era que Donato tratava meus problemas como se fizessem parte da RTN ou fossem até
menos importantes, que sempre pudessem ser deixados para depois, um depois que
nunca chegaria. E eu estava começando a ficar farta de ver o meu marido
passando a maior parte de seu tempo discutindo questões de trabalho ou política
na companhia de Luísa, como se fosse ela sua companheira. Embora soubesse de
sua competência e total doação ao trabalho com meu marido, me incomodava o fato
de ele nunca querer comentar nada comigo, excluindo-me totalmente de sua vida,
como se a única pessoa de confiança que tivesse fosse exatamente sua
secretária, a ponto de convidá-la a morar conosco. Restando para mim somente a
companhia de D. Deise, que geralmente era muito séria, nem sempre estava
disposta a conversas.
Verdadeiramente, não entendia o que meu marido esperava de mim. Não
permitia que eu me envolvesse em nenhuma amizade, nem tão pouco me dispensava a
atenção que eu realmente precisava. E havíamos nos distanciado ainda mais
depois de ter ingressado na política. Dividia-se totalmente entre a RTN e as
reuniões do partido, bem como às viagens a Brasília, que quando fazia, eram ao
lado de Luísa.
* *
*
Donato vinha tendo diversas reuniões com alguns articuladores políticos,
muitas delas aconteciam em nosso próprio apartamento, a fim de estabelecer
novos conchavos com líderes políticos de bairros de Fortaleza e outros
municípios cearenses, para apoiarem seu nome ao senado nas eleições que
aconteceriam no segundo semestre. Aquilo estava tomando muito o seu tempo e nos
afastando cada vez mais.
Quando as reuniões aconteciam em nosso apartamento, Donato me pedia para
recepcionar a todos. O que eu fazia com muito gosto, por me sentir mais perto
de meu marido. Os encontros aconteciam na grande sala de estar, espaço que
comportava confortavelmente as oito ou dez pessoas participantes das reuniões.
A orientação de Donato era para que eu me retirasse após a chegada de
todos, para o início dos trabalhos. O que me doía era saber que Luísa estaria
presente durante todo o processo. Ela tinha com meu marido uma cumplicidade que
eu invejava profundamente. Embora soubesse que ele zelava por minha integridade
e não queria, na verdade, me envolver naquela sujeira.
Muitas vezes me escondia no corredor, ouvindo parte das reuniões.
A idéia principal que conduzia os encontros políticas de meu marido e
seus correligionários era adquirir financiadores para a campanha, em troca de
favores políticos depois de eleito, que facilitassem o crescimento das empresas
financiadores através de serviços prestados a altos custos às instituições
públicas.
MARINA PESSOA
Capítulo 44
No final do primeiro semestre de 2006, Donato passou a se dedicar mais à
campanha política, visando sua eleição ao senado dali a alguns meses, do que à
conquista do cargo de vice-presidente da RTN, o que me deixava aliviada, por
não vê-lo tramando nada contra Pedro Lucena, meu cunhado, a quem eu admirava
profundamente e tinha um carinho todo especial, embora tivéssemos estado
distantes nos últimos cinco anos, desde meu casamento.
O contato com meu cunhado era pequeno, mesmo depois de seu retorno ao
Brasil no ano anterior, com a morte de seu pai. Mas sempre que nos
encontrávamos, sentia uma energia boa e um cuidado todo especial de sua parte
em relação a mim. Sentia seu carinho, através de seu olhar, como se me dissesse
silenciosamente que eu podia contar com seu apoio a qualquer momento.
Pedro sempre fora um grande amigo, desde seu namoro com Vanessa, quando
eu era apenas uma garotinha. Dedicara a mim, durante os anos em que morei em
Londres com eles, um zelo paterno, que se presentificava em cada encontro,
mesmo que não tivéssemos tempo para conversar. Era algo que ficava no ar e
chegava a chamar atenção de meu marido, que não falava do assunto diretamente,
mas se mostrava extremamente incomodado, procurando intervir em qualquer
aproximação ou contato mais duradouro, onde nos encontrássemos.
Neste último encontro, na casa de Leonardo, Pedro me aconselhara a
procurar Vanessa e resolver nossa relação de uma vez por todas, falando-me de
seu amor por mim e da falta que eu lhe havia feito e a Felipe quando voltei ao
Brasil, após meu casamento. Não conversamos mais por causa de Donato, que
percebera nossa aproximação e tratara de interromper, chamando-me para me
apresentar a um amigo de Leonardo, presente no jantar.
As poucas palavras de Pedro, fizeram-me passar noites em claro,
refletindo sobre a possibilidade de procurar minha irmã e implorar para que me
amasse. Sabia que havia muita coisa mal resolvida em minha vida e precisava dar
um basta nessas situações inacabadas, com ou sem a autorização de Donato. Na
verdade, o que me fazia de fato hesitar era o receio de que ele fizesse algo
contra mim. Mas o que poderia fazer? Não teria coragem de me agredir, nunca o
fizera. Deixar-me também, creio que não. Meu marido me amava muito para isso.
Então o quê? Por que eu tinha tanto medo, e exatamente de quê?... Era chegado o
momento de pensar um pouco mais em mim e em minha felicidade. Ele, além de seu
casamento comigo, lutava por seu crescimento dentro da RTN, sua ascensão
política. Nunca deixara de fazer aquilo que lhe garantia a manutenção de seus
objetivos na vida. Por que eu teria de abnegar tudo a seu favor, inclusive do
amor de minha família?
Eu estava decidida a procurar por Vanessa e pôr um fim àquela angústia
que me atormentava a alma e fazia de mim uma pessoa tão infeliz. Mas eu precisa
de algo que me desse ainda mais coragem de enfrentar as ordens de meu marido.
Estava almoçando apenas na companhia de D. Deise, como de costume, que
ficava ali, em pé, do lado da mesa, aguardando alguma ordem ou pedido meu, para
providenciar o mais rápido que pudesse. Resolvi então compartilhar minha
decisão, de uma forma não-clara, para não correr o risco de me comprometer,
através de uma indagação.
- D. Deise, a senhora deixaria sua família, irmãos, parentes, se alguém a
quem a senhora amasse muito lhe pedisse?
Ela lançou a mim um olhar de surpresa por aquela indagação, talvez nunca
esperasse que eu lhe fizesse uma pergunta daquelas, de repente. E mais, no
fundo, sabia de que eu estava falando. Apesar de ser uma pessoa discreta e
nunca termos conversado nada sobre minha vida e minhas angústias, acompanhava
minha história e minha solidão, desde o princípio de meu casamento. Podia ser
que soubesse mais de nossas vidas que qualquer outra pessoa.
- Desculpe, não entendi a pergunta, D. Marina...
Eu sabia que tinha entendido, mas procurei ser ainda mais clara.
- Abandonaria sua família a pedido do homem que amasse?
Nossa curta conversa fora interrompida por Donato, entrando na sala,
repentinamente, como se tivesse saído do nada.
- Não percebe que D. Deise não sabe do que você está falando, minha
querida.
Aquele velho sorriso sarcástico pairava em seu rosto, o sorriso
artificial de quem não estava gostando nada daquilo e insistia em passar uma
imagem de que estava tudo bem. Aproximou-se de mim, beijando-me a testa.
- Estou indo a Brasília agora. Quero que arrume suas coisas e venha
comigo.
Apertou-me a mão, como um aviso para que eu nem tentasse prosseguir
aquela conversa. Senti um frio no estômago, como se tivesse sido pega fazendo
algo errado, embora não fosse realmente o caso. Não poderia ser errado uma
pessoa querer estar perto de sua irmã, seu sobrinho, sua família. Por mais que
Donato não suportasse a idéia, iria acabar tendo que concordar.
Cheguei a pensar na hipótese de me negar a viajar, para poder fazer o que
havia decido em relação à Vanessa. Mas não poderia perder aquela oportunidade
de estar um pouco mais perto de meu marido. Nunca me levava às viagens, nem à
Brasília, nem a viagem nenhuma. Estava quase sempre na companhia de Luísa. Não
queria perguntar por que ela não nos acompanharia daquela vez, para que não
corresse o risco de ele mudar de idéia e me punir pelas indagações, decidindo
não mais me levar. No fundo sabia sua intenção em me levar àquela viagem. Não
estava confiando em me deixar, estava certo que eu procuraria minha irmã, e
queria impedir. Por mais que eu precisasse resolver aquela pendência com meu
passado, não poderia perder a oportunidade de fazer o que eu tanto desejava e
não fazia comumente.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
45
Retornei então, depois de alguns dias afastada, à
Mirage. Retomamos os ensaios de meu show, bem como dos demais espetáculos
apresentados pela nossa equipe de dançarinos. Tanto conduzindo o trabalho dos
meninos, quanto no palco, sentia-me inteira, sem máscaras ou subterfúgios. Era
como se me deparasse com todas as respostas que estava procurando. Ali,
conseguia um pouco de paz.
Precisava estar em pleno vapor de criação, permanentemente,
visto que nosso público retornava em curto intervalo de tempo, o que exigia de
nossa equipe, em todos os shows, uma dinâmica incessante, com passos novos e
detalhes inéditos. Na parte de criação dos shows, minhas idéias casavam-se
perfeitamente com as de Charles. Fazíamos uma bela dupla. Mas, infelizmente, em
meados de julho de 2006, ficamos sem sua presença mágica na boate.
Foi mais uma grande perda em minha vida. A viagem de
Charles Moreno a Europa, me deixou totalmente desnorteada. A sua despedida foi
um momento de muita comoção na boate, por parte de todos. Fizemos uma festinha
surpresa para ele, numa tarde, antes de abrirmos. Eu já vinha há muitos dias
sofrendo com sua partida, e por mais que eu tentasse evitar, as lágrimas
insistiam em encharcar meus olhos o tempo inteiro. Queria que ele soubesse de
minha felicidade por ter dado certo a sua viagem, contudo, não conseguia parar
de pensar no medo de ficar sozinha. Primeiro Clara e Joel, depois Pedro, e
naquele momento Charles. Sentia-me egoísta por não conseguir sintonizar de fato
com a possibilidade de seu crescimento profissional. Antes de abrimos as portas
naquela noite, Charles e eu tivemos uma conversa na qual me falara de sua
solidão, bem como do quanto era responsável por aquilo. No momento em que
tivera a oportunidade de estar com a pessoa que amava, optou pelos medos, pelos
condicionamentos, pelo receio da entrega, perdendo seu grande amor. E então,
encontrava-se ainda apaixonado pela mesma pessoa, sem uma segunda chance de
viver essa história.
Eu sabia de quem Charles falava. Embora não citasse
nomes, sabia que se tratava de Renato Brandão, sócio da Mirage, que estava há
alguns anos vivendo com um outro companheiro, desde que terminara seu romance
com Charles. Uma vez ou outra o rapaz até aparecia na boate, causando um certo
incômodo ao meu velho amigo, embora Holanda, o namorado de Renato, fosse uma
boa pessoa. Foi então que eu descobri que este rapaz, era filho de minha
vizinha e amiga, D. Clarinda de Holanda, ao ver uma foto dele em sua casa.
A verdade era que Charles não estava deixando o Brasil
por conta de uma boa proposta de trabalho na Europa, e sim para tentar fugir da
dor de não poder viver seu grande amor e ainda vê-lo nos braços de outro.
Charles era extremamente discreto, e não me falara sobre
aquilo apenas para desabafar, queria me ver bem e me ajudar. Era como se fosse
um convite para que eu pudesse enfrentar a dor e correr atrás de meu grande
amor, sem me deixar levar pelo medo e me fazer vencida pela covardia de não
lutar por meus sonhos, defender meus sentimentos e tudo fazer para estar com o
amor de minha vida. Ele viajara deixando comigo a marca de sua força e de seu
afeto.
Enfrentava um novo desafio em minha vida. Em meio ao
sofrimento por tudo o que me acontecera nos últimos meses, como o roubo de
Clara, a trágica morte de Joel, a separação de Pedro e, por último, a viagem de
meu grande amigo, experimentava um novo momento em minha vida profissional. Com
a saída de Charles Moreno da Mirage, eu deixava de ser somente a coreógrafa
para assumir a direção artística do espaço. Ficaria sob a minha
responsabilidade a criação e direção dos espetáculos, bem como a gerência de
pessoal, na equipe de dança da boate. E justo no momento no qual eu me sentia
menos inteira, menos entregue, sem condições de me doar plenamente.
Olívia Cordeiro e Renato Brandão haviam confiado o cargo
a mim, tanto pela indicação de Charles, que era na verdade o grande peso para a
minha contratação, quanto pelo meu desempenho como coreógrafa durante o último
ano. Charles e eu havíamos desenvolvido um belíssimo trabalho, que rendera casa
cheia todas as noites, nos finais de semana, transformando a Mirage numa grande
sensação nas noites de Fortaleza. O que rendia à boate notas em revistas
nacionais.
CELINA
GONDIM
Capítulo 46
Diante daquele computador com o qual papai me presenteara, senti por
alguns instantes, uma fortaleza que há muito não experimentava. A possibilidade
de provar novamente da liberdade que aquela máquina poderia me proporcionar,
deixava-me entusiasmada, cheia de vida. Um vigor que subia pelo meu corpo e
parecia tomar conta de meus braços, impulsionando-os a tocar cada tecla, como
se novamente pudesse ver a vida abrindo-me uma nova porta.
Mas o que eu escreveria na verdade depois de tudo o que havia acontecido?
E então me veio à lembrança o rosto de Vinícius, seu amor, suas incansáveis
tentativas para me ajudar a deixar o vício, seu sofrimento ao me ver
completamente drogada, sua dedicação, e por fim, o terrível acidente que lhe
tirara a vida.
Um impulso incontrolável tomou conta de meus braços, como se não me
houvesse limites físicos, fazendo-me derrubar aquela máquina no chão, seguido
de um grito ensurdecedor. Não! Eu não podia voltar a escrever, não mais
conseguiria criar histórias de vida e amor se eu tinha sido para o homem a quem
amava o canal de sua morte, a autora de seu fim. No mínimo escreveria acerca da
tragédia de minha vida, de meu sofrimento, de minha morte em vida, de minhas
limitações e do quanto odiava aquele estado físico no qual me encontrava.
Por diversas vezes, nos últimos dois anos, tive a oportunidade de ouvir
pessoas com deficiências físicas, nos mais variados níveis, aquelas que já
haviam nascido com suas limitações e aquelas que, por alguma razão do destino,
foram acometidas de situações trágicas às quais lhes deixaram seqüelas
irreversíveis. Eram depoimentos nos quais os portadores de deficiência
ressaltavam o quanto estavam felizes por permanecerem vivos e poderem de algum
modo reaprender a viver, embora que, em sua grande maioria, com profundas dificuldades.
Seria eu, deste modo, um péssimo exemplo para essas pessoas. Nem ao menos
compreendia como conseguiam ver a vida daquele modo depois de suas tragédias,
quando eram na verdade, ao meu ver, para estarem numa tristeza profunda pelas
limitações existentes em suas vidas.
Chorava naquele momento a dor pela minha prisão num corpo incapaz, o peso
e a culpa pela morte do homem que eu amava. Debrucei-me sobre a mesa, num choro
compulsivo, sendo abordada por Dulce, que assustada, me vendo naquele estado,
ao entrar em meu quarto, logo procurou me ajudar e saber o que tinha
acontecido. Contudo, ninguém poderia fazer nada por mim, ninguém poderia me
devolver os movimentos, a alegria, minha vivacidade. Estava nas mãos de Deus,
se Ele realmente existia.
Dulce apanhara o computador do chão, lamentando o que tinha acontecido,
lembrando-me ter sido um presente de papai. A mim não importava naquele
momento, a tal máquina representava um convite o qual eu abominava e jamais
aceitaria. Acreditava escrever a minha própria essência e naquele instante,
esta era negra e machucaria na certa a quem lesse.
No fundo, todos estavam torcendo para que eu voltasse a escrever. Maria
Antônia me falara de uma pesquisa que estava fazendo na faculdade e precisara
reler um de meus livros o qual tratava da vida na rua, de pessoas sem moradia,
sem um lar. Como se para me mostrar o quanto meu trabalho fora ou era
importante. João Henrique insistia em afirmar seu desejo de poder apreciar
novamente meu trabalho, fosse em livros ou em numa produção para a televisão.
Papai tentava de todas as formas me convencer, sempre que tinha uma
oportunidade, chegara a me propor fazer parte de uma empreitada na RTN de criar
uma série que tivesse como pano de fundo uma instituição que trabalhava com
deficientes físicos, dizendo confiar a mim esta missão. Até Mena, torcia e me
aconselhava a voltar. Mas eu não podia, era difícil.
Maria Eugênia ficara uma fera ao saber do convite de papai. Chegara a
questionar sua intenção numa reunião na RTN, ressaltando a proposta de uma
série nestes moldes como sendo um chamado para a população acerca da
problemática do deficiente físico, um meio de denunciar o descaso dos
governantes e da sociedade e ao mesmo tempo uma forma de mostrar vida onde
muitas pessoas acreditam não mais existir. Para minha irmã eu não seria jamais
um exemplo neste sentido e sim a confirmação da deficiência como sendo um
terror na vida de qualquer pessoa. O pior que ela estava coberta de razão.
Claro que sua intenção era também de não permitir minha expressão e a
possibilidade de me ver novamente bem, gerando de alguma forma a vida.
Em todo caso, papai, assim como Pedro Lucena, se apoiavam na visão de que
a minha participação no tal projeto seria uma estratégia de enriquecer o
trabalho, a partir de minha visão, fosse ela qual fosse, até porque eu seria
apenas uma das autoras e ninguém melhor que a própria pessoa vivendo na pele um
drama, para traduzi-lo. Maria Eugênia, apoiada por seu ex-marido, Donato
Pessoa, no entanto, tentaria de todas as formas impedir que eu voltasse. Para
ela, seria inaceitável me ver novamente dentro de “sua” emissora. Por isso,
exigira do ex-marido que a ajudasse na tentativa de convencer os demais
diretores da RTN a não apoiarem a escolha de meu nome para o referido trabalho.
Donato como sempre tinha um trunfo. A idéia seria propor ao diretor
artístico da emissora a contratação de sua sobrinha, a quem queria ajudar, e
também era portadora de deficiência, com um problema bem menor que o meu,
claro. A outra autora pensava exatamente de forma contrária a mim e já havia
participado de um trabalho como co-autora numa de nossas grandes concorrentes,
do Rio. E isso com certeza pesaria para a escolha do nome. O que minha irmã e
seu parceiro passaram a defender dentro da diretoria da RTN era a minha
presença no projeto como um pé para o fracasso e para a crítica,
fundamentalmente de associações e instituições voltadas para trabalhar uma
visão positiva do deficiente. Mesmo a emissora estando consagrada, um passo em
falso seria crucial para uma grande queda, devido o nível de exigência para com
ela, por estar fora do eixo Rio-São Paulo e já ser considerada como uma grande
ameaça à audiência dos canais do Sudeste.
No fundo, eu achava que Maria Eugenia tinha razão. E de modo algum queria
pôr o sonho de papai em
risco. Sabia das dificuldades as quais enfrentava para manter
sua rede de televisão como umas das mais assistidas do país, disputando com os
grandes canais brasileiros. Transformar uma pequena TV local dentro de
Fortaleza em uma das maiores emissoras do país, custara caro a papai. Além de
dever gigantescos favores políticos e empréstimos ao governo do Estado, passara
a vender cotas publicitárias de programas, que muitas vezes ainda nem haviam
estreado, prometendo antecipadamente índices de audiências os quais, em muitos
casos, não conseguia cumprir, acumulando a dívida da emissora junto também a
seus patrocinadores. Uma política de expansão publicitária que tinha Donato
Pessoa e Maria Eugênia como mentores, e que Pedro Lucena estava tentando
acabar.
Definitivamente, eu não queria ajudar a destruir o árduo trabalho da
pessoa a quem eu mais amava. Não sabia ao certo de quanto era a dívida da RTN,
mas estava consciente do perigo que seria a minha presença num projeto que
estava custando milhões de dólares e poderia se transformar numa nobre produção
para as classes B e A, o que renderia bastante à emissora, não somente em nível
financeiro, mas como imagem de um canal sério, empenhado em ajudar a sociedade
e produzir programas de qualidade, a fim de levar uma mensagem de vida e
esperança ao público. A série, idéia original de Pedro Lucena, em parceria com
papai, que ainda nem tinha um título definido, era uma possibilidade de sucesso
e consagração da RTN nacionalmente, bem como poderia representar seu fracasso e
a prova de sua inabilidade na produção de projetos sensíveis.
CELINA GONDIM
Capítulo 47
Confesso ter me sentido tentada a aceitar a proposta, principalmente
quando tive a visita de Pedro, meu velho amigo, que tanto me ajudara no passado
a enfrentar meu vício e me encontrar comigo mesma. Era bom vê-lo falar da vida,
do quanto acreditava em seu trabalho como um meio potente de fazer as pessoas
perceberem a linha tênue entre o desespero e a felicidade, sendo ela a
responsável por pontuar com mais exatidão o caminho presente em seu coração.
As palavras de Pedro me confundiam em minhas crenças e sentimentos.
Sentia-me contaminada com a vida existente em sua idéia. Era sem dúvida uma
pessoa apaixonada por aquilo que pensava, ou melhor, expressava com firmeza e
convicção a sua paixão, tornando-a desejável a qualquer pessoa que com ele
interagisse. Além se ser um profissional ousado, capaz de apostar tudo na
presentificação daquilo que acreditava.
Mas não era assim tão fácil. Voltar a escrever naquele momento acerca da
deficiência física, seria não somente um retorno ao trabalho, bem como um
encontro direto com meus medos, com o terror existente em meu peito, com a
preservação do mal gerador de dor em meu coração. E isso aniquilava qualquer possibilidade
de aceitar a proposta, por mais que eu soubesse, como Pedro me dissera, que
também poderia representar a minha redenção, a superação de tudo, um retorno,
mesmo que indiretamente, à vida. E talvez fosse este último argumento o mais
forte, por incrível que parecesse, à minha negação.
Pedro fora profundo em suas colocações, fazendo-me perceber a mente
humana como um universo infinito de possibilidades, e a criação artística como
simplesmente a apropriação do mundo magnífico e indiscutivelmente plural de
nossas idéias, sendo este universo o responsável direto pelo estado maior de
nossa felicidade. Ou seja, que a felicidade nada mais é que uma expressão
autônoma do ser humano frente a sua própria criação de vida.
Segundo Pedro as tristezas ou alegrias experimentadas por mim, por ele ou
qualquer outra pessoa poderiam ser transformadas, conforme a nossa expressão na
vida. Isto é, quanto mais nos expressamos enquanto singularidades, mas felizes
nós somos, quanto mais reproduzimos padrões um dia criados e não mais
modificados em nossa existência, mais provamos o sabor da infelicidade.
Era claro e confuso ao mesmo tempo. Entretanto, enquanto artista,
criadora ou escultora do mundo infinito de nossa mente, eu sabia que a
transformação era possível em todos os níveis da vida. E isso chegava a me
amedrontar, como se eu não mais soubesse viver na possibilidade da alegria, ou
ainda quisesse de fato permanecer numa escuridão criada por mim mesma, como
forma de autopunição, pela culpa de ter sido eu a causadora da morte de
Vinícius.
O fato é que a visita de Pedro Lucena mexera
profundamente comigo, a ponto de eu pedir um tempo para pensar sobre o assunto,
causando um frisson em nossa casa, deixando a todos numa atitude de celebração,
exceto Maria Eugênia.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
48
Tão logo assumi a nova função na boate, fui chamada para
uma conversa a portas trancadas com Olívia. Ela estava extremamente desapontada
com o que viera a descobrir a meu respeito. Ninguém sabia como, o relatório de
Donato Pessoa sobre mim e meu envolvimento com Pedro Lucena, fazendo com que
esta também ficasse sabendo de toda a história. Ela, por sua vez, encontrava-se
completamente chocada de posse daquelas informações.
Olívia olhava-me como se não acreditasse verdadeiramente
no que lia. Entregou-me os papeis, pedindo-me gentilmente que eu lhe explicasse
melhor do que se tratava. Tive vontade de me enterrar de tanta vergonha. Como
lhe explicar aquele absurdo? De certo, da mesma forma que Pedro, não
acreditaria em meus motivos, no que havia me levado a cometer tal barbaridade.
- Eu preciso que você me explique o que significa isto,
Júlia. Confesso que estou um pouco confusa com tanta coisa.
- Ah, Olívia, eu não sei nem o que lhe dizer.
Minha voz quase não se fazia ouvir. Mal podia fitar seus
olhos, procurando olhar aqueles documentos como se ali fosse encontrar um lugar
no qual eu pudesse me refugiar. Avistei na mesa, por trás da cadeira de Olívia,
uma águia dourada em posição de pouso em cima de uma pedra. Desejei por um
instante ser aquele pássaro e sair dali, ganhar asas e me perder no mundo, sem
ter que encarar ninguém ou dar qualquer explicação.
Senhor, onde eu estava com a cabeça, quando aceitei
participar daquele plano sórdido, juntamente com Donato Pessoa? Acho que no
instante em que decidi fazer parte do jogo, não pensei que as pessoas poderiam
ficar sabendo e que além de me sentir vil, todos à minha volta conheceriam essa
Júlia Serrado a qual queria esconder naquele momento.
- A única coisa que posso falar agora, Olívia... - Estava
com dificuldade de pronunciar aquelas palavras. Sentia todo o meu corpo tremer.
- ...é que sinto uma vergonha gigantesca pelo que fiz.
Percebia que Olívia me olhava com pena e ao mesmo tempo
surpresa por saber do que eu havia sido capaz de fazer. Dera um suspiro e
depois falou:
- Olha, Júlia, é muito difícil eu ficar sabendo de tudo
isso e nada fazer. Conheço Pedro Lucena desde criança, nossos pais sempre foram
amigos. Além do quê, sei que é uma pessoa muito boa, de caráter. E mesmo que
não fosse... O que você fez, não tem justificativa!
- Eu sei, Olívia. E concordo plenamente com você. Eu sei
que não tem desculpas, mas eu estava completamente desesperada.
Acabei por contar-lhe com detalhes sobre o roubo de
minha filha e as promessas de Donato Pessoa de encontrá-la. Queria que soubesse
que eu não era uma pessoa má, mas uma mãe desesperada, tentando encontrar sua
filha roubada. Sabia que ela era mãe e uma pessoa sensível, podia ser que
acreditasse em meus motivos e me compreendesse.
Depois que terminei de lhe contar a história, Olívia
levantou-se, voltando-se para alguns porta-retratos com fotos suas e de seu
filho Alexandre, numa prateleira que ficava à sua direita. Como se ganhasse
tempo para pensar, discernir sobre que eu havia lhe dito. Rezei em meus pensamentos
para que Deus a iluminasse e a fizesse entender o meu sofrimento. Procurava
entregar nas mãos Divinas.
Olívia falou-me ainda de costas, sem conseguir fitar-me
os olhos:
- Confesso que estou um pouco confusa com essa história,
Júlia. Mas o fato é que não dá pra continuar com você aqui, depois de saber de
tudo isso. Como lhe disse, conheço Pedro desde criança, tenho um bom
relacionamento com Vanessa. Seria constrangedor para mim, entende?
Pelo menos parecia acreditar em mim, estava me demitindo
por uma questão de consideração aos amigos. Menos mal. Fui embora naquela tarde
com um misto de tristeza e raiva ao mesmo tempo. Reconhecia minha
responsabilidade no que estava acontecendo. Por um instante senti um pouco de
mágoa de Olívia, mas logo a compreendi. Talvez em seu lugar fizesse o mesmo. De
fato ela estava numa situação delicada, visto que conhecia tão bem Pedro. Não
seria bom realmente para o seu relacionamento com ele, bem como com Vanessa. E
se não fosse naquele momento a minha saída da boate, logo aconteceria, mais
cedo ou mais tarde. Vanessa não deixaria barato e com certeza exigiria de
Olívia exatamente aquela atitude.
Nem ao menos consegui chorar com minha saída da Mirage.
Era também como se fosse uma forma de auto-punição. Não tinha o direito de me
entristecer com aquele desfecho, afinal, eu tinha procurado e teria que pagar o
preço pela minha fraqueza. Achava justo, ou queria achar.
Contudo alguma coisa eu precisava fazer. Não poderia
ficar sem trabalho. Raquel ainda estava desempregada, com os dois filhos dentro
de casa e eu também sem trabalho. Tratei de elaborar meu currículo e enviar a
projetos sociais e ONGs, a fim de trabalhar como professora de dança, como
também entrei em contato com todas as pessoas que conhecia de grupos artísticos
de dança, para divulgar a minha
necessidade de trabalho naquele momento. De braços cruzados, eu não ficaria. E
foi o que me sustentou de pé, durante os dias que seguiram, até meu reencontro
com Pedro.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 49
Estava saindo de casa para fazer umas compras, quando, fechando o portão,
avistei Adriano Cordeiro, do outro lado da rua, em frente à casa de Júlia.
Senti meu coração palpitar e minhas mãos suarem frio. Estava diante do homem
que tinha sido o grande amor de minha vida, com quem construí sonhos e o desejo
de passar o resto de meus dias. Continuava bonito sim, como há cinco ou seis
anos, a última vez em que havíamos nos visto. Ganhara um pouco mais de peso,
mas permanecia com a mesma elegância, bem vestido. Os óculos escuros e os
cabelos bem mais grisalhos realçavam seu charme.
Tão logo havia saído do portão, tratei de entrar de volta, para que ele
não me visse. Nem sei ao certo por que fiz aquilo, mas não queria, acho, que
ele me encontrasse mal vestida, com aparência descuidada. Além do quê se Alceu
soubesse, seria um inferno dentro de casa. Ele não suportava a presença de
Adriano, odiava os sentimentos que nós nutríamos um pelo outro, na época de
nosso casamento. E apesar de terem sido amigos de juventude, haviam perdido o
contato, por conta dos ciúmes de meu marido.
Acompanhei a imagem daquele homem desde o momento em que saíra da casa de
Júlia e entrara em seu carro, estacionado logo em frente. Só saí
novamente do portão, depois de me certificar que o carro já tinha realmente
deixado a Rua João Firmino.
Sabia que mais cedo ou mais tarde aquilo poderia acontecer. Uma vez ou
outra Júlia falava em Adriano, já que era o grande amigo de Pedro Lucena, e
também fazia parte de seu grupo de biodança. Ultimamente, ela vinha, inclusive,
insistindo para que eu fosse conhecer o grupo. Já pensou que absurdo, uma velha
dançando no meio de um salão? Além de reencontrar Adriano ali. Seria uma
loucura. Evidentemente que Alceu jamais permitiria, mesmo sabendo que não tinha
nada demais.
Fiquei feliz ao saber que Adriano estava disposto a ajudar minha amiga a
se reconciliar com Pedro. Ele não havia perdido sua bondade e a mania de se
preocupar com as pessoas, sempre tentando ajudar alguém. Era de uma
solidariedade admirável, desde a época em que namorávamos. Acho que seu único
deslize fora de fato sua reação ao descobrir a gravidez de Olívia, um preço
alto que pagava até hoje.
Júlia era uma mulher perspicaz e logo percebera que existia algo além de
uma velha amizade. Não me importei de lhe falar sobre nossa relação antes de me
casar com Alceu, e de meus sentimentos em relação a Adriano. Minha maturidade
não me impedira, contudo, de me encontrar embaraçada, com a indagação de minha
amiga:
- D. Clarinda, a senhora ainda ama esse homem?
Senti um certo desconforto e até desrespeito. Afinal, era uma mulher
casada. Como ser abordada com tal pergunta? A própria Júlia percebera o
desconforto gerado e procurara desconversar, falando do plano de Adriano para
que ela e Pedro pudessem se entender.
Mas aquela pergunta ficara me martelando durante dias.
“D. Clarinda, a senhora ainda ama esse homem?”
Como uma simples indagação poderia me deixar tão ansiosa? Logo eu, uma
mulher tão madura, que havia aprendido com o sofrimento as respostas certas da
vida. Creio ter me esquecido nos últimos anos de me indagar sobre meu coração.
Passara tantos anos da minha vida, preenchendo o meu tempo com as costuras de
minhas clientes, os problemas de meus filhos e a agressividade de Alceu, que
deixara de lado a verdade sobre os meus sonhos.
Não demorou muito para que Adriano e eu nos reencontrássemos realmente.
Foi ali mesmo, na casa de Júlia. Ele chegou de súbito, sem avisar, a fim de
falar com minha vizinha sobre a conversa que ela e Pedro haviam tido no dia
anterior. No momento em que
Raquel atendeu a porta e eu ouvi sua voz, ainda de fora,
pedindo desculpas por ter vindo sem avisar, mas explicando que precisava falar
urgentemente com minha vizinha e não conseguira por telefone, eu quase me
queimei com café, de susto.
Júlia levantara-se para receber o amigo e logo ele estava ali, bem diante
de mim, depois de anos sem nos encontrarmos. Quando Adriano se deu conta de
minha presença na sala, pude perceber que a surpresa e o nervosismo eram
mútuos. Parecíamos dois adolescentes, diante de alguém com quem queriam estar,
mas não podiam.
- Clarinda?!
- Como vai, Adriano?
Seu sorriso, acompanhado de um olhar espantado me fizeram viajar no tempo
e trazer à memória, numa fração de segundos, as mais variadas cenas de nossa
história: os namoros no pátio do colégio das Dorotéias, onde estudava e ele
sempre dava um jeito de visitar, usando como pretexto a presença de sua irmã
, que era da mesma turma que a
minha; ou ainda os passeios de mãos dadas, na Beira-Mar; Bem como os almoços na
casa de nossa amiga Clarinha, que morava numa casa grande, perto da Igreja de
Fátima, onde podíamos namorar, no banco do jardim, que ficava na frente da
casa, de onde podíamos avistar o movimento da igreja. Brincávamos dizendo que
um dia nos casaríamos ali.
Velhos tempos que chegaram com toda a força em minha memória, fazendo-me
emocionar, por um instante. Meu Deus, que situação constrangedora! Uma mulher
casada, emocionada ao reencontrar um antigo namorado, na casa de sua vizinha.
Uma cena no mínimo ridícula. Procurei então me conter, para que não causasse
nenhum constrangimento a Adriano, nem muito menos a Júlia e Raquel, que na
certa já se encontravam bem embaraçadas.
- E os meninos, Clarinda, como vão? – Perguntou a ele, para quebrar o
gelo.
- Bem. – Eu me sentia ainda meio atrapalhada. – Vão bem.
- Encontrei outro dia com Nando,
em uma viagem de São Paulo a Fortaleza. Acabamos conversando a viagem inteira.
- É, ele terminou há pouco o tempo o doutorado dele lá.
- Me pareceu bem feliz. – Tomando o café.
- Sim. Está mesmo. – Eu não sabia ao certo nem onde pôr as mãos. – E D.
Norma Mesquita, vai bem? – Perguntar sobre D. Norma me daria mais assunto e me
deixaria talvez menos constrangida.
- Está. Inclusive pensa agora em escrever um livro sobre sua vida. Não
gosta de estar com muito tempo ocioso. Reclama muito disso.
- Ativa como ela sempre foi. – Ri, meio sem graça. – Deve ser ruim mesmo.
- Verdade. – Adriano não parecia constrangido como eu. Pelo contrário,
talvez até estivesse mesmo feliz.
- Mas, Clarinda, como estou feliz,
por encontrá-la aqui! – Abriu largo sorrido.
- E eu fico feliz por promover esse encontro de velhos amigos em minha
casa. – Afirmou Júlia, sorridente. – D. Clarinda tem sido uma pessoa muito
importante em minha vida, Adriano. – Completou minha vizinha, olhando vez para
mim, vez para ele.
- Certamente, Júlia. – Confirmou Adriano, fitando meus olhos. – Clarinda
sempre foi uma pessoa amiga, que se preocupava com todos. Ela melhor que
ninguém sabe o significado da palavra solidariedade. - Eu estava completamente
vermelha. E Adriano percebia meu embaraço. – Não precisa ficar com vergonha,
Clarinda. Tudo o que estamos falando aqui é a mais pura verdade.
- Pode acreditar, D. Clarinda. – Completou Júlia.
- E eu concordo plenamente. – Ainda confirmou Raquel, recolhendo as
xícaras de café, com a bandeja.
- Mas e esse livro de D. Norma, sai quando? – Procurei desconversar.
- Ainda são planos. – Adriano reconhecia meu constrangimento, e tratava a
pergunta feita por mim como se realmente eu tivesse interessada. E naquele
momento, certamente eu não estava.
- Que bom. Fico feliz por ela. – Completei, procurando disfarçar.
- Eu fico curiosa de saber um pouco da vida de D. Norma, pelo que Adriano
já falou. – Trouxe Júlia, como se já tivesse se dado conta de toda a minha
situação, meu constrangimento.
- Ela parece ser uma pessoa de fibra, não é? – Também colaborou Raquel.
- E é. Trata-se de uma pessoa admirável. – Respondeu Adriano, como se
trouxesse à memória a importância daquela mulher em sua vida. Devia muito a ela
e a seu marido, quando era vivo. O haviam tratado como a um filho.
- Bem, eu já vou. – Levantei. Desejava ir logo embora dali. Pensava que
quando me reencontrasse com Adriano eu reagisse de uma forma menos estúpida,
infantil.
- Mas a senhora acabou de chegar,
D. Clarinda. – Lamentou Raquel.
- Fique mais um pouco, D. Clarinda. Pediu Júlia.
- Por favor, Clarinda. É cedo ainda. Faz tanto tempo que havíamos nos
encontrado. Fique um pouco mais. – Insistiu Adriano.
- Me desculpem, mas o Alceu já deve estar me esperando.
Havia sido um conversa de quem não sabe ao certo o que falar e fica
procurando assunto para aniquilar com o silêncio, que insiste em se
presentificar.
Tratei de me despedir e deixar Adriano conversando com Júlia. Precisava
ir para casa, me recompor. Saí abominando minha atitude. O que minhas vizinhas
e ele mesmo iriam pensar de mim? Que vergonha! Desejei que aquilo não tivesse
acontecido ou eu tivesse assumido uma outra postura, algo mais coerente com uma
senhora casada. Senhor, que vergonha!
Passara pela rua em passo apressado, para que ninguém me visse, como se
as pessoas pudessem também testemunhar o meu desconforto e nervosismo, por ter
me encontrado com um namorado de adolescência. Definitivamente, aquilo não era
algo justificável. Eu precisaria depois me explicar de alguma forma às minhas
vizinhas, que no mínimo, não haviam entendido nada. Se bem que Júlia, com
certeza percebera o que havia acontecido ali em sua sala. Como então eu olharia
para a cara da minha vizinha? Realmente eu havia me comportado pessimamente.
Graças a Deus nenhum de meus filhos, nem Alceu presenciaram aquela situação
grotesca. Não teria explicação, e certamente meu marido perceberia tudo.
Ao entrar em casa, fui surpreendida por Alceu, sentado na cadeira de
balanço, que ficava de frente para a porta. Não parecia estar com a cara muito
boa, ali, balançando-se freneticamente. Logo pude avistar a cerveja em cima da
mesinha de centro da sala.
Será que ele sabia com quem eu havia estado?
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 50
Eu havia entrado em casa ainda nervosa pelo reencontro com Adriano
Cordeiro na casa de minha vizinha Júlia. E Alceu estava à minha espera, como eu
pensava. A cadeira de balanço rangia com o peso de seu corpo impulsionando-a
para frente e para trás, de forma
ansiosa. Não parecia bem. Temi que ele percebesse com quem eu havia estado
minutos antes.
- Onde você estava?
Sabia que aquela pergunta queria dizer algo.
- Tinha ido deixar umas roupas de uma cliente, pertinho da casa do
Português. Depois passei na casa da Júlia, a vizinha aqui da frente. -
Respondi, já saindo da sala em direção à cozinha. Queria sair dali. Aquela
pergunta não tinha me cheirado bem. Mas ele me acompanhou.
- A casa dessa sua vizinha agora é ponto de encontro, é?
Certamente Alceu já havia visto Adriano na rua. Pior, na casa de Júlia!
- Do que você está falando?
Ele me olhou com jeito de quem queria descobrir exatamente o que havia se
passado do outro lado da rua, minutos antes. Meu coração já estava acelerado.
Quando bebia, parecia um demônio.
- Clarinda, você estava agora na casa dessa sua amiga, acompanhada do
Adriano Cordeiro?
Aquela pergunta foi como uma pancada em mim. Pensei em não
dizer a verdade, mas não adiantaria, na certa ele sabia realmente, teria visto
Adriano entrar, talvez. Como agir então? Desejei que Nando estivesse em casa. Hesitei um
pouco e lembrei que podia ser exatamente meu filho que me tiraria daquela
situação.
- Nando... não voltou ainda? - Tive um pouco de dificuldade para
completar a frase. Mas falar em nosso filho, o lembraria que ele estava para
chegar do trabalho. Então, completei: - Ele vai chegar hoje mais cedo. Ligou
depois do almoço avisando.
Alceu já estava a poucos centímetros de mim, revestido por um silêncio o
qual temia profundamente.
- Então ele vem mais cedo do trabalho?
- É, disse que vem. - Respondi, procurando passar por ele, para deixar a
cozinha, quando senti uma forte pancada em minhas costas, seguida de um grande
barulho. Mal pude entender o que tinha acontecido e eu já estava caída no chão,
vitimada por uma grande dor.
- Desgraçada! – Gritou. Nem lembro se ouvi aquele grito antes do tombo ou
pouco depois. Procurei, mesmo com dificuldade, me erguer um pouco e me arrastar
até a sala. Mas fui impedida por uma série de chutes. - Sua desgraçada! Sem
vergonha!
- Pára, Alceu! Pára! – Eu suplicava. Eram muitas pancadas, que nem me
davam tempo direito para respirar, sequer para gritar. - Por favor, Alceu,
pare! - Ele estava tomado por uma força incontrolável que o impulsionava cada
vez mais a me espancar. Chutes, murros... Eu tentava me defender, mas nada
podia fazer contra a sua força. - Por favor, pare, Alceu! - Meus gritos não
eram tão potentes quanto as pancadas que eu recebia em todas as partes de meu
corpo.
- Você, me paga, sua desgraçada, sem vergonha! – Batendo ainda mais. -
Toma! Toma!
Se alguém assistisse aquela atrocidade, não conseguiria contar quantos
chutes, murros ele me dera. Mas foi uma forte pancada, empurrando minha cabeça
contra o chão, que me deixara meio zonza. E aí seus gritos me agredindo, se
tornaram distantes e, por um segundo, vi papai me batendo, eu, com apenas seis
ou sete anos, correndo e me escondendo em meu quarto, depois de um tapa, por
ter deixado uma bandeja com copos cair, quebrando tudo. Era uma dor que me
apertava o peito, maior até que a dor provocada pela pancada no rosto.
Achávamos terrível quando papai nos batia, o que não acontecia comumente. Por
isso, ficava tão magoada. Cheguei a adormecer em meu quarto, sentada no canto
da parede, depois de chorar durante horas seguidas, até ser acordada por mamãe,
acariciando-me a cabeça.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 51
Quando abri os olhos, com uma certa dificuldade, pelo inchaço provocado
pelos murros de Alceu, eu estava deitada em minha cama, sendo tocada
cuidadosamente por Nando, que me aplicava compressas com gelo nos hematomas
deixados em meu corpo. Tudo parecia doer e eu me sentia meio atordoada, sem
entender ao certo o que havia acontecido.
- Fique tranqüila, mãezinha, está tudo bem agora.
Ouvi a voz suave de meu filho, sem compreender ainda o que se passara
para que eu estivesse tão machucada. Eu não conseguia raciocinar direito,
organizar nenhum pensamento. E minha visão estava meio turva.
- Nando...
- Não faça nenhum esforço, mãezinha. Está tudo bem agora. – Pedia meu
filho. Aos poucos fui recobrando a consciência e a imagem de Adriano Cordeiro
me veio à mente. E tão logo a alegria de vê-lo diante de mim na casa de Júlia,
a aflição do encontro com meu marido, logo em seguida, ao chegar em casa. E então, lembrei dos
murros, chutes, da dor que se alastrava pelo corpo, seguida de uma dormência.
Os gritos carregados de ódio daquele homem se faziam presentes em minha cabeça,
como se naquele instante eu estivesse revivendo todo o transtorno novamente. E
um grito de socorro me veio á garganta subitamente. Nando se debruçara sobre
mim, fazendo-me sentir sua presença protetora. - Calma! Já passou, mãezinha, já
passou.... estou aqui.
Ninava-me como uma criança e pude sentir seu cuidado, seu carinho e uma
sensação aliviada de proteção. Dormi por horas seguidas, sentindo a
tranqüilidade do colo de meu filho. Cheguei a acordar algumas vezes, tomada por
pesadelos que traziam a imagem de Alceu me agredindo, ameaçando contra minha
vida ou a vida de meus filhos. Nando permanecia, no entanto, ali diante de mim,
velando o meu sono, cuidando para que eu experimentasse a paz de que eu
necessitava naquele momento. Depois de ter sido medicada, só pude acordar no
dia seguinte.
Aos poucos fui me dando conta do que havia acontecido realmente. Provara
mais uma vez da agressividade, da violência e ódio do homem com quem estava
casada há trinta e cinco anos. Aquela havia sido apenas mais uma das crises de
ciúmes e expressão de sua indignação diante da certeza de meus sentimentos por
Adriano Cordeiro, o que fizera de minha vida um completo inferno no decorrer
dos anos. Mesmo sem saber, era meu ex-namorado o motivo da transformação de
Alceu naquele homem amargo e violento, diferente do que conhecera nas épocas de
colégio e bem antes de nosso casamento. O estupro, fora na verdade o marco
entre um Alceu e o outro.
Mesmo com dificuldade, levantei-me e caminhei em direção à sala, de onde
podia ouvir a voz de Holanda e Nando, conversando.
- Nós já devíamos ter feito isso há muito tempo! - A afirmativa de
Holanda estava carregada de indignação, falava alto, quase gritando, caminhando
de um lado para o outro da sala. - Esse monstro está acabando com a vida da
mãezinha!
- Calma, mano! Você sabe que ela jamais permitiria. - Nando parecia mais
equilibrado, como de costume.
- Eu não sei onde eu estava com a cabeça, que não havia chamado a polícia
antes. Passamos a nossa vida inteira, apanhando e vendo a mãezinha sendo
espancada, Nando... E o que nós fizemos, hein? - Holanda já tinha a voz
embargada de choro, sentindo a dor pelo meu sofrimento, o qual presenciara
durante toda a sua vida. Nando logo se aproximou, segurando-lhe o ombro.
- Foi uma escolha dela, você sabe disso, mano. Nós só fizemos o que
estava a nosso alcance. Eu acho que não adianta agora a gente ficar se
culpando. A mãezinha nunca faria nada contra o nosso pai.
- Não me lembre que este monstro é nosso pai!
Holanda foi tomado por um choro compulsivo, entregando-se nos braços do
irmão. Era um misto de culpa, indignação e dor pela imagem do pai. Nando
parecia mais calmo, no entanto, emocionado pelo sentimento do irmão.
- Holanda, nós temos que estar fortes. Você sabe que a mãezinha não vai
aceitar. A gente precisa ver uma forma de convencê-la de que é o melhor, pra
ela, pra ele, pra todos nós.
- Dessa vez ela vai ter que aceitar, cara! - Holanda procurava já se
recompor, quando entrei na sala.
- O que aconteceu? Onde está o pai de vocês? – Perguntei, com dificuldade
de falar. Tudo em mim doía.
- Mãezinha, você já levantou? - Nando foi ao meu encontro, ajudando-me a
passar por entre os sofás e me aproximar de Holanda, que me abraçou firmemente,
como se não me visse há tempos.
- Você está bem, mãezinha? - Já era Holanda quem indagava, lacrimejando e
com um sorriso forçado tentando encobrir a dor e raiva presentes em seu olhar.
- Agora estou. Mas eu preciso saber o que está acontecendo aqui. Onde
está o pai de vocês? – Não sabia de onde tirava forças.
Os dois ficaram se entreolhando por alguns segundos, como se combinassem
telepaticamente quem contaria. Nando logo procurou fazer com que eu me
sentasse, preparando o terreno para a notícia, o que me deixara ainda mais
aflita.
Fora logo após eu ter perdido a consciência, por bater a cabeça, que
Nando entrara em casa, presenciando a fúria do pai contra mim.
- O que é isso, pai?! - Pela primeira vez, meu filho tivera uma atitude
agressiva contra Alceu, jogando-o contra o sofá, depois de segurá-lo pelo
colarinho. - Chega disso! Você já passou dos limites!
Por estar desacordada, nem pude testemunhar os gritos de Nando contra o
pai, que ficara atônito, amedrontado e surpreso ao mesmo tempo pela ação
inesperada do filho. Por um triz Nando não lhe agrediu, chegando a levantar a
mão.
Meu filho, tomou-me nos braços, levando-me para o quarto. Depois de ligar
para um médico amigo, entrou em contato com a polícia. Mesmo com dificuldade de
falar, tomado pela emoção, pediu a Dorival que conseguisse uma viatura para vir
até nossa casa, por eu ter sido espancada há pouco tempo pelo pai. A lágrima
escorreu-lhe pelo rosto, ao desligar o telefone. Doía ter que fazer aquilo, mas
precisava tomar uma atitude diante de tantas atrocidades cometidas por Alceu
durante todos aqueles anos em que estivemos casados. O sofrimento de meu filho
se dava pelo fato da obrigação de delatar o próprio pai, como se estivesse
cometendo uma traição, ferindo um princípio ético de proteção à própria
família, a alguém de seu sangue, a seu provedor. Embora soubesse que não havia
outra alternativa e que alguém precisa pôr um limite à doença do pai,
entristecia-se de chegar a tal ponto e vê-lo sendo preso, por uma denúncia sua.
Sempre rezara, na verdade, para que não precisasse tomar aquela atitude e ver a
família que eu tanto tentara preservar sendo desfeita por uma decisão que fosse
sua.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 52
Alceu estava na porta do quarto, quando o filho desligou o telefone.
Experimentava um sentimento de ódio, por sentir-se traído por sua cria. Sabia
que o que fizera não era correto, por isso sempre se arrependia, após as surras
às quais me submetera a vida inteira. No entanto, considerava ainda mais
absurda a atitude do próprio filho de querer vê-lo na cadeia.
- Foi isso o que você sempre quis, não foi, seu moleque? – Alceu
perguntou, expressando a raiva que o dominava naquele momento.
- Deus sabe que não, pai. – Nando respondeu com os olhos transbordando em
lágrimas.
- Mentira! – Retrucou Alceu rapidamente, direcionando-se à porta da rua,
numa tentativa de fuga. - Vocês não vão conseguir acabar comigo, bando de
abutres!
Ainda podíamos ouvi-lo.
- Não é isso, pai. – Nando ainda tentou convencê-lo, correra atrás do
pai. Precisava impedir sua fuga. - Mas o
senhor vai ter que parar com isso! – Ouvi ainda dizer antes de segurá-lo,
talvez na sala. Eu estava ainda meio zonza.
- Me solta, seu moleque! – Alceu gritava indignado. Empurrara então o
filho contra uma mesinha perto da porta, deixando a sala. Alceu, contudo, fora
surpreendido na porta de casa, por uma viatura da polícia, Dorival, o filho de
Ceiça e mais dois policiais diante do portão. - Vocês não vão acabar comigo! –
Disse aos policiais, analisando como fugiria dali. Ao tentar recuar, fora
impedido pelo filho, que havia se colocado no meio da porta.
- Podem levá-lo! - Nando dissera aquilo experimentando uma dor terrível.
Alceu tentara ainda reagir, mas fora em vão, sendo algemado e colocado de
viatura a dentro.
- Vocês estão cometendo um erro! Meu filho, me ajuda! Me solta! Me solta,
Dorival! Manda eles me soltarem, Nando! Manda eles me soltarem, filho!
Podia-se ouvir seus gritos, mesmo depois de fecharem a porta do carro.
Nando estava ali, parado diante da porta de nossa casa, testemunhando a
prisão do próprio pai, resultado de uma denúncia sua. Mal podia ver o rosto das
pessoas na rua, que paravam para ver o ocorrido. Sentia um misto de vergonha,
pena e dor.
Eu mal podia acreditar a que ponto tudo havia chegado. Como Alceu tinha
dificultado nossa vida, nossa convivência! O que poderia ter sido algo não tão
doloroso, fora transformado por ele num calvário. Conseguira o que tanto
quisera que era casar-se comigo, e não soubera aproveitar, saborear a delícia
de sua vitória. Teria a minha presença em sua vida para sempre, mas não lhe era
o suficiente. Alceu fora um homem que não experimentara o afeto enquanto
criança. Abandonado pelos pais, havia sido criado por uma tia, que o maltratava
constantemente e ainda o forçava a trabalhar desde pequeno, aproveitando-se de
seu dinheiro. Ele trazia consigo essa marca e parecia querer me punir por todos
os seus sofrimentos. Projetara em nossa história, no término de nosso noivado,
a rejeição de seus pais e, por conseguinte, em nosso casamento, a violência e
martírio do convívio com a tia. No fundo, eu sentia pena dele. Apesar de me
privar da felicidade, de uma vida tranqüila, da presença de meus filhos, era
talvez ele quem mais sofria, obcecado por seus fantasmas os quais lançava sem
pena e nem dó em nossa relação e com nossos filhos, como se culpasse o mundo,
as pessoas que amava de sua amargura, tratando-nos como reflexos, como
extensões desse passado doloroso e punitivo o qual experimentara.
E era em nome dessa consciência que eu tinha da difícil história de vida
que Alceu trazia consigo, que eu me sustentava naquele casamento, além, claro,
de minha promessa, a qual me fazia escrava da situação insustentável em que se
transformara o nosso casamento. A promessa! Meu Deus, não podia jamais deixar
Alceu, permitir a nossa separação. Por mais que eu sofresse, não era possível,
e eu bem sabia. A quebra da promessa acabaria com minha vida, e aquilo meus
filhos não compreendiam. Certo de que não sabiam do que se tratava. Contudo, eu
precisava fazer algo para reverter à situação e trazer meu marido de volta.
Parecia loucura, mas eu entendia por que e não tinha como revelar. Não! Ninguém
compreenderia o que eu havia feito. Era impossível pensar na possibilidade de
trazer aquela velha história à tona, depois de tantos anos. Além do que meus
filhos não me perdoariam, assim como todas as pessoas. Meu dever era apenas de
cumprir com a minha palavra, de ser honesta com Deus e fazer valer a promessa.
Nem podia explicar aos meninos, visto que havia um segredo, mas tentei de
todas as formas expor meu desejo de libertar Alceu e trazê-lo de volta, mesmo
frente à indignação e revolta de meus filhos.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
53
Pensei várias vezes em não aparecer mais no grupo de
Biodança, por ser um espaço de Pedro. Não poderíamos continuar no mesmo grupo
depois de tudo o que havia acontecido. Ali era um espaço de expressão e verdade
e eu havia chegado carregando comigo uma grande mentira. Seria difícil
permanecer depois de falar sobre a minha verdadeira identidade e todos saberem
que haviam sido enganados. No entanto, desejava voltar e me despedir, agradecer
o apoio e a confiança de abrirem a sua intimidade para mim. Precisava também
reencontrar Pedro, nem que fosse pela última vez. Talvez ele fosse
verdadeiramente o motivo real de minha vontade de retornar ao grupo. Sabia, mas
era preferível pensar que não era por sua causa, para facilitar o meu processo.
No momento em que entrei no espaço onde acontecia o
grupo, senti minhas pernas tremerem. Não sabia qual seria a reação das pessoas,
se já sabiam. Tratava-se de um grupo ao qual tinha a maior consideração, apesar
de nossa pouca convivência. Seria doloroso ser desprezada por ele. O que me
deixava extremamente ansiosa. Chegara um pouco antes do início da verbalização.
Tinha apenas algumas pessoas e o facilitador, ao fundo do salão, manuseando um
catálogo de discos, como se preparasse o início da sessão. Nem sei ao certo o
que me impulsionou a ir ao seu encontro, era como se não sentisse minhas
pernas, de tão nervosa eu estava. Fui, contudo acolhida pelo facilitador num
caloroso abraço.
- Eu quase não vinha.
As palavras saltaram-me a boca em meio ainda ao abraço.
O facilitador olhou-me bem nos olhos, como que tentasse me acalmar.
- Estava lhe esperando.
- Eu não sei se vou ficar. Não sei se o Pedro lhe falou.
- Falou sim. Nos encontramos e conversamos. Mas foi bom
você ter vindo.
Tive vontade de chorar e abraçar aquele homem ainda
mais. Ele passava-me paz, tranqüilidade, o que eu não sentia há tempos. Meus
olhos transbordavam em lágrimas.
- Eu estou muito envergonhada.
- Você precisa estar em paz com você mesma.
E eu não estava em paz comigo. Não poderia estar, não
depois das barbaridades que havia aprontado com Pedro, o homem que dizia amar.
Fiquei me perguntando, se ele não iria ao grupo naquele dia. No fundo, esperava
que sim, mas pedi a Deus internamente que não. Seria uma dura provação. Talvez
não tivesse sido uma boa idéia ter ido ali, num espaço de intimidade que já era
dele.
- Pedro deve estar chegando daqui a pouco, disse que se
atrasaria, mas deve estar a caminho.
O facilitador parecia ter lido os meus pensamentos.
Cumprimentei todos os outros colegas e me recolhi num
canto no salão. Ainda me chamavam de Mirela. Senti-me extremamente incomodada,
mas não adiantava colocar individualmente. Seria um esclarecimento grupal.
Começamos com uma pequena meditação, como de costume e logo foi aberto o
momento de verbalização da sessão. Eu não consegui me concentrar nas falas que
foram se seguindo. A imagem de Pedro e o receio de colocar a verdade ali no
grupo, não me saíam da cabeça. Minha mãos estavam geladas.
Senti meu coração acelerado quando vi, pela cortina de
cipó que separava o salão do estacionamento, o carro de Pedro chegar. Ele vinha
acompanhado de Adriano Cordeiro, como de costume. Os óculos escuros
escondiam-lhe a sinceridade exposta em seu olhar, porém davam-lhe todo um
charme juntamente com a roupa informal, diferente das gravatas e paletós usados
no cotidiano. Camiseta vermelha, uma calça frouxa de cor bege e sandália de
dedos em couro, a mesma de quando eu o havia visto pela primeira vez, deixando
à mostra os longos dedos de seus pés bem-feitos.
Nossos olhares se encontraram assim que os dois chegaram
à entrada do salão. Nunca senti tanta alegria em vê-lo tocar a cabeça e jogar
para trás o cabelo que insistia vez ou outra em cobrir-lhe o olhar, como sempre
o fazia. Em poucos segundos lembrei de vários momentos em que estivemos juntos
ali mesmo naquele lugar. Imaginava se ficaria ou se iria embora, para evitar
interagir comigo. Bobagem, logo, numa questão de segundos eu saberia. Pedro
tirou então a sandália e os óculos, deixando suas coisas no banco, ali fora, e
entrou no salão, procurando não voltar mais seu olhar para mim. Pelo menos ele
não iria embora!
Já se aproximava
das dezesseis horas, quando começaria o segundo momento da sessão, com os
exercícios e a dança, quando finalmente tomei coragem de falar.
- Pensei muito em não voltar mais aqui no grupo, por uma
série de questões. - Minha voz estava trêmula. - Mas eu precisava reencontrar
vocês novamente e pedir perdão. - As lágrimas já começavam a rolar pelo meu
rosto. - Vocês me acolheram, com todo o cuidado, carinho, atenção, verdade. E
eu não respondi à altura. Todos vocês, aqui no grupo, me conhecem como Mirela.
Mas na verdade, meu nome não é esse. - Parei e suspirei. Estava muito nervosa.
- Meu nome é Júlia... Júlia Serrado. É assim que eu me chamo. - Baixei um pouco
a cabeça e caí em
prantos. Pedro mostrava-se bastante incomodado, procurando
fugir seu olhar para um canto do salão. Uma vez ou outra, voltava-se a mim.
Tinha seus olhos também nadando em lágrimas. - Eu precisei usar um outro nome,
numa tentativa de reencontrar a minha filha, que foi roubada há mais de seis
meses, no final do ano passado e vendida para um casal de estrangeiros que eu
não sei onde estão, se ainda vivem no país. Por esse motivo, acabei me aliando
a algumas pessoas que me ajudariam a reencontrá-la, mas para isso eu precisaria
usar uma identidade falsa e me envolver numa situação, para conseguir alguns documentos
que estas pessoas queriam. - Pausei para respirar e retomar o fôlego. Percebi
que Pedro, assim como algumas pessoas do grupo, não conseguira evitar que
lágrimas lhe banhassem a face. E então prossegui: - Acabei magoando pessoas que
acreditaram em mim. - Voltei-me para Pedro, a fim de que todos no grupo
soubessem de quem estava falando. - Fiz sofrer pessoas que aprendi a amar, com
quem reavaliei meus princípios de vida e reencontrei o sentido da felicidade.
Não nestas pessoas, mas em mim mesma, diante dessas pessoas. - Alguns dos
presentes já olhavam também para Pedro, reconhecendo-o como aquele de quem eu
estava falando. - Eu queria agradecer a cada um de vocês, pela força, pela
presença e por terem confiado em mim, embora eu não tenha retribuído da mesma
forma. Eu não vou poder continuar no grupo, mas quero continuar na Biodança.
Hoje, a reconheço como um caminho que facilita o encontro comigo e me ajuda a
interagir melhor com os outros, sem negá-los na sua expressão.
Logo depois de minha fala, o facilitador tomou a palavra
discorrendo sobre a importância da vivência da verdade em nossas vidas e como
esta contribuía para a manutenção de nossa saúde. Senti-me amparada em sua
explanação. Dava para perceber em cada olhar o carinho, a compreensão. Era verdadeiramente
uma pena eu ter que deixá-los, visto que naquele grupo eu me sentia cuidada e
respeitada em minha expressão.
Começamos a vivência com uma dança em roda. A letra da música
alegre e progressiva, na voz de Geraldo Azevedo, nos convidava a, juntos,
esquecermos tudo o que doeu em nós, sendo que nada vale tanto para rever como o
tempo em que ficamos sós. A música falava exatamente de mim, do que eu estava
passando naquele momento. E sentia-me feliz de estar ali, fazendo parte daquele
grupo, me expressando em movimento junto com todas aquelas pessoas, que tão bem
me acolheram e me aceitaram. Pedro parecia me ignorar. Deve ter sido mais ou
menos na metade da sessão, num exercício em que o convite do facilitador fora
encontrar alguém, um par, com quem pudéssemos viver o afeto, numa dança a dois,
que finalmente nos encontramos. Não tínhamos outra escolha, todas as outras
pessoas já tinham encontrado seu par, só restávamos nós dois. Uma música
afetiva-transcendente nos conduziu num momento de muita entrega. Senti um certo
desconforto da parte dele, no princípio, mas logo relaxou e se permitiu à
vivência. Parecia um sonho providenciado por Deus estarmos ali, um diante do
outro, em movimentos leves, cuidadosos, sentindo o calor um do outro. Procurei
saborear cada segundo de sua presença. Seu toque suave deixa-me trêmula. Podia,
mesmo que por alguns minutos, sentir de perto o seu cheiro. E logo estávamos no
meio do salão, abraçados, vivendo intensamente aquele momento. Desejei que não
acabasse mais a música e pudéssemos eternizar o instante.
Logo acabado aquele exercício, Pedro continuou a me
evitar, como se o que tivéssemos vivido não houvesse sido significativo para
ele, como fora para mim. Então começava a compreender porque não seria
interessante continuarmos no mesmo grupo realmente. Estaríamos o tempo inteiro
deixando de ser espontâneos, para tomarmos atitudes arquitetadas dentro do
salão, quando o convite era exatamente o contrário.
Terminada a sessão, procurei conversar com Pedro, a fim
de esclarecermos de uma vez por todas aquela situação desagradável. Não era
possível que não conseguisse compreender a minha atitude, se todas as pessoas
que estavam fora compreendiam. Por um instante questionei se de fato ele me
amava. Mas logo percebi o que fazia. Exigia dele uma atitude, tirando de mim a
responsabilidade por tudo o que eu lhe causara. E por isso resolvi lhe
procurar.
- Fui muito machucado, Júlia. Tenho tentado compreender,
mas é muito difícil para mim. Passei quinze anos da minha vida sofrendo pela perda
de um grande amor, que nunca esqueci. De repente, descubro que este amor, não
morreu, como pensava, estava viva. E aí, me vejo novamente em seus braços,
redimensionando sonhos, planejando novamente uma vida juntos. Mas tão logo
tenho a felicidade pelo seu retorno, descubro que sou vítima de uma farsa, que
este amor está morto sim.
Seus olhos já transbordavam em lágrimas, assim como os
meus.
- Descubro que a mulher, a qual pensava ser meu grande
amor, é na verdade uma impostora, tentando me enganar, me passar a perna.
- Eu precisei fazer, Pedro.
- Os motivos podem ter sido nobres, Júlia, as atitudes
não.
- Eu te amo.
- Eu não sei quem você é.
- Eu te amo mesmo assim.
- Me desculpe.
Saiu cabisbaixo, direcionando-se ao carro, onde Adriano
já lhe aguardava. Tive a oportunidade de ser feliz com o homem da minha vida e
deixei-a escorrer por entre os dedos. Como aquilo me doía!
MARINA PESSOA
Capítulo 54
Donato finalmente me levaria para Brasília.
Tratei de arrumar minha bolsa imediatamente. Seria uma viagem rápida de
apenas um dia, mas eu aproveitaria como se fosse um longo momento, instante
propício para estar próxima do homem que amava e desfrutar de sua companhia e
do papel de sua esposa. Foi o que eu fiz.
No momento em que entramos no avião, Donato dera seu recado.
“Espero não ter nenhum aborrecimento com você, minha querida. Sabe que
quero lhe ver bem e tudo o que faço é para lhe proteger, lhe poupar de
sofrimentos, de situações que podem lhe causar tristezas. Não gosto de
surpresas, sabe disso. Nem quero descobrir que meus esforços para lhe deixar
sempre bem, foram em vão.”
Estava claro o recado de meu marido. A viagem era apenas para me tirar de
Fortaleza naquele momento e afirmar seu desejo de me ver longe de Vanessa e
Pedro Lucena. Quase o respondi, falando de meus sentimentos, do quanto me
sentia infeliz por estar longe de minha irmã. Não tive coragem, no
entanto. Ele era um homem de poucas
palavras, sem muita paciência. Eu nem conseguia imaginar ao certo o que Donato
seria capaz de fazer contra mim, mas temia descobrir. Durante segundos, chegava
a me arrepender de ter me casado com ele. Era como se eu tivesse escolhido um
caminho sem volta.
Permanecemos toda a viagem sem pronunciar uma só palavra. Chegando em
Brasília, fomos direto para o hotel, onde Donato me deixou, para ir ao
congresso. Chorei por todo o resto da tarde, sem conseguir colocar nada na
boca.
Precisava sair para tomar ar fresco. Por um instante achei que estava em
nosso apartamento, mesmo com a sala completamente vazia, sem móveis, somente
cortinas sendo jogadas de um lado para o outro pelo vento. Parecia já ter
anoitecido, embora eu não tivesse noção real do horário. O ambiente estava
apenas iluminado por uma vela, no canto da sala e pelas luzes da rua que
entravam pelas janelas. Aproximei-me da porta, para finalmente sair e fazer
algo por mim, mas estava trancada. E ao olhar com mais atenção, percebi que a
porta era contornada de grandes fechaduras. Era como se a angústia que sentia
em meu casamento, quando Donato me impedia de sair ou interagir com alguém, bem
como de fazer qualquer coisa que denotasse algum controle sobre minhas próprias
vontades, tivesse se multiplicando a ponto de me causar náuseas.
Estava presa e não sabia como sair daquele ambiente. Mas, na verdade,
sabia que não tinha sido meu marido quem providenciara aquilo, embora não
soubesse como. Lembrei-me de sair pelos fundos e depois de algum esforço,
consegui abrir a porta da cozinha, que também estava completamente vazia, como
se nosso apartamento tivesse sido abandonado. Comecei a correr as escadas
abaixo, na ânsia de encontrar alguém.
“D. Deise! Donato!”
Queria muito encontrar alguém que me tirasse da solidão que aquele lugar
vazio me trazia. Os lances de escada pareciam não ter fim. Até chegar a um
lugar que parecia a casa em Pacoti, onde Vanessa e eu passávamos finais de
semana com papai e mamãe, ainda garotinha. Estava num grande corredor, cercado
de um lado por janelões que davam para o quintal da casa, e do outro por
grandes portas que davam para os três quartos. Um vento frio entrava pelas
janelas, que me fazia sentir ainda mais desprotegida.
“Alguém aí?”
Minha voz já estava trêmula. O lugar que tantos anos antes me trouxera
diversas alegrias, naquele instante era portador de uma energia macabra e
solitária que me fazia sentir um medo incontrolável. E de repente, um menino
corre de uma porta para a outra do corredor, sem que eu pudesse vê-lo perfeitamente.
Como se fosse um vulto que sugira ali em minha frente.
Pelo menos, poderia ser um sinal de alguém naquela casa. Tratei então de
correr até a porta pela qual a criança desaparecera, mas esta, por sua vez,
estava trancada. Comecei então a bater na porta, tentando abri-la.
- Por favor, alguém aqui! Por favor, alguém me ajude! Por favor...!
Do nada, ao meu lado, estava a minha imagem ainda criança, com uma boneca
na mão, chorando por ter me perdido de Vanessa. Estávamos brincando de
esconde-esconde e ela, há horas, não aparecia. Tive vontade de conversar com
aquela garotinha, mas não tinha coragem. Era como se minha voz não saísse e eu
não conseguisse me expressar diante de mim mesma. Vi então ela se afastando,
foi então que percebi por baixo de seu vestido, uma bata branca de hospital e
seus pés já não estavam mais calçados, como há segundos antes, e de repente,
quando subi o olhar, já não era mais a minha imagem criança e sim o garotinho
de meus sonhos.
- Ei, garoto... você....
Não conseguia falar muita coisa, como se as palavras tivessem
desaparecido de meu vocabulário. E ele então se voltou a mim. Seu olhos estavam
vermelhos, cheios de lágrimas, como que chorasse há horas. Em sua mão,
carregava um pedaço de pau, que parecia machucar sua mão, fazendo-a sangrar.
- Garoto... a sua mão.... esse pau...
Minha voz estava embargada. Eu não tinha muito domínio sobre as palavras.
Mas estava tomada pelo medo daquela casa, daquela situação. Curiosamente, eu
não temia aquele garotinho, embora fosse uma figura estranha, e passasse
tristeza e ódio em seu olhar.
- Garoto, você está se machucando.
Aproximei-me, tentando ajudá-lo. Mas ele se afastou bruscamente, numa
atitude de proteção.
- Você está se machucando, quero apenas ajudá-lo.
- Não fui eu!
Ouvi sua voz pela primeira vez. Era firme e carregava um tom de raiva.
- Como? O que disse?
- Não fui!
- Do que você está falando, garoto?
- Não fui eu que fiz sangue em mim.
Hesitou por um instante, olhando para a mão sangrando e prosseguiu.
- Foi você!
Olhou para mim violentamente. Tive a impressão, por um instante, que suas
lágrimas fossem sangue. O que me deixou ainda mais assustada. O garotinho saiu
correndo em prantos.
- Volta aqui, garoto!
Corri desesperadamente atrás daquela criança. Precisava entender o que
ele tentara me dizer, o que eu tinha a ver com seu machucado, por que estava
aparecendo para mim, o que queria verdadeiramente comigo...
Acordei assustada na poltrona do quarto em que eu estava hospedada em Brasília. Passava
das dezoito e trinta, quando olhei para meu relógio. E nada de Donato, nenhum
telefonema, nada. A única coisa que experimentava em minha vida naquele momento
eram as emoções, o medo, a angústia, trazido por aqueles pesadelos, que
roubavam minhas noites, no último ano. Veio uma vontade incontrolável de chorar
e por para fora todo aquele sentimento ruim de vazio, que me dominava naquele
momento. Por mais que eu não conseguisse compreender aqueles sonhos, não
gostava, não faziam bem e só podiam ter a ver com tudo o que eu estava vivendo
com Donato, nossa distância, minha total abnegação a tudo aquilo que fazia bem,
em função e manutenção de meu casamento. Era a única resposta que eu tinha para
tudo aquilo. E eu estava farta, farta de sofrer, farta de não fazer nada para
reverter aquela situação, farta de não conseguir dar um basta às atitudes
absurdas de meu marido, farta de ser vítima de mim mesma e de minha própria
tristeza.
Eu, Marina Pessoa, estava prestes a tomar a primeira atitude rumo à
libertação de minhas próprias amarras, de meus medos e covardia. Chamei um táxi
e fui para o aeroporto. Seria de fato uma loucura, mas quando Donato desse por
minha falta, talvez eu já estivesse de volta a Fortaleza. Precisava resolver
minha vida e meu marido necessitava saber que eu não era um joguete em suas
mãos.
MARINA PESSOA
Capítulo 55
Às onze e meia da noite, já estava desembarcando de volta a Fortaleza. Tomei
um táxi e fui direto para o apartamento de Vanessa, que não era muito distante
do meu, ficava numa rua paralela, a uns quatro quarteirões da Beira Mar,.
Quando eu me fiz anunciada pelo porteiro, ela pareceu hesitar e demorou um
pouco a dar-lhe uma resposta, até autorizar minha subida ao apartamento.
Vanessa já estava pronta para dormir, colocara apenas um robe por cima de
seu camisola, a fim de me receber. Abrira a porta assustada, sem entender ao
certo o que estava acontecendo, por que eu estava ali, já passando de meia
noite.
- O que aconteceu?
- Eu preciso de você!
Fiz o que tive vontade de fazer em nosso reencontro na festa de Leonardo
Gondim, e não tivera coragem naquele momento. Abracei-a intensamente sem
dar-lhe chance de impedir-me.
- O que é isso, Marina? O que está acontecendo?
Embora estivesse assustada e confusa, sem entender ao certo aquela
situação estapafúrdia, no fundo gostara e por alguns segundos, procurara também
sentir-me no abraço. Embora guardasse mágoa de mim, não deixara de me amar.
Comecei então a chorar compulsivamente, sem conseguir deixá-la sair.
- Calma, Marina! O que está acontecendo?
Eu já conseguia ouvir em sua voz um tom de preocupação e cuidado. O que
me fazia naquele momento a pessoa mais feliz do mundo.
- Nada! Quero apenas poder sentir você cuidando de mim mais uma vez, como
quando eu era pequena.
Vanessa já não conseguia também controlar seu choro e se entregara ao
momento, abraçando-me também fortemente, como se quisesse resgatar o que
havíamos perdido ou deixado de viver.
- Eu senti tanto a sua falta, menina! Por que você me deixou?
Afastava-se um pouco para poder fitar meus olhos, também afogados em
lágrimas e depois voltava a me abraçar.
- Marina, você fez muita falta, muita mesmo, para todos nós!
- Eu sofri muito, Vanessa!
- Eu também!
- Me perdoa!
- Eu te amo tanto, menina!
Nem conseguíamos falar muito ali, como se não houvesse tempo e as
palavras fossem pouco e roubassem o tempo que já havíamos perdido outrora e só
aquele abraço seria capaz de resgatar. Não sei ao certo por quanto tempo
ficamos paradas ali na porta, abraçadas, balbuciando poucas palavras que
tentavam exprimir a falta e o sofrimento que a distância uma da outra havia
causado.
E de repente, já estávamos sentadas no sofá, tomando chá e rindo de histórias
vividas por Vanessa e Pedro nos últimos anos em Londres. Era como se
não houvessem passado quase seis anos de nossa separação. Permanecíamos com o
mesmo sentimento de cuidado e amor uma pela outra. Ali diante de mim, Vanessa
já não era mais aquela pessoa fria que tentava passar para todos, nem muito
menos a mulher irritada com qualquer coisa que a tirasse de sua zona de
conforto. Naquele momento, era apenas a minha irmã. E rimos muito juntas
naquela madrugada.
Antes de dormirmos fomos até o quarto de Felipe e durante alguns minutos
contemplei seu sono tranqüilo. Estava enorme, um rapazinho e ainda mais lindo.
Lembrava os olhos do pai e a boca da mãe. Senti uma emoção gigantesca diante
daquela criança. Cheguei a ter um arrepio, lembrando do garotinho de meus
sonhos. Talvez fosse a minha culpa por ter abandonado meu sobrinho, no momento
em que ele precisara muito de mim.
Um peso saía de minhas costas. Acreditava que estava livre de uma vez por
todas daqueles pesadelos horríveis que preenchiam as minhas noites nos últimos
tempos. Se era algum assunto não acabado, e finalmente tinha posto um ponto
final e podia começar a escrever uma nova história. Teria apenas de enfrentar
meu marido. Ah, meu Deus! Como seria com meu marido? Eu havia me esquecido
completamente do que eu tinha feito em Brasília, de ter voltado a Fortaleza sem
avisar, sem ao menos um telefonema, e o dia já estava quase amanhecendo. Mas
não era hora de pensar naquilo. Fizera o que deveria ter feito há muito tempo e
não disponha de coragem.
Vanessa preparara o quarto de hóspedes para mim, colocando-me para
dormir, como quando eu era garotinha. Fora a sensação mais intensa que eu
experimentara nos últimos anos. Há muito não me sentia tão cuidada, tão
protegida. Vanessa sempre fora uma mãe para mim, desde a morte de nossos pais. Mesmo
sendo uma pessoa difícil muitas vezes, nós nos amávamos muito e ela sabia ser
cuidadosa quando precisava.
* *
*
Acordei praticamente na hora do almoço. Quando percebi, estava sendo
observada por Vanessa e Felipe, da porta do quarto. Fui surpreendida por um
forte abraço de meu sobrinho.
- Você ainda lembra de mim, lembra?
Mal pude conter as lágrimas. Felipe apenas ria, como se considerasse boba
minha pergunta. Nos abraçamos muito, juntamente com Vanessa.
Durante o almoço, fiquei sabendo que os problemas alérgicos de meu
sobrinho haviam se agravado, nos últimos meses, e ele estava sob tratamento
intensivo. Não podia comer muita coisa, bem como estava privado de fazer quase
tudo que uma criança normal fazia.
Cecília, a babá de Felipe, ainda permanecia trabalhando com eles. Devia
ter mais ou menos a idade de Vanessa e, graças a Deus, amava muito o garoto, o
tratava como um filho. Para a família, Cecília nunca fora uma simples babá, mas
uma pessoa dedicada, responsável e extremamente amorosa com meu sobrinho. E por
isso tinha todo o respeito e consideração de Vanessa e Pedro.
Gostei bastante também de Carminha, a empregada que fora contratada desde
que minha irmã voltara ao Brasil. Diferente de D. Deise, era mais expansiva e
sorridente, estava sempre como se esperasse um gesto de cumplicidade para
sorrir e servir.
Senti-me extremamente feliz e reintegrada a minha família, apesar de
lamentar a falta de Pedro naquele núcleo. Dava para perceber, pela forma que
Felipe falava do pai, o quanto era querido ali, não só por ele, mas também por
Vanessa, que uma vez ou outra deixava escapar a certeza do retorno do marido ao
lar.
“Pedro estava muito confuso, quando voltou a Fortaleza, depois da morte
do pai. Por isso precisou de um tempo. Mas eu acredito que logo, logo ele
estará de volta, alegrando este ambiente.”
Percebi com esta fala de Vanessa, o quanto o amava e nutria esperanças de
um retorno. No entanto, pude perceber que o próprio Felipe não acreditava
naquela hipótese, procurando desconversar, mudar de assunto quando a mãe tocava
nesse ponto. Era como se até ele, com apenas dez anos, fosse consciente da
realidade que minha irmã se negava a aceitar. Pedro já havia comentado comigo
sobre suas certezas e seu cansaço acerca do casamento com Vanessa, num de
nossos encontros rápidos, nas recepções de Leonardo Gondim. Preferi não me
intrometer naquele momento. Afinal, estava apenas chegando, não poderia já
intervir num assunto tão delicado para minha irmã.
O fato é que eu desejei profundamente que aquele momento se prolongasse
eternamente. Parecia tão perfeito, minha reconciliação com Vanessa, minha
reaproximação de Felipe. Contudo, perfeito não era. Eu precisava prestar contas
com Donato, que aquela altura do campeonato, ainda não tivera notícias de mim.
JÚLIA SERRADO
Capítulo 56
No dia seguinte à sessão de Biodança, onde reencontrei
Pedro, fui surpreendida com uma visita inesperada em minha casa. Adriano
Cordeiro me procurou, para que pudesse entender melhor a situação. Parecia ser
de fato uma boa pessoa, como o próprio Pedro já havia me dito por várias vezes.
Ouviu-me com bastante atenção, interrompendo-me poucas vezes e de forma sutil,
só para entender melhor o que lhe falava. Pude perceber o quanto se preocupava
com o amigo e por isso estava ali. Mostrara-se comovido com a minha versão,
embora compreendesse a atitude de Pedro em não me aceitar de volta. Pelo menos
percebi que ele acreditava em meus sentimentos e estava disposto a me ajudar.
Bendito Adriano Cordeiro! Talvez pudesse me ajudar sim a reconquistar o homem
da minha vida. Senti-me até mais aliviada e ainda mais fortalecida. Estava
determinada a fazer com que Pedro me perdoasse.
Sabia que Pedro e eu havíamos nos separado por conta de
minha falta de fé, minha fraqueza, por ter me distanciado de minha essência e
me perdido no desejo de controlar as situações da vida, de poder ser eu dona da
situação, passando por cima do que era sagrado, o amor. Contudo, estava
disposta a lutar para reaver aquilo que havia perdido, a dignidade e meu grande
amor.
Logo após a saída de Adriano, descobri que ele era um
velho conhecido de D. Clarinda. E até mais que isso. Podia perceber seus olhos
brilharem ao falar de seu amigo do passado. Embora fosse uma mulher devotada em
seu casamento, era claro que guardava ainda um sentimento diferente e especial
por aquele homem. Estava feliz por tê-lo reencontrado em frente, no momento que
saía de minha casa. Parecia que não se viam há anos. Pensei em como a vida nos
prega peças. Adriano Cordeiro e D. Clarinda, que viveram um amor no passado e
haviam sido separados pelo destino, então se reencontravam como amigos e
conselheiros de um novo casal, sem que soubessem de sua ligação.
Ficara ainda mais confiante depois que D. Clarinda de
Holanda falara-me do quanto Adriano era um homem sensível e bondoso. E que,
certamente, se empenharia em me ajudar e ver o amigo novamente feliz. Cheguei a
questionar o que minha amiga me dizia sobre ele, lembrando do fato de Adriano
ter expulsado a filha Olívia de casa, ainda adolescente, por estar grávida.
“Filha, você melhor que ninguém sabe que muitas vezes
agimos de um modo que depois podemos nos arrepender para o resto de nossas
vidas.” Disse-me D. Clarinda.
Diante daquela colocação eu me percebia também tomada
pela fraqueza, em determinados momentos, em que me considerava incoerente,
perdida em meu próprio ego, como se tivesse o controle de tudo. E então
transformava-me de mocinha a vilã.
Entendia claramente o que D. Clarinda me dizia, ou
melhor, sentia na pele o que me falava. Havia sido vítima de mim mesma, de meu
ego. Optara por escolher o caminho do controle em detrimento da entrega, embora
movida por boas intenções. E havia sido infeliz!
CELINA GONDIM
Capítulo 57
Minha irmã odiava qualquer coisa que me fizesse feliz e jamais
concordaria com aquilo. Ela sabia que não bastava ganhar a diretoria, nem mesmo
fazer o diretor artístico da RTN optar por sua sobrinha e lançar seu nome como
proposta para o espaço no projeto. Caso eu aceitasse o convite, na certa papai
enfrentaria a todos, com o apoio de Pedro e me colocaria junto na empreitada.
Além do que confiava em minha competência como autora, afinal meu último
trabalho, pouco antes do acidente acabara se tornando um dos grandes sucessos
da RTN. E isso ela não podia negar, até criticava e o taxava como uma produção
apelativa e desrespeitosa ao público, levando o mundo das drogas como temática
principal, mas o resultado em audiência e retorno financeiro eram
incontestáveis.
Deste modo, Maria Eugênia partira para o que sabia fazer melhor. Começara
uma luta psicológica dentro de casa, a fim de me fazer optar pela não aceitação
do convite. Ela sabia bem meu ponto fraco e a dor que este me causava, e
tratava de fazer com que eu me deparasse com ele a todo instante. Fomentava a
minha própria idéia de me ver enquanto inválida e grande responsável pela morte
de Vinícius, apegando-se ao risco de transformar a série num grande fracasso de
crítica e audiência, fazendo o tiro sair pela culatra, o que me tornaria ainda
pior, por colaborar com a destruição do sonho de nosso pai.
Tratava-se de uma guerra de nervos a qual eu sempre perdia. Por várias
vezes, chegava a me prometer que não me deixaria abater pelas afirmativas de
Maria Eugênia, mas no memento que acontecia ela me fazia experimentar
exatamente a dor de minhas feridas, bloqueando-me a qualquer resposta. E sempre
que eu tentava reagir, ela parecia mais ágil e saía com outra afirmativa ainda
pior. Sua ação se dava exatamente na ausência de qualquer outra pessoa, com
exceção de Lorena, sua secretária e cúmplice. Ela procurava não se expor, nem
muito menos se desgastar com papai, por isso, agia sem que ninguém soubesse,
certa de que eu jamais comentaria com outra pessoa, visto não querer me sentir
ainda mais dependente. Maria Eugênia agia de forma silenciosa a todos, mas
fatal a mim.
Certo dia, minha irmã, deu seu golpe de misericórdia. Fora instigada por
Donato a me apresentar o valor da dívida da RTN, a fim de me sensibilizar com a
problemática da emissora, escondida por papai a todo custo, e me convencer a
desistir de ser mais uma colaboradora para o seu fracasso. Assim o fez. Fiquei
então sabendo que a dívida publicitária de nossa televisão, incluindo também a
dívida com o governo do Estado e bancos, ultrapassava quinhentos e cinqüenta
milhões de reais. Um valor, naquele momento, impagável.
Minha decisão estava tomada! Jamais poderia aceitar a proposta de papai e
Pedro em integrar a equipe para a série sobre o universo dos portadores de
necessidades especiais. O fato era que não me sentia plena, inteira para voltar
a trabalhar. Sabia o quanto minha participação teria força no trabalho,
dando-lhe também minha tônica, o que não seria, segundo meu pensamento e de
minha irmã, o melhor para o projeto em questão. Estava
então fora do trabalho, para a decepção de papai, Pedro, meus sobrinhos, Dulce,
Mena, exceto para Maria Eugênia, que vibrara com a notícia.
CELINA GONDIM
Capítulo 58
Em meio a todas aquelas questões familiares e de negócios, minha irmã
jamais esquecera a saída de Guel Serrado de seu bar. Por isso encarregara
Nacélio de descobrir seu paradeiro, onde estava morando, a fim de encontrá-lo e
entender como teve coragem de deixá-la. Para ela, era uma questão de honra,
embora nunca admitisse envolvimento com quem quer que fosse.
E realmente não demorou muito para Nacélio obter notícias do rapaz.
Descobrira onde morava e que estava envolvido com uma jovem. Guel fora então
procurado por sua ex-patroa, com quem voltara a se encontrar uma vez ou outra,
a fim de realizar seus desejos e garantir que não atrapalharia seus planos
junto à namorada Tony. E para minha irmã, estava ótimo, pois voltaria a ter
novamente o que queria, quando
desejasse. Ela sentia, explorando o corpo daquele homem, o que não sentia com
mais ninguém. A única exigência do rapaz, cheio de si, feliz pelo
reconhecimento de sua virilidade, era que os encontros fossem apenas entre os
dois, sem a presença dos demais garotos de outrora. Guel dava conta do recado e
ela sabia bem. Não seria problema ceder ao pedido.
A dona do Mukifo permanecia, entretanto, com o velho hábito de fazer sua
listinha ao sócio, para os momentos de sexo coletivo, como gostava. Estar
sozinha com Guel Serrado, de vez em quando, seria somente mais uma de suas
diversões, longe de nossos olhares e dos executivos da RTN.
As listas da dama misteriosa, sempre eram motivo de discórdia ou decepção
dentro do Mukifo. Os rapazes menos escolhidos ou nunca requisitados entendiam
aquilo como uma avaliação negativa a seu respeito. Os preteridos eram alvo de
gracinhas por parte daqueles que mais estavam com a bela e poderosa dona do
bar. Como Ronie, amigo de Guel, que nunca tivera a oportunidade de estar com
aquela mulher, da qual falavam ali dentro com mistério e prazer. Ele torcia
para ouvir seu nome citado, quando Nacélio dizia estar com a lista. Ora, não
ser requisitado, significava que ela sequer se interessava pelas fotos.
“Droga!” a lamentação de Ronie sempre vinha silenciosa, por constatar que seu
nome não estava na lista.
O rapaz preterido por minha irmã, decidira então fazer uma troca com seu
patrão. Ele gravaria vários vídeos de clientes, sem nada cobrar, a fim de que
tivesse seu nome incluído numa daquelas listas, “por engano”. O resto ficaria
por sua conta. Fechado! Nacélio até gostara do desafio. Seria divertido vê-lo
expulso do tão desejado apartamento da Beira-Mar. Expulso? Que nada. Mesmo
achando estranho a presença do rapaz, por ter ela quase certeza de que não o
havia escolhido, optara por sua permanência. Dando-lhe a oportunidade, sem que
ela soubesse dos grandes desejos do rapaz, de mostrar-se eficiente. Para Ronie,
contudo, tratava-se de seu futuro. Sonhava que Maria Eugênia, envolvendo-se com
ele, como havia se envolvido com Guel, o ajudaria a sair de sua vida de
miséria.
Ronie fizera tudo o que estava ao seu alcance, tentando de todas as
formas surpreender a patroa e superar o desempenho sexual desenvolvido pelos
outros dois companheiros, parceiros daquela lista. A decepção veio então, na
lista seguinte, quando não ouviu seu nome citado por Nacélio.
- Droga! Do que será que essa mulher precisa?
Certamente não desistiria fácil do intento.
CELINA GONDIM
Capítulo 59
Maria Eugênia encontrava-se extremamente feliz naquele momento, por minha
desistência do projeto. Na verdade, havia se empenhado tanto em me afastar de
“sua empresa”, como chamava em muitos momentos, que chegara a esquecer um pouco
dos filhos, dando-lhes uma certa trégua nos conflitos dentro de casa. Não
aceitava o desprendimento financeiro de Maria Antônia, bem como sua escolha à faculdade
de Sociologia, a fim de trabalhar em prol de uma sociedade mais justa. João
Henrique também pudera respirar mais sossegado, neste período, sem ter que se
aventurar, como de costume, nos namoros arranjados com as filhas das amigas de
sua mãe.
Na certa, fora João Henrique quem mais se sentira aliviado com as
ocupações de Maria Eugênia. Longe da vigilância permanente da mãe, pudera
curtir mais a amizade com Alexandre, nos intervalos dos estudos da faculdade.
Recebia frequentemente o amigo acompanhado da namorada, juntamente com Maria
Antônia. Enquanto as duas conversavam sobre idéias para trabalhos da faculdade,
meu sobrinho se deliciava com as histórias dos esportes radicais do amigo. João
Henrique, muitas vezes, parecia hipnotizado com a espontaneidade e liberdade
que eram tão peculiares a Alexandre e que nunca conhecera enquanto postura
própria de vida.
Alexandre questionava regras e condicionantes de vida com uma leveza que
deixava João Henrique totalmente encantado, num misto de surpresa e adoração,
como se experimentasse o deslumbramento a cada frase ou colocação do amigo
acerca de qualquer assunto. Era como se Alexandre conseguisse desconstruir
facilmente, numa questão de segundos, o que ele levara a vida inteira
acreditando como sendo importante para sua sobrevivência. E aquilo o deixava
completamente fascinado, a ponto de não parar de falar no amigo, mesmo em sua
ausência, o que chamava atenção das pessoas.
Certa tarde, depois de um banho de piscina juntamente com Carola e Maria
Antônia, João Henrique e Alexandre subiram para se trocar. Meu sobrinho estava
no chuveiro quando o amigo entrou no banheiro, inesperadamente, completamente
despido, conversando sobre uma colega que estava lhe dando mole, segundo ele,
quando ia pegar a namorada na faculdade. Alexandre aproximou-se da pia,
começando a tirar a barba. Do chuveiro, João Henrique fitava o corpo do outro,
sem que este percebesse. Era um misto de curiosidade, nervosismo, incômodo e
excitação. Admirava-o por ter um físico atlético, malhado, com musculatura bem
definida, coisa que ele mesmo não tinha. Acreditava até então que o que mais o
chamava atenção no corpo do amigo era o resultado de horas diárias de academia.
Mas passara a estranhar sua própria reação ao vê-lo sem roupa, sua excitação.
João Henrique lembrava de alguns momentos em que o mesmo havia acontecido
em outras situações, desde a adolescência e aquilo lhe incomodava
profundamente. Sentia-se acometido de um sério distúrbio e lhe faltava coragem
para pedir ajuda a alguém. Apesar de sua grande amizade e cumplicidade com a
irmã, como revelar sua excitação ao ver um homem sem roupa? Ou até mesmo, como
contar para ela que havia se sentido atraído pelo próprio amigo, namorado da
amiga Carola? Não! De modo algum poderia revelar aquilo a Maria Antônia, ou a
qualquer pessoa que fosse. Se ele mesmo não aceitava, quanto mais sua irmã ou
alguém mais. Seria uma decepção, ninguém acreditaria que ele não era
homossexual. Preferia não correr esse risco.
Meu sobrinho tratara de esconder a ereção com a toalha, ao sair do
chuveiro, procurando deixar o banheiro o mais rápido possível, para que não se
sentisse tentado a olhar. Enquanto o amigo, continuava conversando
naturalmente, sem imaginar a angústia que estava causando a ele. Não entendia
ao certo o que sentia, mas percebia que um desejo incontrolável de apreciar e
até tocar, se fazia presente naquele momento. Algo que era mais forte e não
poderia explicar, mais forte até do que muitas vezes sentira ao estar com
alguma namorada. De fato, não tinha como mensurar, se era igual ou mais intenso
do que o que sentia por uma mulher. Sabia apenas que não conseguira sentir o
mesmo pela maioria das poucas namoradas que tivera.
Contudo, João Henrique repetia mentalmente para si mesmo que não estava
sentindo aquilo, que jamais poderia sentir, para desfocar e conter sua
excitação. O que não acontecia facilmente, visto que a imagem de Alexandre, sem
roupa, bem ali diante dele, não saía de seu pensamento, fazendo-o voltar à
porta do banheiro, para que pudesse ver por mais um segundo que fosse aquele
belo corpo. Queria acreditar que era apenas pelo desejo de ter um corpo como o
do amigo, malhado, bem definido, e não por atração física.
JÚLIA SERRADO
Capítulo 60
Pedro sofria por tudo o que acontecera, mas estava bem. Continuava
tentando também encontrar o tal dossiê deixado pelo pai sobre Donato Pessoa e
suas ações ilícitas dentro da RTN. E até tentara, sem muito êxito, conversar
com o dono da emissora, acerca do assunto. Contudo, não podia entrar muito em
detalhes, visto que não dispunha de provas e tudo não passava de desconfianças.
Sabia que Donato seria uma pessoa capaz de negar friamente e exigir
tranquilamente as provas e até chegar ao ponto de abrir um processo contra ele,
alegando calúnia e difamação. Pedro usava de prudência e ponderação, como de
costume, por isso procurara o presidente da empresa e lhe falara com cuidado a
respeito de suas desconfianças. Mas preferira não comentar sobre mim e o plano
para conseguir o suposto dossiê, bem como o roubo do projeto de programação.
Depois de muito pensar, Pedro decidira procurar Donato
para entender melhor a questão do plano que me envolvia assumindo a identidade
de minha irmã Mirela.
- Fiquei com receio que você permanecesse na
vice-presidência da RNT, Pedro. Almejo este cargo há anos. Sabe o que significa
isso? Sei da minha contribuição para esta emissora ter chegado aonde chegou e
ser hoje uma das maiores do país, mesmo tendo sua sede aqui em Fortaleza. Este
cargo é meu por direito.
- Em nenhum momento se preocupou comigo, se podia ou não
sofrer?
- Às vezes sim. Mas estamos afastados.
- Apesar de estarmos afastados há anos, Donato, nunca
deixei de me preocupar com você. Foram anos de amizade.
- Que você acabou.
- Então é uma forma de me punir?
- Que nada, Pedro. Não tem mais tanta importância assim
pra mim.
- Então consegue me ver somente como um inimigo?
- Não seja drástico. Não somos mais amigos.
- Não me veja como inimigo, Donato. Nunca fui.
- Está em meu caminho.
- As coisas aconteceram naturalmente. Nunca tive a
intenção de lhe roubar nada, nem de me colocar em seu caminho.
- Deixe a RTN então.
- Até poderia o fazer, e compactuar com um jogo sujo o
qual causou a morte de meu pai.
- Seu pai não morreu por conta disso, Pedro.
- Eu não sei.
- Eu estou lhe dizendo.
- Não confio mais em você, Donato. Como disse, não somos
mais amigos.
- Não se arrependa então.
O que deixava Pedro surpreso não era o fato de Donato
desejar a vice-presidência da empresa, mas o que fora capaz de fazer para
conseguir o que queria. E onde ficavam os quase vinte anos de amizade entre os
dois? Não sentia ele nada por Pedro? Isso era difícil de compreender. Até
porque sofria em saber aquilo do amigo de tantos anos.
Somente quando Pedro partilhou com Donato Pessoa sua
desconfiança de que ele podia estar envolvido na morte de seu pai, percebeu uma
alteração emocional de sua parte, afirmando não ter nada a ver com o ocorrido.
Até porque a causa da morte de Alberto Lucena fora enfarte. No entanto, Pedro
se referia ao fato de Donato ter estado com seu pai pouco antes de sua morte,
na casa de praia, no Porto das dunas, e sumira de lá, logo após o acontecido.
Conforme ficara sabendo através de um pescador do lugar. E isso o deixava
confuso. Se não tinha nada a ver com a morte, com algo que pudera ter provocado
o ataque cardíaco de seu pai, por que sumira da casa, deixando que todos
pensassem que não havia estado no local?
Donato Pessoa pareceu convincente ao se defender sobre
as desconfianças de Pedro acerca da morte do pai. E até deixara transparecer
uma certa dor ao falar no assunto. Por mais que fosse uma pessoa ambiciosa,
devia gostar sim de Alberto Lucena, que lhe dera todas as possibilidades de
crescimento e ascensão profissional e social. No entanto, negara que tenha me
contratado para conseguir o tal dossiê e sim para lhe roubar somente o projeto
de programação. Obviamente não assumiria sua intenção totalmente para não se
expor, visto que Pedro não dispunha de nenhuma prova da existência dos
documentos. Não perdera também a oportunidade de tentar jogá-lo contra mim. O
deputado Donato Pessoa não dava ponto sem nó, sabia muito bem o que estava
fazendo, e jogava alto para isso.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 61
Nando sentia-se exposto e desrespeitado por ter tomado a atitude extrema
de mandar prender o pai e naquele instante eu clamar por sua soltura e retorno
às nossas vidas. E no fundo, ele tinha razão. Não somente pelo que havia
acontecido no dia anterior, onde todos os vizinhos foram testemunhas, mas,
sobretudo, por todas as barbaridades cometidas por Alceu em todos aqueles anos.
Finalmente alguém tomava uma atitude de dignidade e eu estava ali a
invalidando, negando o desrespeito pelo qual fomos todos submetidos por tanto
tempo. Meu filho ressaltava tudo isso, tentando me dissuadir de meu pedido.
Holanda era quem mais se indignava diante de minha postura, chegando a me
ameaçar.
- Escuta bem o que eu vou dizer, mãezinha... se por acaso a senhora
insistir nessa insanidade, retirar a queixa na polícia e trazer aquele homem
pra dentro de nossa casa novamente, e se submeter a essa vida absurda a qual a
senhora e nós vivenciamos durante toda a nossa vida, es-que-ça que eu e-xis-to!
- Falou o final da frase compassadamente, para que eu entendesse de uma vez por
todas que não voltaria atrás em sua decisão. E prosseguiu: - Esse homem precisa
pagar pelo que ele fez. Se ele voltar, nunca mais, veja bem, nunca mais, a
senhora vai me ver!
- Calma, mano! – Nando ainda tentara amenizar a situação.
Holanda, entretanto, estava decidido. Afastando-se do irmão.
- Calma nada, Nando! Eu sei muito bem o que estou fazendo. – Voltou-se
mais uma vez para mim. - Ela precisa entender que esse homem é um câncer e que
nós precisamos nos curar!
- Ele é nosso pai. – Completou Nando.
- Há muito ele não é meu pai, desde quando ele me renegou como filho. –
Respondeu prontamente Holanda.
- Você conhece o gênio de seu pai, meu filho. – Tentei intervir.
Doía-me a alma vê-lo falando com tanta mágoa, com tanto ódio do próprio
pai. Por mais que Alceu tivesse nos feito sofrer, era de nossa família e
precisa de ajuda. Como os próprios meninos falavam algumas vezes, era um homem
doente. E por isso, não podíamos abandoná-lo. Os dois, contudo, estavam
convictos de sua decisão, seria impossível demovê-los daquela idéia, pelo menos
naquele momento. Eu precisava esperar a poeira baixar um pouco para tirar Alceu
da cadeia, sem muitos conflitos com os meninos. Não poderia, claro, querer que
eles engolissem tal atitude minha depois de tudo o que havia acontecido, sem
maiores explicações.
Nando cuidou para eu nem precisar ir à cadeia, ver questão de alimentação
ou pensar na possibilidade de visita a Alceu, nos dias que se seguiram. Ele
mesmo fazia isso diariamente e me deixava a par do estado dele, para que eu não
me preocupasse. Mas preocupada eu estava. Sabia que não era, mas me sentia
culpada pelo que estava acontecendo a ele. Talvez se eu não tivesse reagido
como reagi quando meu marido me indagou sobre Adriano Cordeiro, ele não tivesse
ficado tão nervoso e desconfiado.
Na verdade, eu insistia numa culpa que não me pertencia. Não se tratava
de Alceu estar ou não na cadeia, pelo que me fizera naquele momento, mas ao
fato de eu nada fazer para tirá-lo de lá e prosseguir com nosso casamento,
acontecesse o que acontecesse. O que me tirava o sono realmente era o dever de
cumprir uma promessa e não ter argumentos para tal, ou melhor, de não poder
revelá-los.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 62
O bom de toda aquela situação, desde a prisão de Alceu, era a presença de
Holanda mais constante em nossa casa. Passava diariamente para me ver e saber
como eu estava, sempre trazendo comidas, das quais sabia que eu gostava, ou
presentes, que eu gostaria de ter. Sentia-me mais próxima de meu filho. Para
falar a verdade fora a época que nós estivemos mais juntos, curtindo a presença
um do outro, depois de ter saído de casa para morar com Renato Brandão.
A relação que Holanda mantinha com Renato estava a cada dia mais
deteriorada. Meu filho estava cheio e se sentia sufocado com os ciúmes do
parceiro, bem como cansado de suas demonstrações de afeto e carinho. O que mais
o incomodava naquele instante era a obrigação de permanecer com ele na cama,
mais até do que suas crises de ciúme, que no fundo tinham um pouco de
fundamento. Holanda estava chegando ao seu limite e sonhava em viver um grande
e verdadeiro amor. Não tinha intenção de trair o parceiro, ou mesmo magoá-lo,
mas vivia um desejo latente, encoberto pela gratidão a Renato e tudo o que
fizera por ele profissionalmente. O que fazia despertar dentro de si uma busca incessante
por esse amor, em todos os lugares e em qualquer nova mulher com quem
interagisse, fazendo-lhe parecer meio cafajeste, como se tentasse seduzir o
mundo, embora lhe faltasse coragem para levar qualquer história à diante.
Holanda até tivera muitas oportunidades de viver esse fogo, o qual
tentava conter. Uma vez ou outra, acertava em sua postura sedutora involuntária
e criava situações em que as mulheres extravasavam seu desejo, tomando a
iniciativa para levarem às últimas conseqüências o jogo de sedução, fosse na
academia, na praia, no trabalho ou em qualquer lugar.
Meu filho terminava por colocar um limite e não levar a situação adiante,
como se não compreendesse o que teria causado ou tivesse levado a moça a tomar
tal atitude, visto que não reconhecia a sua parcela de responsabilidade no
acontecido. Dizia sempre não entender como havia começado, nem o que fizera
para fazer a pessoa pensar que poderia acontecer algo. Como se tudo não
passasse de uma brincadeira. Chegara, inclusive, a receber alguns limites duros
de vítimas que haviam sacado o seu jogo.
Renato presenciara algumas dessas situações, o que começara a provocar os
seus ciúmes. Era completamente apaixonado por Holanda e não conseguia se
perceber ou pensar na possibilidade de um fim à relação. Sentia o desgaste com
meu filho e tentava lutar com as armas que dispunha.
Holanda foi surpreendido ao chegar do trabalho com todo o apartamento
preparado para um jantar à luz de velas.
- Nossa! Uma fada madrinha passou por aqui. – Era a forma bem humorada de
meu filho mostrar sua surpresa.
- Queria te fazer uma surpresa. – Disse Renato, sorrindo, ainda
terminando de colocar uma vela no castiçal da mesa.
- E que surpresa! – Holanda estava meio sem graça. Não achava aquele um
bom momento para jantares românticos com Renato.
- Você gostou? – Perguntou Renato, ansioso, olhando para todo o ambiente,
na penumbra, iluminado pelas velas.
- Você é ótimo nessa coisa de decoração. – Disse, colocando a as chaves
na mesa ao lado da porta e tratando de entrar. – Acho que se eu fosse preparar
um momento assim ficaria mais parecido com um ambiente de oração do que com um
cenário para pedido de casamento. – Holanda completou, com seu sorriso de
menino.
E Renato não conteve a risada. Adorava o bom humor do companheiro. Aquilo
tinha sido uma das coisas pelas quais ele havia se apaixonado em Holanda.
- Vai tomar seu banho. Eu tenho uma surpresa para você.
- Mais outra? – Holanda fez um olhar investigativo, brincalhão. – Assim
você me deixa zonzo. – Completou, fingindo desmaiar, com seu sorriso maroto.
Meu filho tomou seu banho, preocupado. O que Renato estaria aprontando? O
fato era que não existia clima para romantismos. E naquela noite, sentia-se
cansado para fingir qualquer coisa. Decidiu ser espontâneo e não ceder a
qualquer tentativa de clima amoroso.
Holanda voltou à sala, curioso e ao mesmo tempo reservado. Falou
inicialmente amenidades da agência, mas logo foi tomado pela surpresa do
companheiro.
- Holanda, eu fiquei sabendo há algumas semanas que o superintendente da
WM de Pernambuco pediu demissão. – Partilhou, servindo meu filho. - Foi chamado
para trabalhar numa outra empresa e aceitou o convite.
- Ah, eu fiquei sabendo também. – Holanda disse, propondo um brinde. – O
Willames Macena está à procura de um diretor substituto, não é verdade?
- Estava.
- Já encontrou? – Perguntou, tomando um gole de vinho.
- Sim. O diretor daqui de Fortaleza.
- Sério? – Holanda ficou surpreso. – Ele não me faliu nada.
- Nós cuidamos de tudo em
segredo. Eu venho tratando disso com o Willames há algum
tempo.
- Sei. Mas aqui vai ficar descoberto.
- Não mesmo.
- Então já encontraram outra pessoa pra cá?
- Isso não foi difícil. Por isso eu estava engajado.
- E quem é?
- Você.
Holanda se engasgou.
- O quê?!
- Você é o novo diretor superintendente da WM de Fortaleza.
- Espera aí, Renato. Que história é essa?
- Isso mesmo que você ouviu. Eu sugeri o seu nome.
- E o Willames aceitou?
- Claro. Inicialmente ele pensava em outro nome. Mas depois de algumas
conversas, acabou acatando minha sugestão.
Meu filho estava chocado.
- E então, feliz?
- Renato, eu ainda estou em choque. Comecei na WM há seis anos, e já sou
diretor superintendente!
- Você tem competência.
Meu filho temia aquela promoção. Não o trabalho, mas o preço que teria de
pagar para assumi-la.
- Renato, eu gosto do meu trabalho. Mas não sei se é o momento.
- Uma promoção é sempre bem-vinda. Sem falar que você é o melhor nome.
Deixa de bobagem, Holanda. Isso é ótimo pra sua carreira.
- E se não fosse você?
- As pessoas sempre precisam de uma forcinha.
- No meu caso eu sempre tenho grandes empurrões. – Trazia no rosto um
sorriso de certo desdém. – Queimo etapas o tempo inteiro.
- É assim que as pessoas crescem. – Reagiu Renato.
- Assim elas são esticadas. – Holanda respondeu prontamente, abrindo os
braços e sorrindo. – E a força. – Completou.
- Isso é puritanismo, Holanda.
- Hum hum. – Negando com a cabeça. – Isso é vergonha na cara, Renato.
- E você aprendeu quando? –
Respondeu ele no impulso.
Holanda bem sabia do que Renato falava. Teve diversos empurrões daqueles
em sua carreira dentro da WM desde o início de sua relação. Mas naquele momento
sentia-se cansado, farto.
- Você tem razão. – Respondeu meu filho, jogando o guardanapo na mesa e
levantando-se.
- Holanda, por favor, me desculpe. – Tratou de segurá-lo. – Eu não queria
ter dito isso. Foi no impulso.
- Renato, foi só foi espontâneo. Relaxa. – Saiu em direção à sala de
estar. E Renato foi atrás.
- Holanda, por favor. Eu não quis dizer isso.
- Está tudo errado.
- Tem razão. Eu fui um tolo um estúpido.
- Não, você está certíssimo! – Confirmava com toda a segurança. – Eu
nunca tive vergonha na cara.
- Me desculpa, por favor. Era para ser um momento de comemoração.
- Relaxa, Renato. Está tudo tranqüilo. Pra te fala a verdade eu nunca
estive tão consciente da minha vida e ao mesmo tempo tão tranqüilo como nesse
exato momento. Eu acho que eu tenho perdido muito tempo me sentindo culpado e
não fazendo nada pra mudar essa situação.
- Holanda, nada precisa mudar.
- Eu não vou aceitar esse cargo.
- Você não pode fazer isso. Já está tudo acertado com o Willames.
- Mas a decisão é minha. E ela já está tomada.
Com aquilo, meu filho colocava o primeiro basta na relação de troca com
Renato Brandão. E sentia-se aliviado, feliz.
JÚLIA SERRADO
Capítulo 63
Fiquei sabendo, através de Adriano Cordeiro, que Pedro
não havia voltado para Vanessa, como eu pensava. Continuava em seu novo
apartamento e visitava o filho diariamente. Felipe parecia ter piorado das
crises de alergias depois de sua saída de casa. Evidente que eu não sabia se
tinha tido uma piora significativa realmente ou se fora uma estratégia de sua
mãe para ter a presença do ex-marido com mais freqüência. A piora de fato
existira, o que Pedro só viria descobrir muito tempo depois, era que Vanessa
fazia, sem que ninguém soubesse, com que o filho ingerisse comidas, as quais
potencializavam as crises alérgicas. Por mais que amasse o filho, Vanessa não
media esforços para garantir a presença de Pedro ao seu lado. Cuidava para que
as doses de substâncias proibidas pelos médicos, ingeridas por Felipe, fossem
doses pequenas, apenas o suficiente para não deixá-lo bem e fazer com que seu
pai estivesse sempre por perto. Ela temia que acontecesse algo de grave com o
filho e sempre rogava a Deus para protegê-lo, bem como compreendesse sua
atitude. E até chegava a pensar que era talvez a forma que Deus estava lhe
mostrando para conseguir seu marido de volta.
Adriano Cordeiro realmente se empenhara em ajudar em
minha reaproximação de Pedro. Embora lamentasse a minha participação no plano
do deputado, estava convencido de meu amor por seu amigo. E acreditava que o
mesmo também me amava, apesar de lhe afirmar que seu coração pertencia ainda a
Mirela. Ele conseguira então promover um encontro entre nós dois, alguns dias
depois de ter conhecido a minha versão dos fatos. Pedro parecia ter mostrado
certa resistência em conversar comigo, mas acabara sendo convencido pelo amigo
que seria o melhor caminho, mesmo que fosse simplesmente para decidir nunca
mais nos encontrarmos.
* * *
Eu estava extremamente nervosa no dia de meu reencontro
com Pedro, o que me fizera chegar uma meia hora antes ao restaurante, que
ficava na Rua Canuto de Aguiar, quase esquina com a Av. Virgílio Távora. Um ambiente
rústico e requintado que convidava a uma intimidade. O aguardei, numa sala de estar, do lado do
estacionamento. Olhava cada pessoa que entrava, na esperança de que já fosse
ele. Por duas vezes chegaram uns rapazes, que lembravam seu porte físico, alto,
moreno, bem vestido, de blazer e óculos escuros, um estava acompanhado, talvez
de sua namorada, o outro sozinho. Fiquei imaginando por onde começaria. Ensaiei
mentalmente, por algumas vezes, o início da conversa.
“Pedro, tudo o que eu fiz foi para salvar a minha
filha...”
Não, assim não poderia ser! Talvez ele logo levantasse e
me deixasse falando só, se eu fosse repetir a mesma história.
“Pedro, eu sei que não tem nenhuma justificativa o que
eu fiz...”
Também não! Rezei para que Deus me iluminasse a dizer as
palavras certas para tocar o seu coração. Estava tão entretida com meus
pensamentos que nem percebi o momento em que ele entrara. E de repente, já
estava bem diante de mim.
- Demorei muito?
Tremi ao ouvir sua voz, a mesma voz que me trazia paz e
me fizera tantas vezes a mulher mais feliz do mundo, ao ouvi-la. Estava ainda
mais lindo. Parecia ter cortado o cabelo recentemente, com aspecto ainda mais
jovem.
Ficamos Pedro e eu no ambiente ao lado, numa mesa
afastada, um pouco isolados do resto do restaurante e seus demais espaços. Um
lugar perfeito para uma conversa com a qual acertaríamos a nossa vida. Estava
esperançosa, apesar do medo que me vinha de vez em quando. Raquel e D.
Clarinda, até pareciam mais confiantes que eu, antes de sair de casa, destinada
àquele encontro.
- Eu queria que você soubesse que eu estou sofrendo
muito. – Falei segurando sua mão por sobre a mesa, olhando em seus olhos. Falar
de meus sentimentos seria o melhor começo, segundo Adriano Cordeiro.
- Sofrendo? – Perguntou Pedro, desviando o olhar um
pouco. – Como você acha que eu estou me sentindo?
- Se eu estou desse jeito, imagina você. – Respirei
fundo e prossegui: - Pedro, eu estou me sentindo a mulher mais infeliz do
mundo. Minha atitude foi de uma mãe desesperada, em busca de encontrar sua
filha. – Ele desviou o olhar para os óculos escuros em cima da mesa. E eu
continuei: - Mas eu sei que isso não justifica o que eu fiz.
- Não mesmo. – Voltando-se a mim. – O que você fez foi
torpe, foi... – Procurava as palavras, com gesto de nojo. – Foi vil. Você
atentou contra todos os meus sentimentos. – Fez-se um silêncio. E Pedro
continuou: - Não sei nem como te tratar. É estranho não poder te chamar de
Mirela, entende?
Eu olhava para a decoração rústica do restaurante em
nosso entorno, como se ganhasse tempo para organizar meu pensamento.
- Sei bem do que você está falando, Pedro. Pra mim
também é estranho, eu juro. É como se tudo fosse um filme. Pensei que na vida
real as pessoas não fizessem o que eu fiz. Para falar a verdade, nunca pensei
em um dia agir assim. Isso nunca fez parte de minha vida. Você pode acreditar.
- Eu não sei em que acreditar quando você fala.
- Eu estou sendo honesta.
- Eu não confio em você. Talvez até
esteja dizendo a verdade, mas é difícil, sabe? Há poucos dias fui vítima da
maior mentira que já inventaram na minha vida. – Parou um pouco e continuou: -
E você a protagonizou. – Pedro levou o cabelo para trás, com as duas mãos e
respirou fundo. – Hoje tem um turbilhão de sentimentos dentro de mim. Acho que
estou ainda tentando organizar tudo, entende? E é também difícil estar aqui com
você. É como se a minha dor fosse renovada.
Eu não contive as lágrimas.
- Passei minha vida inteira fazendo o que era correto,
sabe, Pedro? Ouvir você falar assim me machuca por dentro. – Pedro me olhava,
como se procurasse realmente se certificar do que era verdade em minha fala. –
Você tem toda razão. O que eu fiz foi pequeno, foi nojento. Mas eu estou
arrependida, muito arrependida. – Toquei em suas mãos, e ele afastou-as de mim.
- Adriano insistiu que eu viesse a esse encontro. – Era
como se confirmasse sua falta de crença no que eu falava. – Diante do que a
gente viveu, eu achei que devia te ouvir.
- Pedro, eu... – Pensei um pouco e tomei coragem. – Eu
estou completamente apaixonada por você. – Ele desviou mais uma vez o olhar. E
voltou-se. – Talvez você não compreenda, devido seu sofrimento.
- Você não sabe nada de mim. – Interrompeu-me,
bruscamente. – Nada! Entende? Nada! – Seu tom era agressivo. – Você não sabe o
que eu senti, o que eu estou sentindo. – Virou o rosto, tentando conter o
choro. Voltou-se. – Eu perdi a pessoa que eu amava há mais de quinze anos,
depois descobri que ela não havia morrido. – Parou e tomou fôlego. – Agora
descubro que é tudo mentira, que ela realmente está morta. E mais, que a pessoa
com quem eu fazia planos de ficar junto pelo resto de minha vida, é uma
impostora. – Uma lágrima lhe escapou. E eu caí em prantos. – Você vem me falar
agora de meu sofrimento, como se soubesse o tamanho de minha dor? Júlia
Serrado, você não sabe nada de mim! Entendeu?
- Talvez eu não mesmo noção do que esteja se passando
com você.
- Não, não tem mesmo! – Pedro interrompeu.
- Mas eu sei do que está se passando dentro de mim. Sei
que estou arrependida e que eu te amo.
- Ama?
- Eu te amo, Pedro.
- Acho que agora é conveniente para você dizer isso.
- Eu sofro por tê-lo feito sofrer. Dói te ver assim. –
Eu falei, fitando bem os olhos dele.
- Sabe o que me vem, ouvindo isso? – Esperei que
revelasse. – Que Donato pode estar por trás dessa fala.
- Não! Eu juro que não, Pedro.
- Não jure, por favor! Você piora as coisas assim.
- Mas é verdade.
- Eu estou sofrendo muito, Júlia. Eu quero que você
saiba que foi difícil vir ao seu encontro, e que eu só vim em respeito a tudo o
que nós vivemos. Apesar de ter sido uma mentira. Que para mim não foi.
- A estrutura de nossa relação até podia ser uma
mentira. Mas o sentimento que eu experimentei com você, Pedro, isso foi a maior
verdade da minha vida.
Fez-se um silêncio.
- O fato é que não quero nenhum tipo de reaproximação
com você, Júlia. – Pedro foi seco em sua afirmativa. E aquilo me cortou por
dentro. – E eu queria te dizer também que apesar de não concordar com o que
você fez, eu compreendo o seu desespero em querer achar a sua filha. Eu sei que
realmente ela foi roubada. Mas mesmo as loucuras que nós fazemos frente a algum
desespero, nos trazem conseqüências. Entenda, Júlia: Não é porque precisamos,
que vamos assaltar um banco ou matar alguém. Deste modo, todos poderiam justificar
seus crimes.
- Eu estava desesperada, Pedro.
- Eu sei. Mas se realmente você está sendo sincera
agora, endente o que estou falando.
- Você tem toda razão. Eu só não esperava que fosse me
apaixonar por você.
Pedro parecia incomodado quando eu falava de meus
sentimentos a seu respeito. Desviava o olhar, mexias nos óculos em cima da
mesa, fugia de minhas declarações.
- Eu havia me envolvido com uma mentira. – Disse ele,
com frieza.
- Eu não! – Respondi prontamente.
- Estamos então em desvantagens. – Pedro entrou no
ritmo, como em jogo de perguntas e respostas.
- O que quer dizer?
- Você vivia uma personagem, eu me apaixonei por ela.
Eu, fui eu mesmo, entreguei todo o meu coração, você se apaixonou por mim. Não
daria certo então. Eu não conheço você, Júlia. O que eu conheci, foi uma imagem
que me lembrava o grande amor.
- Mas era eu. Você convivia comigo, Pedro, não com
Mirela.
Ele hesitou um pouco.
- Você acha que eu teria me apaixonado caso fosse uma
outra situação?
- Isso eu não posso responder.
- Mesmo que eu tivesse te conhecido como Júlia Serrado,
ainda assim você estaria à sombra da Mirela, pela aparência física. O fato é
que eu não conheço você, Júlia. Qualquer relação que fosse estabelecida entre
nós hoje, nós precisaríamos de um tempo de construção. Esse tipo de coisa não
acontece por decreto.
- Por que não nos dá esse tempo então?
- Por que não confio em você. Júlia , para mim
você é uma estranha. Não existe nenhuma intimidade entre nós. Eu não conheço
nada sobre a sua vida. Você não passa de uma pessoa desconhecida para mim.
- Isso não é verdade. Nós estivemos na intimidade do
nosso coração.
- Infelizmente não dá!
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 64
Holanda era grato a Renato e ele sabia disso, estando certo de que com
mais aquela promoção dentro da agência de publicidade seguraria a difícil
relação a qual experimentavam há anos. Ainda tentei convencer meu filho a não
revogar sua decisão de dispensar o novo cargo oferecido pelo companheiro. E até
sugeri que ele pedisse demissão da WM, assim se sentiria menos preso,
diminuindo sua dependência profissional a Renato, para que não ficasse mais na
obrigação de permanecer naquela relação mentirosa.
Renato Brandão, por sua vez, cercou meu filho de todos os lados,
suplicando suas desculpas e procurando convencê-lo a reconsiderar a decisão.
Armando um jogo completo de chantagens sentimentais e provocações de culpa em
Holanda.
Eu não queria mal a Renato, pelo contrário, até considerava-os, ele e meu
filho, um lindo casal. Na verdade, sentia pena por ser uma pessoa boa e se
permitir a estar com alguém, sabendo de sua falta de amor, como se tivesse que
comprar sua presença. Chegamos a conversar sobre este assunto, embora não fosse
clara, direta em minhas colocações, para não magoá-lo ou ainda piorar a situação.
Não queria também expor meu filho, colocá-lo na posição de mercenário ou
interesseiro. Embora estivesse com Renato por uma questão material desde o
princípio, nunca tivera a intenção de lhe fazer nenhum mal, pelo contrário,
achava inicialmente que poderia dar a ele o que necessitava e vice-versa. Fora
seu grande erro. Sua imaturidade, na época, fizera-o acreditar na relação como
um negócio. Jamais pensava em enganá-lo ou se aproveitar de seu amor para
crescer profissionalmente. Encarava tudo como uma conseqüência e era ainda
consciente de sua competência enquanto profissional, mesmo sabendo que crescera
rápido dentro da agência.
Meu filho acabara por ceder às provocações da vaidade e aceitara o cargo
de diretor superintendente da agência, alegando que a empresa não poderia ficar
sem direção, o que prejudicaria os negócios. No fundo sabia da manipulação de
Renato em relação à transferência do outro diretor, mas tratavam do assunto
como se não soubesse, como se assim se sentisse menos culpado, já que o convite
viera do próprio Willames Macena, por telefone.
Holanda estava cada vez mais envolvido num jogo de mentiras e manipulação
e sofria pela culpa de se permitir a tanto, embora não assumisse, bem como pelo
fato de não poder viver uma verdadeira história de amor.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 65
Era bom estar mais perto de Holanda e vendo-o próximo ao irmão. Abria-se
tanto comigo quanto com Nando, que pensava como eu, embora expusesse suas
sínteses com menos veemência, sem tanta necessidade de convencê-lo do
contrário. Fazia parte de sua personalidade. Nando era provido de uma certa
leveza em suas colocações, menos quando se tratava de suas idéias socialistas.
Parecia um paradoxo, como se quisesse convencer o mundo de que éramos escravos
de um sistema, que precisávamos sair do grau de alienação ao que estávamos
envolvidos, para uma revolução e o nascimento de uma novo sistema econômico.
Nando se apaixonava cada vez mais por suas idéias e provocava a mesma
paixão em seus alunos de sociologia, na faculdade. A crença em Marx fazia dele
um soldado na luta contra a alienação, para que então pudesse se fazer a
revolução.
Aparentemente, a única pessoa que não seguia a crença de Nando e
descordava de seus ideais, era a sua aluna Maria Antônia Gondim. A jovem deixava
claro nas aulas, em seminários do qual participava, suas discordâncias às
idéias de um dos professores mais respeitados na Sociologia da UNICE. Ela não
acreditava numa revolução fora, como Nando parecia pregar, mas num movimento
interno, intrínseco ao ser humano, em que ninguém daria a ninguém um atestado
de liberdade à alienação, mas precisávamos promover uma vivência real das
pessoas a um caminho que fosse diferente, mas construído por cada um, e não um
caminho que já existia como ideal. Maria Antônia dizia acreditar no ser humano
fazendo sua própria história e não escravo de um sonho de revolução, de uma
utopia, que nunca iria acontecer.
Certa vez, num seminário em que estava ministrando, no auditório da
Sociologia. Nando quase chegou a perder o controle com as colocações de Maria
Antônia, descordando de seus pontos de vista minuto após minuto, como se
quisesse de fato provocá-lo. O que já chegava a chamar a atenção de todos os
alunos e professores presentes no ambiente.
- Desculpe, eu não compreendo porque tantas interrupções. - Ele já se
esforçava para demonstrar gentileza frente às discordâncias constantes da
jovem.
- Por eu estar tentando compreender realmente seu ponto de vista,
professor. - A resposta da moça vinha carregada de ironia.
- Se procurasse realmente compreender não me atrapalharia tanto.
- Como assim? Então não podemos nos expressar? - Abria um sorriso irônico
que o provocava ainda mais. - Ora, professor, se fala de sairmos de um estado
de alienação, precisamos expor nossos pontos de vista. Isso é a prática de que
falo, quando coloco que a alienação não é algo fora, faz uma vivência que
precisa ser experimentada por cada um de nós. A partir da expressão do que
pensamos.
- Não prego anarquia, estamos aqui numa aula.
- Lamento, professor, mas é o mesmo argumento de autoridade que o sistema
que o senhor tanto combate, utiliza como cala-boca da população, fazendo-nos
ainda mais alienados.
Nando respirou fundo, procurando manter a calma para não se expor,
prosseguindo com a aula. Ao sair do auditório é cercado por alunos que tentam
marcar orientação ou pedir alguma opinião sobre seus trabalhos acadêmicos. Ele,
no entanto, não consegue tirar os olhos de Maria Antônia a alguns metros, que
comenta o seminário com seus amigos. Na saída do saguão que antecede o
auditório, ele percebe a oportunidade que queria, encontrando-a sozinha,
esperando a amiga Carola, que fora provavelmente ao banheiro.
- Parece não ter gostado do seminário.
Maria Antônia voltou-se a ele assustada, por não esperar a abordagem.
- Pelo contrário, professor. O seminário foi interessante para que eu
pudesse perceber como precisamos reestudar Marx.
O ar de ironia da jovem o deixava furioso, embora procurasse conter.
- Compreendo que pense de forma diferente, Maria Antônia, mas não admito
desrespeitos.
- Professor, o senhor prega revolução e acha que pode dar um passaporte
às pessoas de saída de um estado de alienação, no entanto, age com as mesmas
armas que o próprio sistema que diz não acreditar, e pior, que diz combater.
- Não confunda as coisas, garota! - Já não conseguia mais conter sua
raiva.
- O senhor se acha, não é professor?
- Olha aqui, garota, eu não admito falta de respeito!
- Não se desrespeita quando se discorda, se o senhor não sabe! – Ela
também já alterava o tom. - Apenas pensamos de forma diferente, graças a Deus.
Eu tenho uma opinião formada sobre as coisas, sobre o mundo e não temo
expressá-la. Essa é a questão. Desculpe-me por não acreditar no mesmo que o
senhor.
- De fato, não tem como ser diferente, Maria Antônia. – Ele trazia um tom
de ironia. - Você vem de um núcleo que jamais admitiria as minhas idéias.
- Não me venha com esse tipo de pensamento preconceituoso, professor! –
Ela se mostrava indignada com a colocação. - Eu tenho uma crença, independente
do dinheiro da minha família. – Chegava
ainda mais perto de meu filho. - E diferente do que o senhor considera, eu não
tenho culpa de ser filha de quem sou, pelo contrário, tenho orgulho, não pelo
dinheiro, mas pelo amor.
- Falo de arrogância, garota. – Nando respondeu prontamente.
- Mesmo, professor? – Já trazia no rosto seu sorriso irônico mais uma
vez. - Arrogância é achar que todas as pessoas do mundo têm de pensar igual ao
senhor! Arrogância é não admitir que uma pessoa, independente de sua situação
financeira, possa se interessar pelos outros, por uma causa social! Arrogância
é querer fazer das pessoas ainda mais alienadas do que são com um pensamento
massificado, ainda que cheio de boas intenções. E de boa intenções, o inferno
está cheio, professor!
- Você nunca entenderia essa causa, garota!
- Não mesmo! Sou muito bem resolvida com minha situação financeira e
social. Não carrego frustrações e não as transformo em discursos bonitos e bem
arrumados para punir o mundo por uma vida que eu não tenho e desejaria ter.
- Você é bem fruto do sistema, de uma família rica, que acha que pode
mudar o mundo com esmolas e depois abater no imposto de rendas.
- Escuta aqui, professor... – Ele finalmente havia conseguido
desequilibrá-la. E estavam cada vez mais perto um do outro, suspirando de
raiva. - ...abatendo em imposto de renda ou não, tem alguém fazendo algo em que
acredita, alguém que descruza os braços diante do problema social e age
conforme o que acha que é o certo. Falo de alguém que não tem culpa de ter
construído um grande patrimônio, pelo contrário, só tem méritos, por fazer isso
sem pisar em ninguém.
Falo de alguém que realmente faz alguma coisa, que sai de
dentro de uma sala e põe suas idéias em prática. Diferente
do senhor, professor.
- Cada pessoa contribui como pode...
- Exatamente, professor, que bom que estamos nos entendendo.
- Por que a agressividade, garota?!
- Faça-se essa pergunta!
- De fato, é muito difícil manter um diálogo com você.
- Ao contrário do senhor, professor, não quero lhe convencer de nada.
Admiro até a organização de suas idéias. Mas enquanto o senhor fica no
blá-blá-blá, pessoas morrem de fome, a sociedade clama por trabalho e comida,
não por idéias bem organizadas.
- Você de fato tem um discurso muito bonito, garota. Aprendeu a lição de
casa. Mas é exatamente essa a estratégia do sistema, para manipular e impedir a
revolução.
- Ninguém dá a revolução às pessoas. Isso deveria ser uma experiência
íntima de cada um. No momento em que você quer que alguém acredite no que você
acredita simplesmente porque acha o certo, está contribuindo exatamente com a
alienação desta pessoa, substituindo um pensamento por outro. Mas nenhum destes
pensamentos foi gerado por ela realmente. Quando o senhor compreender isso,
talvez possamos conversar.
JÚLIA
SERRADO
Capítulo
66
O momento no qual eu havia apostado todas as minhas
fichas findava com a decisão de Pedro de não nos vermos mais definitivamente. E
aquilo vinha como uma bomba explodindo em meu coração, devastando todas as
minha esperanças de uma reaproximação. Não tinha mais o que ser feito, fora em
vão o empenho de Adriano Cordeiro, a força de D. Clarinda de Holanda, a torcida
de Raquel. Estava tudo acabado realmente. Eu havia perdido o homem da minha
vida ou melhor, talvez eu nunca o tivera, já que o momento que estivemos
juntos, Pedro pensava ter reencontrado o grande amor de sua vida, a minha irmã,
a quem eu nem conhecia.
Fiquei pensando em tudo o que havia acontecido entre
Pedro e eu, durante o percurso que ele fizera em seu carro, para me deixar na
Mirage, onde eu acertaria as minhas contas. O fato era que eu não conseguia
pensar especificamente em
nada. Tudo me vinha e ao mesmo tempo fugia, transformando os
meus pensamentos num vendaval de hipóteses e certezas, de dúvidas e convicções,
sem conseguir chegar verdadeiramente a uma síntese.
Já não sabia mais se Pedro verdadeiramente me amara um
dia, mesmo pensando ser minha irmã, como D. Clarinda e Adriano pensavam. Eles
acreditavam que mesmo que Pedro achasse que estava envolvido com Mirela, era comigo
que ele tinha reencontrado a felicidade. Embora eu estivesse vivendo uma
personagem, era eu, com minha energia, que despertara a sua paixão. Contudo, eu
já não pensava mais assim, tendo sido ele categórico em afirmar o seu não
reconhecimento a mim.
Em meio a todos aqueles pensamentos confusos, eu ainda
conseguia fitar a sua mão passando a marcha do carro, lembrando do quanto eu a
desejava acariciando o meu rosto mais uma vez. Eu havia feito de tudo para me
segurar e não tomar mais seu tempo. Mas acabei por ter uma crise de choro ao
pararmos o carro, na Praça Portugal, em frente à boate. Senti um grande vazio
tomar conta de mim. Estava perdendo tudo, todas as pessoas a quem amava. Clara,
Joel, Charles, o meu trabalho e o homem por quem eu havia me apaixonado, depois
de tantos anos sem abrir meu coração. E como eu o admirava. Mesmo diante de
tudo, ele ainda se mostrava preocupado. Tirou o cinto de segurança rapidamente,
ao me ver aos prantos, procurando me acolher num abraço.
- Calma, Júlia, calma!
Sua voz estava terna e ao mesmo tempo passava um pouco
de surpresa. Acariciou-me a cabeça por alguns segundos, tentando me
tranqüilizar, o que para mim, pareceu uma eternidade. Como era bom estar em seu
colo, sentir seu calor, seu cheiro, sua energia de cuidado e afeto. Por mais
que afirmasse não me conhecer e não reconhecer em mim nenhuma intimidade,
transmitia naquele instante um zelo de alguém que carregava consigo um
sentimento profundo de proteção, algo que não se tem por qualquer pessoa, como
dizia que eu era, mas por alguém especial sim.
Deixei-me então levar por meus instintos e o tomei num
beijo inesperado. Não me movia por nenhum objetivo de conseguir dissuadi-lo de
sua decisão, mas pelo desejo profundo de senti-lo meu mais uma vez, mesmo que
por um instante. Um beijo que parecia não acabar nunca, no qual fui
correspondida, depois, claro, do susto inicial. Por alguns segundos, senti
novamente tranqüilidade em meu coração. Aquele beijo, o seu calor, o seu hálito
me revigoravam, davam-me forças para continuar. Fui mais uma vez, ainda que por
menos de um minuto, a mulher mais feliz do mundo. Como alguém poderia ser tão
importante a ponto de transformar, numa fração de segundos, o nosso estado de
vida, fazendo-nos felizes ou infelizes? E feliz eu estava, até que ele
interrompeu aquele momento. Pediu-me desculpas, embaraçado, afirmando ter que
ir embora, voltar para a empresa. Desci do carro e o vi partir.
Pude perceber que Pedro não estava tão indiferente a
mim, como dizia estar. Beijou-me com todo o desejo e com a mesma vontade que eu
carregava comigo. Talvez Adriano e D. Clarinda tivessem razão e tudo fosse uma
questão de tempo, para que nós pudéssemos ter uma segunda chance. E aquilo me
deu novo ânimo.
MARINA PESSOA
Capítulo 67
Voltei para casa somente no final da tarde, depois de fazer as pazes com
minha irmã. A própria Vanessa foi me levou. Preferi que ela não subisse comigo,
por não saber como encontraria meu marido. Era melhor evitar qualquer
transtorno envolvendo minha irmã, a quem eu tinha acabado de reencontrar.
Donato estava no escritório, com roupas de casa, parecia não ter ido trabalhar
depois de chegar de Brasília. Fui então
direto ao seu encontro. Desejava acabar logo com tudo e era melhor aproveitar
enquanto estava com coragem.
- Boa tarde.
Ele me olhou como se quisesse me fuzilar. Luísa, que estava com ele
voltou-se a mim, com um olhar de espanto.
- Luísa, por favor, nos dê licença. Meu marido e eu precisamos conversar.
Acho que ela estava mais espantada com meu ar de superioridade do que
mesmo com o que eu tinha feito em Brasília. Donato não dera uma só palavra até sua
saída.
- E então, Donato, como você está?
Creio nunca ter falado com meu marido, nos seis anos em que estávamos
casados, daquele modo, de igual para igual. Era como se a reaproximação de
minha família tivesse me proporcionado um novo vigor, ou a mesma energia com a
qual Donato havia me conhecido.
- Marina, você some de Brasília sem deixar nenhum recado, volta a
Fortaleza sem que eu soubesse, passa o dia inteiro fora de casa, chega e
pergunta como “eu” estou?!
- Donato, eu estava com a minha irmã, na casa dela.
- Imaginei.
- Ótimo. Então vai me poupar muitas explicações.
- Como poupar? Definitivamente você não está bem, minha querida.
- Pelo contrário, Donato. Nunca estive tão bem em toda a minha vida. Eu
estou muito feliz. Consegui o perdão de minha irmã, me reaproximei de meu
sobrinho. Não poderia estar melhor.
Ele levanta e começa a se aproximar de mim.
- Eu não estou reconhecendo a minha mulher!
- Talvez não. Eu estava dormindo todos esses anos e agora acordei.
Ele já trazia no rosto seu falso sorriso, expressando seu ódio de forma
dissociada.
- Marina, você não acha que isso vai ficar assim, acha?
- Eu estou farta, Donato! Farta!
Afastei-me um pouco, como uma forma de proteção.
- Farta de mim?
- Não. De mim, dessa forma de convivência, da sua ausência, dos seus
ciúmes, dos meus ciúmes em relação à Luísa, da saudade que sentia de minha
família. Enfim, de tudo aquilo que sempre me trouxe infelicidade. Eu estou
farta de viver deprimida, desse apartamento, dessa prisão!
Já não conseguia conter meu choro, caminhando pelo escritório, enquanto
ele me ouvia ali parado, diante da mesa, com um olhar interrogativo e ao mesmo
tempo decidido.
- Definitivamente, você não está bem, minha querida.
- Pára de me chamar de “minha querida”, que eu sei que nesse momento não
é o que você está sentindo!
Começava a me alterar. Donato se aproximou de mim, tentando tocar em meu
rosto, como se o que eu estava dizendo não fizesse sentido algum. O que me
deixou ainda mais irritada, fazendo-me gritar.
- Não me toca assim!
Afastei-me mais uma vez, a fim de evitar aquela situação que fazia de mim
uma louca. Como uma mulher, que é tratada sempre com tanta gentileza, pode agir
com tanta agressividade? Eu sabia bem a resposta. Estava realmente cansada de
me sentir daquela forma, sabendo que cuidado não era um sentimento de Donato,
não naqueles momentos. Seu toque soava falsidade. Aquela situação me deixara em
prantos.
- Sei que não é o que você está com vontade de fazer!
- Você não está bem, minha querida...
- Eu estou ótima! Ótima! Não está vendo?
Sorria e chorava ao mesmo tempo, como se ao certo não soubesse qual
sentimento se manifestava dentro de mim. Mas eu queria que ele soubesse o
quanto eu estava feliz com a minha escolha.
- Você vai ter que aceitar, Donato! Eu finalmente fiz as pazes com
Vanessa. Eu vou reconstruir a minha relação com a minha irmã.
- A Vanessa não quer o nosso bem, minha querida. Nunca quis.
- Mentira! Ela foi egoísta, é verdade. Mas agora já passou, Donato. Nós
podemos ser todos amigos. Não há mais necessidade de vivermos afastados, você
não vê? Ela não exige mais que nós nos separemos.
- Isso é o que ela diz agora, minha querida.
Donato voltou a se aproximar, abraçando-me por trás.
- Você é muito ingênua, Marina. A Vanessa é uma mulher madura, ela sabe
muito bem o que está fazendo. Primeiro se faz de amiga, depois acaba com nosso
casamento.
- Você está enganado, Donato.
- Ela prometeu que um dia destruiria a nossa união.
- Isso foi há muito tempo. Você sempre acha que todas as pessoas sempre
têm algo por trás, não é? Mas isso é você. É você que pensa dessa maneira.
- A vida me ensinou assim, minha querida.
- A vida não é uma mentira. Você é uma mentira, Donato!
Tomei um tapa.
Fui então surpreendida com aquela pancada a qual me levou a cair na
poltrona. Uma situação que pareceu demorar minutos. Na verdade, eu nem
acreditava no que tinha acontecido. Por alguns instantes parecia estar zonza e
minha cabeça latejando. Finalmente, eu não mais reconhecia o homem que estava
ali diante de mim. Um estranho que fizera o que ninguém nunca antes havia
feito. A beleza de nosso relacionamento se fora junto com aquele tapa.
Ficamos afogados por um silêncio gigantesco durante alguns minutos. Eu
não conseguia definir qual sentimento se presentificava naquele instante, era
um misto de dor, raiva, decepção, mágoa e lamentação. O sonho tinha finalmente
acabado. Consegui num tempo recorde fitar detalhes de quase todas as peças e
enfeites das prateleiras à minha frente, enquanto Donato, cabisbaixo, de braços
cruzados, fitava os prédios que se projetavam pela janela e o mar um pouco mais
à direita. Estávamos totalmente perdidos em nossas dúvidas sobre o que
aconteceria dali em diante e como procederia nossa relação. O que tinha
acontecido era um fato, não podíamos fingir que não era real.
MARINA PESSOA
Capítulo 68
O tapa que levei de Donato doeu em minha alma!
As lágrimas rolavam por meu rosto incontrolavelmente, por mais que eu
tentasse conter qualquer som, como que para não dar a ele o direito de me ver
sofrer. Nada mais aquele homem, a quem eu estranhava naquele instante, teria
meu, nada! Nem mesmo meu sofrimento ele seria testemunha, não merecia.
Finalmente nosso silêncio foi quebrado por meu marido.
- Olhe, Marina, eu não queria... não podia...
Procurava palavras que amenizassem a situação, a dor que me causara, no
entanto, palavra alguma teria esse poder naquele momento. Era melhor realmente
que silenciasse, embora não fosse seu feitio.
- ...eu sei que... você deve estar sofrendo.
Eu não conseguia pronunciar uma palavra sequer, por mais que desejasse
vomitar toda a minha indignação, a minha dor. Alguma coisa me fazia calar,
substituindo as palavras pelo choro.
- Eu não suporto lhe ver assim, minha querida.
E então se aproximou de mim, tentando tocar-me a cabeça. Impulsivamente,
levantei-me da poltrona que parecia conter minha vontade de gritar, de libertar
a mim mesma do medo e da submissão aos quais eu havia me entregado nos últimos cinco
anos.
- O que significa isso, Marina?
Respondi apenas com minha saída do escritório, do cenário que abrigou o
fim da fantasia a que eu havia me submetido durante tanto tempo. Nós não
podíamos voltar atrás, eu precisava sair enquanto meu sangue estava quente, por
mais que me doesse. E quanto me doía. Passara os últimos seis anos de minha
vida apostando num casamento que, para mim, sempre fora as correntes que me
afastavam da felicidade, embora amasse Donato Pessoa mais que tudo, mais até
que a mim mesma. Talvez tenha sido justamente esse o meu maior erro. Quanto
mais eu havia me afastado do que eu realmente gostava e queria, a fim de
agradar e responder as expectativas do meu marido, mais eu me aproximava de
minha infelicidade, do eterno vazio em que a minha vida havia se transformado.
Corri em direção ao armário, tomando nas mãos uma das malas do canto.
Joguei-a na cama, dando início ao fim de meu casamento, ao pegar peças de
roupas e lançá-las ali, dentro daquela mala, que representava o passaporte para
a vida real. Assustei-me ao ver a figura de Donato, parado na porta do quarto,
assistindo de braços cruzados meu destempero. Reprovava e se enojava,
aparentemente, com minha atitude. Mas para mim, pouco importava. Pela primeira
vez na vida, eu, Marina Pessoa, estava sendo corajosa. A minha certeza era de
que não permaneceria naquela casa, depois do que havia acontecido. Continuei
pegando minhas roupas e jogando dentro da mala, em movimentos violentos, como
se agredisse a mim mesma por ter me permitido a tanto, durante todo aquele
tempo. Percebi quando ele deixou que seu sarcasmo fosse revelado por seu
sorriso, como testemunhara tantas vezes, durante todos os anos em que estivemos
juntos. E aquilo me irritou ainda mais. Estava cheia também daquele sorriso que
tanto me amedrontara nos anos de nosso casamento.
- O que pensa que está fazendo, minha querida?
Odiei aquela pergunta.
- Está errada a sua frase.
Finalmente conseguia balbuciar alguma coisa.
- Como?
- A sua frase... – E então gritei - ...está errada!
- Não estou entendendo...
Ria ainda mais e aquilo me deixava cada vez mais furiosa, mesmo que não
conseguisse colocar para fora tudo o que estava se passando em meu coração.
- Está errada a sua frase, Donato Pessoa. Não é “minha querida” que você
deve falar nesse momento. Eu estou farta disso...!
- Mas do quê, Marina?
Sentia ainda mais raiva de mim por não conseguir dizer o que realmente me
incomodava, o que havia interferido em nossa relação desde o princípio. Não
suportava mais a farsa dos sentimentos, vê-lo dizendo ou fazendo algo que
realmente não estava sentindo. Testemunhar milhares de vezes aquele sorriso
macabro que tirava-me o chão.
A única coisa que eu precisa fazer naquele instante era pegar minhas
coisas e sair dali, deixar para trás tudo o que não fosse verdade, tudo o que
eu não pudesse verdadeiramente confiar.
- Está bem, Marina... Você não me deixa outra alternativa...
Deixou-me no quarto como se fizesse a coisa mais normal do mundo,
registrando, claro, seu velho sorriso. Continuei a pegar as minhas coisas e,
somente então, me dei conta do que estava acontecendo. Corri para a porta do
quarto, procurando abri-la. Mal podia acreditar no que estava acontecendo.
Pareciam que meus pesadelos estavam se tornando realidade. Fui tomada pelo
mesmo sentimento de desespero experimentado por mim em meus sonhos, ao tentar
abrir portas ou portões e deparar-me com grandes e intransponíveis, trancas.
Encontrava-me presa em meu próprio quarto.
- Donato!
Duvidava do que estava acontecendo ao mesmo tempo que sentia um frio em meu
estômago, sabendo que não se tratava de mais um pesadelo. O que me fazia tentar
abrir a fechadura.
- Donato, por favor! Abre essa porta! Donato! Donato!
Batia na porta desesperadamente e meu marido estava do outro lado da
porta, no corredor, cabisbaixo, escorado na parede, fitando a chave em suas
mãos. Estava um pouco arrependido do que tinha feito, mas certo de sua atitude
naquele momento, para segurar nosso casamento. Balançava a cabeça
negativamente, como se reprovasse a si mesmo e ao mesmo tempo a mim, por tentar
abandoná-lo em sua zona de controle. Fora tomado por um choro incontrolável que
o fizera descer ao chão e finalmente se desprover de sua postura inabalável e
autoritária. Nem sabia ao certo há quantos anos não experimentava tal
sentimento. Donato Pessoa chorava todas as mazelas que lhe acompanhavam e
faziam de sua vida algo sem sentido, uma eterna busca da superação. Um choro
que era a expressão de um passado negado, abolido de sua vida, o qual eu ainda
não conhecia.
“Donato, por favor! Abre essa porta! Donato! Donato, por favor! Donato!”
O choro compulsivo de Donato, que se prorrogara por horas naquele
corredor, fazia-o não ouvir os meus pedidos, as minhas súplicas para que me
tirasse dali e me permitisse sair daquele pesadelo, impedindo-me de
experimentar acordada o mesmo desespero que me acompanhava em meus sonhos.
Tratava-se de uma angústia profunda que chegava a dificultar minha respiração,
fazendo-me acreditar no princípio de minha morte. Um pensamento enlouquecedor,
gerado pelo medo, proporcionando-me ainda mais medo e terror. E então me veio à
lembrança do menino, de bata branca, que poderia aparecer ali a qualquer
momento, a fim de me aterrorizar ainda mais. Continuei insistindo em abrir a
porta por horas, clamando por Donato, num choro desesperador. Chegava a ouvi-lo
do outro lado chorando, o que me deixava ainda mais perturbada. Não sabia se
era real ou se de fato estava presa em um de meus pesadelos. Certamente era ele
sim, mas não podia, nunca tinha-o visto chorar, por nada, nunca!
Lembro-me que permaneci ali, tentando abrir a porta, incansavelmente,
durante horas, até adormecer e fugir um pouco de tudo aquilo, livrar-me, em meu
sono, daquele pesadelo.
JÚLIA SERRADO
Capítulo 69
Recebi um telefonema de Olívia Cordeiro pedindo para eu
ir encontrá-la na boate. Parecia coisa séria. Um encontro que me trouxe uma
grande surpresa.
- Júlia, eu te chamei aqui porque o Renato e eu
repensamos o caso de sua demissão. – Dizia Olívia, tomando uma xícara de chá,
do outro lado de sua mesa, no escritório da Mirage. – Nós queremos saber se
você ainda está disposta a continuar conosco.
Eu não acreditava no que ouvia.
- Mas... o que aconteceu para vocês mudarem de idéia?
- Bem... – Ela sorriu. – Como disse, conversei com
Renato. – Pôs a xícara no pires. – Ele não concorda em perdermos uma
profissional como você por questões pessoais. – Ajeitou as mangas de sua blusa.
– Apesar de considerarmos sua atitude em relação ao Pedro Lucena, uma atitude
grave. E que poderia atitudes parecidas serem tomadas aqui dentro por você.
- Olívia, eu juro...
- Não precisa mais se explicar, Júlia. – Ela me
interrompeu. – Eu já sei de tudo. O fato é que resolvemos lhe dar mais um voto
de confiança.
- Ah, Olívia, eu fico tão feliz.
- Isso é um sim? – Ela sorria.
- Claro. Claro que sim. - Tomei as mãos dela, em
agradecimento. – Eu estou muito feliz, Olívia.
- Ótimo. Também fico feliz que continue conosco. –
Soltou minhas mãos e prosseguiu: - Renato e eu acreditamos em seu trabalho,
Júlia. Por mais que você e Charles tivessem uma relação de amizade, ele jamais
indicaria o seu nome a substituí-lo se realmente não estivesse certo de sua
competência. Você já está na Mirage há quase dois anos e provou ser capaz de
assumir a equipe de bailarinos e a direção dos espetáculos.
Lembrei de Vanessa.
- Olívia você sabe que a Vanessa não vai gostar nada de
saber de sua decisão.
- Certamente. Será uma questão delicada, por nossa
aproximação. Mas este negócio é uma sociedade. Portanto, a decisão não é só
minha.
Então se dependesse somente de Olívia, ela não teria
repensando minha demissão?
- Compreendo. – Disse, com um tom de decepção.
- Júlia, não pense que se não fosse por Renato você
estaria demitida. – Sorrindo. – Isto é apenas uma desculpa, por uma questão de
conveniência. Conheço Vanessa há muitos anos, você sabe. Não quero me indispor
com ela.
Olívia parecia ter adivinhado meus pensamentos. E aquela
afirmativa me aliviou.
- Obrigada, Olívia. – Agradeci, pegando minha bolsa.
- Ah, mais uma coisa. Eu também conversei com D. Clarinda.
- Sobre essa história?
- Sim. Me desculpe, mas eu precisava saber onde pisava.
- Tudo bem. Eu confio muito nela.
- E ela em você.
Levantei e mais uma vez agradeci, preparando-me para
sair.
- Bem, Olívia, agora quero voltar ao trabalho. Temos
muito o que fazer.
- Júlia, D. Clarinda é uma pessoa muito importante para
mim. E ela me fez enxergar essa história de uma forma diferente.
- Que bom, Olívia.
- Você tem uma grande amiga.
Agradeci a Deus pela presença de D. Clarinda em minha
vida. Agia como um anjo da guarda. Liguei para ela logo depois,
agradecendo.
Eu estava de volta ao meu trabalho.
Entrei na Mirage com o espírito de despedida e fui convidada por Olívia a
reassumindo a direção artística da casa.
CELINA GONDIM
Capítulo 70
Era difícil aceitar, para meu sobrinho, a possibilidade de sentir-se
atraído por um homem e ainda mais pelo seu melhor amigo, namorado de uma amiga,
com quem estava junto permanentemente. Seria uma traição dupla, para consigo
mesmo e com Calora. Ainda mais com o nível de proximidade que tinham.
Justamente no momento em que experimentara o conflito de se ver atraído
por um homem e seu melhor amigo, é surpreendido por Carola com uma indagação.
- João Henrique, você acha que esse meu relacionamento com Alexandre tem
realmente futuro?
Ficara completamente desconsertado com aquela pergunta, não sabia se por
ser algo inesperado ou por ela estar percebendo algo entre eles. Percebendo?
Não! Impossível. Como? Até porque era algo unilateral, Alexandre jamais
imaginara o que se passara dentro de João Henrique, do que ele havia sentido ao
vê-lo sem roupa no banheiro. Talvez se soubesse, o abominaria. Carola não podia
estar desconfiada, ou então percebera os olhares, pois eles sim eram
comprometedores, somente de meu sobrinho para seu namorado, claro.
Com certa dificuldade, João Henrique indagara:
- Do que você está falando? Por que me perguntou isso?
Temia a resposta da amiga. Via-se exposto, mesmo sem saber o real motivo
que a fizera dizer aquilo. Se fosse o que estava pensando, estava perdido.
- Como do que estou falando, João Henrique? Você melhor que ninguém tem
acompanhado nossa história, as brigas, os desentendimentos. O Alexandre
realmente é muito diferente de mim. Durante esse último ano tem me chegado mais
perguntas que respostas, mais dúvidas que certezas sobre o nosso namoro.
João Henrique estava totalmente aliviado. Por alguns segundos pensara que
todo o seu segredo pudesse ter sido descoberto. Agradecera a Deus por não ser o
que esperava. E até sorriu, para o espanto da amiga.
- Por que está sorrindo?
- Não, nada. Lembrei aqui de outra coisa.
- João Henrique, eu estou muito incomodada com o que eu venho sentindo em
relação a essa história. Eu gosto dele, mas...
- E com certeza o Alexandre também gosta muito de você.
Era como se quisesse garantir de alguma forma que Carola nunca chegasse
desconfiar de nada.
- Caraca! Ele sempre me fala que te ama, boba.
- Não é disso que eu estou falando, João. Eu sei que o Alexandre me ama.
O problema é o jeito dele, a forma que ele tem de levar a vida, suas
irresponsabilidades. Esse é o nosso problema.
Estranhava vê-la falar daquela forma do que João Henrique na verdade
venerava, embora não pudesse explicitar. Mas era exatamente aquele jeito
desprovido de responsabilidades de Alexandre que o fascinava e alimentava sua
grande amizade por ele. Afinal, Alexandre era tudo o que ele nunca seria.
- Realmente eu não te entendo, Carola. Caramba, o Alexandre, um cara
super bacana, irreverente, de bem com a vida, se dá bem com todo mundo e todo
mundo gosta dele. Às vezes ele exagera, vá lá, mas é um cara dez.
- Hoje, pra mim, ele está sempre exagerando, sabe, João Henrique? Essa
dos estudos, por exemplo, o que ele pensa que vai fazer da vida dele?
João Henrique sabia que em parte Carola tinha suas razões, mas não achava
motivo suficiente para questionar o relacionamento. Partindo do pressuposto que
todos nós temos defeitos e qualidades, por que valorizar exatamente os defeitos
de alguém e não as qualidades? Principalmente em se tratando de Alexandre, um cara
tão gente fina, e que além de tudo, era completamente apaixonado por ela.
O romance de Carola e Alexandre vinha sendo temperado freqüentemente por
discussões acerca do tempo ocioso do rapaz, bem como pelas desconfianças da
jovem de que ele a traía com outras garotas, o que de fato acontecia
permanentemente. E embora João Henrique não compactuasse com as atitudes do
amigo, sabia de todos os detalhes, ficando numa situação conflituosa. De um
lado seu melhor amigo, a quem admirava profundamente e desejava estar perto o
tempo inteiro. Do outro, uma grande e leal amiga, com quem estava construindo
uma relação de verdade e cumplicidade.
Sempre que João Henrique era procurado por Carola a fim de desabafar e
conseguir conselhos sobre o direcionamento do namoro falido, sentia-se
atormentado pelo desejo de deixá-la ciente das aventuras amorosas de Alexandre.
Entretanto, não poderia trair o primeiro amigo que tivera depois da infância.
Passara toda a vida sentindo falta de uma presença masculina em seu cotidiano,
começando pela ausência do pai. Nunca tivera muitos amigos, quando criança,
sendo apontado pelos colegas de colégio como “mulherzinha”, por seu jeito
sensível e retraído, o que o fizera se isolar um pouco do convívio social.
Talvez fosse exatamente isso o que mais admirava em Alexandre, sua
disponibilidade de se fazer amigo, sem se importar com que os outros
dissessem.
Maria Antônia era esperta e conhecia bem o irmão, logo se dando conta de
sua angústia. Embora não soubesse do que se tratava, tudo fizera para lhe
ajudar, insistindo para que se abrisse. Contudo, se João Henrique
compartilhasse as suas dúvidas, estaria colocando a irmã na mesma situação
conflituosa em que se encontrava. Além do que, ela jamais guardaria aquele
segredo. Odiava injustiças e não permitiria que sua melhor amiga fosse
enganada, sendo ela cúmplice de tal situação.
O que restava a João Henrique era somente tentar abrir os olhos de
Alexandre, aconselhando-o a se envolver mais em sua relação com Carola, bem
como abandonar sua postura de sedutor e galinha. Sabia, no entanto, que era
exatamente isso o que Carola mais detestava em seu namorado, e que o fazia uma
pessoa irresistível para ele.
“Fica frio, meu. A Carola é a mulher da minha vida. Mas o que eu posso
fazer se eu preciso de outras gatinhas pra ser feliz? Deixa disso, brother, não
te preocupa. Tudo está sob controle, ela nunca vai descobrir.”
A naturalidade com que Alexandre falava daquilo deixava João Henrique
surpreso e, de certa forma, até o tranqüilizava, além de deixá-lo ainda mais
encantado, não por vê-lo trair a mulher que dizia amar, mas por sua serenidade
na forma de levar a vida e seus problemas. Parecia nunca se preocupar com nada,
sem necessariamente negar os fatos, mas encarando tudo com muita simplicidade e
leveza.
Até o fato de também ter sido criado sem pai, fazia de Alexandre uma
pessoa a quem meu sobrinho desejava se espelhar. Apesar de não falar muito
sobre o assunto, chegara certa vez a comentar com ele o desejo de conhecer o
“coroa”, como chamava os mais velhos sem, no entanto, dar nenhum peso à
história.
O que João Henrique queria na verdade era descobrir uma forma de conviver
com Alexandre, aproveitando toda a sua amizade e aprendendo a descobrir uma
forma livre de interagir com o mundo, bem como de ser fiel a Carola, sem a
sensação de não corresponder à confiança a qual ela lhe depositara.
Embora eu percebesse a angústia que havia se instalado na mente de meu
sobrinho, nada podia fazer. Como Maria Antônia, limitava-me a me fazer
presente, sempre que possível, de modo a não invadi-lo, embora a minha vontade
fosse de saber ao certo o que lhe afligia, para tentar, de algum modo,
ajudá-lo.
CELINA GONDIM
Capítulo 71
O relacionamento secreto de minha enfermeira Dulce com o motorista Djair
vinha pegando fogo. Ela estava decidida a assumir a relação dentro de nossa
casa, embora o rapaz insistisse em manter o romance em segredo. Vinham ,
deste modo, tendo inúmeros desentendimentos.
Eu bem sabia porque Djair não queria assumir o namoro. Ainda que ele
alegasse o medo por Maria Eugênia descobrir o fato e demiti-lo do emprego,
temia na verdade a reação de Lorena, com quem mantinha outro romance.
A grande verdade era que Djair não amava nenhuma das duas, como afirmava
veementemente, mas a condição de sedutor, de um homem disputado por duas
mulheres. A tensão de sair do quarto de uma à noite e entrar no quarto da
outra, valia a pena, por se sentir desejado. Muitas vezes, encontrava-se quase
perdido, em situações embaraçosas.
Certa noite, Djair passara o maior aperto na companhia de Dulce, que
insistia para que ficasse a noite inteira em seu quarto, chegando a trancar a
porta e esconder a chave, numa distração do rapaz. Ele havia, no entanto, se
comprometido com Lorena a estar em seu quarto, logo depois que ela acabasse uma
reunião com Maria Eugênia, no escritório. Começara então a contar cada minuto,
ao se aproximar do horário marcado com a outra e Dulce não se dispunha a
deixá-lo sair. Estaria perdido, se Lorena se atentasse da desfeita e fosse lhe
procurar em seu quarto, dando por sua falta. Como explicaria? Que história lhe
contaria para acalmá-la, sabendo de seu gênio difícil?
A única alternativa que Djair encontrou para se safar da difícil situação
fora fingir pânico de ambientes fechados. Dissera a Dulce que segurara o quanto
pudera, mas que não era mais possível fingir e precisava revelar sua fraqueza,
seu pânico de lugares em que não podia sair. Bastava a sensação de saber que
não poderia sair, para entrar em crise, segundo ele. Somente então, conseguira
sua liberdade provisória e se fazer presente em seu compromisso com Lorena,
apenas com alguns minutos de atraso, no exato momento em que ela estava saindo
do quarto, à sua procura, e já furiosa. Lorena era geniosa e não admitia ser
contrariada, gostava de exercitar seu poder nas relações de par, como uma forma
de sentir maior que uma simples secretária ou governanta.
Achei absurda e ridícula aquela história, quando Dulce me contara. E o
mais estúpido, era que ela mesma não acreditava em Djair, mas insistia na
relação. Chegava a ser contraditório: ela tão fogosa, senhora de si, orgulhosa
por ter sempre o controle de todas as relações que vivera, se submetendo a um
idílio clandestino, como se fosse a outra, sem mesmo saber que de fato era.
Na verdade, Dulce parecia confusa. O que chegava a ser cômico. Misturava
uma história com a outra, sem dar a mim, ou a qualquer pessoa a quem estivesse
contando, a noção de início, meio e fim. Ao mesmo tempo que expunha suas
dúvidas e suposições mirabolantes acerca da postura incerta de Djair, como ele
não estaria verdadeiramente envolvido e querendo algo sério ou que seu real pânico fosse de casamento, por
alguma grande traição já sofrida, falava de sua crença no homem como sendo um
ser incapaz de viver uma história verdadeiramente inteira com alguém, por se
tratar de um animal que carrega no sangue o impulso da mentira e da traição,
citando o jardineiro Zeca como exemplo de tal teoria. Segundo ela, o mesmo
teria fitado-lhe os seios, ao se abaixar para pegar umas sacolas que deixara cair.
Questionando então os sentimentos dele pela tal noiva, com quem se correspondia
há anos. E se gostava realmente da moça, por que não se casara?
JÚLIA SERRADO
Capítulo 72
Exatamente como eu esperava, poucos dias depois de meu
retorno à Mirage, Olívia foi procurada por Vanessa. Cheguei a me encontrar com
a megera na boate, logo após a apresentação de meu número. A casa estava cheia
e quase passávamos desapercebidas uma pela outra, se não fosse por eu ter
esbarrado nela e tê-la feito derrubar sua bolsa.
- Pensei que você já estivesse bem longe da minha vida.
- Suas palavras pareciam temperadas com veneno, como se quisesse ali fazer-me
desaparecer de sua frente. Sua beleza chegava a desaparecer diante do ódio que
carregava consigo permanentemente. Procurei não revidar, até para não causar
ainda mais transtornos a Olívia e Renato. – Até Olívia sendo enganada por você!
– Mostrava-se decepcionada com a amiga, por manter-me trabalhando na boate,
mesmo sabendo de tudo o que eu havia feito, para destruir, segundo ela, sua
união com Pedro.
- Desculpe, Vanessa, eu preciso ir. – Respondi, saindo.
- Só um momento. – Segurou-me pelo braço. Eu olhei para
sua mão em mim, mas preferi não enfrentar, evitando escândalos. Ela mesma me
soltou. – Você está achando que vai ficar assim?
- Eu não estou achando nada.
- Pois não vai. Alguma coisa me diz que tem muito podre
por trás dessa história. E eu vou descobrir.
- Tudo bem. Descubra então todos os podres e depois a
gente conversa.
- Você pensa realmente que vai continuar enganando a
todos, Júlia Serrado?
- Olha, eu estou cansada e não tenho mais tempo a perder
com você.
- O Pedro não vai ficar com você.
- Ah, é mesmo? Eu não tenho nada a ver com seu
casamento.
- Você é mesmo muito cara de pau!
- Vanessa, quando eu conheci o Pedro, vocês já estavam
separados.
- Nós não estávamos separados. – O tom de Vanessa era
mais agressivo. – Nós só tínhamos dado um tempo.
- Tempo? Pois não era o que ele pensava.
- Escuta aqui. Quem você pensa que é? O que você sabe do
meu marido? – Ela já estava quase aos berros.
- Do seu marido nada. Mas do Pedro, talvez eu saiba
muito mais do que você poderia imaginar saber em todos os anos que vocês
estiveram juntos.
- Eu não sei onde eu estou que não acabo com você, sua
desclassificada!
- Algum problema? – Perguntou Olívia, chegando para dar
um basta àquela situação. Só então Vanessa se recompôs.
- Não. – Respondeu Vanessa prontamente. – Nenhum. A não
ser esta mulher continuar trabalhando aqui.
- Vanessa, nós já conversamos sobre isso. – Disse Olívia
calmamente.
- Definitivamente eu não entendo, Olívia. Esta mulher é
uma ordinária.
Olívia fez um gesto para mim, para que procurasse me
conter.
- Vanessa, por favor. – Insistiu Olívia.
- Está tudo bem agora. Não se preocupe, que não vou
fazer nenhum escândalo em sua boate. Apesar de ser um ambiente propício, pelo
tipo de gente que trabalha aqui.
Saí, deixando as duas.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 73
Era claro o incômodo entre meu filho Nando e a aluna Maria Antônia, e ia
ficando cada vez mais acirrado dentro da sala de aula, nos corredores, em cada
encontro.
Nando não conseguia tirá-la de seu pensamento e até se questionava
algumas vezes sobre suas idéias. Mas sempre chegava à mesma conclusão,
considerando-a esnobe e manipuladora, uma patricinha tentando chamar a atenção
por sua inteligência, a mesma postura que ela afirmava ser a de Nando,
acrescida de uma pitada de frustração pela situação social de nossa família.
Claro, eu não considerava normal a relação agressiva e de rivalidade
estabelecida entre Nando e Maria Antônia Gondim, cheguei a questioná-lo se não
estava interessado nessa moça, obtendo, contudo, uma reação de indignação.
- Que idéia, mãezinha! Ela não passa de uma criança mimada que acha que
pode ter o mundo aos seus pés e fazer com que todos pensem conforme a sua
família. Eu jamais me submeteria a uma situação dessas. Olha a minha idade e a
dela... Não passa de uma menina tentando superar o professor. E eu não vou
compactuar com esse joguinho manipulador e infantil. Eu tenho mais o que fazer!
A própria Maria Antônia fora também questionada várias vezes pela tia,
pelo irmão e até pela amiga Carola. Como eu, ninguém considerava normal a
relação estabelecida entre os dois. Ela tivera também a mesma reação de Nando,
desconsiderando totalmente qualquer possibilidade de um envolvimento afetivo,
com alguém tão arrogante e de mente tão fechada, como o tinha em conta.
Eu me preocupava com meu filho. Nem com Olívia eu o sentira tão
envolvido, embora transparecendo incômodo. Para falar a verdade, nunca o tinha
visto tão mexido por nenhuma mulher.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 74
Como eu gostava de ter meus filhos perto. Até Ronie pôde voltar a
freqüentar nossa casa. Certa manhã estávamos todos nós reunidos na cozinha,
rindo, lembrando de acontecimentos do passado, como uma vez que Francisco
(Holanda), tinha subido na caixa d´água
e passado a tarde inteira escondido, deixando-me enfurecida por ter
quebrado meu jarro preferido numa brincadeira com Nando.
Eu procurava até não tocar no assunto do trabalho com Ronie, para que não
se chateasse e deixasse de aproveitar aquele momento, que há tanto tempo não
experimentávamos. Sabia, contudo, a natureza do que vinha fazendo na tal boate
onde estava trabalhando. Me doía o coração imaginar que vivia de vender o
próprio corpo, como uma prostituta. Sim, Ronie era um garoto de programa, não
era diferente por ser homem, embora eu tentasse o ver de outra maneira, creio
que para amenizar minha dor e minha preocupação. Além de saber de seu envolvimento com gente
da pior espécie.
Júlia, minha vizinha, acabara por reconhecer Ronie como um dos
integrantes da quadrilha responsável pelo roubo e venda de sua filha. Fora
então quando fiquei sabendo do perigo que Guel Serrado, namorado de minha
sobrinha Tony, representava. Estava vendo minha família envolvida com um homem
que era capaz de tudo para conseguir seus objetivos, pois até preso ele já
havia sido, por tráfico de drogas, embora Holanda afirmasse que não, que havia
sido por porte e consumo apenas. Mas isso era o que ele dizia a meus filhos e a
Tony. Realmente não sabia ao certo se o próprio Ronie já não estava envolvido
também com drogas, visto que eu já tinha a confirmação por parte de Júlia de
que Guel era usuário até então.
Meu coração apertava quando pensava em minha família misturada com gente
da pior espécie.
Implorei à Júlia que não envolvesse meu filho com a polícia, mas o que
ela queria era apenas saber detalhes do plano de roubo da filha, provas que
verdadeiramente incriminassem o cunhado e a levassem ao paradeiro da criança.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 75
Ingenuamente achei que Tony
pudesse me ajudar a encontrar alguma pista com Guel Serrado sobre o paradeiro
da filha de minha vizinha Júlia, visto ser sua atual namorada. Mas percebi que
não queria se envolver, nem criar problemas com o namorado. Ela estava, na
verdade, mais preocupada com seu plano para aproximá-lo de Olívia Cordeiro e
aplicar-lhe um golpe.
Nem percebi que Tony evitava então se aproximar de nossa casa, mesmo com
a ausência de Alceu, pela presença de Júlia na rua, na casa da frente. Não
queria que a visse, e que soubesse de nosso parentesco. Inclusive pediu para
que eu não lhe mostrasse nenhuma foto. Elas se conheciam da boate, por Tony ser
naquele momento uma das dançarinas da equipe de Júlia. Alegava querer subir
pelo próprio mérito, o mesmo discurso em relação à Olívia. Mas coração de mãe
não se engana e eu a tinha como uma filha. Contudo eu não poderia dificultar
ainda mais nossa relação, que nunca fora uma das melhores. Então, optava por
atender a seus pedidos e silenciar.
Júlia era, no entanto, um obstáculo para os planos de Tony e Guel.
Precisam, deste modo, tirá-la de seu caminho. Lembrando de uma conversa que
havia escutado, na Mirage, há algum tempo, entre Júlia e Charles, o antigo
diretor artístico da boate, de quem a mesma era amiga, minha sobrinha sabia que
poderia acabar com a presença da inimiga de Guel dentro de seu ambiente de
trabalho, revelando à Olívia os detalhes do envolvimento de Júlia com o
deputado Donato Pessoa e seu plano de sedução à Pedro Lucena, para conseguir o
tal dossiê contra seu parceiro.
O plano contra Júlia estava então arquitetado. Guel passara um tempo
rondando o apartamento de Pedro Lucena, bem como o de Vanessa, a fim de
descobrir algo que pudesse levá-los a uma idéia de como desmascararia a sua
rival. Criara então uma situação, onde pedira informações de um endereço
imaginário a Carminha, a empregada de Vanessa Lucena, que também prestava
serviço a Pedro, com o intuito de se aproximar da moça, para conseguir o que
queriam. Os encontros entre os dois aconteciam frequentemente, sempre que esta
saía de casa para resolver algo na rua. Guel usara todo o seu charme para
seduzi-la, aproveitando-se de sua ingenuidade e carência afetiva.
Em pouquíssimo tempo, Carminha estava completamente apaixonada,
acreditando ter encontrado seu príncipe encantado. Guel aproveitava-se de seu
charme e beleza, encarnando ainda o papel do homem perfeito, cuidadoso e
apaixonado, o que deixaria qualquer mulher enlouquecida.
Depois de descobrir a existência de fotos de Júlia e Donato Pessoa, em
negociações, e ainda uma fita com a gravação dos dois planejando como seduziria
Pedro e também roubaria seu projeto de programação para entregá-lo ao parceiro
e garantir sua eleição ao cargo de vice-presidente da RTN, no apartamento de
Pedro, Guel dera sua cartada final. Convenceu Carminha de que era um detetive
contrato por Vanessa, a fim de conseguir as tais provas de volta, para que as
mesmas não caíssem em mãos erradas e acabassem por prejudicar seu chefe.
Na altura do campeonato, Carminha já acreditava em tudo o que Guel lhe
dizia, mesmo as coisas mais absurdas, acabando por entregar a ele o que tanto
queria.
O pacote contendo as provas contra Júlia fora deixado na mesa de Olívia,
para que descobrisse a verdade e assim a mandasse embora. Fora um golpe de
mestre. Pelo pouco que conheciam de Olívia, Guel e Tony sabiam que jamais
admitiria a presença de Júlia na Mirage, depois de participar de um plano tão
sórdido contra um grande amigo como Pedro Lucena. Exatamente o que aconteceu. O
caminho estava livre para que ele pudesse se aproximar de sua vítima e dar
continuidade ao plano.
O que eu sempre achei curioso em tudo aquilo, era Tony não se importar de
ver sua paixão envolvido com outras mulheres o tempo inteiro. A sedução de
Guel, era, na verdade, a arma mais forte da dupla para atingirem seus
objetivos. Embora uma vez ou outra, ela também precisasse entrar em ação e
levar alguém para a cama, como fazia o parceiro constantemente.
JÚLIA SERRADO
Capítulo 76
Fiquei perplexa por descobrir não ter sido Vanessa quem
entregou as provas contra mim a Olívia. Ela mesma chegou a me confirmar outro
dia na boate. Quem poderia ter tirado aquele envelope do apartamento de Pedro e
o deixado na mesa de minha chefe? Ou melhor, quem teria livre acesso ao
apartamento dele e ao mesmo tempo à sala de Olívia, fora a própria Vanessa?
Realmente Raquel tinha razão, era muito estranho. Alguém além de Vanessa estava
interessada em minha ruína. Só poderia ser Donato Pessoa. Ele sim era capaz e
tinha como fazer aquilo, no momento que quisesse. Afinal, usava dos meios mais
sórdidos para conseguir o que queria. Mas o que exatamente ele ganharia em me
ver fora da Mirage? Talvez por vingança? Não sabia responder, era mesmo
estranho!
A dúvida se fora o deputado quem fizera com que Olívia
recebesse as provas contra mim, me fizera procurá-lo para tomar satisfações.
Estava determinada a resolver aquela história de uma vez por todas e exigir que
me deixasse em paz. Fui
até a RTN, onde Luísa, sua fiel secretária, tentara me impedir de vê-lo.
Cheguei a ameaçá-la de fazer um escândalo ali mesmo se não permitisse a minha
entrada em sua sala, quando fui surpreendida pelo próprio acompanhado de Pedro
saindo juntos do escritório. O inesperado me fez realmente perder meu foco.
Senti-me totalmente embaraçada, perdida com aquele encontro. Não esperava
encontra logo Pedro ali diante de mim. Mas é claro que seria possível, afinal
ele era o vice-presidente da empresa, poderia estar em qualquer lugar do
prédio, até mesmo na sala de Donato Pessoa, como estava. Pedro tinha ido
resolver questões pertinentes ao departamento comercial da RTN, que era de
responsabilidade de seu antigo amigo.
Mesmo nervosa, agitada e perdida de meu foco, tentei
explicar o que me levava a estar ali, mas as palavras pareciam se confundir e
eu não conseguia organizar meu pensamento. E foi a reação de Pedro que me
deixou ainda mais desesperada.
- Não se preocupem. Já estava mesmo de saída. Vocês
podem ter a reunião de vocês, que não vou atrapalhar.
- Pedro nós não tínhamos reunião nenhuma.
- Júlia, não precisa se explicar.
Aquilo já começava a me deixar perturbada.
- Pedro, não é o que você está pensando.
- Me desculpem, mas eu tenho muito trabalho. – Disse
Donato, com sorriso irônico. – Vamos, Júlia. Está atrasada.
Desejei matá-lo.
- Atrasada? Que história é essa? – Tentei saber.
- Bom, eu já vou. Não quero mais interrompê-los. –
Colocou Pedro, passando a mão pelo cabelo.
- Pedro, eu preciso falar com você. – Insisti.
- Donato está lhe esperando. – Respondeu, com olhar
interrogativo.
- Ele não estava me esperando.
- Como não? – Insistiu o canalha. – Você me ligou há
pouco, marcando nossa reunião.
O que Donato poderia ganhar com aquela mentira?
- Pedro, ele está mentindo.
- Júlia, não vejo motivo para esta cena. – Explicou
Pedro. – Você já está aqui, vinha falar com o Donato. Mudou de idéia?
- Mas eu não vinha para o que você está pensando.
- E o que eu estou pensando?
- Júlia, entre, eu tenho outro compromisso. – Sugeriu
Donato, sorrindo.
- Entre, Júlia. – Repetiu Pedro.
- Ele está mentindo, Pedro. Você não percebe?
Aquilo me indignava.
- Perceber o quê?
- Eu não tinha reunião nenhuma com esse homem.
- O que você está fazendo aqui então? – Colocou Donato.
- Eu queria apenas tirar uma história a limpo.
- Júlia, me desculpe, mas eu não tenho tempo para esse
tipo de coisa.
Pedro saiu, fazendo-me segui-lo.
- Pedro, por favor. Me escuta.
- Júlia, nós estamos em um ambiente de trabalho. –
Apertando o botão do elevador. – Aqui não é local, nem hora para, para essas
cenas.
- Mas ele está mentindo.Esse homem não presta.
- Ah, não? – Só então perdeu a paciência. – E o pacto
que vocês fizeram para me enganar, para me roubar? Realmente ele não presta,
Júlia.
- Você tem razão. – Entrando no elevador. – Mas agora eu
não vinha a nenhuma reunião com ele. Eu não tenho mais nenhum pacto com Donato
Pessoa.
- Não é o que parece.
- Você está sendo injusto.
- Que bonito! Vocês armam contra mim, e eu sou injusto.
- Eu não vou embora enquanto você não me ouvir.
- É o que eu estou fazendo desde a sala de Donato. Mas
até agora, não ouvi nada que me fizesse mudar de idéia a seu respeito.
Tive vontade de desistir. Mas estava bem ali diante de
Pedro, em um espaço de dois metros quadrados, sentindo o cheiro de seu perfume,
e até seu hálito, quando falava mais perto.
- Eu quero apenas uma chance para te provar que eu te
amo e que estou arrependida por tudo o que fiz.
- Ponha-se no meu lugar, Júlia. Não é apenas o fato de
você ter mentido, mas de ter fingido ser a Mirela. Descobrir a verdade foi
sofrer duas vezes. Por saber que ela está morta e de você ser uma impostora.
Compreende?
Sim. Entendia bem o que ele ma falava. E me doía
reconhecer aquilo.
- Pedro, eu sei que foi tudo horrível. Mas eu te amo.
- É muito confuso.
- Para mim não. Hoje eu tenho certeza do que eu sinto,
do que eu quero.
- Eu necessito de um tempo para digerir essa história.
Guiei-me pelo meu impulso e o beijei. Podia sentir as
batidas de seu coração, a vontade de responder àquele beijo. Depois de certa
resistência, entregou-se totalmente. Os espelhos daquele elevador testemunharam
o a força que nos motivava, o desejo, nossa excitação.
- Não, Júlia... – Tentava ainda resistir. Mas era como
se pedisse para continuar. E eu o atendia prontamente. Como era bom senti-lo
inteiro, beijando a mim e não a Mirela. – Não, Júlia! – Afastou-se bruscamente,
apertando os botões que o livrariam daquela situação.
- Pedro, por favor.
- Chega, Júlia. Chega! – Limpando o batom de sua boca. –
Vai embora, por favor. É impossível.
- Como impossível? E esse beijo?
- Não significa nada.
- Nada?
- Quer dizer... significa.
- O quê?
- Você é muito parecida com a Mirela.
- Mentira! - Eu sabia que ele não pensava nela naquele
momento. – Você está mentindo.
- De mentiras você entende muito bem. – Já estava fora
do elevador. – Me esquece, Júlia. Não dá.
- Eu te amo, Pedro.
- Mas eu não. – Respirou fundo e continuou: - Eu não
acredito em você, Júlia. Quer saber? Para mim, até essa sua tentativa de
reaproximação pode ser um plano.
- Como assim um plano?
- Pode ter sido por isso que você veio se encontrar com
Donato.
- O quê? – Absurdo aquilo! – Eu não acredito.
- E por que não? Depois do que você fez isso seria
bobagem.
Tentava controlar meu choro.
- Você sentiu isso no nosso beijo?
Ele não podia dizer que sim. Passei todo o meu amor
naquele beijo.
- A única coisa que eu sei, Júlia, é que eu não acredito
em nada do que você me diz. Isso é um fato. E você precisa aceitar.
- Aceitar?
- Sim. Me deixar em paz.
- Em paz? - Procurei conter o choro. – Pode deixar.
Pedro ficara pensando que Donato e eu continuávamos com
algum tipo de negócio ou acordo. E não aceitara qualquer tipo de explicação de
minha parte. O que me deixara ainda pior. E mais uma vez as minhas esperanças
iam para o buraco. Mas eu não poderia imaginar, nem ao menos supor a sua reação
me encontrando ali, à procura de Donato Pessoa. Compreendia sua desconfiança,
talvez em seu lugar pensasse o mesmo. Ainda assim, senti raiva. E por fim, indignação!
Parecia até que tudo o que eu fizesse ou dissesse poderia ser usado contra mim.
Certo que meu passado me condenava, mas daí eu não ter direito nem mesmo de me
explicar... Era absurda aquela situação. Sentia-me como se estivesse de pés e
mãos atadas, sem nada poder fazer para defender a mim mesma. Foi então quando
eu decidi parar de tentar.
Pedro sempre dizia acreditar no que o ser humano tinha
de melhor, e que todas as pessoas poderiam mudar. Então, porque não poderia me
dar uma segunda chance e deixava pelo menos eu tentar me explicar? Era injusto
comigo e incoerente da parte dele, já que tanto falava de coerência e retidão
na vivência dos valores e crenças pessoais. Então existiriam exceções nesta
postura de vida? Se existiam, podiam se assemelhar às concessões pessoais, que
tanto abominava e desconsiderava no ser humano.
Certo que eu estava julgando e classificando a atitude
de Pedro, mas não poderia ser diferente, era meu instinto de auto-proteção. Por
mais que eu soubesse de minha culpa e responsabilidade naquela postura dele em
relação a mim, não suportava vê-lo me acusar, sem o direito de defesa, de expor
meu sentimento e minhas razões, por piores que tivessem sido elas. Eu não era
uma pessoa má, apenas tinha agido com fraqueza , mas necessitava de uma chance
de me redimir e reparar meu erro.
MARINA PESSOA
Capítulo 77
Foram semanas confinada àquelas paredes, presa por Donato em meu próprio
quarto, de tal modo que cheguei a gravar em minha memória detalhes de cada
canto do espaço. Donato tratara de mandar cortar a linha telefônica, reduzir
meu contato à sua presença diária, ao chegar da RTN e antes de sair para o
trabalho, bem como a de D. Deise, que me vinha deixar água, café da manhã,
almoço, jantar e dois lanches, um pela manhã e outro à tarde. Tentei por
diversas vezes que ela me deixasse sair, mas sempre me pedia desculpas e se
ausentava. Por fim, parei de tentar e implorar para que conversasse algo
comigo. Estava há muito tempo sem nada falar e aquilo estava me matando.
Recusava-me a trocar qualquer palavra que fosse com Donato, como se quisesse
puni-lo de alguma forma ou não dar-lhe o direito de me ouvir. Enquanto não
voltasse atrás e terminasse com aquela loucura, não se aproximaria de mim.
Quanto a isto, estava decidida.
Donato tentava estabelecer um diálogo a todo instante, comentando
questões da RTN, de suas reuniões políticas. Mas nada, nada fazia-me mudar de
idéia e lhe conceder qualquer palavra.
Lembrava-me diante de suas inúmeras tentativas de conversa, o quanto eu
já havia desejado que tivesse aquela postura, de compartilhar sua vida para
comigo. E, justamente quando estava tendo a oportunidade de desfrutar, não me
permitia. Pensava no quanto a vida era contraditória e, em muitos momentos,
chegava a quase desistir e voltar a falar com ele. Mas não podia compactuar com
tal absurdo. Afinal, eu não era sua propriedade, para decidir a esse ponto o
que fazer de minha vida, com quem falar e, até o que pensar. E ele precisava se
dar conta disso.
Nem podia imaginar como ficara minha irmã. Donato lhe dissera, assim como
para o restante das pessoas, que por mim perguntavam, que eu havia adoecido e,
depois, que tinha decidido fazer uma viagem, a fim de me recuperar. Vanessa,
inicialmente, não se dera por satisfeita e tentara de todas as formas descobrir
o que realmente havia acontecido, até saber através de empregados de nosso
prédio, que eu nunca havia saído, depois do dia em que estivemos juntas. O que
a fez procurar por meu marido, ameaçando-o denunciá-lo à polícia, caso eu não
aparecesse. Contudo, tratava-se de um
homem astucioso, então falou-me o que estava acontecendo, propondo-me elaborar
uma carta através da qual eu explicaria para Vanessa um suposto arrependimento
por tê-la procurado e reatado nossa relação, alegando ter pensado melhor e
chegado à conclusão que ela não seria uma boa influência para meu casamento.
Era exatamente a sua concepção que meu marido me exigira colocar na tal carta,
pedindo para que minha irmã nos deixasse em paz.
Depois de muito pensar, percebi que Donato não devia estar em sua sã
consciência para tomar atitudes tão extremas justamente comigo, sua esposa, a
mulher pela qual insistia afirmar seu amor. Talvez até necessitasse de ajuda e
cabia a mim, ajudá-lo. Não sabia ao certo o que pensar. Poderia ser uma forma de
eu tentar amenizar a culpa de meu marido. Julgando absurda a sua atitude, preferia
acreditar num desequilíbrio emocional de sua parte a considerá-lo capaz de me
fazer realmente sofrer premeditadamente.
Com o coração partido, movida por um choro doloroso, optei por fazer o
jogo de Donato e elaborar a carta para minha irmã, na qual exigia que se
afastasse de nós e esquecesse de nossa reconciliação. Doía lembrar da saudade profunda que senti de
Vanessa e Felipe nos últimos anos e do quanto fora difícil a reaproximação,
para abrir mão, através de um pedaço de papel levando consigo uma afirmativa
mentirosa sobre meus sentimentos.
O que eu queria na verdade era ganhar tempo e a confiança de Donato, para
que reconsiderasse e me deixasse sair daquele cativeiro em que havia
transformado nosso quarto. Depois pensaria no que fazer e como proceder.
MARINA PESSOA
Capítulo 78
Certa manhã, logo após a saída de meu marido, no momento em que D. Deise fora me deixar o
café da manhã, atentei para uma possibilidade de me ver longe daquele lugar.
Por um segundo pensei no quanto havia sido burra em não ter chegado àquela
conclusão. Esperei que ela fosse deixar a bandeja com a comida até a mesa, que
ficava do outro lado de nossa grande suíte, sendo necessário atravessar todo o
ambiente. Era apenas o tempo que eu precisava para fugir. Fitei a porta, no
momento exato em que nossa empregada dera-me as costas, correndo em direção à
minha liberdade. O tempo que nossa empregada levou para se dar conta do que
estava acontecendo e correr para tentar me impedir, fora o suficiente para que
eu me visse fora do ambiente, a ponto de trancá-la lá dentro.
O próximo passo era sair do apartamento, sem que ninguém percebesse. Ao
chegar no corredor, já bem próximo à sala, podia ouvir a conversa de Donato e
Luísa, que tomavam café da manhã.
- Você não vai poder mantê-la presa por mais tempo. Essa carta serviu
apenas para que nós ganhássemos tempo. Mas logo, logo todos darão pela falta
dela e aí nós teremos que pensar em alguma outra coisa.
- Eu não pretendo deixar a minha mulher presa pelo resto da vida, Luísa.
- Você acha que vai continuar tudo da mesma forma quando ela sair?
- Eu preciso apenas reaver o controle. A carta já é a prova de que está
aos poucos retornando.
- Se eu fosse você não estaria tão certo.
- Eu sei bem o que estou fazendo. E você sabe muito bem que não gosto de
intromissões. Esse assunto está encerrado.
Donato jogou o guardanapo na mesa, levantando-se. Vestiu o paletó que
estava na grade da cadeira. E logo se atenta ao relógio.
- Nós estamos atrasados. Eu tenho uma reunião logo cedo com Pedro Lucena
sobre as cotas publicitárias do tal programa que ele está querendo lançar nas
tardes de sábado.
- Ok, então vamos. Tenho apenas que pegar minha bolsa no quarto.
Mais uma vez Luísa atrapalhando a minha vida, mesmo sem saber. Embora eu
já tivesse saído do corredor que dava para os quartos e passado para a porta da
cozinha, ela poderia se dar conta que D. Deise estava trancada em meu lugar, no
meu quarto. Bastava que esta fizesse algum barulho, o mínimo possível, e tudo
estaria descoberto. Tratei então de me apressar e procurar sair do apartamento
pelos fundos. Assustei-me ao me deparar com Flávio, o motorista, sentado à mesa
da cozinha, tomando café. Pensei por um segundo que estava perdida e minha
tentativa de me ver livre daquele lugar fracassada.
De modo algum poderia entregar os pontos assim tão fácil. Faltava pouco
para estar longe dali. Corri, sem que Flávio tivesse chance de entender o que
estava acontecendo. Já das escadas, descendo o mais rápido que podia, ainda deu
para ouvir os gritos de Donato, ordenando para que me impedissem de sair. No
segundo ou terceiro andar depois da cobertura onde morávamos, peguei o
elevador, o qual estava aberto, como se esperasse por mim.
Apertava minhas próprias mãos uma na outra, como se aquilo me deixasse
menos nervosa, apreensiva. Temia que Donato me surpreendesse quando aquele
elevador abrisse a borta. Mas Deus também não poderia estar compactuando com o
despautério de meu marido. Se ele tinha permitido que eu saísse de onde achava
que seria impossível sair, precisava continuar comigo, até que eu estivesse a
salvo, bem longe dali.
A cada andar pensava para onde eu iria. O apartamento de Vanessa era
óbvio demais. Certamente seria o primeiro lugar onde Donato procuraria por mim.
Mas pelo menos lá teria o apoio de minha irmã e até de Pedro, embora não
morasse mais com ela.
O elevador parou dois andares antes de chegar ao térreo. Não poderia ser!
Rezei ansiosamente para que não fosse meu marido, ao abrir a porta. Meu coração
estava acelerado, minha respiração ainda mais ofegante.
Era apenas uma moça, cheia de livros e puxando uma mala.
- Bom Dia.
Nem consegui responder-lhe o cumprimento, de tão nervosa estava.
Só então percebi minha aparência, olhando pelo espelho. Totalmente
assanhada, com o rosto transtornado, vestindo apenas uma camisola. Com certeza,
tinha chamado muita a atenção daquela moça, por mais discreta que ela fosse,
minha aparência estava horrível.
Logo que abriu a porta do elevador, no andar térreo, tratei de correr
para a saída, avistando o mar, depois de driblar o porteiro que tentara me
segurar.
- D. Marina, seu marido pediu...
Nem lhe dei tempo que agisse, o empurrei, saindo definitivamente do
prédio. Donato estava logo atrás de mim, vinha descendo no outro elevador,
acompanhado de Luísa.
Tentando atravessar a Av. Beira-Mar, logo após sair do prédio, vi, numa
questão de segundos, uma moto se aproximar de mim velozmente. Nem dera tempo de
gritar. Seria o ponto final de uma história de angústia e sofrimento. A única
imagem que me viera à cabeça naquele instante fora a de Vanessa cedendo ao meu
abraço, depois de anos afastadas. Estava pronta!
CELINA
GONDIM
Capítulo 79
Em meio ao romance secreto com Djair, que secreto mesmo
era apenas para Lorena, Dulce vivia às voltas com Zeca, procurando saber sobre
sua história com a moça das cartas, com a qual se correspondia, bem como pondo
em dúvida permanente a fidelidade masculina.
- Fiel você, Zeca? Não sei não, viu? Nenhum homem é
fiel, ou até pode ser, até aparecer algum rabo de saia, mesmo que em seus
pensamentos.
Dulce era dotada de um jeito sarcástico e provocante,
equilibrado por um bom humor contagiante, que a fazia engraçada e ao mesmo
tempo deixava os homens meio embaraçados, fora de seu controle. No caso de
Zeca, parecia ser ela que experimentava uma certa dose de incômodo e
estranheza, como se ele fosse inatingível e por mais que provocasse, com suas
teorias feministas, não conseguia desequilibrá-lo. Zeca mantinha-se firme e
tranqüilo em sua concepção sobre ela, que era uma mulher com um pensamento
machista enrustido, a espera de ser arrebatada por uma grande paixão que a
fizesse submissa.
A teoria de Zeca sobre a real condição de Dulce a
deixava furiosa, num pé e noutro, exigindo explicações e aprofundamentos,
exemplos de como a via daquela forma, ou melhor, do que o fazia a enxergar como
uma “mulherzinha”, como ela classificava pejorativamente a maioria das mulheres
que se submetiam à sociedade machista.
E Zeca ainda complementava sua teoria acerca de Dulce,
afirmando que o relacionamento clandestino o qual mantinha com Djair comprovava
as suas suposições de que era uma mulher à espera e temerosa de um grande e
verdadeiro amor, por isso insistia em manter uma história não inteira com
alguém.
O pensamento de Zeca provocava não apenas uma
inquietação, mas chegava quase a enlouquecer minha enfermeira, de modo a tentar
convencê-lo de que estava errado, visto que se não assumia seu romance com
Djair, não era mais por escolha sua, embora não pensasse, em hipótese alguma,
na possibilidade de revelar a postura negativa de seu namorado a um namoro
tradicional. De maneira nenhuma daria esse gostinho àquele arrogante do Zeca,
como passara a o tratar depois de ele ter exposto sua conclusões a seu
respeito.
Só restava à Dulce tentar dissuadir o namorado da idéia
de permanecerem com seu relacionamento em segredo. Passara
então a exigir dele uma anunciação oficial do namoro dentro da mansão. Chegara
inclusive a pedir minha ajuda junto a Maria Antônia e papai, para que
tentássemos facilitar a aceitação de Maria Eugênia no que dizia respeito ao
assunto dentro de nossa casa.
Dulce estava convencida que logo provaria a Zeca de seu
equívoco sobre ela, subindo com Djair ao altar. Embora Mena e eu achássemos um
absurdo a decisão tomada por ela, estava certa do que queria. E o que queria
realmente não era viver com Djair, mas provar para Zeca de que estava errado e
que não passava de um frustrado por não viver uma relação verdadeira com alguém.
Para Dulce, as correspondências do jardineiro com sua suposta namorada, não
passavam de uma fantasia. Pelo menos queria acreditar naquilo.
Mas o que Dulce não esperava era a grande resistência
firmada pelo namorado à idéia de assumirem de uma vez por todas o romance. A
nova estratégia do malandro fora uma história de que sua mãe era extremamente
possessiva e com a idéia fixa de que teria ainda de entrar para um seminário e
servir a Deus. Estava muito doente e jamais aceitaria aquele namoro, segundo ele.
E que assim, precisaria de um tempo para contar-lhe a verdade e apresentar
Dulce como sua futura esposa.
Eu me perguntava se realmente minha enfermeira
acreditava nas histórias de seu namorado, e chegava até a questioná-la sobre
isto, expondo meu conceito acerca do mesmo, que para mim não passava de um
grande malandro, tentando se dar bem. Procurava abrir-lhe os olhos, pedindo-lhe
para ficar atenta aos passos de Djair. Não me sentia no direito de lhe revelar
o verdadeiro motivo de ele não querer assumi-la como namorada dentro de nossa
casa. Nunca fora de meu feitio, dedurar, nem muito menos me meter a tal ponto
na vida de alguém, mesmo sendo de alguém tão querida para mim, como era minha
enfermeira.
O mais irônico era que Dulce se achava toda esperta e
dona da situação, não conseguindo perceber a traição do namorado, bem diante de
seus olhos, e logo com Lorena, sua grande rival, que também nem imaginava a
traição do amante.
Para a secretária de minha irmã, o caso era diferente.
Ela não queria de maneira alguma expor sua intimidade com um simples motorista,
achava-se superior, e seu romance com Djair não passava realmente de uma cama
ardente. Imaginava, inclusive, que ainda arranjaria um marido bem sucedido. Seu
relacionamento com ele era à base de autoritarismo e submissão. Lorena vivia
com Djair todas as suas fantasias de ser uma mulher poderosa, pisando em seus
subalternos. Já para ele, como confessava à Mena, tratava-se apenas de mais um
estilo de relação, considerando-se um homem versátil. Na verdade, para Djair as
duas não passavam de mais uma conquista, não importava a forma da relação, mas
mantê-las.
No fundo, aquele triângulo amoroso trazia-me um pouco
de ocupação dentro da imensidão de nossa casa.
CELINA GONDIM
Capítulo 80
Em muitos momentos, quando estava na piscina com Dulce,
Mena, papai ou meus sobrinhos, fitava o nosso gigantesco jardim e pensava em
tantas coisas que eu não podia mais desfrutar. Um pouco acima do canto esquerdo
do muro que protegia a mansão, tínhamos a visão de uma parte do mar da Praia do
Futuro. A brisa que mexia com meus cabelos, sem que eu pudesse evitar,
lembrava-me de minha condição de aleijada, de um ser inútil entrevado naquela
cadeira de rodas.
A alegria de meus sobrinhos e seus amigos, quando
estava com eles, fazia-me sentir um pouco feliz e quase que simultaneamente
entristecida. Ao mesmo tempo em que me sentia convidada a sorrir com a energia
revigoradora da juventude, chorava por dentro a falta que Vinícius me fazia,
bem como a impossibilidade de me locomover, sem depender de alguém, ou ainda de
realizar movimentos simples com meus braços. O castigo fora realmente severo,
trazendo consigo a ausência de quase todos os meus movimentos, do pescoço para
baixo, além de interferir em minha aparência, repuxando um pouco os nervos de
minha face e até dificultando a minha fala.
Pensava no quanto deveria ser difícil para a minha
família conviver com uma figura bizarra como eu, tratando-a como se nada demais
houvesse, para que não se sentisse ainda pior. E pior eu me sentia! Preferia
que não fosse daquele maneira. Por mim, eu teria me isolado na casa de praia de
nossa família, em Canoa
Quebrada , a fim de não ser um estorvo na vida de ninguém. Afinal
o castigo era meu, não das pessoas a quem eu amava.
Contudo, minha família não desistia de tentar
transformar meu mundo em algo produtivo, de trazerem de volta à vida a
escritora Celina Gondim. A tentativa final de papai e Pedro Lucena para me
convencerem a aceitar integrar a equipe de redatores da série acerca de
portadores de necessidades especiais, fora trazer a visita do diretor do
projeto e da atriz que encarnaria o papel de uma mulher que cegara depois de
ter sido vítima de um erro em uma cirurgia ocular e não aceitava a sua nova
condição. Seria um dos papeis principais da história idealizada por Pedro.
Inicialmente, tentei resistir à idéia de receber
aqueles profissionais que viveriam na ficção o drama experimentado por mim, e,
de certo, por muitas pessoas na vida real. Eles reabririam a ferida e isso eu
não poderia permitir, já bastava de sofrimento.
Papai e Pedro apostavam, no entanto, em meu altruísmo, força forte que
sempre me conduzira na vida, apesar dos caminhos tortuosos pelos quais eu havia
me permitido passar.
A grande missão de um artista é revelar ao mundo o
universo o qual experimenta isoladamente, para que as pessoas possam viajar no
desconhecido, provando das maravilhas que a vida nos possibilita. Esta missão
encontra-se no sangue de cada pessoa que se aventura em desenhar um novo mundo
para si e para os outros, correndo fortemente em minhas veias e fazendo-me
questionar mais uma vez a minha decisão de tentar bloquear em mim um canal que
pulsava e gritava por expressão.
Pedro era inteligente e sabia bem o que fazia, como
tocaria em meu ponto fraco. Acabando finalmente por me convencer, não ainda a
integrar a equipe de autores, mas a servir de inspiração para uma das
personagens centrais do projeto.
Aceitei então o desafio!
JÚLIA SERRADO
Capítulo 81
Graças a Deus eu tinha o apoio incondicional de minha
cunhada, sempre disposta a me ouvir e me aconselhar, bem como de D. Clarinda,
que nos últimos meses, estava sendo uma mãe em presença, embora ela já tivesse
as suas preocupações pessoais com seus filhos e seu marido.
A única coisa que tirava Raquel realmente do prumo era a
sua relação com Djair, que uma vez ou outra aparecia, cansado de suas viagens,
segundo ele, e sem nenhuma ajuda financeira a ela e aos filhos. No fundo, era
uma situação que a incomodava, por estar totalmente na minha dependência.
Antes, ainda cuidava de Clara, o que, de alguma forma, justificava, a seu ver,
a sua estadia em minha casa, sem colaborar financeiramente com nada. Cheguei a
flagrá-la por diversas vezes chorando às escondidas, rogando a Deus que lhe
desse um emprego ou fizesse Djair conseguir algo melhor, para tirá-la de minhas
costas.
Na verdade, a companhia de Raquel me fazia muito bem,
como se fosse uma irmã, sempre presente, cuidadosa, zelando por meu bem estar e
minha felicidade. Às vezes eu brincava dizendo que sua comida justificava todo
e qualquer esforço que eu fizesse para mantê-la comigo. E claro que ela
cozinhava maravilhosamente bem. Contava com muito orgulho ter aprendido com sua
mãe. Nós ríamos quando eu lamentava a minha dificuldade para manter a forma,
chegando em casa e me deparando com os pratos deliciosos que ela preparara para
me receber do trabalho. Principalmente quando fazia seu espaguete ao gorgonzola
e atum, fazendo-me sempre repetir o prato.
Raquel e eu tínhamos uma ótima relação e verdadeiramente
eu não mais me imaginava morando sem sua presença permanente e cuidadosa. O que
me fazia respeitar seu sentimento por Djair e suportar sua presença
desagradável, procurando, incessantemente, mostrar-se gentil e cavalheiro, mas
de forma artificial, como que para galantear, chegando a se tornar vulgar e uma
presença extremamente chata.
Que Raquel não soubesse, mas eu dava graças a Deus no
dia que Djair ia embora, voltando às suas viagens, que lhe renderiam
incansáveis histórias de que fora vítima de algum cliente esperto ou colega de
quarto de hotel canalha que tentara lhe passar a perna e, muitas na maioria das
vezes, segundo ele, conseguia. O que para mim, nada mais era que desculpas
pouco inteligentes, para justificar sua falta de colaboração no sustento de
Zezinho e Rafael.
Em alguns momentos, motivada pelas histórias ridículas
contadas por Djair que o vitimavam, justificando a falta de dinheiro e os
longos períodos de semanas que passava sem aparecer, eu chegava a questionar,
de forma irônica, o desenrolar das mesmas. O que o deixava sempre embaraçado,
gaguejando, procurando de alguma forma encontrar uma saída, uma justificativa
para as incoerências ou falta de nexo das histórias. Sendo salva frequentemente
por Raquel, que percebia minha atitude, bem como o embaraço do marido, se
enrolando cada vez mais nas explicações infundadas e, com certeza, mentirosas,
que o livrava dos constrangimentos por mim proporcionados chamando a atenção
para algum fato da vida dos meninos.
Realmente eu não sabia se verdadeiramente Raquel
acreditava nas histórias do marido ou o amava ao ponto de passar por cima das
coisas mais absurdas para protegê-lo e garantir que ele voltaria, que não os
abandonaria. O que me deixava furiosa. Estava certa de que Djair era uma grande
canalha e se aproveitava da permissividade da mulher para viver sua vida dupla.
Eu não sabia ao certo o que ele escondia, mas certamente não sabíamos muito
sobre a sua vida.
Tentei por diversas vezes conversar sobre as minhas
desconfianças de Djair com Raquel, mas sentia que não havia espaço para isso.
Ela fazia questão de me responder qualquer indagação que eu fizesse falando de
sua certeza do quanto era um homem bom, generoso e a amava, embora fosse
ingênuo. Procurava então relevar, para que nós não nos desentendêssemos e
puséssemos em risco a nossa boa relação. Definitivamente, Djair chegava a ser
um assunto proibido entre nós, já que ela também procurava não mencioná-lo na
minha frente, para que eu não encontrasse uma forma de expressar minha
percepção sobre a vida misteriosa de seu marido. O que eu respeitava, em
consideração a sua lealdade a mim.
E não apenas leal, Raquel chegava a ser passional em me
defender. Bastava me ver sofrer para transformar qualquer pessoa em vilão, ou
situação em motivo de sua indignação. Embora tivesse sido contra o que eu havia
feito com Pedro, achava também um absurdo sua falta de compreensão e perdão a
meu respeito. Ficara quase furiosa quando soubera de sua reação ao me encontrar
no escritório à procura de Donato Pessoa, para tomar satisfações.
“Isso também tem limites, Júlia, já chega! Esse Pedro já
não é mais nenhuma criança. Quem ele pensa que é para ficar querendo te punir?”
Não sei ao certo se Raquel tinha razão e Pedro queria
realmente me punir, mas o fato é que era exatamente assim que eu estava me
sentindo, pagando por tê-lo enganado. Só não sabia discernir “punição” de
“conseqüência” naquele momento. Por mais que doesse, chegava a ser difícil de
me colocar em seu lugar e imaginar que reação eu teria se tivesse sido eu a
enganada. Talvez nunca mais quisesse ver a cara da pessoa que tivesse me
enganado.
Como D. Clarinda de Holanda dizia: “É fácil nos perdoar,
quando não somos nós as vítimas!” E eu entendia bem o que ela queria dizer. Foi
o que me impulsionou a procurar por Pedro mais uma vez e tentar novamente me
explicar. Contudo, acabei por me deparar com ele, aos beijos com sua ex-mulher
no saguão de seu prédio.
Naquele momento sim, senti que estava realmente tudo
acabado!
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 82
Guel e Tony conseguiram que Ronie participasse de seu plano para se
aproximarem da intimidade de Olívia Cordeiro, cobrando um antigo favor que meu
filho devia a ele. A estratégia seria que usasse uma meia cobrindo o rosto e se
fizesse passar por assaltante.
No momento em que Olívia Cordeiro
saía da boate e abria a porta de seu carro, fora atacada por trás. Guel Serrado
estava exatamente ali, em seu carro, saindo para ajudá-la. Ele pedira para que
o suposto assaltante a deixe em paz, oferecendo-lhe o relógio, que parecia valioso.
Como combinado, o falso bandido a soltara, aproximando-se rapidamente de Guel,
a fim de pegar o suposto resgate. Sendo atacado pelo amigo, que o derrubara e
jogara-se por cima dele, exigindo o relógio de volta. Depois de tomar um ou
dois socos, Ronie conseguira então escapar.
Enquanto o falso assalto acontecia, Tony distraía os dois seguranças da
boate, a poucos metros dali, deliciando-se nos braços dos fortes rapazes.
A sorte estava então lançada. Guel Serrado era o corajoso herói que
salvara Olívia de um terrível assalto.
O plano era que tudo pudesse ocorrer numa progressividade que mexesse
realmente com Olívia, que ainda sofria com o término de seu relacionamento com
Nando. Logo depois de deixá-la segura de volta à boate, Guel despedira-se,
alegando estar comprometido e não poder ficar. A intenção era exatamente
chocá-la, deixá-la em suspense e depois agir, mostrar-se presente aos poucos, a
fim de envolvê-la.
Tony e Guel estavam certíssimos no caminho que escolheram para conseguir
a confiança de Olívia Cordeiro. Uma mulher marcada por inúmeras decepções
amorosas de abandono e traições, ficara de fato mexida com o ato heróico, o
cuidado e gentileza de um homem extremamente charmoso e galanteador. Embora
estivesse mais do que nunca decidida a não acreditar mais em homem nenhum, pela
última frustração com Nando, sem saber que também fora vítima de um plano para
separá-la de meu filho, arquitetado pelos mesmos mentores daquele assalto.
O passo seguinte, fora as flores na manhã logo cedo e um telefonema no
final da tarde. Guel se desculpara com Olívia pela ausência o dia inteiro, mas
estava, segundo ele, numa rápida viagem de negócios. E fora ela, quem primeiro
tomara a iniciativa, falando da possibilidade de se encontrarem, para que então
pudesse agradecer por tê-la salvo. Tentava passar um tom despretensioso na
fala, mas já estava clara sua curiosidade e desejo de conhecer aquele homem,
que cuidadosamente se explicara por não poder atender seu convite, alegando
compromissos de trabalho e, só viera aparecer uns dois dias depois, na boate.
Colocar um pouco de dificuldade, fazia parte do plano, para aguçar ainda mais o
seu interesse.
Tony sabia bem o que estava fazendo, na orientação a Guel. Estudara
minuciosamente as estratégias, depois de ouvir diversos desabafos de Olívia a
Charles Moreno ou a Izaíra, sua secretária. Esta última, dava a minha sobrinha
ainda mais informações do que precisava, por adorar falar da vida dos outros,
fazia-se de amiga pela frente e desdenhava de suas histórias por trás. O que chegava
a ser engraçado para todos os funcionários da boate, servia de alicerce para os
planos de minha sobrinha.
Fora uma grande surpresa para Olívia, quando avistou Guel em uma das
mesas, assistindo o show daquela noite na Mirage. Aproximou-se disfarçadamente,
fazendo parecer que só o enxergara no momento que esbarrara com ele.
Conversaram uma boa parte da noite, sobre a estrutura dos shows promovidos pela
boate, até a despedida de Guel, deixando-a extremamente perturbada. No fundo,
Olívia esperava que ele tomasse iniciativa e a convidasse para outro programa,
como um almoço ou um jantar. Guel, contudo, usava uma dose estratégica de
charme e galanteios nas conversas e alegava ter que ir embora, exatamente no
momento em que estava seguro de que ela se encontrava mais envolvida.
Tony cuidava de tudo com detalhes, para que nada desse errado. E já
começava a perceber a ansiedade de Olívia Cordeiro, nas noites que se seguiram,
para encontrar Guel na boate. Foram necessários mais um ou dois encontros, para
acontecer o primeiro convite de almoço, por parte da própria vítima.
Aos poucos Olívia descobria muitos gostos em comum com aquele homem, que
lhe conquistava a cada dia, principalmente em fazer programas que há muito não
fazia. Como ver o pôr do sol, no passeio de barco, na Beira-Mar, ou ainda
dançar a noite inteira num clube de danças de salão, aonde não ia desde a
adolescência. E fora neste último encontro que acontecera o tão esperado. Em
meio a uma dança, ela se vira extremamente envolvida fitando o azul dos olhos
daquele homem, que parecia transpirar charme e sedução. Um frio lhe subira pelo
estômago, deixando-a num estado de nervosismo e ansiedade que provocava o
palpitar de seu coração. Já podia também sentir a sua respiração ofegante, o
que a deixara mais à vontade. Ele finalmente a tomara e a beijara, saciando o
desejo que há muito procuravam controlar.
Eu conhecia Olívia desde criança, a tinha visto crescer. De certo, não
permitiria tal absurdo se tivesse sabido a tempo dos planos de minha sobrinha e
seu comparsa. Como sempre, ficava sabendo dos feitos de Tony tarde demais, como
a manobra para separar Nando de Olívia, flagrando uma conversa sua com Marluce,
na sala de minha casa. Ainda tentara disfarçar, mas deu para ouvir bem quando a
moça lhe cobrara a ajuda que havia prometido lhe dar em sua aproximação de
Nando, por quem era apaixonada, desde menina.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 83
Marluce, a filha de nossos vizinhos, não pensava em outra coisa se não em
um dia ficar com Nando. Sonhava com aquilo desde a adolescência, nas épocas em
que recebia aulas de reforço de seu amado. Parecia incansável. Fazia questão de
lhe pedir carona diariamente para a faculdade, mesmo que seus horários fossem
diferentes. Aproveitava cada momento junto, cada fala, qualquer coisa que
pudesse de alguma forma representar um pouco de cumplicidade com meu filho,
como me ajudar em minhas costuras, por mais que parecesse absurdo, por ser
filha de Ceiça e Rubinho, donos do mercadinho da esquina. Marluce não tinha
necessidade financeira de me ajudar, chegando a implorar para tal, mesmo que de
graça.
Ceiça era uma pessoa amiga e se preocupava com a filha. Uma vez ou outra,
quando ia fazer compras, me acompanhava, para colocarmos os assuntos em dia. Sua grande paixão
mesmo era o marido e o filho Dorival.
O único incômodo de Ceiça na verdade em relação a Dorival, era seu
envolvimento com Salete. Não perdia a oportunidade de destacar sua indignação
por vê-lo namorando uma mulher tão vulgar, segundo ela e ainda por cima, melhor
amiga de Vera Sheila, a moça mais mal falada da rua. E mais, estava certa que
ela o traía ou mesmo levantava suspeitas sobre seu trabalho, de como arranjava
dinheiro para se manter, visto que ninguém sabia de Salete trabalhando. As
duas, na verdade, se suportavam somente. E esta por sua vez não perdia a
oportunidade de provocar a mãe de seu namorado, usando roupas cada vez mais
curtas e decotadas, bem como mostrando ter muito dinheiro, sempre que ia pagar
suas compras no mercadinho, ou ainda comentando de suas noitadas, das farras de
que fazia com ou sem Dorival.
Salete sabia que era indesejada na família, por isso fazia questão de se
fazer ainda mais presente na vida de Dorival, procurando ocupar por completo
seu tempo, quando não estava de plantão, e assim, provocar ainda mais os ciúmes
de Ceiça, que só se acalmava depois dos dengos do marido em público, para
mostrar para todos o quanto se amavam.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 84
Minha vizinha Ceiça, era uma pessoa muito presente em minha vida, e sem
mesmo procurar especular para não me constranger, mostrava-se sempre de
prontidão nos momentos em que eu precisava. Fora exatamente ela, quem me
acompanhara na visita a Alceu, na cadeia.
Causou-me uma dor ao ver meu marido naquele ambiente sujo, numa cela de
quatro metros quadrados, com mais de dez homens, dividindo o mesmo espaço. Ele
levantou-se e correu para a grade, ao me ver chegar.
- Me tira daqui, Clarinda, pelo amor de Deus! – Alceu parecia
desesperado, enquanto os companheiros de cela zombavam de sua atitude. Nunca
esperava encontrá-lo daquela forma, barbado, magro, sujo. Era realmente
deplorável. - Eu prometo, eu juro, eu prometo, nunca mais eu encosto a mão em
ti!
- Eu não posso fazer nada.
- Pode, claro que pode. Você é a única pessoa que pode me tirar daqui. O
delegado já me disse. Só você pode retirar a queixa.
- E pra onde você iria?
- Deixa de besteira, mulher. Nós estamos casados há trinta e cinco anos.
Por que isso agora? Eu tenho que voltar pra minha casa, que é o meu lugar.
Olhei para Ceiça, como se procurasse forças para continuar ali.
- Eu... eu tenho medo de você, Alceu. - Falava com certa dificuldade.
- Não te preocupa, eu não vou mais encostar a mão em ti, eu prometo, já
disse! O que eu quero é apenas voltar pra casa, sair daqui. Já faz muito tempo
que eu estou nesse lugar imundo.
- Eu vou pensar. - Saí rapidamente, para não ter mais que presenciar seu
desespero trancado ali. Pude ouvir seus gritos.
- Clarinda, volta aqui! Não me deixa aqui, Clarinda! Eu juro que não
encosto mais a mão em ti, mulher! Eu juro! Volta aqui! Volta aqui!
Procurei falar com Dorival, me certificar de que o estavam tratando bem.
Fiquei então sabendo que dali a alguns dias ele iria ser transferido para um
presídio em Itaitinga, cidade metropolitana de Fortaleza. Já fazia tempo que
estava na delegacia, e eles não tinha mais como mantê-lo ali.
Eu não poderia permitir que o pai de meus filhos passasse por tal
situação. Sabia que no presídio estaria exposto a todo tipo de perigo, ao
convívio com pessoas da pior espécie. Seria perigoso, sem dúvidas. Pensei um
pouco e acabei por revelar a meus filhos sobre a visita e a difícil situação de
seu pai. Esperava que eles mesmos tomassem iniciativa e o tirassem de lá, sem
que eu precisasse fazer nenhum esforço.
Nando logo se sensibilizou quando falei sobre o presídio, mas Holanda
permanecia irredutível, queria que o pai pagasse por tudo o que me fizera a
vida inteira, e se era aquele o preço, que arcasse com as conseqüências.
Chegara, inclusive, a reafirmar sua promessa de que se eu voltasse atrás e
tirasse Alceu da cadeia, ele sumiria de minha vida.
Mas e a minha promessa? Eu não poderia persistir naquilo. A promessa fora
quebrada e eu seria punida, com certeza. Seria difícil no início, mas logo, na
certa, meu filho entenderia e me perdoaria, tinha bom coração.
Retirei então a queixa.
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