Abra, entre e faça seu caminho...

Abra, entre e faça seu caminho...
A arte de escrever é para mim uma possibilidade de dar vida ao universo infinito de nossas criações. Precisava de um espaço onde isso fosse possível. Assim, nasceu este blog literário, com a ideia de ser um canal à expressão livre de muitas histórias, personagens, dramas e tramas que estão em minha mente, orientados por valores e crenças existenciais que representam a minha alma. Deste modo, seja muito bem vindo ao meu blog, e que minhas histórias possam lhe tocar o coração e a alma! (Antonio Rondinell)

A Casa dos Anjos (Partes I e II)



"A casa dos Anjos" foi publicado nacionalmente em 2010 pela Editora Novo Século. Agora está disponível integralmente para você aqui no blog.

Uma ótima leitura!



DEDICO

A Deus. Fonte maior de minha inspiração, fazendo-me canal.

Aos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael. Em unidade, tornaram-se inspiração para este trabalho.

A todos os Anjos. Estiveram presentes em todos os momentos de criação, até à concretização deste exemplar.

Aos meus pais Graça e Fernando Melo. Ensinaram-me a amar.

Às minhas irmãs Germanda e Fernanda.
Com quem aprendo a arte de poder ser eu mesmo.

Aos meus sobrinhos Lucas, Maria Fernanda e Pedro. Convidam-me a experimentar o amor incondicional. 

A Geane Bonfim, grande amiga e irmã. Ao longo dos muitos anos de amizade, partilhamos diversas interrogações existenciais. Hoje, trago várias delas nesta obra.

A Porcina Frota. Amiga que me ensina a amar sem nada esperar.

A todos os amigos do meu grupo de Biodança. Com quem vivo o convite permanente de partilha de nossas almas. Foram também fonte de inspiração.

AGRADEÇO


A Marcos Cavalcante. Amigo que amo. Despertou-me a coragem de me lançar neste sonho. Em nossa convivência, confronta-me permanentemente em busca da minha coerência existencial, inspirando-me a orientar este trabalho pela verdade da minha alma. Além de me dar incontáveis idéias para o enriquecimento desta obra. E hoje, no Espaço Fonte Viva, nos grupos de Biodança e trabalhos com Espiritualidade Integral, facilita meu contato com a minha missão, assim como a muitas pessoas e organizações, convidando-nos a Ser-Vir. Que muitas outras pessoas tenham esta oportunidade. espacofonteviva@gmail.com

A Sílvia Sousa, Dione Mesquita e Manuela Granjeiro. Irmãs por escolha, com quem partilho meu cotidiano. Quem primeiro se debruçou sobre esta história, trazendo luz em sua revisão.

A Luciana Holanda. Amiga que também deixou sua marca nas primeiras revisões, fazendo com que este trabalho, que conta a história de quatro mulheres, fosse também revisado por quatro mulheres.

A Hertenha Glauce. Amiga que leu parte desta história antecipadamente, e por pouco não foi a quinta revisora.

A Ilca Borges. Amiga de sempre. Uma das primeiras pessoas que acreditaram em minha arte de escrever.

A todos os meus amigos queridos que torceram pela concretização desta empreitada.

A minha irmã Germanda e meu cunhado Valdemar. Apostaram amorosamente, com total desprendimento e confiança na realização deste trabalho.
  
Prólogo
Final de dezembro de 2005



JÚLIA SERRADO

O ônibus responsável pelo transporte dos funcionários de meu trabalho depois do expediente parou em frente à minha casa às duas e quinze da madrugada. Eu devia ter dormido por uns vinte minutos, sendo acordada por um colega chamando por mim. O trabalho vinha sendo intenso naquele final de ano, o que estava me deixando muito cansada. Não via a hora de chegar e cair na cama, depois de um banho restaurador.
Agradeci a Deus, no momento em que abria a porta, por minha filha já ter passado da fase de acordar com fome, chorando no meio da noite. Clara havia completado seu primeiro ano fazia três meses, e só acordava ao raiar do sol. Eu teria ainda algumas horas de sono, antes de preparar seu leite.
Estranhei por não encontrar meu marido dormindo no sofá da sala, com a televisão ligada. Cena que se repetia todas as noites, ao chegar do trabalho.
A árvore de natal ainda estava com as luzes pisca-pisca ligadas, ostentando seu colorido pela sala. Eu sempre pedia à minha cunhada que a deixasse assim. Adorava aquele clima de natal, desde criança.
Minha maior surpresa veio quando entrei em meu quarto. A cama arrumada, sem que ninguém tivesse dormido ali. Onde estaria meu marido? Em anos de casamento ele nunca havia dormido fora de casa. Voltei-me imediatamente para o berço de Clara, precipitando-me até ele. Minha filha não poderia estar sozinha. Assustei-me ao vê-lo também vazio.
Por um instante, senti um frio na espinha.
“Onde está minha filha?” Ouvi meu pensamento se transformando em palavras: “Ah, na certa com minha cunhada no quarto dela.” Aliviei a preocupação. Se meu marido havia saído, Raquel jamais deixaria Clara sozinha. Estaria com ela até eu chegar.
Preferi tomar meu banho antes de acordar Raquel para pegar minha filha. Mas em nenhum instante aquela sensação ruim deixou de me atormentar. Fiz tudo muito rápido, a fim de que pudesse estar com Clara.
E onde estaria Joel até uma hora daquelas?
Estranho demais! Eu não estava gostando nem um pouco. Ele não era de sair de casa à noite. Sempre me esperava chegar do trabalho, e me preparava um sanduíche enquanto eu tomava banho.
Mal me enxuguei, vesti o roupão e tratei de ir até o quarto de minha cunhada. Preferi não bater à porta, para não acordar meus dois sobrinhos, que dormiam com ela.
Clara não estava com minha cunhada na cama. Raquel dormia entre os dois filhos pequenos. E aquela cena me encheu de desespero.
- Raquel? – Chamei por ela baixinho, para não acordar os meninos. – Raquel? – E nada. Cheguei ainda mais perto. – Raquel? – Aumentando um pouco o tom. Foi quando ela acordou.
- Oi. Júlia? – Estava meio atordoada. – O que foi? Algum problema?
- Você sabe do Joel e de minha filha?
Raquel procurava enxergar o meu rosto através da luz que entrava pela janela.
- Não. Ele não está aí?
- Nem ele, nem Clara. Eu estou preocupada.
Minha cunhada tratou de levantar e me acompanhar até a sala.
- Estranho, Júlia. Quando fui deitar o Joel estava assistindo televisão na sala. Até pedi que ele olhasse a Clara.
Eu já me encontrava muito preocupada, tentando imaginar o que teria acontecido, onde Joel teria levado nossa filha de madrugada.
- Ele não disse nada? Você não notou alguma coisa estranha? – Perguntei, angustiada.
- Nada. Será que a Clara sentiu alguma coisa e ele a levou numa farmácia?
- Não sei, Raquel. Mas eu estou com medo. – Sentia minhas mãos trêmulas. – Meu coração me diz que aconteceu algo grave.
- Mas se tivesse mesmo acontecido ele teria me chamado. Estranho!
Lembrei de olhar nosso quarto. E foi o que fiz, acompanhada de Raquel. Acendendo a luz, me dei conta do pior. A porta do armário estava entreaberta. Faltava a bolsa e parte das coisas de Clara.
Só então eu percebi o que havia acontecido.
Uma dor atravessou meu coração.
- Meu Deus!
- O que foi, Júlia? – Raquel começava a ficar preocupada.
- Joel enlouqueceu. Eu não acredito que ele fez isso!
Fui até a sala. Não sabia o que pensar, o que fazer. Voltei ao quarto, mexendo no guarda-roupa, como se ali encontrasse uma prova de que eu estava equivocada. E Raquel atrás de mim, procurando compreender o que havia acontecido.
- Júlia, por favor, me fala o que houve. Você está me deixando preocupada.
- O Joel, Raquel... – Não conseguia raciocinar direito. – O teu irmão vai me matar se ele fizer o que estou pensando.
- Pelo amor de Deus, me diz do que se trata. – O tom de Raquel já era de desespero. – O que o Joel pode fazer de tão grave?
Doía só de pensar. Meu rosto já estava banhado em lágrimas. E eu andava de um lado para o outro da sala, ia até o quarto, voltava.
- Eu não acredito, Raquel!
- Em quê?
Sentei no sofá, com as mãos na cabeça, como se tentasse organizar meus pensamentos. Podia ser loucura minha. Ele podia não ter tido coragem de tomar uma atitude daquela.
- Eu acho que o Joel fugiu com a nossa filha. – Eu já estava em prantos.
- Fugiu? Como fugiu? Que história é essa, Júlia?
- Ele vai vender a nossa filha!
Senti vontade de morrer ao pronunciar aquilo. Mas eu sabia que era verdade. E precisava lembrar de tudo o que havíamos vivido naquele mês de dezembro, desde que fomos abordados com aquela proposta absurda, para encontrar um meio de impedir meu marido de cometer aquela loucura.  
E eu faria de tudo para impedi-lo!



Parte I
Dezembro de 2005 a Maio de 2006

  


JÚLIA SERRADO
            Capítulo 1

Entrando o mês de dezembro, tudo se transformava. As pessoas pareciam respirar as festas e preparativos de final de ano. O clima de confraternização nos lugares  onde eu estava presente nas últimas semanas de 2005, faziam-me esquecer do grande aperto financeiro pelo qual eu vinha passando naquele ano. Aos trinta anos, não me lembrava de ter enfrentado situação pior, multiplicando-me na dura administração de diversas dívidas em cartões de crédito, cheque especial e até empréstimos bancários, que já haviam sido feitos para cobrir dívidas anteriores, o que mostrava que o desequilíbrio já vinha de algum tempo. Com certeza, estávamos gastando muito mais do que podíamos e era algo que se repetia mensalmente. A coisa já tinha fugido totalmente de meu controle e eu só havia me dado conta quando a energia elétrica fora cortada e, depois de pagar uma das contas, tivemos que esperar horas para ser religada.
A única pessoa com quem eu podia conversar e planejar os pagamentos era com minha cunhada Raquel, que morava conosco há dois anos, com seus dois filhos pequenos Zezinho e Rafael. Há muitos anos eu já havia percebido que meu casamento com Joel tinha sido um grande erro. Ele era uma boa pessoa, sempre bem humorado, de bem com a vida, mas nunca pude realmente contar com sua presença nas decisões importantes, na manutenção de nossa família. Meu marido nunca parara em nenhum emprego, sempre arranjava um problema ou dizia que arranjavam problema com ele. Por isso sempre fui responsável para manter nossa casa.
Eu não entendia como aquele desequilíbrio financeiro havia começado, mas sabia que havia piorado durante os três meses que passara em casa, sem poder trabalhar, depois do nascimento de nossa filha Clara, um ano antes. Sem falar em Raquel, que havia perdido seu emprego de auxiliar de enfermagem, depois de doze anos de trabalho e acabou entregando o dinheiro que recebera pela demissão ao marido, para que investisse na compra de sua casa, mas isso nunca aconteceu, o irresponsável que ela tanto defendia e acreditava sumira com seu dinheiro e sempre que reaparecia de suas viagens intermináveis como vendedor-representante, segundo ele, inventava mil desculpas, até chegar com uma definitiva que fora roubado dentro de um ônibus no interior de Minas.
O fato é que eu era a responsável para manter toda a família, minha filha pequena, meu marido, Raquel e seus dois filhos. Mas em nenhum momento reclamei da situação de Raquel, pois além de ser uma boa pessoa, sempre tinha sido uma forte presença em minha vida, desde a época de meu namoro com seu irmão mais novo, Guel, antes de meu casamento com Joel. Ela já havia me tirado de muito sufoco, era para mim uma grande amiga, uma irmã. Esteve do meu lado durante os últimos sete anos, mesmo contra seus irmãos. Além do quê, Raquel saía diariamente deixando currículos, participando de entrevistas. Nunca cruzou os braços. No entanto, acho que era uma providência do universo ela estar passando por aquela situação. Era Raquel que cuidava de Clara para que eu pudesse trabalhar diariamente e sempre que saía a procura de emprego, eu tinha que ficar em casa ou pagávamos nossa vizinha para ficar com minha filha.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 2

Apesar das grandes preocupações com a falta de dinheiro, eu esquecia totalmente de qualquer problema quando estava em meu trabalho como coreógrafa da boate Mirage. Tratava-se de uma proposta inovadora na capital cearense, um elegante espaço localizado na Praça Portugal, área nobre da cidade, com proposta de espetáculo de dança desenvolvido por uma equipe de doze dançarinos, entre homens e mulheres. Eram espetáculos temáticos, onde as dançarinas, separadamente, viviam personagens em meio a um show de sensualidade, sempre acompanhadas dos dançarinos que completavam a beleza e perfeição das apresentações, nas quais as protagonistas encenavam um strip-tease, que nunca chegava a deixá-las totalmente despidas. Era exatamente aquilo o grande diferencial da proposta de Olívia Cordeiro e Renato Brandão, os donos da Mirage, proporcionar um espetáculo de sensualidade e requinte, um verdadeiro show artístico, para os finais de semana de Fortaleza.
Eu estava trabalhando na boate há quase um ano, desde o convite de Charles Moreno, diretor artístico do espaço, que eu havia conhecido um tempo antes, através de um projeto social de educação artística em comunidades carentes, no Janguruçu, bairro de periferia, onde trabalhara como professora de dança.
A dança era para mim, meu refúgio, minha imersão em meu próprio ser, e ao mesmo tempo a possibilidade de expressão plena de tudo o que era mais profundo em mim, o que eu guardara a sete chaves em minha alma. Sentia uma magia ao dançar. E nos últimos quatro anos acabara transformando-me em professora da arte que me revelava enquanto ser humano.
Desenvolvia vários projetos paralelos ao trabalho da boate, mas era na Mirage que conseguia manter minha família, responsável pela coreografia dos shows idealizados por Charles.
Havíamos nos tornado, Charles e eu, grandes amigos, além de ótimos parceiros de trabalho. Algumas das meninas da boate chegaram até a insinuar que existia algo a mais que amizade entre nós, por nossa cumplicidade talvez. O fato é que nunca acontecera nada de mais, até porque ele não falava, mas eu tinha certeza que gostava de homens e até escondia, penso, uma paixão por Renato Brandão, não por trabalhem juntos há mais de quinze anos, como sempre falavam, mas pelos olhares de Charles ao amigo, principalmente quando o mesmo chegava à boate junto com seu companheiro, ou mesmo quando tocava em seu nome em situações rotineiras.
Aos quarenta e cinco anos, Charles era uma pessoa sozinha, apesar de fazer amizades rapidamente com quem conhecia, sempre disposto a ajudar, uma cara que tinha jeito de “pode contar comigo”, mas não tinha ninguém, alguém para viver um amor diferenciado, embora fosse um homem bonito. Era grisalho, um pouco fora de forma, mas uma figura adorável, de boa aparência. Eu sentia uma certa tristeza naquele meu amigo, como se esperasse uma mudança em sua vida, mesmo não sabendo exatamente o quê.
Bem, estava eu passando por um momento tão difícil na minha vida, que acabava por gastar o resto de minhas forças rezando que algo de muito bom acontecesse. E aconteceu!
Charles tinha recebido um convite para realizar um trabalho na Europa e achava que eu tinha todas as possibilidades de assumir seu cargo na boate, inclusive me dissera que Olívia e Renato já haviam se mostrado bem simpáticos à idéia.
Inicialmente, achei que não, que não poderia assumir aquele cargo e também estava meio confusa com aquela notícia, e triste talvez de perder um amigo, um parceiro. Mas eu sabia que seria para seu bem. E era aquilo certamente que ele aguardava para dar um rumo diferente em sua vida.
Aquela notícia me deixara um pouco fora de meu eixo. No entanto, não poderia dar vazão a meus medos. Estava perto de minha estréia como dançarina de um show na boate, por conta do incentivo de Charles, que sempre insistira, desde quando começamos aquele trabalho, para que eu saísse dos bastidores e me lançasse também no palco. Charles acreditava que seria um grande sucesso.
Estávamos ensaiando exaustivamente todos os dias até entrar pelas madrugadas, pois ao mesmo tempo que criávamos novos shows, precisávamos manter os que já existiam. Charles criava os personagens, o motivo, cuidava de todo o figurino e eu criava a coreografia. Passávamos horas naquela boate ensaiando com os dançarinos. O que me fazia esquecer de meus problemas.
A única pessoa que torcia realmente por mim, além de Charles era Raquel, que me dava a maior força e quando decidi estrear como dançarina na Mirage, foi ela que deu pulos de alegria, até mais que eu mesma, era como se fosse ela a dançarina, mesmo que nunca pudesse ver os espetáculos, por conta das crianças.
Meu show estreara em meio a muito nervosismo e bastante disciplina. Encarnara a personagem de uma super-mulher, idealizada por Charles, uma andróide, com roupas prateadas e uma máscara que deu um charme todo especial ao espetáculo.  Entrei no palco seguindo explosões que marcavam a música, canhões de luzes coloridas confundiam minha imagem com a dos seis dançarinos, de calças e coleiras prateadas, que me acompanhavam no número. Por um instante, num momento antes de entrar, senti minhas pernas trêmulas e achei que não me apresentaria. A boate estava completamente lotada em toda a sua extensão na área de mesas e na pista de dança em frente ao palco. Era muito barulho e gritos que ficavam abafados pelo som da música que me convidava a entrar.
Senti-me totalmente plena naquele palco como se o mundo fosse meu. As pessoas vibravam, aplaudiam, sentiam-se provocadas a dançar junto, a acompanhar a coreografia com cada movimento, cada gesto. Como em todos os shows, eu ia tirando as peças de roupa em momentos marcados pela música, dosados com movimentos de profunda sensualidade e entrega, o que deixava a todos encantados por cada momento da apresentação, resultando em instantes de euforia e também de total contemplação.
Fomos aplaudidos por todos de pé. Achei que não parariam mais com as palmas e assovios. Aquele show foi um grande sucesso, como Charles esperava, assim como minha personagem, a supermulher andróide, que se tornou famosa da noite para o dia. A personagem era envolvida por um mistério trazido talvez por sua máscara, despertando a curiosidade de todos.
Preferimos, contudo, deixar a minha identidade em segredo, como forma de me proteger, de preservar minha intimidade. Visto que todas as meninas, bem como os rapazes, viviam recebendo propostas indecorosas de homens e mulheres, que freqüentavam a boate. Embora fosse um show apenas de sensualidade, com muito profissionalismo por parte de toda a equipe. Pelo menos não sabíamos de ninguém que tivesse cedido a nenhuma dessas propostas. Procurei me preservar, já que saía dos bastidores para também subir ao palco.
Estávamos, toda a equipe da Mirage e eu, agitando as noites de Fortaleza,. Nossos shows nos proporcionavam casa cheia diariamente.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 3
 
Eram tantas alegrias no trabalho que me faziam esquecer dos problemas. Minha família e eu estávamos quase sendo despejados da casa em que morávamos na Maraponga, depois de seis meses de inadimplência.
Mais uma notícia mexeu profundamente comigo naquela noite de estréia, ao chegar em casa. Raquel me esperava na sala, para conversarmos. Percebi em seus olhos e seu silêncio que tinha algo grave para me contar. Ainda tentei imaginar, mas o que poderia ser mais grave do que ser despejados, sem ter para onde irmos? Não, nada poderia ser mais grave que aquilo. A não ser que fosse algum problema de saúde nos meninos, ou em Clara? Ah, quando lembrei de minha filha, então fiquei nervosa e logo a abordei querendo saber o que estava acontecendo.
- Guel está de volta, Júlia.
Senti o chão sair de baixo de mim, com aquela afirmativa de Raquel. E ela sabia que era uma notícia difícil, por isso estava apreensiva daquele jeito, nem parecia feliz com a volta de seu irmão, depois de tanto tempo. E de fato, acho que nem estava, Raquel sempre fora mais por mim que por seus irmãos.
Havia sido muito apaixonada por Miguel Serrado. Tivemos uma relação intensa, sete anos antes. Na época eu era bailarina de um grupo e ele modelo em ascensão. Sua carreira tinha ganhado proporções nacionais. Fora descoberto por uma agência em São Paulo e estava fazendo muitos trabalhos fora de Fortaleza. Começavam até a surgir as primeiras possibilidades de algum trabalho internacional.
Guel era um homem alto, talvez um metro e noventa, moreno claro, de olhos azuis bem expressivos, destacando-se num belo rosto, que ostentava ainda uma boca sedutora, de lábios canudos. Cabelos bem cuidados. Ombros largos, peito saliente. Orgulhava-se ele do abdômen e das pernas bem-malhadas. Era um homem que chamava a atenção de todos por sua beleza, dotado de um misterioso poder de sedução. E quando chegávamos perto um do outro, parecia que nossos corpos iam queimar. Seu calor, deixava-me trêmula. Todavia, acho que o tamanho de minha paixão por ele fora proporcional ao sofrimento por mim experimentado em nossa relação. Guel nunca ficara somente comigo. Na verdade, acho que nunca experimentara o sentido da palavra “fidelidade”. Não era homem de uma mulher só. Sabia de seu poder de sedução e o vivenciava intensamente.
Depois de ter sido preso por porte de drogas, Guel respondeu processo acusado de estar também envolvido com o tráfico em Fortaleza. Desaparecera há cinco anos, quando havia saído da cadeia, depois de um ano e meio detido. Nunca mais havíamos ouvido falar de seu paradeiro.
Eu sabia que Raquel, uma vez ou outra, sentia falta do irmão mais novo, mas procurava sempre disfarçar, em respeito a mim. Já Joel temia que este voltasse. Era claro o seu medo de meu reencontro com Guel. Acreditava que eu poderia deixá-lo para ficar com o irmão.
Voltar com Guel? Aquilo jamais aconteceria. Eu tinha muito mais raiva, ódio do que vontade de reencontrá-lo. Entretanto, temia que aquilo acontecesse. Não sabia como seria minha reação. Sentia um frio em meu estômago, só de pensar. 
Então começava a entender as atitudes de Joel naqueles dias. Encontrava-se impaciente, pensativo, cabisbaixo. E eu sempre perguntando se estava sentindo algo. Dele, ouvia o tempo todo a mesma resposta: “Nada, não tenho nada”. Preocupações com as contas não era, pois nunca havia destinado nem um segundo de seu tempo para se ocupar com aquele tipo de problema. Só poderia ser algo muito sério, e era.
Naquela noite conversei bastante com Raquel e depois com meu marido. Então fiquei sabendo que meu cunhado o havia procurado, já tinha alguns dias e ele não me contara por medo de minha reação. Mal sabia ele que não seria Guel o responsável por uma possível separação, mas sua passividade. Sentia-me cansada daquela postura nem um pouco resoluta, de pessoa imatura, não obstante já tivesse trinta e sete anos. Apesar de bonito, Joel não tinha o mesmo charme do irmão. Mas, diferente do que pensava, não seriam as desvantagens físicas em relação ao irmão que me afastariam dele, e sim sua dependência e irresponsabilidade.
Como eu desejava evitar aquele reencontro! Não queria que ele percebesse meu nervosismo, nem que notasse minha ansiedade. Na verdade, nem sabia se realmente ficaria ansiosa no momento que nós nos encontrássemos, mas mesmo assim eu temia. Ficava tentando imaginar o que ele queria de volta, qual sua intenção de nos procurar novamente. Afinal, sempre fora desapegado, parecia até que nunca gostara de ninguém, nem mesmo de Raquel que o criara depois da morte de seus pais. E foi exatamente o que eu lhe perguntei no momento em que nos reencontramos, o que não demorou muito, depois daquela noite.
Guel nos fez uma visita, num final de tarde. Quando abri a porta, lá estava ele, parado diante de mim. Ainda continuava lindo, aos trinta e dois anos, talvez ainda mais bonito, com o mesmo ar de sedução, bem-vestido, com roupas que pareciam de grife, escondendo o porte musculoso. E o sorriso lateral, que tanto me encantara anos antes. O tempo não parecia ter passado para ele e continuava extremamente vaidoso.
Surpreendi-me com o que eu senti ao ver aquele homem, que já tinha sido tão importante na minha vida. Nada do que pensei que aconteceria realmente aconteceu, não experimentei nenhum tipo de nervosismo ou ansiedade. Parecia que estava verdadeiramente curada. Aquele corpo, aquela voz, aquele olhar, não mais mexiam comigo. Guel Serrado representava para mim um passado. Conversamos sobre muitas coisas, como suas supostas andanças pela Argentina, nos últimos cinco anos. Ele não conseguira me responder por que realmente havia me abandonado e fugido, sem deixar notícias, nenhum sinal de vida.
Joel parecia muito desconfiado durante toda a conversa, como se tentasse perceber o que realmente o irmão queria ali, depois de tanto tempo, procurando algum sinal, um olhar, um gesto, qualquer coisa que revelasse o que estava por trás daquele encontro. Mas era claro o seu medo, medo de me perder.

* * *

Demorou poucos dias para descobrirmos os motivos da volta de Guel. Em sua segunda visita, nos fez a sua proposta imoral. Era como se eu não tivesse ouvido direito o que ele dissera. A forte lembrança que tenho é de minha raiva, meu ódio, misturado com medo e desprezo por ele, empurrando-o para fora de minha casa, aos gritos. Acho que toda a vizinhança deve ter ouvido meus berros. Se ele não tivesse saído, acho que o teria matado. Naquele momento, esqueci-me de qualquer princípio, a única coisa que me orientava era meu instinto materno. Depois descobri que Joel já sabia de tudo bem antes de mim. Os dois andavam de cochichos e tiveram alguns encontros sem que eu soubesse. Meu próprio marido era cúmplice daquela proposta, embora tentasse me convencer que não havia concordado desde o início.
Guel estava trabalhando num bar na Praia de Iracema como garoto de programa e pelo que pude perceber, estava também metido com uma quadrilha de tráfico de crianças para o exterior. Sabia de nossa situação financeira e havia nos proposto vender a nossa filha para um casal de holandeses, que pagaria trinta mil dólares por uma criança. Na realidade, aquele canalha via em nós, em minha filha e na ambição de Joel, a possibilidade de ganhar dinheiro. Era esse seu motivo de reaproximação. Ele e seu parceiro Ronie, um colega de trabalho, pareciam já ter convencido meu marido de tal barbaridade, pelo que pude perceber, ao vê-lo defender o irmão e até arranjar desculpas para a tal proposta, embora não tivesse coragem de assumir claramente para mim e Raquel. A única vontade que tive naquele momento foi de agarrar minha filha, tomá-la em meus braços e protegê-la de todo e qualquer mal.  Foi o que eu o fiz, passei quase que uma noite em claro, velando o sono daquele ser inocente, indefeso, alvo da cobiça do próprio tio. Naquele momento tive a certeza que meu casamento com Joel estava definitivamente acabado. Jamais continuaria casada com um homem que havia pensado na possibilidade de vender a própria filha. Pior que aquilo, eu não confiava mais nele.
A impressão que eu tinha naquele momento era de que o universo estava me pregando uma grande peça e punha em jogo os meus princípios. Nunca quis ter muita coisa, para mim, conseguir realizar-me profissionalmente, ver minha família feliz já era o bastante. A dança já me fazia experimentar o gosto da felicidade. Nunca sonhei em ser rica ou ter muito dinheiro, posição social. Acreditava em princípios morais, nunca fora capaz de mexer em nada que não fosse meu ou fosse ilícito. Exatamente por aquele motivo foi que cheguei a achar que estava passando por uma grande provação. Pois na mesma época fui surpreendida por uma proposta totalmente absurda.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 4

Desde o show de estréia, passei a perceber um homem estranho, desconhecido, presente na boate todas as noites, sempre me observando de longe. Parecia misterioso, esquisito, apesar de bonito. Notava-se ser um homem vaidoso, bem-vestido. Certa noite, depois do espetáculo, no ponto de táxi, fui abordada por ele. Achava que poderia ser algum gringo, confundido-me com uma garota de programa. Mas não era!
“Júlia Serrado? Não tenha medo. Preciso muito conversar com você!”
Senti firmeza no que dizia. Estranhei como ele poderia saber meu nome. Certamente já havia se informado de tudo na boate. Durante alguns segundos, tentava imaginar o que aquele homem queria comigo. Não importava o que ele queria. Não poderia deixar me intimidar. Procurei mostrar que não tinha medo, entrei no táxi e fui embora. Se não fosse por aquele taxista ali, não sei o que seria de mim, acho que teria morrido de medo. A gente nunca sabe como vai reagir numa hora dessas. No entanto, fui surpreendida na noite seguinte, pela presença misteriosa daquele homem novamente. O que me amedrontava, era seu olhar, como se já me conhecesse. Dizia ele que eu me parecia muito com uma pessoa que ele conhecera no passado. O que me fez pressupor inicialmente que se tratava de uma cantada, uma forma de aproximação de um maluco.
A história que o estranho homem me contara naquele momento era totalmente louca, dificultando meu entender. Ele queria que eu assumisse a identidade de uma outra mulher, que parecia ter morrido muitos anos antes e interagisse com um homem, para conseguir uns documentos que interessavam a ele e supostamente estavam com esse homem. Basicamente seria isso. E para fazer tal absurdo, eu seria muito bem paga.
Que meu marido não soubesse de tal proposta, se não me poria louca para aceitar! Jamais eu faria uma coisa daquelas, mentir, roubar, fazer-me passar por uma outra pessoa. A única coisa que realmente não conseguia entender, era o porque de tudo aquilo. Por que eu estava exposta àquelas situações absurdas. Provação do universo? Estava diante de duas possibilidades de ganhar dinheiro e resolver todos os meus problemas financeiros. Entretanto, estava decidida a seguir o caminho do bem e dançar, simplesmente dançar, doar-me ao mundo através da dança, esperando que tudo se resolvesse.
“Minha resposta é não! Jamais faria uma coisa dessas. Se o senhor continuar insistindo em me procurar, eu vou chamar a polícia.” Fui categórica, procurando esconder o medo de Donato Pessoa. Era o nome do homem misterioso. Soube no dia seguinte, através de Charles. Tratava-se de deputado federal e um dos diretores da RTN – Rede de Televisão Nacional, em Fortaleza. Um homem poderoso, talvez. Nem sei como pude, de onde tirei coragem para enfrentá-lo. De certo aquela proposta que me fizera tinha a ver com política.
Mesmo com minha firmeza, tive medo do olhar daquele homem. Não parecia convencido de minha decisão. Era como se tivesse certeza que faria o que ele queria. Tive essa impressão por causa de seu sorriso irônico, como se desdenhasse de minha atitude, desconsiderasse minha postura, ignorasse talvez. Não entendi também por que se expunha em me procurar, poderia ter feito tal proposta através de alguém, mas não, fizera questão de me procurar pessoalmente, como se tivesse certeza que eu não contaria para ninguém, pois se eu o fizesse, poderia causar um escândalo nos jornais, já que se tratava de um político.

MARINA PESSOA
Capítulo 5

Estava caminhando pelo frio da madrugada, meus cabelos e minhas roupas eram jogados compulsivamente para todos os lados pelo forte vento que dominava toda a avenida do meu apartamento, que momentos parecia ser conhecida e, segundos depois, era um lugar que nunca estivera. Todas as pessoas tinham desaparecido, percebia-me totalmente solitária, movida pela vontade de encontrar algo que até então não sabia ao certo o quê. Tudo estava sóbrio, era guiada apenas pela luminosidade da lua. Lixos e restos de papeis eram carregados como ondas através das calçadas, pela forte ventania, que jogava meu cabelo contra o rosto, dificultando ainda mais a minha visão. Mesmo com medo, continuava caminhando, de pés descalços, usando um vestido azul claro com detalhes brancos, que achava que não mais existia. Os prédios, impressionantemente, davam lugar a velhos casarões e galpões abandonados, sem que eu tivesse tempo para precisar o momento em que aquilo acontecera. Parecia ser eu a única pessoa viva daquele lugar, que me lembrava as cidades fantasmas dos filmes que assistia quando criança.
De repente, avistei uma luz, longe, numa esquina. Um foco que ascendia e apagava vertiginosamente, como que me avisasse que não era somente eu a energia de vida, naquele momento. Era para lá que eu deveria ir e foi exatamente o que eu fiz. Talvez aquela luz me levasse de volta para casa, respondesse de alguma forma aquele grande enigma, o que eu estava fazendo ali, a procura de quê especificamente eu estava. Comecei a correr em direção ao foco de luz, que continuava ascendendo e apagando, já com menos tempo entre um estado e outro. No entanto, quanto mais eu corria, mais ficava longe daquela luz, da saída, da possibilidade de volta. Meu retorno parecia afastar-se de mim, embora percebesse que continuava lá, sem sair de onde estava. A esquina daquela rua ficava cada vez mais distante, longe do alcance de minhas mãos, que me guiavam na busca. Em alguns momentos parecia que a luz que outrora vira distante saíam de minhas próprias mãos, que estava à frente de meu corpo, como que quisesse alcançar a tal luminosidade antes mesmo de chegar em seu ponto de projeção.
Percebendo que não alcançaria aquela luz, começava a repetir sem parar, como se de alguma forma conseguisse mudar aquela situação:
“A luz, a luz... eu preciso chegar na luz... eu preciso chegar até ela, eu preciso, eu preciso, eu preciso...”
Acordei completamente suada, tomada pelo mesmo desespero que me movia naquela maratona em busca do tal foco de luz. Foi meu marido quem me acalmara naquele momento. Graças a Deus ele estava ali, ao meu lado. Senti uma alegria surpreendente de vê-lo e sentir seu cuidado, seu zelo comigo. Havia sido somente mais um de meus pesadelos, dentre tantos outros que vinha tendo no último ano. Donato já tinha me aconselhado a procurar um médico, para que voltasse a ter noites mais tranqüilas.
Tranqüilidade na noite! Ah, como eu sentia falta daquilo em meu sono. Há muito não era a mesma e precisava me encher de remédios para dormir. Ainda assim, acordava várias vezes no meio da noite, tomada pelos pesadelos que me colocavam em desespero. Temia até que meu casamento com Donato se desgastasse com os meus “espetáculos” noturnos. Acordava quase sempre aos gritos, extremamente nervosa, suplicando por ajuda, tentando encontrar a tal luz, que acendia e apagava neuroticamente em minha mente, na lembrança daquele lugar que eu experimentava praticamente todas as noites, várias vezes na noite.
Sentia a paciência de meu marido, seu cuidado, mas tinha muito medo que cansasse, e até sentia algumas vezes um tom de cansaço em sua voz, quando me dizia, “por favor, Marina, não há nada, foi apenas um sonho!”
Sabia que Donato era um homem sem muito jeito para romantismos, às vezes chegava até a parecer um pouco frio, mas era o jeito dele. E de um modo bem seu, bem particular, soubera me conquistar, embora não conseguisse discernir entre o medo e o amor que sentia por ele.

MARINA PESSOA
Capítulo 6

Donato e eu estávamos casados há quatro anos, desde quando havíamos nos conhecido em Milão, num desfile de modas, onde eu estava trabalhando. Na época, com apenas dezoito anos, me vi completamente apaixonada por um homem que tinha o dobro de minha idade. Era muito bonito, no entanto, talvez o charme e elegância superassem sua beleza. Até eu, com a inexperiência típica da juventude, percebia sua vaidade como seu maior pecado, que não se expressava apenas no estilo extremamente fino, com suas roupas e sapatos caros, mas também no simples ato de caminhar, de se portar, de pegar qualquer coisa na mão, no jeito compassado de falar. O que parecia, em alguns momentos, artificial, mas que fazia de Donato Pessoa uma figura singular. Moreno, alto, forte, sempre em ótima forma, de olhar penetrante e entradas no cabelo acima da testa, prenunciando uma futura calvície. Encantava-me com sua voz rouca e o furinho no queixo, o que o tornava ainda mais charmoso. Via-o naquela época como um galã de cinema, meu príncipe encantado.
O que para muitos impunha o medo e a hostilidade, para mim era fonte de desejo e paixão. Embora não soubesse até que ponto o amava ou o temia, mas era aquele sentimento que ainda me mantinha viva.
Donato Pessoa chegara em minha vida num momento em que não pensava em outra coisa que não morrer. Senti-me extremamente atraída pela sua maturidade, por seu charme. Tinha a força que eu nunca tivera, nem minha irmã mais velha, que praticamente me criara, conseguira me passar. Por muitas vezes, inclusive, ela havia afirmado que era apenas um desejo inconsciente de encontrar meu pai num homem mais velho. E fora exatamente esse amor o motivo pelo qual eu me separei de minha irmã. Vanessa jamais aceitou esta decisão.
Donato e eu havíamos nos conhecido quando era ainda uma menina e ele grande amigo de Pedro Lucena, meu cunhado, sempre estando presente com sua esposa Maria Eugênia Gondim, na época, passando férias, em Londres, onde morávamos, como uma família. Ao reencontrar aquele homem, já separado, pude perceber coisas que não tinha percebido quando criança, coisas que uma criança jamais sentiria. Creio que ele me trouxera a alegria de viver, o que os rapazes da minha idade jamais me dariam, como Vanessa dizia que era o certo. Preferi abandonar minha carreira, nossa vida em Londres e tornar-me a senhora Marina Pessoa. Certamente aquela nova vida, cujas possibilidades me aguardavam de volta a Fortaleza, traria-me novamente a felicidade.
Doía a distância de minha irmã, que fora para mim uma mãe. Sentiria falta também de Pedro, que me compreendia e sempre destinava-me horas conversando sobre os meus problemas, que nem eu mesma sabia quais eram, bem como de Felipe, que vi crescer e ajudei a cuidar. Todavia, estava em jogo a minha felicidade e, com certeza, eu a encontraria ao lado do homem que amava. Sonhava em encontrar esta felicidade, que ainda não experimentara. Achava muitas vezes que éramos um casal feliz, mas não sabia de fato o que era ter paz de espírito.
Em determinados momentos me achava sem parâmetros para avaliar verdadeiramente meu estado de vida e meu casamento. Tinha consciência que meu marido era um homem bom para mim, tudo o que fazia era para meu bem, no entanto, muitas vezes, também me amedrontava com sua extrema seriedade, que chegava a se confundir com mau humor, cheio de mistérios, como se guardasse segredos o tempo inteiro, escondendo algo de mim e do mundo. Tinha muita coisa sobre ele que eu não sabia e que talvez fizesse questão que eu não soubesse, bem como todas as pessoas, com exceção de Luísa, sua secretária, que era sua cúmplice em tudo. Mesmo fora da empresa, passavam horas conversando no escritório, em nosso apartamento, de portas fechadas, resolvendo questões importantes da política, segundo ele, coisas que não poderiam ficar para depois.
Aquela relação saltava não só aos meus olhos, mas de todos. De uma forma ou de outra eu sempre acabava sabendo dos comentários. Luísa morava conosco, desde quando nos casamos, e estavam quase sempre juntos, além de olhares de cumplicidade, que em muitos momentos eu percebia entre os dois. Por umas duas ou três vezes, cheguei a perguntar, questionar sua presença em nossa casa, nunca obtive mais que respostas reticentes. Ele não gostava de ser contrariado, nunca, principalmente por mim. Tinha medo de sua reação quando se via com raiva de alguma coisa que eu havia feito. Nunca fora realmente agressivo, entretanto, seu jeito sarcástico me fazia ter certeza que eu não queria conhecer esse lado e, no fundo, sabia que existia, algo reprimido que o movia e orientava todas as suas atitudes, alguma coisa que nunca fora revelada a ninguém, nem mesmo a Luísa, pois sentia interrogação também em seu olhar diante de determinadas atitudes irônicas de meu marido, principalmente quando exigia uma postura ou um tipo de comportamento, bem como de concordância no que dizia ou pensava, de um modo que parecia educado, mas que na verdade traduzia uma atitude totalmente contida, de uma raiva represada, que ele mesmo não permitia sair. Quando aquilo acontecia ria para não demonstrar todo o seu ódio.
Talvez fosse aquele tipo de atitude que realmente me fazia temê-lo. Não sabia ao certo do que seria capaz diante de uma situação em que não estivesse a seu agrado. Nunca fora de atitudes românticas, mas quando estávamos juntos, percebia seu amor, seu cuidado comigo, de uma outra forma que não era carícias. Sempre achei que não teria tanto ciúme se verdadeiramente não gostasse de mim. Donato era um homem extremamente ciumento.
Quando nós dois nos conhecemos eu era uma modelo com grandes chances de me tornar famosa em todo o mundo. Chamava atenção por minha beleza, tinha um perfil diferente das demais modelos, com formas bem definidas, loira de cabelos bem longos e lisos, olhos verdes, como os de Vanessa. Era quase mais alta que Donato, o que se salientava quando eu usava salto, embora contra sua vontade, ele detestava quando isso acontecia, talvez não quisesse se sentir menor que a própria mulher, que ninguém.
Para ficarmos juntos fui obrigada a abandonar a carreira de modelo e voltar para o Brasil com ele. Meu grande sonho era mesmo amar e ser amada, constituir uma família, viver numa atmosfera que eu nunca experimentara, a não ser na casa de minha irmã, com sua família. Mas eu queria sentir aquilo também numa família que fosse realmente minha, com afeto, cuidado, amor. Se aquela era a única alternativa, eu não tinha dúvida nenhuma. Além do quê, não tinha o menor cabimento um homem na posição que ele ocupava, como ele mesmo dizia, marido de uma modelo, uma mulher que mostra o corpo pelo mundo, além de freqüentar ambientes onde ele não poderia estar, por conta de seu trabalho, seus compromissos. De fato, era estapafúrdia aquela idéia. Eu até repetia para mim mesma sempre que lembrava, para que um dia acreditasse naquilo. Não, por mais que eu o amasse, não conseguia acreditar, embora já tivesse feito a minha escolha. 

MARINA PESSOA
Capítulo 7

Meu marido não gostava nunca de falar de seu passado, tinha vindo de um bairro modesto, de uma vida difícil, cheia de privações. Abandonara o colégio no ginásio, para trabalhar e ajudar no sustento da família. Perdera os pais muito cedo e fora, praticamente, criado pela irmã mais velha, como eu. Tínhamos na verdade uma história de vida em comum, apesar de eu vir de uma família de classe média alta e ter morado muitos anos na Europa, primeiro com meus pais, depois com Vanessa e meu cunhado. Conseguira chegar aonde chegara com a ajuda de Pedro, seu grande amigo, e o pai dele, Alberto Lucena. Haviam se conhecido no primeiro ano da faculdade, exatamente quando voltara a estudar, depois de um tempo parado, por precisar trabalhar. Os dois tornaram-se grandes amigos e logo Alberto o convidara para integrar o quadro de funcionários da WM, agência de publicidade na qual trabalhava. Foi então que conheceu Maria Eugênia Gondim, filha de Leonardo Gondim, um dos donos da agência, grande amigo e parceiro de trabalho de Alberto, com quem se casara pouco tempo depois, embora não se amassem na verdade. Maria Eugênia era uma moça mimada e queria apenas chamar a atenção do pai, casando-se pela segunda vez, mas com um homem pobre e que ainda despertava a desconfiança na família, enquanto que Donato era um rapaz com grande ambição e vontade de subir na vida. Talvez tenha sido o primeiro passo errado que tenha dado em sua vida, a partir dali, dera muitos outros. Embora tenha sido um casamento apenas de conveniências, para os dois, durou ainda oito anos.
Donato crescera profissionalmente dentro da agência de publicidade do sogro, que mais tarde, fora vendida, mesmo contra a vontade de toda a família, sendo constituída a Rede de Televisão Nacional – RTN, da qual ele assumira a direção comercial. Mas era um homem guiado pela ambição, pela vontade de poder e queria sempre mais. Lutava para conseguir a vice-presidência, cargo pertencente a Alberto Lucena, e naquele momento, a seu filho Pedro, meu cunhado. Embora não compartilhasse nada comigo sobre seus negócios, era de meu conhecimento que tudo fizera para conseguir o cargo almejado. Vivia de segredos com Luísa e por mais que eu não quisesse saber, por muitas vezes, ouvi as tramas, os métodos que utilizava para alcançar seus objetivos. Aquilo me deixava mal, doente, ao ficar sabendo de algum de seus estratagemas, passava dias sofrendo, sem nada falar. Acho que nunca ele ficara sabendo que suas atitudes não eram segredo para mim. Talvez eu preferisse que fosse daquele jeito, afinal se ele não soubesse, não seria sua cúmplice. E eu não queria ser, por mais que o amasse, não aprovava seus métodos para vencer, não acreditava naquilo como objetivo de vida. Desejava que ele também não acreditasse, preferia alimentar a idéia de que era inocente, vítima de seu próprio ego.
Meu marido queria esquecer seu passado, por isso queria se superar cada vez mais e acabara fazendo daquilo seu objetivo de vida. Achava que o mundo era dos espertos e todos que tinham dinheiro se enquadravam a esta categoria. Uma pessoa esperta em sua crença, era alguém inteligente que usava as pessoas pobres e burras como escadas para sua ascensão. Em sua concepção toda e qualquer pessoa tinha algo por trás não revelado que a movia, seu desejo de poder, de autoridade, de crescimento social e financeiro, para uma vida de conforto e abundância. Ter sempre cada vez mais, era seu desejo, seu objetivo, uma missão a ser cumprida, nem que para isso arriscasse a própria vida.
Em alguns momentos achei que Donato havia se aproximado de meu cunhado premeditadamente, como parte de um plano para conseguir subir e ter uma chance de um bom emprego e oportunidade de conhecer um outro universo, exatamente como havia acontecido. Procurava fugir daqueles tipos de pensamentos que o tornavam pequeno diante de meus olhos, preferia vê-lo como um homem cheio de qualidades, como na época em que nos conhecemos.
Creio que tudo piorara realmente, quando Donato decidira entrar na política dois anos antes daquela época, candidatando-se a deputado federal. Era como se quisesse crescer materialmente nas mais diversas áreas, para todos os lados, e o mundo fosse pequeno para ele. Então não era suficiente o poder somente dentro da RTN, mas também no mundo da política. Vi rapidamente nosso apartamento se tornar um grande comitê partidário, onde aconteciam repetitivas reuniões secretas para decidir os rumos da campanha e os caminhos para se conseguir votos. Apesar de não ser ainda naquele momento um nome conhecido, tudo fizera para vencer as eleições e conseguir se eleger deputado. Foram muitos conchavos, acordos milionários, negócios escusos, promessas e dívidas. Eu não sabia ao certo como, no entanto, tinha certeza que ele havia envolvido a RTN, sem que Leonardo Gondim soubesse, nos tais acordos políticos, com os organizadores da campanha, bem como com outros candidatos. O que me fazia acreditar que fora daí que Alberto Lucena havia começado a desconfiar de seu pupilo e descoberto provas contra o mesmo, dando início à constituição do dossiê do qual o próprio Donato Pessoa tanto falava com Luísa.
Ele dizia-se inocente, mas no fundo eu sabia que não era e que Alberto deveria ter descoberto algo de muito grave sobre ele, provavelmente dentro da RTN, que poderia tirar-lhe da disputa da vice-presidência da empresa, a qual tanto desejava, e até acabar com sua carreira política, impedindo sua candidatura ao senado, em 2006. Por isso ele queria tanto aqueles papéis, que nem sabia ao certo quais eram e do que se tratavam, afinal, Alberto tinha morrido há três meses, sem revelar onde estavam. Mas de uma coisa eu tinha certeza, tivera um encontro importante com Donato antes de sua morte, no qual lhe dissera da existência dos documentos e que logo estariam nas mãos de Leonardo Gondim e da polícia.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 8

Nunca pensei que Joel fosse capaz de fazer o que ele fez. Certa madrugada, ao chegar em casa do trabalho, fui surpreendida pelo pior, deparando-me com a ausência de meu marido e minha filha. Como se já imaginasse o que tinha acontecido, mesmo com um resquício de esperança de que fosse mentira, fui até o armário, constatando a falta de suas roupas.
Sim, ele tinha fugido e levado Clara consigo.
Não poderia ser, ele não poderia ter tido coragem! Mas eu estava segura que sim, embora rezasse para que alguém me dissesse que aquilo não passava de um pesadelo. Passei a noite acordada, chorando, desesperada, tomando chá e água com açúcar preparada por Raquel e Charles. Havíamos tentado ligar para a polícia, mas só poderia registrar queixa depois de quarenta e oito horas de desaparecimento. Segundo os policiais, Joel poderia ter saído para passear. Saído para passear com um bebê de um ano de idade, de madrugada?! Que absurdo, ser obrigada a ouvir aquilo sabendo que minha filha estava correndo perigo.
Procurava não tentar imaginar o que havia acontecido. Só rezava silenciosamente para que meu marido desistisse e não entregasse nossa filha.
E tudo por causa de Guel. Sim, era ele o responsável por aquele transtorno e talvez tivesse alguma pista do paradeiro de Joel e minha filha. Fomos então, Charles e eu, já perto do dia amanhecer, no bar onde meu cunhado trabalhava. Raquel sabia o endereço. Chegando lá, só conseguimos falar com um homem chamado Nacélio, dono do estabelecimento. Descobrindo que Guel já não trabalhava mais para ele. Pelo menos fora esta a única informação que conseguimos arrancar daquele homem. O que não nos convenceu. Poderia o tal Nacélio estar mentindo. Talvez até fosse cúmplice daquele pilantra, parceiros da mesma quadrilha, juntamente com o outro, o Ronie.
Logo que voltei para casa, soube por Raquel que estavam perseguindo um carro na estrada de Aquiraz que trazia Joel de volta a Fortaleza e, provavelmente, juntamente com integrantes da quadrilha, talvez Guel. A esperança reacendia em meu peito, por um instante tive a certeza que teria minha filha de volta. Poucas horas depois, soubemos da notícia que o carro capotara e explodira, matando todos os passageiros.
Era uma dor que me consumia a alma. Passava muitas cenas em minha cabeça, da presença de minha filha ali naquela casa, tão pequena, tão angelical. Nunca pensei que passaria por uma dor daquelas, era como se arrancassem um pedaço de mim. Contudo, logo ficamos sabendo que não fora encontrado o corpo de nenhuma criança. No decorrer do dia, Raquel, com muita dor, foi ao IML fazer o reconhecimento de corpo e certificou-se que no carro estava apenas Joel, de nossa família, nenhum dos outros três corpos era de Guel, como pensávamos.
Acontecem coisas em nossas vidas, que de fato não sabemos explicar, aquela era uma dessas. Não achava explicação para meu sofrimento. Em alguns instantes cheguei a questionar Deus, por me fazer passar por aquilo. Por que tantas mães perdem seus filhos e vivem com seus corações dilacerados, esperando um dia reencontrá-los e muitas nunca o fazem? Por quê? Não havia resposta para aquilo. Estava sem minha filha, não sabia de seu paradeiro, se estava bem ou não, se passava fome ou cede, se estava bem cuidada. Aquela dúvida, falta de notícias acabava comigo aos poucos. Era como se eu morresse dia após dia.
Ficara muito abatida durante a semana seguinte daquela tragédia. Charles me permitira ficar em casa, para que pudesse me recuperar e diariamente me visitava, trazendo a mim palavras de conforto. No entanto, nada me animava ou me fazia ficar de pé. O que eu conseguia mesmo era alimentar um ódio por Guel, por tudo o que ele fizera. Tudo poderia estar bem, se não fosse por ele. Por um momento achei que pudesse ter sido vingança. Mas não tinha fundamento, afinal que motivos teria para isso? Não, certamente o que o motivara fora mesmo sua ambição. E depois de tudo, ainda ficara com todo o tal dinheiro do pagamento e eu, aos trinta anos de idade, viúva, sem minha filha. Era estranho também pensar que não teria mais Joel em minha vida, mesmo que não o amasse como marido, tinha-lhe um amor como pessoa, como amigo que sempre fora. Havia sido ele, de seu jeito, meio que não estando nem aí para nada, que me dera todo apoio e amizade na época do sumiço do irmão. Embora eu soubesse que sempre fora apaixonado por mim e que estava ali do meu lado, tentando me conquistar, era bom ter sua presença naquele momento. Claro que sentiria muito a sua falta. De qualquer forma, era triste saber de sua morte. Joel Serrado morrera jovem ainda, aos trinta e sete anos, vítima de seu próprio desespero, do equívoco de pensar ser o dinheiro o responsável por sua felicidade. Perdera a filha, a mim, a toda a família, perdera a própria vida por desejar ter uma vida melhor financeiramente, e para isso, escolher um caminho de mentira e traição.
Encontrar aquele canalha era a única chance de reencontrar minha filha. Eu precisava ter forças para procurá-lo. Ele teria de devolver a Clara, pelo menos dar alguma pista de seu paradeiro. Reuni então minhas últimas energias e parti a sua procura. Vasculhava todas as pistas, indícios, pessoas que haviam estado com ele, seus conhecidos do bar onde trabalhava, o tal Ronie, que negara participação no caso e afirmava não saber de Guel. Mas eu estava disposta a encontrá-lo, mais até que a polícia. E o encontrei. Por acaso, na Praça do Ferreira, no Centro da cidade, olhando uma banca de revistas. Corri, desesperadamente, para não perdê-lo de vista, passando por entre as pessoas, em praça lotada, até chegar ao canalha.
- Você vai ter que me contar tudo, seu canalha, tudo, onde está minha filha!
Agarrei-o pelo colarinho, segurando-o com toda a força que eu tinha. Parecia até que eu conseguiria impedir que saísse dali. E no momento em que se soltara para fugir, eu me vi gritando pela polícia, armando um escândalo em plena praça. Nessas horas, o instinto materno fala mais alto. No entanto, de nada adiantou todo o trabalho que tive para encontrá-lo, pois a polícia acabara por liberá-lo, por falta de provas.
Sentia-me impotente diante daquela situação. Eu tinha certeza do envolvimento de Guel Serrado no desaparecimento de minha filha, bem como de sua participação na morte do irmão e nada podia fazer para impedir que aquele bandido ficasse em liberdade. A última coisa que me lembro foi o que lhe disse dentro da delegacia, quando fora solto.
“Passe o tempo que passar, aconteça o que acontecer, você vai pagar por tudo o que fez, Guel. Você não vai ficar impune, não vai! E pode escrever o que eu estou te dizendo. Eu vou encontrar minha filha, nem que seja a última coisa que eu faça nessa vida!”
E de fato eu não descansaria enquanto não encontrasse a minha filha e colocasse Guel Serrado atrás das grades. Então tratei de ficar logo de pé e retornar ao trabalho. Parecia ironia do destino, justo quando conseguira sucesso em minha vida profissional, estava passando por tudo aquilo, como se não me fosse permitida a felicidade completa.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 9

Logo na primeira noite de meu retorno, voltei a ser abordada por Donato Pessoa, desta vez, acompanhado, segundo as meninas da boate, por sua secretária Luísa. Devia ser um grande negócio, digo melhor, um grande golpe aquele para o qual estava sendo convidada a participar. Mas o que me surpreendera mesmo, era já ser de seu conhecimento tudo o que havia me acontecido naquelas últimas semanas. Daquela vez, a proposta fora reformulada, além de pagar todas as minhas dívidas, cerca de sete mil reais, de imediato e mais treze mil no cumprimento do plano, ele me prometera encontrar minha filha, dizendo que era um homem de muita influência e que seria fácil localizar seu paradeiro.
O que realmente Deus estava querendo de mim? Fiquei me perguntando durante dias consecutivos, em meio a muitas ligações do deputado Donato Pessoa e sua secretária. Ele parecia ter razão quando falava que me devolveria minha filha caso eu o ajudasse em seu plano. Falava com tanta firmeza, que até parecia saber onde ela estava.
Aquilo me atormentava permanentemente, como se esperasse uma resposta dos Céus. Pedia até que Deus me respondesse através de algum sinal. Queria confiar na justiça, na possibilidade da polícia descobrir onde estava minha filha, mas no fundo, não acreditava. Sabia de muitas histórias de mães que perdiam seus filhos e nunca mais os encontrava e, de repente, eu estava ali diante da real possibilidade de encontrá-la.
Seria aquele o sinal que Deus estava querendo me enviar? L
Lembrava de papai me dizendo que os fins não justificam os meios.
Mas será que esta crença se aplica no caso de uma mãe desesperada a procura de sua filha de um ano desaparecida?
Juro que queria ouvir uma resposta de alguém, mas nem Raquel, nem Charles se permitiram emitir nenhuma opinião. Raquel dizia que na decisão que eu tomasse, estaria ao meu lado, como sempre.
Estava eu sofrendo com tudo aquilo, e ainda mais diante da possibilidade de enganar alguém, de ir contra o que eu acreditava, de ferir todos os meus princípios éticos. Queria muito acreditar em Deus e não ceder àquela proposta tentadora. Mas quando pensava em minha filha e em como ela estaria naquele momento, com quem estaria, sentia-me fraca, pequena, um verme!
E não seria então aquele o sinal que eu tanta clamara?
Aceitei então a proposta. Assumiria a identidade de Mirela.

CELINA GONDIM
Capítulo 10

Parecia ter acabado de amanhecer. Os raios de sol passavam pela cortina da janela de meu quarto, entreaberta, e iluminavam minha cama, chegando a focar parte de meu rosto. Acordei pela calor em minha face. Mal podia abrir meus olhos, devido à luminosidade. Pensei em puxar o lençol e me cobrir, para evitar tamanha claridade tão cedo, sem mal acordar. Fiz um esforço gigantesco para realizar um gesto tão simples, no entanto, um gesto que não podia mais ser feito por mim, e por um segundo, havia me esquecido.
Há dois anos eu não podia mais desenvolver as coisas mais corriqueiras, o que era básico para a vida de qualquer pessoa em seu dia-a-dia, como proteger o próprio rosto para não despertar de uma forma brusca. Estava condenada a não mais sentir o calor de minha própria mão em minha cabeça. Movimentos que para qualquer ser humano seriam normais e bobos, para mim eram sinônimos de privação, de não realização, de fracasso. E mais uma vez tive vontade de perguntar a Deus por que, mas tão logo me viera aquele desejo, passou. A verdade era que eu já sabia a resposta. Não necessitava de nenhuma explicação mais aprofundada para descobrir os motivos pelos quais eu estava inutilizada.
Alguns minutos e foi o tempo que vi a porta de meu quarto se abrindo. Com passos leves e muito cuidado, Dulce entrou como que para se certificar se eu ainda estava dormindo ou não. Era daquele modo que fazia todas as manhãs. Direcionava-se imediatamente à janela, tratando de fechar a cortina, para não deixar o sol atrapalhar o meu sono. Entretanto, eu sempre já havia acordado, ela nunca conseguia chegar antes do dia clarear. Mesmo assim, percebia seu zelo, seu carinho e dedicação pelo meu bem estar.
Diariamente vinha com a mesma história, questionando-me porque de eu dormir sempre com a janela aberta e não optar por ar condicionado. E eu sempre tendo que dar a mesma satisfação.
- Dulce, você sabe que tenho problema de renite alérgica e acabo piorando quando durmo com o aparelho de ar condicionado ligado.
- Que nada, acabaria acostumando. Alergia... Não sei não, viu?
Parecia uma reza matinal, sempre o mesmo texto. Chegava a rir muitas vezes. Não sabia se ela falava sério ou brincava. Mas acabava compactuando com o drama diário dos raios de sol invadindo o meu quarto pela janela que deixava todas as noites aberta para sentir o frescor das Dunas preenchendo o ambiente. O vento que sentia e via jogar as cortinas de um lado para o outro durante a noite, trazia consigo a energia da liberdade, uma experiência que não podia vivenciar.
E então, Dulce me ajudava a sair da cama e passar para a cadeira de rodas, que já fazia parte da decoração de meu quarto, sempre ali, do lado de meu leito. Mas era exatamente quando ganhava um pouco mais de mobilidade e sentia-me menos dependente, por ser uma cadeira motorizada. Mesmo assim, todo o meu asseio acontecia com a ajuda de Dulce, minha fiel enfermeira, que para mim, não era mais tão somente uma profissional contratada para cuidar de mim e garantir diariamente os exaustivos exercícios fisioterápicos, mas uma companhia, cúmplice daquele estilo de vida que tanto odiava e que era obrigada a aceitar. Nos últimos dois anos, havia se transformado numa amiga, em meu anjo da guarda. Chegava a pensar em certos momentos que éramos uma só pessoa, afinal eu não podia fazer praticamente nada sem sua ajuda cuidadosa e permanentemente disponível, exceto quando me dava conta de que tinha a sua vida, seus anseios, suas preocupações, suas aventuras e que eu não fazia parte desse mundo, como ela do meu.
A vivacidade de Dulce era de chamar a atenção, sempre muito ativa, esperta, disposta a experimentar toda e qualquer situação nova. Achava-a corajosa. E sua energia positiva me lembrava a vida que eu não mais podia provar. A impressão que eu tinha era que sua presença alegre, tentando me colocar para cima de qualquer modo, deixava-me ainda mais deprimida. Afinal, era uma mulher livre para viver sua vida da forma que quisesse e onde quisesse, na companhia de quem escolhesse. Quanto a mim, nada poderia escolher, meu próprio destino já havia feito a escolha por mim. E eu estava presa numa cadeira de rodas, enquanto Dulce, assim como todos à minha volta, totalmente independente, com um milhão de opções acerca de todas as coisas de sua vida.
Em alguns momentos sentia-me egoísta de pensar daquela forma, já que se tratava da pessoa a qual era mais que minha enfermeira, era uma verdadeira companheira, quem mais estava comigo, nos últimos dois anos, desde o acidente. No entanto, achava-me no direito de sentir o que eu quisesse, até porque era a única coisa que me restava na vida – sentir. Então aproveitaria com toda intensidade. Eu não poderia ser má por pensar daquela forma, estava coberta de razões para cobrar de Deus. Por que Dulce era melhor que eu. Todos nós pecamos, assim todos deveriam ser castigados, estar numa cadeira de rodas, sem o direito de fazer sua própria higiene pessoal sem a ajuda de outro alguém.
Freqüentemente, Dulce tentava me convencer de que ainda me restava beleza, procurando ressaltar traços que dizia ser muito bonitos. De fato, fui uma mulher muito bonita antes daquele acidente. Não tinha os olhos azuis de papai, mas havia puxado a beleza de mamãe, morena, não muito alta, cabelos castanhos bem lisos. Desprezava a figura que via naquele instante diante do espelho, sem conseguir enxergar mais que uma imagem bizarra, de uma mulher, com seus nervos repuxados, forçando-a ficar permanentemente cabisbaixa, pendendo diagonalmente para a esquerda, sem o domínio sequer de seus braços, movimentando-os esporadicamente ao jogá-los com a força que ainda lhe restava nas mãos, seus únicos membros que ainda lhe obedeciam. Diferente do que Dulce pensava, não concordava que me restasse alguma beleza. Minha fala era também dificultada pela paralisia em parte dos nervos de minha boca.

Passara aqueles últimos dois anos de minha vida, lamentando o terrível acidente que tirara de mim a liberdade de meus movimentos. As imagens daquela noite infeliz nunca mais me saíram da cabeça, fazendo-me ré de minha própria vida, bem como da perda de Vinícius. Nós nos amávamos e estávamos casados há quatro anos, quando morreu. E tudo por minha culpa. A grande verdade era que eu preferia ter morrido em seu lugar, teria sido melhor para mim e para toda a minha família, todas as pessoas que me amavam e sofriam com minha doença. O mundo ficaria melhor sem a “viciada” Celina Gondim, como me chamavam as más línguas de Fortaleza.

CELINA GONDIM
Capítulo 11

Conheci o primeiro cigarro de maconha na porta da escola, quando tinha apenas treze anos. Toda a nossa turma estava experimentando e eu não podia ficar de fora. Com o passar do tempo, começamos a cheirar cocaína, depois aplicações de drogas na veia, comprimidos. Aquilo transformou-se em meu único refúgio, ao contrário do inferno que vivia dentro de minha casa, por conta da difícil convivência com minha irmã mais velha, depois da morte de minha mãe. Toda a turma me idolatrava, devido o meu dinheiro. Era rica e podia comprar drogas para mim e para todos que comigo andavam, até ser descoberto por minha família. Entretanto, já era tarde demais. Faziam mais de três anos que estava no mundo das drogas e para mim, não poderia mais viver sem aquilo, sem cheirar ou injetar em meu corpo. Em estado alterado de consciência, sentia toda a paz que tanto buscava em casa.
Foram inúmeras as vezes em que eu havia sido internada em clínicas para recuperação de dependentes químicos. Conseguia ficar longe até um tempo, mas logo estava de volta, bastava reencontrar alguém da velha turma. Até que meu pai decidiu me mandar para fora do país. Morei alguns anos na Inglaterra, na casa de Pedro, filho de Alberto Lucena, parceiro de trabalho e grande amigo de meu pai. Tenho o registro em minha mente de que fora o mais longo período que eu havia conseguido ficar afastada das drogas. No início foi um pouco difícil a convivência com Vanessa, a esposa de Pedro, devido os ciúmes que sentia do marido, mas com o tempo ela foi percebendo que nós já éramos amigos há muito tempo, desde crianças e que eu não representava nenhuma ameaça a seu casamento.
Fora uma fase muito importante na minha vida. Pedro acabara me convencendo a lançar mão de meu potencial e escrever um livro. Desde criança, sonhava com muitas histórias que eu mesma criava, nas quais eu me escondia e procurava me proteger do medo que sentia de minha irmã, que nunca gostara de mim. Decidi então a escrever meu primeiro romance, que tinha como personagem principal uma jovem dependente química. “Entre o Amor e as Drogas” – foi o título de meu primeiro livro. Nascia a escritora Celina Gondim.
Voltando ao Brasil, fiz de tudo para publicá-lo. Foi então que conheci Vinícius, diretor da editora que publicaria meu romance. Vivemos um conto de fadas, apaixonando-nos loucamente um pelo outro, até nos casarmos. Contudo, nossa felicidade fora interrompida pelo mesmo vilão que fizera de minha vida uma bomba relógio, durante anos de minha juventude.
Ele fora a pessoa mais paciente, mais carinhosa, mais cuidadosa que eu já havia conhecido. Vinícius tudo fizera por mim e pela minha cura. Não me via como uma irresponsável, como a maior parte das pessoas, mas me convencera realmente de que eu era doente e precisava de ajuda. Pena que cheguei a esta conclusão tarde demais, depois de sua morte.
Fora eu a grande culpada da morte do homem que amava. Estava totalmente drogada e por isso tivemos uma forte discussão, resultando na decisão de Vinícius de se separar de mim. Lembro-me que fiquei ainda mais transtornada, tomada de ódio, talvez de mim mesma. Pensava em tirar minha vida e acabar de uma vez por todas com aquela angústia e preocupação na vida de todos que me cercavam. Então peguei o carro, na intenção de pôr um ponto final àquele sofrimento. Não lembro muito bem de como tudo aconteceu, mas ainda consigo sentir o alívio que tomou conta de meu coração, no instante em que estava naquele volante, usufruindo do máximo de velocidade que meu carro podia me oferecer. Depois que acordei do coma, no hospital, fiquei sabendo que ele pegara seu carro e fora atrás de mim, tentando me impedir de fazer o que eu tinha dito que faria. Quando perdi o controle de minha direção, levando meu carro a capotar por várias vezes, Vinícius fez uma manobra perigosa para desviar-se de mim, caindo num barranco, o que fez seu carro explodir.
Pior do que não conseguir sentir mais meus braços e minhas pernas, era saber que não o teria mais. Chorei durante dias seguidos, sem conseguir parar. E por muito tempo, não pude pensar no que realmente tinha ocorrido com meu corpo. O sofrimento de perder o homem que amava não me permitia tomar conta das seqüelas que aquele acidente me deixara. Passei quase seis meses sem ouvir minha própria fala. Até que, aos poucos, fui retornando à vida, embora que permanecesse morta por dentro.
Passados dois anos, estava finalmente tomando consciência de minha real situação. Aos trinta e dois anos, era tetraplégica. Dependia de outras pessoas para fazer a maior parte das coisas que me mantinham viva. Aquilo era terrível. Sonhava de fato em voltar a andar, sentir meu corpo, ser dona de mim mesma. Por isso, invejava as pessoas que não estavam na mesma situação em que eu me encontrava. Definitivamente, não compreendia, nem aceitava tamanho castigo.
As lembranças daquela noite não saiam de minha cabeça, nem que eu quisesse, não poderia esquecer, minha irmã Maria Eugênia não permitiria. Não perdia a oportunidade de me culpar por tudo e lembrar-me permanentemente de minha situação física – a sina da cadeira de rodas.
Maria Eugênia, filha do primeiro casamento de papai, nunca aceitou seu envolvimento com mais ninguém, depois da morte de sua mãe. Parecia ter sido uma criança difícil, de gênio forte e, passara a maior parte de sua vida, controlando de alguma forma o destino de papai. No entanto, depois de muitos anos de viuvez, ele acabara por conhecer mamãe, que era publicitária e fora contratada pela WM, agência de publicidade da qual era sócio. Pela primeira vez, Maria Eugênia não conseguira evitar que ele se relacionasse com alguém, resultando em meu nascimento. E por isso ela me odiava, bem como a idéia de ter uma irmã bastarda, causando a separação de papai e mamãe, que temia que me acontecesse algo de mal. Sempre ouvi falar que Maria Eugênia era capaz de tudo para realizar as suas vontades e que considerava papai como propriedade sua.
Na verdade, não guardo nenhuma lembrança do casamento de meus pais. Era ainda muito pequena quando tiveram que se separar. Guardo sim o sabor da ansiedade, do desejo incontrolável de desfrutar um pouco mais da presença maravilhosa de papai, assim como mamãe também sentia. Sonhava em poder brincar, ouvir histórias à noite, antes de dormir, contadas por ele, ir ao parque ou à praia, ou ainda ser levada à escola. Fazer coisas que comumente as crianças fazem acompanhadas de seus pais.  E tudo por causa de minha irmã e seus ciúmes. Então eu perguntava a Deus por que ela teria o direito de desfrutar de nosso pai e eu não. E mais, por que ele preferia ficar em sua presença? Mamãe afirmava ser complicado de responder. Deixava claro apenas não ser uma questão de preferência, mas de necessidade. Embora eu soubesse que ela mesma pensava de forma parecida. Presenciei, sem que me vissem, algumas discussões dos dois, onde ela lhe cobrava uma postura mais firme em relação à filha.
Em meu aniversário de sete anos, atrasamos o início da festa em quase três horas a espera de papai, que só apareceu no dia seguinte, alegando ter tido uma reunião importante. Lembro-me de passar o restante da comemoração de cara fechada, com vontade de chorar, como se não houvesse sentido em nada daquilo. E assim, foram muitos momentos, como natais, semanas santas, e diversos outros aniversários. Quando ele aparecia, era uma alegria só, quando não, lançava-me num mundo infinito de tristezas. E logo imaginava que ele certamente estaria com sua filha verdadeira. Sim, era como se Maria Eugênia fosse sua filha de verdade, eu não.
Vida infeliz a minha! A única coisa que me traria mais felicidade seria um dia poder morar com meu pai, desfrutar mais de seu carinho, da doçura de sua fala, de seu mundo, de sua vida. E aquilo eu começava a achar impossível.

CELINA GONDIM
Capítulo 12

Eu devia ter uns nove anos, quando comecei a experimentar um novo sentimento em relação à minha vida. Passeando com mamãe certa vez, pela feirinha da Beira-Mar, nos deparamos com um vendedor ambulante repleto de miniaturas de casas de madeira, de todos os tipos, cores e tamanhos, presas à sua roupa, como uma grande alegoria. E ele me percebeu encantada, fitando a diversidade de formas em seu corpo.
- Gostou das casas, princesa?
Nunca ninguém havia me chamando de princesa. Bem que eu gostaria de ser uma. Se eu fosse uma princesa, ordenaria que meu pai viesse morar comigo. Ele estava enganado. Não era nenhuma princesa. Dei as costas rapidamente, voltando-se a minha mãe, que olhava uns artigos, na barraca ao lado.
- Quer uma, princesa?
Ele insistia com aquela história de princesa. Uma o quê? E quando eu me voltei a ele, estava com uma das casas em sua mão estendida para mim. De tamanho médio, caberia em minhas duas mãos abertas. Achei linda a casinha. Na cor natural da madeira, meio amarelada. Reluzia o brilho do sol de final de tarde em seu telhado envernizado. De arquitetura simples, porta e janela na frente, por trás das três imagens. Eram três anjos fixados na madeira, como se guardassem aquela casa.
- Como?
- É pra você, princesa.
- Obrigada.
- Pode pegar.
Minha mãe me ensinara a não aceitar nada de estranhos. E por que ele iria querer me dar aquilo? Ele deveria vender, não dar.
- Não. Obrigada.
- Pode aceitar, filha.
Era a voz de mamãe consentindo. A única coisa que eu estranhava eram aquelas imagens pequenas. Eram bonitas. Mas por que estavam ali. Na verdade ele tinha de todos os tipos e com diversos outros enfeites e novidades. Para todos os gostos. E por que logo aquela para mim? Poderia ele ter me oferecido a de gatinho na frente ou a dos pássaros. Mas não, ofereceu-me justamente a dos anjos. Parecia com coisa de gente grande. Certo que eu já era uma mocinha, como papai às vezes dizia, mas daí um presente daqueles, nada a ver comigo. Talvez ficasse ótima, aquela casinha, guardada por aquelas três imagens, no altar de D. Efigênia, nossa vizinha, que adorava imagens e tinha várias em sua sala.
- São os três Arcanjos, princesa.
Lembro-me bem de sua explicação, afirmando tratar-se de São Miguel, o do meio, em roupa de soldado e espada em punho, pisando na cabeça do demônio, São Gabriel, do lado esquerdo, erguendo um ramo, e São Rafael, à direita, com seu cajado.
- Cada um tem um poder, mas os três juntos, podem tudo.
“Podem tudo?” Será que eles podiam trazer meu pai para morar comigo? Desejei perguntar ao tal homem, mas não tive coragem, pela presença de mamãe. E ele, pareceu ter adivinhado meus pensamentos. 
- Podem tudo sim. Basta fazer o pedido. Você escreve seus pedidos num pedacinho de papel e coloca dentro da casa.
Falou apontando para a fenda, como o furo de um cofre, no telhado da casinha.
- E então, este desejo se tornará realidade. Os anjos farão com que aconteça.
- É mesmo?
Então não poderia ser para o altar de D. Efigênia. Peguei a casinha imediatamente do vendedor, com um sorriso largo em meu rosto. Se os três arcanjos juntos tinham realmente o poder que ele dizia ter, então rapidamente meu pai estaria morando conosco.
Nem pude esperar chegar em casa para fazer o primeiro pedido. Ali mesmo na rua, tratei de escrever o primeiro pedido e depositar na casa dos anjos. Senti um frio em meu estômago ao ver aquele pedaço de papel sumir pela fenda do telhado de meu presente. Meu primeiro desejo, meu primeiro sonho a se tornar realidade.
A partir de então, muitos outros pedacinhos de papel, carregando mais desejos passaram a ser depositados ali, na casa dos anjos. O interessante era que logo após eu deixar meus sonhos aos cuidados dos três arcanjos, experimentava um sentimento de pura realização, como se já começasse a viver o que fora pedido. Na grande maioria das vezes, os pedidos nunca eram atendidos, por se tratarem de coisas absurdas, mas começava a imaginá-los realizados. O ritual era apenas escrever o pedido, colocar na casa pela pequena fenda em seu telhado, fechar os olhos e imaginar acontecendo. Simples. Uma sensação de bem-estar e alegria imensuráveis. O que era tristeza, logo se transformava em felicidade. Naquela pequena casa, residia todo o meu poder, a minha força contra um mundo injusto e cruel. A casa dos anjos me fazia bem e me deixava feliz, embora tudo não passasse de uma grande fantasia. E ninguém sabia, não precisavam saber. Minha alegria era de se notar. Bastava acontecer qualquer coisa que eu não gostasse ou concordasse, corria para meu quarto e me prostrava diante da casa dos anjos, em meu criado mudo e ali, fazia meu pedido, vivendo antecipadamente a sua realização. E eu era feliz.
Dentro de alguns meses, os pedidos não cabiam mais. A casa estava lotada de sonhos, repleta de desejos. Para mim, se eu fizesse uma limpeza, tudo poderia estar perdido, e eu correria o risco de ser infeliz novamente. Decidi então nunca o fazer. Os rituais passaram apenas a ser pedidos mentais diante da casa dos anjos, como uma oração, no altar de uma igreja. E eu provava da mesma alegria, do mesmo sentimento de realização de antes. Os anjos não menosprezariam meus pedidos somente por não estarem registrados em papeletas. Era como se eu já conseguisse uma comunicação direta.
Depois do primeiro ano, mamãe mostrou-se preocupada. Eu havia abandonado todos os meus brinquedos. Minha única diversão era a casa dos anjos. Com aquela fonte de desejos eu me preenchia por completo. Nada me faltava.
Fiquei sabendo com o tempo que São Miguel, figura da casa que eu mais gostava, era o anjo da proteção e, segundo a Bíblia, o chefe da milícia celeste, vencendo satanás. Seu nome – aquele que se confunde com Deus. Gabriel, o anjo da anunciação, responsável pelas boas novas, em várias passagens bíblicas. E Rafael, o anjo da cura. Como o vendedor da casa havia dito, cada um deles com um poder diferente.  O que mais me importava então era os três juntos, fazendo-me realizar todos os meus desejos. A casa dos anjos me proporcionava todo o poder de que eu precisa para ser feliz. Com o passar do tempo, não me importava mais amigos, brincadeiras, nem mesmo a falta permanente de papai, apenas a minha casa dos anjos, que me dava tudo isso e muito mais. Com a casa, eu vivia no mundo que eu quisesse, bastava pedir aos anjos, fechar os olhos e desfrutar da sensação de receber a dádiva.
Depois da casa dos anjos, creio que papai tenha ficado mais aliviado, sem tantas cobranças de minha parte e de mamãe. Passamos a nos ver ainda menos. Encontrava-se sempre ocupado com suas reuniões de negócios.  
Passei minha infância, deste modo, longe do afeto de papai, de sua presença, até a morte de mamãe, aos meus doze anos. Lembro-me de D. Efigênia, sem saber como me falar. E eu já sabia. Pensar na morte de mamãe, deixava-me sem ar, sem chão, sem referencial nenhum. Corri para meu quarto, sentei-me no chão, escorando-me em minha cama e tomei a minha fonte de desejos, a casa dos anjos em minha mãos.
“Que minha mãe volte a viver!”
Era tudo o que eu desejava naquele momento. E os anjos tinham que fazer acontecer. Na verdade eles quase nunca realizaram realmente o que eu havia pedido. E de todos os desejos tinha depositado ali em todos aqueles anos, ver minha mãe com vida novamente era o que mais queria, mais até que ter papai morando conosco. Miguel, Gabriel e Rafael deviam aquilo a mim! Foram anos de crença. A única coisa que eu consegui sentir foi uma dor em meu peito, um entalo, uma ânsia de choro e vômito ao mesmo tempo. E mais um desejo, o de morte. Preferia estar morta que sem minha mãezinha. Pela primeira vez não conseguia sentir alegria ao realizar um pedido aos anjos. E vi como havia sido estúpida, por três anos. Eu já tinha doze anos e vivia um mundo imaginário, proporcionado por uma casa de madeira idiota, com três imagens ridículas na frente. Não tinha mais amigos, pais, mais ninguém. Perdi os últimos três anos de minha mãe vivendo a fantasia de um mundo ideal.
Com todo o ódio de três anos perdidos de minha vida, joguei a casa de madeira no canto do quarto, a fim de destruí-la por completo. E no entorno, ficou apenas pedaços dos anjos, do telhado de madeira fina e milhares de pedaços de papeis carregando os sonhos de uma época, não muito diferentes dos últimos desejos firmados horas antes daquele terremoto. Fora o fim da casa dos anjos e daquele mundo de felicidade.
Fui então finalmente morar com papai na mansão nas Dunas, de onde só ouvia falar. Inicialmente foi até estranho me deparar com tanto espaço, jardins, quadra de tênis, uma piscina gigantesca, sala de ginástica, além da estrutura moderna e imensa que definiam a casa, com suas salas de estar, biblioteca, sala de som e vídeo e os inúmeros quartos no andar superior. Pareciam terem mudado para lá, muito depois de meu nascimento, depois de morarem anos em uma cobertura, na Aldeota, desde o primeiro casamento de papai.
Passei algum tempo para me acostumar com o luxo, o requinte, as normas de etiqueta, que tão bem definiam o perfil de minha irmã. Papai sempre dava muitas recepções a pessoas da alta sociedade fortalezense, que estavam presentes freqüentemente em nossa casa.
Justamente no momento em que achava que seria a época mais feliz de minha vida, pela proximidade com papai, apesar da falta que mamãe me fazia, foi quando minha rotina transformou-se num inferno. Sofria humilhações permanentes por parte de Maria Eugênia, que nunca aceitara a minha existência, nem muito menos, minha presença em seu território, deixando claro que me odiava e que desejava me ver longe de seu mundo, de sua família. Na verdade, eu nunca consegui entender seus ciúmes e o ódio que alimentava a meu respeito.
Naquela difícil convivência pude comprovar o que mamãe dizia acerca de Maria Eugênia, quanto ao seu egocentrismo e a mania de achar que o mundo estava a seus pés, pronto para lhe servir, assim como papai. Ele nunca tivera consciência de nossa relação. Ela procurava disfarçar seu tratamento para comigo, em sua presença, como se quisesse mostrar-lhe ser uma pessoa amável e garantir o seu respeito. Quanto a mim, nunca tive coragem de lhe falar nada, para não jogá-lo contra a própria filha, assim como ela dizia ser a minha intenção dentro daquela casa.
A casa dos anjos não mais existia, porém a minha imaginação sim. Em diversos momentos recorri a Miguel, Gabriel e Rafael para me fazerem sentir novamente um pouco de felicidade e realização. Maria Eugênia firmara-se como meu maior problema. A verdade é que nunca tive coragem de enfrentar aquela mulher, por isso, caí no mundo das drogas, como uma forma de entrar em contato com um universo onde eu fosse aceita e respeitada por todos, um novo mundo que me proporcionasse felicidade. Foi o fim da presença dos anjos naquele momento de minha vida, e o início de meu calvário.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 13

Depois de aceitar a proposta para assumir a identidade de Mirela, passamos dias estudando a minha preparação para iniciarmos o tal plano. Pensei em desistir por várias vezes, mas no momento que lembrava de Clara, reencontrava forças para continuar. Apesar de ir me assustando cada vez mais ao conhecer as idéias de Donato Pessoa. A imagem daquele homem, frio e calculista definitivamente me amedrontava. Era como se eu estivesse inserida num roteiro de cinema americano. Ele parecia ter muita intimidade com Luísa, sua secretária, mas tentavam não demonstrar, como se quisessem aparentar uma relação de formalidade, puramente profissional.
Um apartamento no Dionísio Torres, pertinho da Pontes Vieira era o local de encontro usado por Donato Pessoa, Luísa e eu, que seria também supostamente a moradia da mulher que eu encarnaria, chamada Mirela. Não precisava saber muito sobre seu passado, apenas que tinha sofrido um acidente de carro há quinze anos, que me fizera ficar em coma durante quatro anos e quando teria retornado, a idéia era de ter recebido ajuda de uma enfermeira no hospital, uma mulher sozinha, que cuidara de mim durante todo o tempo que eu estive no hospital. O principal era mostrar que eu havia perdido a memória após o suposto acidente, então não precisava me preocupar muito com o passado, a não ser os anos que Mirela teria passado se tratando dos traumas do acidente, fora daqui, em Belo Horizonte. E naquele momento, teria voltado à Fortaleza para resgatar sua memória. O homem com quem eu me envolveria para conseguir os tais documentos que Donato Pessoa tanto queria, chamava-se Pedro Lucena, era executivo, vice-presidente interino da RTN,o canal cearense, que se tornara um dos maiores do país, disputando audiência com as grandes emissoras do Brasil, a mesma empresa onde trabalhava aquele homem misterioso.
Finalmente estava conhecendo os motivos daquele plano. Donato Pessoa precisava de um suposto dossiê contra ele, que estava no poder de Pedro Lucena, pelo menos ele achava que poderia estar. O tal dossiê havia sido elaborado pelo pai de Pedro, Alberto Lucena, então vice-presidente da RTN, que morrera faziam três meses. Desde a morte do pai, o tal executivo voltara ao Brasil, pois morava há anos em Londres com a esposa e o filho, assumindo interinamente o cargo do pai dentro da empresa. Na verdade, eles não estavam certos de que ele estaria com o tal dossiê, mas pelo que eu havia entendido, o deputado não queria correr o risco. Com certeza eram coisas muito importantes que constavam nestes tais documentos, muita coisa de dentro da RTN, empresa da qual o deputado também era um dos diretores, e que almejava se tornar o vice-presidente.
Meu primeiro encontro com Pedro Lucena estava programado para acontecer no grupo de Biodança, do qual fazia parte. Luísa contara com desdém que ele era adepto de terapias alternativas, que era metido a zen e, segundo ela, um idiota frustrado, infeliz com seu casamento com Vanessa, com quem se casara por estar grávida, anos depois de chorar a morte da tal Mirela, seu grande amor. E era exatamente aquilo que me deixava arrepiada, eu me passar por uma mulher que havia morrido num acidente, justamente para mexer com os sentimentos de uma pessoa que já tinha sofrido a vida inteira pela perda de seu amor. E quando ele descobrisse que não era verdade, que eu não era Mirela, que eu me chamava Júlia e que nunca ouvira nem falar realmente daquela mulher? Pensava naquilo permanentemente antes de acontecer o tal encontro.
O grupo de Biodança funcionava num espaço na Rua José Vilar, entre Costa Barros e Santos Dumont, nas tardes de sábados, quinzenalmente. Na verdade, eu nunca ouvira antes falar daquela proposta, mas deveria ser muito boa, já que tinha a ver com dança. Pelo menos conheceria algo com o que me identificava.
Imaginava Pedro um cara como Donato Pessoa, fechado, sisudo, sem sorrir. Estava muito nervosa, com medo talvez daquele encontro. Seria um encontro com minha grande mentira. Na porta do espaço, ainda no carro de Luísa, pensara em desistir. Ainda haveria tempo de reparar a loucura que estava prestes a cometer. Mas Luísa me fizera lembrar de minha pequena, de como estaria e que eles já haviam contratado um detetive para encontrá-la. Então decidi sair daquele carro e fazer o que precisava ser feito. Depois, se tivesse oportunidade, pediria perdão, contaria ao tal Pedro Lucena o porquê de toda aquela farsa, mas só depois, quando estivesse com Clara novamente em meu colo.
Graças a Deus minha vítima não estava presente naquele início de sessão por algum motivo, que ninguém sabia explicar, ele não iria. Todos ficavam em roda, sentados ao chão, alguns deitados, bem à vontade, com roupas leves e pés descalços, falando sobre coisas que haviam vivido no salão na sessão anterior, como se sentiam. Senti-me bastante acolhida por todos do grupo, desde o momento em que chegara e fora recebido pelo facilitador do grupo, que me explicou ser a Biodança uma proposta de meditação dançante e não uma terapia como Luísa havia me falado.
A sessão era dividida em dois momentos: a verbalização, no qual as pessoas falavam de si, de suas sensações, de sua vida, se quisessem; e o outro que era a dança, que seria proposta pelo facilitador, a partir de músicas e exercícios orientados pelo que ele chamava de consigna, um convite feito pelo facilitador entre um exercício e outro. Seriam vivências, segundo ele, nas quais poderíamos entrar em contato com nossa identidade, expressando-a através do movimento, facilitado pela música e pela nossa emoção, momentos que poderiam ser feitos individualmente, juntamente com alguém ou em grupo. Eram umas quinze pessoas ali no salão. Pelo menos para alguma coisa serviria tudo aquilo, talvez até pudesse me ajudar a curar a dor a qual sentia.
Após o momento da verbalização, começamos a dança com um movimento em roda, vivendo a integração e acolhida coletiva, segundo a consigna do facilitador. Todos os exercícios que vieram depois, pareciam ser pensados para mim, era como se aquela sessão tivesse sido organizada toda para mim, tocava em pontos que mexiam em minhas feridas, as consignas falavam de coragem, fé, caminhada de cabeça erguida. Um dos convites era para dançarmos individualmente, num movimento que nos fizesse ser a própria música. Senti-me em profunda conexão com aquele convite, era como se só existisse a mim no salão, eu era a concretização da música em movimento.
Meu rosto estava banhado em lágrimas, quando vi um homem parado, fora do salão, olhando para mim. Tinha um jeito meio assustado, surpreso, talvez perplexo, acompanhando meus movimentos, como se estivesse paralisado ou encantado comigo. Continuei minha dança, mas acabei assustada, ao percebê-lo ali diante de mim, fitando-me insistentemente, com um aspecto interrogativo, como se me conhecesse. Vi o facilitador do grupo indo a seu encontro e, num gesto de cuidado, fazê-lo sentar. Era um homem muito bonito, forte, alto, moreno claro, de rosto afilado e olhar profundo, com grossas sobrancelhas, um ar de maturidade, embora, fisicamente, aparentasse poucos mais de trinta anos. Ao final da música, ele já havia desaparecido dali, cheguei a procurá-lo com meu olhar, tentando disfarçar, para que ninguém percebesse, mas não o encontrei. Passei o restante da sessão, lembrando daquela figura bonita, de olhar paralisado em minha direção. Ele parecia fragilizado e eu senti uma vontade intensa de lhe cuidar, de lhe dar colo.
No final da sessão o facilitador me dissera tratar-se de Pedro Lucena, que estava me esperando num restaurante a dois quarteirões dali e ele havia lhe prometido que me levaria lá. Parecia ter lhe contado, segundo ele, rapidamente que me achara muito parecida com uma namorada que morrera há muitos anos. Pedro ficara transtornado ao saber que meu nome era Mirela. Era como se o facilitador já tivesse entendido tudo e estava disposto a ajudar, intermediando o encontro. Meu Deus, o que eu estava fazendo? Estava brincando com os sentimentos de uma pessoa. Como eu podia fazer aquilo, como poderia ser tão vil? Pensei em desistir ali mesmo, não poderia continuar enganado pessoas que haviam me recebido tão bem, me acolhido com tanto amor e verdade. Mas, minha filha, o que seria dela? Eu precisava continuar, por ela. Eu tinha que ir.
Fora difícil e constrangedor aquele encontro. Só Deus e eu sabíamos o esforço que eu estava fazendo para levar aquela história adiante.
- Pedro. Pedro Lucena. – Apresentou-se ele, pouco desconcertado, sorridente, ansioso.
- Jú... Mirela. – Engasguei. Por pouco não me apresento como Júlia.
- Senta.
- Obrigado.
Estávamos constrangidos, sem jeito. Ele por acreditar ser eu a tal Mirela, uma pessoa a qual pensava ter morrido. De repente, descobria estar viva. E eu, enquanto protagonista de uma mentira.
- E então? – Falei, depois de certo silêncio e olhares interrogativos. – O facilitador me disse que você precisava muito falar comigo. Que talvez me conhecesse.
- Mirela... não sei como começar. Não pude conversar quase nada com o facilitador. Não tivemos tempo. Mas quando lhe disse que lembrava muito a Mirela a qual conheci e, morreu há muitos anos, ele me contou de seu acidente, no mesmo período, de sua falta de memória e que procurava suas raízes. É verdade?
Quase disse que não.
- Sim. – Respondi com dificuldade. - Comecei nova vida após esse acidente. Tudo novo, uma nova história. Acho que nasci de novo. E agora, quero descobrir tudo sobre meu passado.
- Não lembra de nada.
Não havia nada a ser lembrado.
- Algumas coisas.
- Meu rosto... eu não sou familiar?
Não, não era.
- Sinto algo... sinto uma coisa boa diante de você.
Isso não era mentira. Sentia-me bem por sua presença e mal com o que eu fazia. Mas tinha ele uma energia boa.
- Não consigo acreditar!
Olhava-me de um jeito interrogativo, ansioso e ao mesmo tempo feliz.
- Pedro, não sei se sou a pessoa que você conheceu.
Pensei em desistir.
- A gente pode analisar os fatos que você lembra, as datas. Sei lá, acho que deve haver uma forma.
- É, pode ser.
Contei-lhe, com dificuldade, a história ensinada pelo deputado. Meu nervosismo, a resistência em levar aquela mentira adiante, fazendo-me confundir em alguns momentos as datas, a seqüência dos fatos, não lhe chegavam como desconfianças. Pelo contrário. Ele compreendia enquanto dificuldade de entrar em contato com questões importantes de minha vida, da vida de Mirela.
E eu também fiquei ali horas, ouvindo aquele homem falar do que tinha vivido com a tal Mirela, de seu amor, do quanto tinha sofrido com sua morte e, de repente, descobria que tudo não passara de um engano, que ela não tinha morrido no acidente e que estava ali na frente da pessoa que fora seu grande amor e que nunca esquecera.
- Mirela, isso parece uma grande brincadeira do destino.
Brincadeira minha, do deputado Donato Pessoa.
- Eu também estou meio perturbada com tudo isso. Talvez a gente pudesse se encontrar em outro momento, num outro dia, pra conversar melhor.
- Não! – Agarrou minha mão como se me implorasse. – Por favor, não! É muito importante para mim. Foram muitos anos, pensando que você havia morrido, entende? Isso tudo é meio louco, mas... sei que é difícil pra você também. É muita coisa ao mesmo tempo. Mas se você for embora agora, acho que enquanto a gente não se encontrar novamente, eu vou enlouquecer.
- Entendo.
- Eu estou feliz demais, com muita dúvida, sem compreender quase nada, mas feliz. 
- Também me sinto assim.
Meu incômodo maior era estar ali, mentindo.
- Por isso queria que nós conversássemos mais. É... que nós pudéssemos tentar compreender melhor tudo o que aconteceu.
Ai, meu Deus, que dor eu sentia ouvindo tudo aquilo. Em alguns momentos via-me perdida em sua fala, fitando seu olhar apertado, que parecia de um garoto pedindo colo, com um quê de inocência e ao mesmo tempo maturidade, escondendo-se por trás do cabelo crescido que vez por outra era tocado pelos longos dedos, sendo jogado para trás de forma leve, no mesmo momento em que respirava fundo, como se tomasse tempo de sistematizar a fala seguinte. Sua aparência não tinha o peso do escritório, como eu imaginava. Talvez pela falta da gravata e paletó, típico de executivos como ele. Como estava preparado apenas a participar de uma sessão de Biodança, trajava simplesmente uma camiseta verde, com a figura de São Miguel Arcanjo na frente, uma calça branca bem folgada, de tecido fino, e uma sandália em couro marrom-escuro, deixando amostra seus dedos longos e unhas bem-feitas.
Quando eu conhecia alguém, gostava sempre de observar, não sei bem por quê, as mãos e os pés. Preferia mãos de dedos longos e pés que tivessem o dedo vizinho ao dedão em proeminência, como os de Pedro Lucena.
Coincidência ou não, quase todas as pessoas com quem já havia me relacionado, tinham um desenho de mãos e pés parecidos, da forma que eu gostava, bem como eram muito bem cuidados, a exemplo de Diego, meu primeiro namorado, aos quatorze anos, e Guel Serrado, minha última grande paixão. O que me fazia também lembrar uma vizinha nossa, quando moramos em São Paulo, papai e eu. D. Joaquina dizia que pessoas que tinham aquele dedo do pé mais longo que o dedão eram autoritárias, mandonas, detentoras de poder. Não sei se por ironia de meus desejos, aquilo passou a ser, louco e ludicamente, quase um critério para meus relacionamentos. Sendo motivo de piada para mim mesma e meus namorados, principalmente aqueles cujos pés e mãos não se encaixavam às minhas preferências. Aos demais, aprovados naquele critério esdrúxulo, pensava que poderia ser um sinal verde de entrega.
Deste modo, Pedro Lucena passara no crivo. Loucura! 
E por que lembrar daquelas tolices as quais só diziam respeito a mim, justo naquele momento? Minha aproximação daquele homem seria apenas momentânea, por necessidade, por Clara. Aquela brincadeira silenciosa, íntima e pessoal não cabia naquele instante. Talvez até como forma de fugir, não ouvir Pedro Lucena falando de sua vida, pensando ser eu seu grande amor do passado, uma mulher que já havia morrido.
Tive vontade de morrer, sumir e, num determinado momento, caí numa crise de choro, não suportei aquela situação, não poderia continuar. Dava para perceber que aquele homem não era igual ao deputado, como pensava anteriormente. Ele era sensível e tinha um bom coração. Com certeza Pedro Lucena era um bom homem e talvez fosse uma vítima daquele crápula. E quando o vi ali, fragilizado, cuidando de mim, preocupado ao me ter em prantos, tive vontade de sair correndo daquele restaurante. Ou poderia contar toda a verdade.
JÚLIA SERRADO
Capítulo 14

Pedro e eu acabamos indo para um barzinho, não muito longe de onde estávamos, na Rua Desembargador Leite Albuquerque, onde conversamos a noite inteira. Em alguns momentos esqueci que era Júlia Serrado e viajei no universo de Pedro. Era uma companhia muito agradável, uma pessoa leve, crente no ser humano, cuidadoso, gentil, extremamente educado, falava baixo, com tranqüilidade, além de uma beleza envolvente. E ao mesmo tempo, trazia uma firmeza em sua voz, uma energia de determinação, de homem maduro, de convicção e retidão em suas crenças. Parecia querer contar toda a sua vida naquela única noite, como se quisesse recuperar o tempo perdido. Até ri algumas vezes. Já eu, não tinha muito o que falar, a não ser a história, a qual havia aprendido com a orientação de Luísa e alguns toques do deputado. 
Pedro Lucena tinha trinta e quatro anos, morara dez em Londres, desde que havia se casado com Vanessa. Por incrível que parecesse, tinha se separado da mulher fazia pouco mais de um mês. Suportara a difícil convivência o quanto pôde, mas dizia não ter mais estrutura para conviver com os ciúmes doentios da mesma. Embora tivesse feito o possível para esquecer Mirela, a própria Vanessa não permitia que esquecesse, pois sempre lembrava de seu nome, por ciúmes do que haviam vivido juntos. Ela fora apaixonada por Pedro desde a época de seu namoro com a tal Mirela e depois de sua morte, ainda passara anos esperando uma oportunidade para ficar com seu grande amor.
Pedro e Vanessa haviam se casado após descobrirem que ela esperava um filho. No entanto, ele me confessara que nunca a amou e que seu casamento havia sido um erro. Aquilo, nós tínhamos em comum.
Foi muito bom ouvi-lo falar do filho Felipe, de nove anos. Dizia ser um menino extremamente inteligente, estudioso e muito afetivo. Pareciam ter uma relação de muita cumplicidade, principalmente no que dizia respeito aos problemas de saúde da criança. Tinha alergias a muitas coisas, comidas, climas, ambientes e, por causa daquilo era tratado pela mãe como se portasse uma grave doença e não pudesse conviver normalmente com as pessoas, nem levar sua vida de forma natural, como as outras crianças. Fora privado de levar uma vida normal, do convívio escolar, de amigos. Parece-me que o que Pedro pôde fazer para proporcionar uma vida de normalidade ao filho, ele havia feito. No entanto, sentia-se limitado, pelo cuidado e respeito à esposa. Não sentia-se negligente, mas procurava sempre resolver as situações limites em que Vanessa aprisionava o próprio filho, de modo ponderado, sempre com muito diálogo. Mas, pelo que dizia, parecia ser ela uma pessoa muito difícil, e em alguns momentos, tive a impressão que os ciúmes daquela mulher também se estendia ao filho.
A decisão de sair de casa, fora tomada depois de um escândalo de Vanessa no grupo de Biodança de Pedro. Motivada por suas desconfianças absurdas, ela foi até o espaço onde funcionava o grupo, exatamente no momento de uma vivência que o marido estava fazendo com uma colega do grupo, onde, depois da dança, acabaram se abraçando, como que celebrando o que haviam vividos juntos ali naquele momento. Pedro precisou sair do salão, levando a mulher dali. Parecia ter sido uma situação extremamente constrangedora para todos. Ele havia inclusive pensado na possibilidade de deixar o grupo. Foi então que tomara coragem e decidiu pôr um ponto final naquela relação doentia.
Pedro não havia acabado antes com aquela situação, por preocupar-se com o filho. Temia que os cuidados excessivos de Vanessa a sua saúde se intensificassem ainda mais e que Felipe sofresse, com as loucuras da mãe. Ele me dissera que quando se tem um filho, a gente não pode pensar somente em nosso bem-estar, mas que nossas decisões envolvem diretamente nossos filhos. Aquilo até me tranqüilizava um pouco mais em relação ao que eu estava fazendo com ele. Era como se estivesse, com aquela afirmativa, mesmo sem saber, me absolvendo de meu terrível pecado.
Fui levada em casa quando o dia já estava quase amanhecendo, quer dizer, no apartamento no Dionísio Torres, que supostamente seria de Mirela. Donato Pessoa não me permitira ficar em casa, por causa de Raquel e as crianças, até porque seria mais gente envolvida naquela mentira, e eu mesma não queria aquilo.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 15

A noite estava fria. Sentia todo o meu corpo tremer, não somente pelo clima, bem como pelas dores, que se manifestavam em várias partes de meu corpo. Procurava me esconder por trás dos jarros de plantas de meu jardim, na frente de minha casa, protegendo-me do frio e tentando evitar que alguém da rua me visse ali. Devia já passar das onze da noite, e não percebia muitas estrelas no céu, nem mesmo a lua estava muito a se mostrar.
Meu receio era também que meu filho chegasse e me percebesse ali fora, separada da rua apenas pelas minhas plantas e o muro baixinho, que antecedia a porta de entrada de nossa casa. Vendo-me ali, Nando logo entenderia o que acontecera e seria mais um transtorno. Não, ele não poderia se deparar com aquela cena grotesca, sua mãe encolhida no jardim de sua casa, ao relento, já tarde da noite, vestindo apenas uma camisola, com vários hematomas por todo o corpo. Só de pensar, ficava ainda mais nervosa. No entanto, nada podia fazer. Chegara a pensar em procurar um vizinho, Ceiça do mercadinho talvez, mas logo desisti. Chamaria muito a atenção e outras pessoas poderiam me ver daquele jeito. Eu não poderia. Além das dores e do frio, sentia-me também tomada de vergonha. De certo, muitos puderam ouvir meus gritos, como de costume e depois fingir que nada aconteceu. E nem imaginavam o que havia acontecido realmente.
Assustei-me ao ouvir a batida no portão. Graças a Deus, Nando não me percebera ali, escondida no pequeno jardim. Como todas as noites, deixara seu carro na garagem de seu Olivar, nosso vizinho da esquina e vinha caminhando quarteirão acima, até nossa casa. Quase tive meu esconderijo descoberto, no instante em que caíram-lhe os livros que trazia na mão, tentando fechar o cadeado do portão. Se ele olhasse para sua direita, viria nitidamente meu rosto por entre os galhos das plantas. Só aquietei meu coração, ao ter certeza de que entrara.
Fiquei pensando o que seria de mim ali, como sairia daquela enrascada. E não me vinha nenhuma idéia. Mal conseguia raciocinar. Roguei a Deus por um milagre, por uma saída para aquela situação. Não tinha como entrar em minha casa, pois a porta estava trancada e não poderia chamar, para que Nando não soubesse o que havia me acontecido, do mesmo modo em relação aos vizinhos. O que faria afinal?
Já eram quase duas da madrugada, quando percebi a porta se abrindo. Fiquei aflita achando que seria Nando mais uma vez, que de alguma forma teria dado pela minha falta e resolvera me procurar. Mas conheci Alceu pelo chinelo, que dava para ver por entre as plantas.
- Vamos para dentro, mulher.
Alceu estava com a mão estendida diante de mim, como que para me resgatar daquele lugar frio, no qual me jogara quatro horas antes. Tínhamos discutido mais uma vez por causa de nosso filho Holanda, e ele perdera o controle, como de costume, agredindo-me com chutes, tapas e empurrões. Aos cinqüenta e oito anos, eu já havia perdido as contas de quantas situações daquelas nós havíamos passado durante os trinta e cinco anos em que estávamos casados.
Muitas vezes chegava a questionar o verdadeiro porque de eu suportar tantas agressões, aflições e sofrimento. Não podia ser simplesmente pelos ensinamentos de que “casamento é para sempre”, já que nunca havíamos sido realmente felizes. Alceu de Holanda sempre fora um homem duro, comigo e com as crianças, tratava-nos permanentemente com desprezo e agressões, como se nos punisse de algum crime. Mostrava-se de uma exigência profunda nos afazeres domésticos, cobrando-me uma única teia de aranha, que porventura, houvesse sido esquecida por mim no canto da parede, após uma faxina, ou ainda o cardápio variado, que jamais poderia se repetir durante a semana, no almoço e no jantar.
As crianças cresceram aterrorizadas com nossas brigas, ou melhor, com as surras gigantescas que seu pai me dava, uma ou duas vezes por dia. Passados tantos anos, minha situação não era tão diferente, a não ser pelos intervalos maiores entre uma surra e outra.
Morávamos no Montese, a seis quarteirões da Av. Gomes de Matos, na Rua Romeu Martins, desde o início de nosso casamento, antes numa casa menor, pertinho de onde estávamos então. Ali, naquele bairro modesto, as crianças cresceram, brincaram, começaram a namorar e despontaram para a vida, no mesmo lugar onde passei parte de minha infância, o mesmo bairro o qual havia sediado as minhas brincadeiras de menina juntamente com as minhas amigas e que era naquele momento o cenário de meu sofrimento, de minha opressão.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 16

Nossa casa havia perdido a alegria emanada de nossos três filhos, na ausência de Alceu. Morava conosco apenas Nando, o mais velho. Lembrava muito o pai mais jovem, muito bonito e já com trinta e três anos. Mesmo assim, para mim, era como se não tivesse crescido. Zelava por ele, como se zela por uma criança indefesa.
Nando sempre fora considerado por todos um bom rapaz, tranqüilo e estudioso, o único que concluíra os seus estudos. Terminara seu doutorado na USP, em São Paulo, fazia pouco tempo, e estava voltando a lecionar no curso de Sociologia da Universidade Cearense – UNICE, da qual era professor há alguns anos. Fora ele, inclusive, quem comprara a nossa casa e nos dera de presente. No fundo, eu sabia que sua presença era uma forma de me proteger e impedir seu pai de me maltratar. Exceto quando bebia, Alceu até chegava a me respeitar ou tentar me respeitar na presença do filho. Na verdade, ele se aproveitava de Nando, para sustentar suas farras e jogatinas, e o mesmo se permitia a tal absurdo como uma forma de mantê-lo ocupado, entretido, longe de mim.
Apesar de crescer indignado vendo as surras que eu levava de seu pai, Nando guardava uma grande consideração para com ele e até cuidava de seus porres, quando ultrapassava o limite, o que acontecia quase sempre. Alceu era de fato um alcoólatra e Nando fazia de tudo para ajudá-lo, tentando lhe convencer a procurar ajuda, embora não parasse de lhe dar dinheiro, para evitar o pior dentro de casa.
Desde que voltara de São Paulo, onde fizera seu doutorado, Nando vinha mantendo uma relação meio sigilosa com Olívia Cordeiro, a filha de Adriano Cordeiro, um grande amigo do passado. Eu não sentia por parte dele uma grande paixão, mas os dois pareciam gostar da situação. Haviam se reencontrado, depois de alguns anos, em um vôo de São Paulo para Fortaleza. Na verdade, eu a conhecia desde pequena, quando ainda era bebê. Transformara-se numa linda mulher, elegante, de um estilo jovial e moderno. Dona de um corpo exuberante, o qual a transformara numa modelo de sucesso nacional. Sendo considerada até hoje como uma das mulheres mais bonitas de Fortaleza.

* * *

Aos trinta e seis anos, Olívia Cordeiro orgulhava-se de ser uma mulher independente, que criara seu filho, Alexandre, sozinha, depois de ter sido expulsa de casa pelo pai, ao descobrir que estava grávida, com apenas dezesseis anos, e abandonada pelo pai da criança. Ela nunca conseguira perdoar Adriano por isso, mesmo com suas inúmeras tentativas de tentar uma reconciliação. Perdemos o contato nos últimos anos, Olívia e eu, mas sempre que nos encontrávamos, passávamos horas conversando sobre sua vida. Ela gostava de me falar sobre suas tentativas frustradas de namoro e me pedir conselhos. Passara por inúmeras relações complicadas, acabando sempre sendo abandonada ou traída pelos namorados. Seu grande sonho, sempre fora realmente encontrar seu príncipe encantado, alguém que a desse apoio e segurança.
Muito ocupada com sua casa noturna, que abrira em sociedade com o amigo Renato Brandão, Olívia procurava-me freqüentemente, nos últimos meses, para se aconselhar acerca de sua relação com o filho, de dezenove anos, com quem vinha tendo muitas dificuldades para conviver e impor limites.
Creio que Olívia não soubera encontrar a dose exata entre proporcionar o que considerava que fosse de melhor para o filho e ao mesmo tempo o fizesse ter consciência de limites na vida. Acabara sendo permissiva e o transformando em um jovem mimado e sem muitas preocupações com seu futuro. No fundo, temia que estivesse metido com drogas, pois sua mesada nunca era suficiente e acabava sempre lhe pedindo mais dinheiro.
A única coisa que confortava Olívia em relação a Alexandre era o seu namoro de com Carola, da mesma idade, que parecia ser uma jovem responsável, além da grande amizade dos dois com João Henrique e Maria Antônia, que eram de família amiga a qual conhecia desde criança, já que Adriano, o pai de Olívia, sempre fora grande amigo de Leonardo Gondim, o avô dos amigos do neto. Os quatro faziam faculdade e acabaram por se conhecer quando cursavam cadeiras em comum, antes de Alexandre trancar seu curso, no sexto semestre.
Por mais que Carola e Olívia insistissem, Alexandre não voltava a estudar, alegando arrependimento pela escolha de seu curso – Sociologia - E isso a preocupava profundamente, não sabia mais como agir com o filho.
Nando e Olívia vinham mantendo seu relacionamento em segredo, por exigência da mesma. Achava que suas relações anteriores podiam ter dado certo se não abrisse tanto a tanta gente. Por isso, resolvera manter esse novo romance em segredo.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 17

Foi através de Nando que fiquei sabendo da volta de Tony à Fortaleza. Às vezes, ao sair da faculdade, ele passava na Boate Mirage para ver Olívia, antes de voltar para casa, e numa dessas idas, encontrara com a prima lá. Somente alguns dias depois fui procurada por ela para conversar.
Tony estava com vinte anos, linda, lembrava sua mãe. Deixara os cabelos bem longos e fizera algumas mexas loiras. Aparentava um ar mais maduro, talvez pela maquiagem. Chamava muito a atenção das pessoas por sua beleza, desde a adolescência.
Acabei por assumir a responsabilidade de criar Tony depois da morte de seu pai, meu irmão Emílio, quando era ainda garotinha. Ela saíra de casa logo que completara a maior idade, para morar com umas amigas, mesmo contra minha vontade. Tony sempre desejou mudar de vida e ir embora de onde morávamos. Muitas vezes, ao deixá-la na escola, quando era menina, eu me escondia, a seu pedido, para que ninguém a visse comigo, por eu ser apenas a costureira das mães de muitas de suas colegas.
Nosso reencontro não fora tão feliz o quanto eu esperava. Marcara comigo em um shopping, para que não se obrigasse a voltar a nossa casa. Tony guardava uma grande mágoa, que eu não sabia ao certo de quem era, se de mim ou de Alceu. E isso a fazia me maltratar, agredir-me com a dureza de suas palavras rancorosas, apesar de não falar especificamente o que lhe oprimia o coração. No entanto, eu estava feliz de reencontrá-la.
- Como eu tô feliz, minha filha! Como eu tô feliz!...
As palavras me faltavam e eu queria beijá-la, sem deixar direito que ela respondesse. Queria senti-la em meus braços, como a minha menina, assim como a chamava quando era criança. Mas sua reação fora exatamente o contrário, afastou-se, tirando minhas mãos de seu rosto.
- Calma, tia, você está estragando todo o meu penteado. Olha o que você está fazendo, puxa.
- Desculpa, queria apenas...
- O que você queria comigo? O Nando me falou que você queria falar comigo.
Nem me deixou concluir. O tom de sua voz era ríspido. Não entendia porque me tratava daquele jeito, sem amor, de forma grosseira. Afinal, sempre lhe dera todo o carinho e cuidado, a tratara como a filha que nunca tive.
- Estava com muita saudade de você, Tony. Há mais de dois anos que você não aparecia aqui, não dava notícias. Cheguei a pensar no pior. São tantas histórias que a gente ouve sobre pessoas desaparecidas.
Tentei mais uma vez tocar em seu rosto, mas fora mais uma tentativa frustrada.
- Deixa de drama, tia. Eu tô bem. Estive em São Paulo, depois passei um tempo no Rio. E agora resolvi voltar.
- Onde você está morando?
- Com o Holanda, não se preocupe.
- Com o Holanda? Mas ele não me disse nada. Ele sabia o quanto eu estava preocupada com você.
- Eu pedi que não dissesse, puxa!
Já estava novamente irritada.
- Eu sabia que seria essa lengalenga. Eu fiz ele prometer que não diria nada, até eu mesma lhe procurar. Não faz muito tempo, pouco mais de um mês.
- Soube que você está trabalhando na Mirage.
- É, mas eu não quero que diga nada a Olívia. Pedi a Nando também.
- Mas por que ela não pode saber? Talvez seja até melhor pra você. Ela sabendo quem você é, pode até te ajudar lá.
- Não! Não quero que você se meta. Ela me viu, acho que ainda muito garotinha, não lembrou de mim. E quer saber? Graças a Deus! É melhor assim.
- Não te entendo, Tony.
- Não é para entender.
Foi um encontro rápido, até porque Alceu não podia dar por minha falta, para não se irritar. Mas senti claramente o rancor que guardava em seu coração. E o tratamento grosseiro, impaciente me deixava pensar que era comigo, alguma coisa que eu tivesse lhe feito, não sei.
Preocupou-me o fato de Tony não querer revelar a Olívia quem era. Pelo que conhecia dela, estava aprontando alguma.
Tony participara de uma seleção, pouco tempo antes, para dançarina na boate. Ficando em segundo lugar, na escolha, tratou de providenciar para que a moça que tirou o primeiro lugar não assumisse.
Hospedada provisoriamente no apartamento de meu filho do meio, Holanda, conhecera uma amigo dele chamado Guel Serrado, que parecia ter morado fora do país nos últimos cinco anos, e então estava de volta. Fiquei sabendo que os dois se conheceram mentindo um para o outro que eram ricos, dando início a uma forte paixão. Depois que descobriram a verdade um sobre o outro, era tarde e estavam perdidamente apaixonados. Sabia que ela não se interessava fácil por alguém e tratava os homens como instrumentos para conseguir o que queria. Mas com esse rapaz, parecia ser diferente, ele a deixava desnorteada, num jogo de sedução que lhe tirava o equilíbrio. Depois de muitos anos, Tony estava completamente obcecada de desejo e não resistia diante da possibilidade de irem para a cama. Conseguia se realizar nos braços de Guel, como jamais se realizara com qualquer outro homem que conhecera até então. Por isso, desistira da decisão de abandoná-lo e lhe propôs uma parceria, na empreitada de subirem na vida juntos.
Tony era inteligente, cheia de idéias. Depois de ler alguns recortes de jornais contendo entrevistas de Olívia Cordeiro sobre suas relações amorosas fracassadas e de seu desejo de encontrar a pessoa certa, considerou-a alvo fácil para seu plano. Sendo Guel um homem bonito e sedutor, aliado às suas idéias, o jogo estaria ganho. Bastava apenas descobrir como aproximá-lo de forma assertiva de Olívia para dar o bote. Por isso, decidira trabalhar na boate, a fim de que pudessem descobrir mais sobre sua vida, seus passos. A jovem Sofia que tirara o primeiro lugar e assumiria a vaga de dançarina no grupo da coreógrafa Júlia Serrado, fora então seduzida facilmente por Guel, engatando um pseudo-namoro relâmpago. A tentativa era de afastá-la, para que não assumisse a vaga. Descobriram que o pai da moça era testemunha de Jeová e jamais admitiria a filha como dançarina de uma boate. Trataram então de levá-lo a Mirage, flagrando um ensaio do grupo. O que fez com Tony conseguisse finalmente a vaga de dançarina.
Trabalhando na Mirage, Tony logo ficara sabendo que Olívia Cordeiro teria um suposto namorado secreto, o que impediria seu plano. O próximo passo seria então descobrir quem era esse misterioso namorado. O que não demorou muito, já que desconfiava da presença freqüente, embora discreta, de Nando, na boate. Conhecia-o suficientemente para saber que não gostava de agitações noturnas, mas foi com a ajuda de Guel, seguindo Olívia, que descobriram a identidade de seu namorado.
Foi então quando Tony voltou a freqüentar a nossa casa, procurando aparecer, claro, na ausência de Alceu. Ela mesma não queria encontrá-lo e eu compreendia, os dois nunca se deram bem, além de ter sido também vítima de sua opressão. Eu desconfiava que tinha algo de errado com aquela reaproximação, mas mesmo assim, procurava saborear a sua presença. E ela até se mostrava mais paciente e um pouco mais afetiva. Afinal, as pessoas podem mudar. Evidentemente que não era o caso. Tony estava obstinada em acabar com a tal relação do primo com Olívia, para então promover o encontro dela com Guel Serrado.
Voltando a entrar em contato com nossa realidade, Tony lembrara da paixão de Marluce, a jovem filha de nossos visinhos Ceiça e Rubinho, os donos do mercadinho da esquina, por Nando. Sabendo que Marluce era então aluna dele e quase que diariamente pegava carona com ele, para irem juntos a faculdade, resolveu se aproximar da moça, mesmo despertando desconfianças, e incentivá-la a lutar por seu amor de criança. Convencendo-a então a tomar iniciativa e beijá-lo numa determinada manhã em que iam juntos para a UNICE, como de costume. Tony tratou para que Olívia estive no estacionamento da faculdade naquele exato momento, flagrando o tal beijo.
Tony estava certa sobre suas expectativas acerca do plano, Olívia não perdoaria o namorado, nem permitira maiores explicações, pelas inúmeras frustrações anteriores, na sua maioria, envolvendo traições. O caso dos dois estava encerrado e o caminho livre para Guel Serrado.
A relação de Tony e o tal Guel Serrado realmente me preocupava. Desde que os havia visto juntos, quando fui ao apartamento de meu filho Holanda, aquele rapaz me chamara atenção. Parecia esconder algo por trás de seu olhar, como se quisesse alguma coisa não revelada em seu discurso arrumado. Sentia que era uma pessoa perigosa e não gostava de vê-lo envolvido com minha sobrinha e meu filho.
Conversando com Holanda, descobri que eram amigos há muito tempo e que Guel desaparecera por cinco anos e há pouco voltara ao Brasil. No entanto, não sabia dar maiores informações sobre o passado do rapaz: o que fizera, porque ficara tanto tempo fora, sem dar notícias, ou ainda porque voltara. Não sabia ou não queria me contar. Afinal, era eu quem não o considerava uma boa influência para os meninos, embora não soubesse de nada concreto que arranhasse sua imagem. O que me tranqüilizava era saber que Tony estava morando, mesmo que provisoriamente, com Holanda. Cheguei a lhe pedir que ficasse de olho na prima e naquele rapaz e que tomassem cuidado com ele. Sei que em certos momentos alguns cuidados de mãe se tornam absurdos, por não termos especificamente argumentos concretos sobre os mesmos, por serem somente fruto de nossa intuição. Mas não podia calar diante de meu coração.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 18

Eu tinha me mudado juntamente com Raquel para uma nova casa, no Montese, que era de uma amiga de minha cunhada e nos tinha feito um valor de aluguel bem mais em conta. Casa não muito grande, de três quartos, sala e cozinha, mas o suficiente para nossa família. Acho que tivemos muita sorte com aquela mudança, pois era um ambiente muito agradável a Rua Romeu Martins, bem como a vizinhança, gente bastante acolhedora e prestativa.
No dia em que nos mudamos, várias pessoas da rua se ofereceram para ajudar e ainda muitos outros foram me dar às boas vindas. Gostei mesmo de uma senhora muito simpática com quem encontrei ainda quando havíamos visitado a casa. Tratava-se de D. Clarina de Holanda, que insistira para tirarmos, Raquel e eu, o “dona” e a chamássemos somente de Clarinda. O que para mim, era impossível. Era uma mulher simples, de meia idade, bonita e tinha um jeito todo especial de mãe, como se fosse toda cuidado, uma energia boa. Morava na casa rosada da frente, do outro lado da rua, vizinha a um casarão abandonado.
Aos poucos fui conhecendo outros moradores, como D. Ceiça e seu Rubinho, o casal dono do mercadinho da esquina, onde eu fazia todas as minhas compras.
Seria um novo momento em minha vida, só faltava Clara para que eu ficasse realmente bem.
Lembro-me que dormi como um anjo naquela manhã e até sonhei com Pedro. No sonho, estávamos passeando por um jardim, e ele pegava em minha mão, sentia uma imensa alegria de estar ali com ele. Homem de beleza madura, porte majestoso. Os longos dedos enroscavam-se nos meus e podia sentir a maciez de sua mão, passando-me um afeto o qual esperei por anos. Acordei tão bem, feliz. Fazia tempo que não me sentia daquele jeito, embora tivesse naquele estranho apartamento, sozinha. Não importava.
Tão logo acordei, fui surpreendida com uma entrega de flores e um cartão que dizia: “Foi maravilhoso sentir sua presença ao meu lado novamente. Acho que nunca deixei de lhe amar. Beijos, Pedro.”
Eu não sabia se ria ou chorava. Senti pena dele e ao mesmo tempo de mim, por estar me obrigando a enganá-lo. Foi então que decidi acabar com tudo aquilo. Só não sabia se contaria a verdade a ele, ou simplesmente sumiria, desapareceria. Mas desaparecer, sem deixar notícias, eu não poderia, não com ele, seria pior do que estava fazendo.
Já me preparando a ir embora, recebi uma ligação de Luísa, dizendo-me ter recebido notícias do detetive, o qual encontrara uma das pessoas que presenciaram a venda de Clara ao casal holandês. E aquela notícia não só me enchera de esperança, mas me fizera desistir de revelar a farsa a Pedro. Acabei aceitando seu convite para almoçar e foi uma tarde surpreendente.
- É como se tudo fosse um sonho, Mirela. Estou sonhando acordado.
- Pra mim também é estranho, pode acreditar.
Nunca antes havia me envolvido em nenhuma farsa, ou precisara mentir pra ninguém. Aquilo ia contra tudo o que eu acreditava.
- Minha falta de compreensão reside nos caminhos utilizados pela vida para nosso crescimento. Hoje cedo fiquei me perguntando por quê, o que houve entre nós, na nossa história. Por que desse intervalo tão grande? E ao mesmo tempo sei que a cronologia é uma criação nossa, e não alcança os traços de Deus. Mas foram muitos anos, entende?
- Sei bem do que você está falando, Pedro.
Pelo menos procurava compreender. Mesmo sendo difícil e doloroso para mim, colocar-me em seu lugar. 
- Ficamos longe um do outro por muito tempo, Mirela. Ainda assim sinto a intensidade desse fogo dentro de mim, reascendendo. Você não faz idéia de como estou desde ontem. É loucura isso!
- Também acho.
Falava de mim, do deputado e seu plano, tal Mirela.
- Sei também que o caminho não é ficar procurando entender nada, a separação, o tempo. O maior convite agora é a entrega.
Entrega de quê? À mentira, a uma palhaçada criada por um provável inimigo? Vítima era o que ele era, de mim, de Donato Pessoa.
- Confesso que estou muito confusa, Pedro. Talvez fosse melhor a gente dar um tempo, para a poeira baixar e poder compreender melhor o que aconteceu.
- Por favor, não! Sei que é complicado pra você. O sentimento é meu, as lembranças são minhas. Você não tem como lembrar de nada. E pra você é tudo muito estranho. Pra mim não, sabe? É como se eu tivesse voltando no tempo, recuperando o que eu perdi. Pra mim não é estranho. Eu consigo reconhecer tudo, você, o que eu sinto diante de você. Apesar de ser novo, ao mesmo tempo, isso é loucura.
- Eu preciso me acostumar.
- Eu posso te ajudar.
- Pedro, você não entende.
- Pelo contrário. Sei que é difícil pra você. É importante saber de seu passado, mas não consegue reconhecê-lo ainda. Talvez pra mim seja mais fácil.
- É mais ou menos por aí.
- Estou em vantagem.
Vantagem que nada! Perdia-se cada vez mais em minhas mentiras. E aquilo me doía. Precisava lembrar de Clara a cada instante, para poder continuar.
- Mirela, tudo está voltando.
- Como assim?
- Tudo o que eu sentia.
- Tão rápido.
- O necessário.
- E como se sente?
- Feliz.
Aproveitamos para fazer um passeio de barco, oferecido pelo hotel no qual almoçamos, de onde assistimos o pôr do sol, em alto mar, depois de um mergulho, pertinho da Praia Mansa, e de brincarmos na água como duas crianças. Eu tinha resistido em tomar banho, mas era tudo tão mágico, suave e ao mesmo tempo envolvente, gostoso. Não tive como recusar. Morava em Fortaleza há sete anos, desde minha vinda de Recife, depois da morte de meu pai e conhecer Guel Serrado, e nunca tinha podido saborear as belezas desse lugar. Acho que nunca me dera conta do quanto Fortaleza era linda.
Foi inesquecível nosso encontro dentro da água e, sem que eu tivesse tempo para pensar, senti nossos lábios se tocando. O que seria uma brincadeira inocente, transformara-se em nosso primeiro beijo! E como eu havia desejado aquilo horas antes, quando ele me deixara em casa, depois de conversarmos a noite inteira. Acho que naquele momento poderia o mundo desabar e não perceberia. Lembro bem de uma sensação de inteireza, era como se o universo estivesse ali simplesmente nos banhando com toda a sua magia, seu esplendor.
- Pedro...
- Não fala nada. – Pôs os dedos suavemente em minha boca. – Eu queria muito isso. É maravilhoso estarmos aqui.
Sim, e era mesmo. Estávamos em alto mar, pertinho do barco, envolvidos na imensidão daquela água e do que sentíamos naquele momento, como se não houvesse outras pessoas em nosso entorno, aproveitando o mesmo banho.
Sentir seus lábios tocando os meus, seu corpo quente e trêmulo encostar cuidadosamente ao meu. Tudo mágico.
Após o banho, Pedro pegava uma bebida para nós no bar do barco, e pude admirá-lo, sem que percebesse. Nada poderia ser mais perfeito! A magia daquele encontro, o que acontecia naquele instante, o beijo que durara minutos, em pleno mergulho. E tudo em tão pouco tempo.
Estava Pedro com uma camiseta regata branca, grudando em seu corpo ainda molhado, e uma sunga vermelho-escura, definindo perfeitamente seu porte atlético. Ombros largos, braços fortes e pernas grossas. Mãos e pés perfeitos, do jeito que eu gostava. O cabelo molhado caía por sobre os óculos escuros, sendo jogado por ele de vez em quando para trás, com a ajuda das duas mãos, num gesto charmoso, o qual se repetia freqüentemente. E eu, completamente encantada. Passaria horas, admirando-o somente. Seus gestos, as palavras, a sistematização precisa do pensamento diversificado, segundo ele, de aquariano, o cuidado, o jeito afetivo, seu cavalheirismo. Além de uma beleza inconfundível. O homem que toda mulher gostaria de ter! Seria realmente eu quem vivia aquilo naquele momento? Eu mesma chegava a não acreditar.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 19

Pedro falava-me muito de si, de sua vida, do quanto sofrera ao pensar que eu, ou melhor, Mirela, tinha morrido e, o quanto a amou durante todos aqueles anos. Era bom ouvi-lo falar com sua voz doce e suave, parecia me acalentar o coração. E cada momento, o achava mais lindo, como se o tivesse encontrado num sonho. Era realmente um sonho o que eu vivia. Cheguei a achar que talvez tivesse sido a providência Divina aquele encontro – Deus escreve certo por linhas tortas – poderia ser aquilo mesmo um convite do universo para que eu novamente experimentasse o amor, só que dessa vez, de uma forma mais madura, mais centrada. Sem dúvida era totalmente diferente da loucura que sentira por Guel, tantos anos antes. 
Ri ao sentir meu coração acelerado abrindo a porta do apartamento para recebê-lo, à noite. Jantaríamos fora. Ele, bem vestido, impecável como sempre, trajava um blazer grafite, camisa verde e calça jeans. Surpreendeu-me ainda na porta com um largo sorriso, oferecendo-me uma rosa vermelha.
- Cheguei muito cedo?
- No momento certo.
Nada poderia ser mais perfeito. E poderia. Se tivéssemos nos conhecido em outra situação, sem mentiras. Se o que ele sentia fosse por mim realmente e não por Mirela.
Até minhas lamentações pelo contexto desapareciam ao nos beijarmos. Fazia muito tempo que não sentia essa sensação, ao tocar os lábios de alguém, como se aquele beijo fosse tudo. Inteiro, intenso, perfeito! Se ele questionava o tempo, por sua história com Mirela, eu questionava o momento, o que me fizera me aproximar.
Tudo estava acontecendo tão rápido que nem tive tempo de raciocinar, discernir sobre aquilo e no que daria aquela loucura. O combinado com o deputado Donato Pessoa era apenas de me aproximar dele para conseguir o tal dossiê, não precisaria me envolver emocionalmente, nem ter nenhum tipo de relação amorosa. No entanto, fui surpreendida pelo meu destino, ou talvez, quem sabe, pelo meu próprio coração, que estava adormecido para o amor desde que havia sido abandonada por Guel. E eu que nunca havia acreditado em amor à primeira vista, ou da noite para o dia, estava extremamente envolvida pelo homem o qual deveria enganar. A única coisa que me doía era quando me chamava de Mirela e falava de “nosso passado”. Eu era Júlia Serrado e não tinha tido passado nenhum com aquele homem, nunca o tinha visto antes. Mas de uma coisa eu já estava certa, queria que aquela situação se prolongasse muito para que pudesse saborear cada minuto de sua presença, de seu calor, de sua energia, de seu perfume, da sensação inexplicável de sentir a maciez de sua mão por sobre a minha. Era como se eu quisesse perpetuar aquele momento e continuar sentindo aquilo para sempre.
Terminamos a noite em seu apart-hotel, na Beira Mar, onde estava provisoriamente, desde sua separação. Não havíamos falado nada sobre irmos até lá, simplesmente me levou e não expressei nenhuma resistência, nem poderia. Como eu queria estar com ele!
Fiquei esperando por um instante no corredor, enquanto entrou para preparar uma surpresa, segundo ele. E que surpresa! Senti vontade de chorar ao entrar e ser recebida num corredor de velas vermelhas no chão. A sala estava na penumbra, iluminada pelas chamas dançantes das velas. Ele estava ali, diante de mim, belo, sorrindo, com a mão estendida a me receber.
“Eu quero que esta noite seja inesquecível.”
Ouvi aquilo como uma música que me convidava a me entregar e abrir as portas de meu coração.
Sim, fora uma noite maravilhosa, moldurada por muito afeto e delicadeza. Dancei a dança a qual a vida estava me convidando naquele instante. Experimentava o sabor de amar e ser amada. Parecíamos uma só pessoa, uma só carne. Acho que nunca havia me sentido tão grande, tão plena. Não poderia não ser um presente de Deus, aquele momento. E então, por um instante, senti-me tão feliz, tão protegida.
E como era bom sentir o sabor daquele homem, seu calor, seu cheiro em minha pele, seu beijo quente, seu cabelo crescido caindo por sobre meu rosto, quando me beijava. E a voz doce em meu ouvido declarando-me seu amor. Tudo perfeito, como em um conto de fadas.
Conversamos ainda por horas após um longo banho a dois.

* * *
Pedro Lucena estava na vice-presidência da RTN há poucos meses, desde a morte do pai, que morrera de um infarto fulminante, aos sessenta anos. Então fora convidado por Leonardo Gondim, o dono da televisão, para assumir interinamente o cargo de seu pai, até que houvesse uma nova eleição na diretoria da emissora. A atitude do presidente da empresa não havia agradado a alguns de seus diretores, que almejavam o cargo, como o ex-genro Donato Pessoa e a própria filha de Leonardo, Maria Eugênia Gondim. Entretanto, aquela insatisfação dos diretores não incomodava a Pedro, que já vinha de muita experiência num canal de televisão, em Londres, do qual era superintendente. Então, começara a entender a perseguição de Donato Pessoa a ele, pois estava em seu caminho e tudo faria para tirá-lo.
Vanessa não havia dispensado muita força ao retorno do marido ao Brasil, receava que suas lembranças de Mirela o afastassem dela e que retornando ao lugar onde viveram aquele amor, poderia alimentar este sentimento. O fato era que ela tinha toda razão, entretanto nunca poderia imaginar que o marido estaria vivendo aquele romance comigo, embora pensando que fosse com Mirela.
Não sabia ao certo o que estava sentindo, mas na certa já estava completamente apaixonada. Mais parecia uma adolescente, quando pensava em seu toque, lembrava de seu beijo ou até mesmo quando sentia seu cheiro, seu calor ao me abraçar. Sim, estava completamente apaixonada, havia entregue meu coração ao amor. E como era revitalizante viver aquilo. Sentia-me outra pessoa, com forças para enfrentar tudo o que viesse pela frente.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 20

Pedro pedira para passar uns dias fora da empresa e aproveitamos para viajar. Fomos ao Porto das Dunas, para sua casa de praia. Era lindo aquele lugar, um grande jardim contornava a casa, que ficava de frente para o mar, com uma imensa varanda que separava o estacionamento da área da piscina, ponto de entrada da grande sala, dividida em dois espaços, de estar e refeições. Os quatro quartos ficavam no andar superior, todos com varandas, que davam um charme todo especial aos ambientes.
Parecíamos viver uma lua-de-mel interminável. Pedro e eu estávamos sempre conversando, brincando, fazendo carinho um no outro. Passávamos horas deitados numa rede na varanda, tentando nos proteger um no corpo do outro do frio trazido pelos fortes ventos do litoral. Ele adorava ter os pés massageados por mim, o que eu fazia, freqüentemente, com imenso prazer. Ora, um de meus objetos de prazer bem em minhas mãos.
Era uma alegria imensurável conhecer os anseios daquele homem, partilhar de seu afeto, de seu cuidado profundo. Podia perceber como as pessoas que com ele interagia alimentavam um sentimento de profundo respeito e admiração por sua pessoa. E, de repente, eu me via ali, podendo aproveitar de sua intimidade, de seu carinho, de seu amor. Pensava que homens como aquele não mais existiam, mas depois de conhecê-lo, estava certa que sim.
Eu não poderia esquecer meu objetivo, o porque de estar ali com Pedro Lucena. Volta e meia aquilo vinha e tomava conta de meus pensamentos, deixando-me paralisada, profundamente triste. Era como se, de repente, o conto de fadas, se transformasse num terrível pesadelo.  Pior era quando ele se aproximava de mim, tentando saber o que eu tinha, o que me atormentava, querendo me cuidar, fazer algo para evitar meu sofrimento.
“Mirela, eu não quero nunca te ver triste, perder a luminosidade do teu sorriso. Ele desperta em mim o desejo de poder ser mais alegria, mais vida. O teu sorriso desperta em mim o desejo de poder te amar e viver plenamente esse amor”.
Bem que ele poderia falar tudo aquilo e não chamar por aquele nome que trazia consigo a lembrança da mentira, da minha falsidade. Sempre repetia em minha mente, como se dissesse para ele, que não era Mirela, que era Júlia Serrado quem estava vivendo aquele amor e o convidando a dançar o afeto, a magia da paixão.
Logo que retornamos a Fortaleza, conheci Felipe. Havíamos nos encontrado num shopping, como que por acaso, mas percebi que fora um encontro provocado por Pedro. Ele já havia me falado várias vezes que desejava muito que nós nos conhecêssemos. Felipe ostentava a mesma beleza do pai e até parecia realmente bastante com ele, principalmente os olhos castanho, de desenho amendoado, a boca deveria ser da mãe. Mas era mesmo um doce, como Pedro o descrevia. Parecia um adulto, maduro, observador, cuidadoso com as palavras. E teve algo que ele me dissera, num instante em que ficamos sós, que me deixou angustiada.
“Acho que papai sempre te amou, Mirela. Mas agora é diferente, você está aqui. Queria te pedir, para nunca fazê-lo sofrer”.
Será que aquele garoto havia percebido alguma coisa? Um presságio talvez. Nove anos e tanta maturidade. Era uma criança especial, como seu pai dizia.
Teria eu realmente o direito de enganá-lo, embora que por causa de Clara? Por que não estava apaixonada por alguém que realmente pudesse amar como Júlia Serrado? Percebi então que o que eu estava vivendo não era um sonho, mas um drama criado por mim mesma. Não poderia culpar ninguém, nem Deus, nem Donato Pessoa, nem a situação pela qual estava passando. Não era justo e, eu sabia que tinha uma forte tendência a querer culpar o mundo por meus problemas, assim como a grande maioria das pessoas. Quando o fazemos, parece tornar-se mais fácil a superação da dor.
Passara dias evitando falar com Luísa, que me ligava insistentemente. Sabia que queria obter notícias, se inteirar de como estava nosso plano. Eu era muito transparente e, esperto como esse pessoal deve ser, logo sacaria de meus sentimentos, rapidamente constataria a minha paixão, que o tiro saíra pela culatra. Como de fato não foi muito difícil a percepção de Donato Pessoa em nosso primeiro encontro, depois de tudo aquilo que estava vivendo com Pedro Lucena. Como eu previa, parecia ter visto em meus olhos que havia sido traída por meu coração. Contudo sua reação fora diferente do que esperava.
“Ótimo que estejam vivendo isto, assim fica tudo mais fácil, será mais rápido do que eu pensava”.
O que me surpreendera fora a sua certeza de que eu jamais desistiria da parceria. Ele apostara alto e não contava com uma posição negativa de minha parte. E deixou bem claro que se eu estivesse pensando em algum momento de sair fora, nunca mais eu viria minha filha. Novamente tive a impressão de que sabia onde Clara estava, com quem estava, pois parecia ter poder sobre aquela situação, da forma que falava. Mas eu não tive coragem de insinuar aquilo, sabia que era um homem perigoso, pelo pouco que havíamos convivido já tinha dado para perceber. Não era o tipo do homem que dava ponto sem nó. Então me fizera outra exigência.
A RTN estava completando dez anos de existência. Então o dono da emissora, propusera um desafio a toda a direção da empresa. Que todos elaborassem uma proposta de programação que comemorasse este aniversário. A proposta vencedora daria a seu idealizador o cargo de vice-presidente, ocupado provisoriamente por Pedro Lucena. Ele mesmo já havia me falado, e que estava preparando a proposta, por ter um forte motivo, que o prendia no Brasil. Desconfiava de que a morte do pai fora um atentado, pois o mesmo já havia compartilhado com um amigo que vinha recebendo ameaças. Pedro ficara sabendo por este amigo, Adriano, das desconfianças do velho Alberto Lucena, antes de sua morte.
O receio de Donato Pessoa sobre o tal dossiê era real, pelo que eu ficara sabendo, de fato existia, mas diferente do que meus parceiros naquela loucura pensavam, Pedro não estava com o dossiê, embora também soubesse de sua existência e quisesse encontrá-lo. Ele não chegara a me falar o nome do deputado, no entanto, pude perceber de que era dele que desconfiava. Parecia que Alberto não havia revelado a Adriano o nome do protagonista do dossiê, mas se mostrara decepcionado, fazendo insinuações de que se tratava de uma pessoa que havia ajudado a crescer.

MARINA PESSOA
Capítulo 21

Não sei se por providência do destino ou pelas mãos de alguém, o fato é que, para o bem de meu marido, o velho Alberto morrera antes de revelar o que descobrira. E aquilo me amedrontava. Temia que o envolvimento de meu marido na morte de seu amigo, não fosse maior do que todos conheciam. Cheguei a tremer ao ser procurada por Pedro, logo que voltara ao Brasil, para que eu lhe dissesse o que eu sabia sobre a morte de seu pai. Na verdade eu sabia tanto quanto as outras pessoas, mas agi como uma louca, como se soubesse de alguma coisa que não lhe havia sido revelada. Fiquei extremamente nervosa, trocando as palavras, sem conseguir articular um só pensamento. O que me fazia agir daquela forma era o medo de que Donato tivesse alguma coisa a ver com a morte de Alberto realmente e que meu cunhado descobrisse. Senti-me depois como uma completa idiota e se ele não pensava nada desse tipo, com aquela minha atitude passaria a pensar. Nem coragem de comentar aquele encontro com meu marido eu tive, se não teria que lhe explicar o porque de meu nervosismo. Eu não sabia qual seria sua reação, nem estava disposta a descobrir.
Era melhor para mim, em todos os sentidos permanecer sem saber de nada. Por isso via e ouvia muita coisa, mas acabava não percebendo o que era óbvio, como o caso de meu marido com sua secretária dentro de minha própria casa. Maria Eugênia, inclusive, havia chegado a fazer algumas insinuações, numa festa em sua casa, a qual nós havíamos ido.
- Luísa é realmente uma grande profissional, não acha, Marina?
Fazia aquela pergunta olhando para os dois conversando num canto da sala, em meio aos outros convidados da festa. Estava com um olhar insinuante, com um sorriso irônico.
- Realmente, Luísa é muito competente.
- Parceiros profissionais desde a época de nosso casamento. De fato, são bons parceiros.
Eu sentia que queria me dizer algo por trás daquele comentário. Jamais teria coragem de perguntar o que verdadeiramente queria dizer. Sabia que Maria Eugênia era uma mulher invejosa e nunca suportara a paixão de Donato por mim, embora já fossem separados há três anos antes de nos casarmos.
- Se eu fosse você, procurava se inteirar mais da vida de seu marido, querida.
Como eu tive ódio daquele comentário. Senti vontade de fazê-la engolir o que dissera. Mas apenas sorri, procurando mostrar superioridade, embora não conseguisse. Ela sempre me tratara como uma garotinha burra, a qual não tinha nada mais para oferecer a ele além de sexo e um corpo bonito e que breve enjoaria de mim. O que me deixava feliz era lembrar que ela tivera que me aturar já por quatro anos e quanto mais esperava, torcendo pelo fim de nosso casamento, mais meu marido parecia gostar de mim, fortalecendo ainda mais nossa união.
Todavia, as insinuações de Maria Eugênia me valeram noites de sono, até chegar a abordá-lo, contando-lhe o que ela me dissera. Achei que explodiria, no entanto, riu, debochando de minha indagação.
- Como pôde cair no veneno de Maria Eugênia, minha querida, como pôde?
Olhava para mim como se olha para uma criança inocente, quando pensa algo absurdo e tolo.
- Marina... ela nunca suportou o nosso casamento. Olhe para você, linda, uma menina, enquanto ela, uma velha, sozinha, que paga homens para dormirem com ela. Ora, Marina, minha querida, não fique pensando nessas tolices. Luísa, definitivamente, não faz o meu tipo. – Ria, balançando a cabeça, desdenhando totalmente de minha pergunta.
Senti-me uma idiota, de fato, uma criança. Não sei se realmente acreditava no que me dizia ou queria acreditar. Talvez fosse mais cômodo engolir as desculpas e esquecer aquela história. Contudo, esquecer não dava, afinal Luísa estava aos meus olhos o tempo todo, sua relação de cumplicidade com meu marido, uma cumplicidade que eu invejava e tanto desejava ter. Às vezes, me flagrava olhando para ela, sem que percebesse, na expectativa que percebesse algo, descobrisse alguma coisa que tirasse aquelas desconfianças de minha cabeça.
O que mais me enciumava, além da relação que mantinham, era sua inteligência, sua perspicácia, sua competência enquanto profissional, a qual ele tanto elogiava. Luísa também era uma mulher bonita, aos trinta e seis anos, vestia-se com muita elegância, com decotes discretos, mas que valorizavam seu corpo. Tinha cabelos de bonito corte, até os ombros, com mechas loiras, que lhe davam um certo charme. Determinada vez, cheguei a ouvir uma conversa dos dois sobre os ciúmes que Maria Eugênia sentia dela. A conversa fora logo interrompida assim que perceberam minha presença na sala.
Eu não entendia porque realmente morava conosco, e cheguei a lhe indagar sobre aquilo certa vez. Como Donato, era escorregadia. Falou-me rapidamente de uma amiga com quem dividia apartamento, mas que por algum motivo tiveram que se separar, exatamente na época de meu casamento. Chegara a ouvir comentários que fora ela o motivo maior do término do casamento de meu marido com Maria Eugênia, há sete anos. Mas se era verdade, por que não ficaram juntos depois da separação dos dois? Era aquilo que me punha dúvidas e me fazia acreditar em suas histórias e explicações acerca daquele assunto.
Sentia-me muito sozinha, acabava tendo a companhia apenas de D. Deise, nossa empregada, uma senhora de cinqüenta e cinco anos, que estava conosco desde o início de nosso casamento. Era uma mulher distinta, de voz firme, que chegava a parecer muitas vezes mal humorada, mas era uma boa pessoa. Eu sentia que se preocupava de verdade comigo, procurando sempre preparar pratos que eu gostava ou trazer-me revistas e filmes, para que passasse meu tempo.
Em alguns momentos sentia-me cansada daquela relação com Donato, ele me protegia demais, me impedido de sair de casa sozinha, de estabelecer relação com qualquer pessoa. Sempre que íamos a alguma festa, o que era muito raro, gostava sempre de ir sozinho, ou na companhia de Luísa, pois dizia sempre se tratar de eventos de negócios, ele ficava me cercando, como se me vigiasse, e logo que eu conversasse com alguém, longe de seus olhos, ele agia de forma ríspida, antecipando nossa volta para casa, o que me fazia evitar contato com qualquer pessoa. Fazia, inclusive, pouco tempo que havíamos ido a uma festa na casa de Leonardo Gondim, era aniversário do mesmo. Político, meu marido estava sempre em várias rodas de conversas, levando-me consigo onde ia. Foi lá onde aconteceu o meu reencontro com Vanessa. Pouco tempo depois de termos chegado, vi quando ela entrou, acompanhada de Pedro. Já fazia muitos anos que não nos víamos. Fiquei emocionada ali diante dela. Senti uma vontade gigantesca de lhe abraçar, de sentir seu carinho, seu cuidado. Fora para mim, uma mãe, desde a morte de nossos pais. Tinha um gênio forte, querendo as coisas exatamente do seu jeito e brigando quando não acontecia o que queria, mas era uma irmã maravilhosa, que me amava e fazia tudo por minha felicidade, menos apoiar-me em minha decisão de me casar com Donato. Sofri naquela noite ao ser ignorada por ela. Olhou bem para mim, como se me avaliasse e virou o rosto, disfarçando falar com Leonardo. Passei toda a noite, procurando-lhe pela casa, com meu olhar tristonho, cheio de esperança de voltar a ser amada pela minha querida irmã. Esperei o momento certo e, quando fui deixada um instante por Donato, tomei coragem e me aproximei de Vanessa, mesmo correndo o risco de ser mais uma vez ignorada.
- Vanessa, eu queria muito falar com você.
Meu coração estava acelerado. Temia que minha tentativa fosse em vão. No entanto, percebi em seu olhar, ao voltar-se a mim, seu amor, sua tristeza por estar tanto tempo longe.
- Você está muito bonita, Marina!
Foi a única coisa que conseguiu me dizer inicialmente, com a voz meio embargada. Vi seus olhos nadarem em lágrimas.
- Vanessa, estou tão feliz de poder te ver novamente.
- Você está bem? – Procurando esconder a lágrima que persistira em cair pelo canto do olho.
- Precisando de você, minha irmã. Sinto tanto a sua falta!
As lágrimas já me escorriam pelo rosto. Senti uma vontade imensa de lhe abraçar.
- Você fez a sua escolha, Marina.
- É o homem que eu amo, Vanessa. Eu não podia deixar de viver esse amor.
- Preferiu nos abandonar, a mim, ao Pedro, que sempre te teve como uma filha, e ao Felipe, que precisou tanto de você.
- Como ele está? – Ri ao lembrar de seu rostinho. – Ele ainda se lembra de mim, chama pelo meu nome?
- Não, claro que não!
Vanessa foi seca, me respondendo aquela pergunta, como se não quisesse que eu pensasse na possibilidade de alguma aproximação com ele. Nossa conversa fora finalmente interrompida por meu marido.
- Com licença. Vamos, querida, temos que ir.
Já estava com seu sorriso forçado no rosto, de quando está diante de uma situação não desejada, contendo-se notoriamente em sua raiva. Não deu uma palavra dentro do carro durante o percurso das Dunas, onde ficava a casa de Leonardo e a Beira-Mar, onde ficava nosso apartamento. Estava com medo do que ele estaria sentindo, mesmo que eu não soubesse exatamente o quê. Mas poderia imaginar. Ele odiava Vanessa por tê-lo rejeitado, quando nos conhecemos. Como se a atitude negativa de minha irmã a seu respeito o lembrasse de suas origens, que tanto queria esquecer. Quando entramos em casa, a única coisa que me disse, antes de se trancar no escritório, foi que eu estava proibida de encontrar Vanessa, por ela desejar o fim de nossa união.
Estava casada com o homem que eu amava, no entanto, longe de minha única irmã, de meu sobrinho querido, da família que me acolhera durante anos, dando-me segurança e amor. E o que eu poderia fazer? Jamais poderia ir contra aquela proibição, não sabia o que ele seria capaz, se ousasse lhe desobedecer.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 22

Pedro conhecera Donato Pessoa no primeiro semestre da faculdade de administração, dezoito anos antes. Os dois alimentaram uma forte amizade e em consideração ao filho, Alberto Lucena chamou o rapaz para trabalhar com ele, dando-lhe todas as oportunidades de crescimento, apresentando-lhe um mundo que não conhecia nem fazia parte. Pedro o considerava como um irmão. Mas acabaram se afastando, por Donato Pessoa ter se casado com a irmã mais nova de Vanessa, mesmo contra a sua vontade. Pedro perdera o contato com o amigo, em consideração à esposa, que o odiava por envolver sua irmã adolescente num romance.
No entanto, Donato Pessoa não era o que pensavam, e Pedro estava quase certo daquilo, embora não tivesse como provar. Mas pude perceber que estava obstinado a descobrir a verdade sobre a morte do pai e, principalmente, descobrir onde estava o tal dossiê, para dar continuidade ao trabalho que o pai começara e por aquele motivo morrera.
Depois de saber daquilo tive ainda mais medo daquele homem. Estava completamente arrependida de ter aceitado sua proposta e também desconfiada de que tinha a ver com o sumiço de minha filha. Era o jeito de falar sobre Clara, que me levava a pensar aquilo. Não suportara muito tempo e cheguei a afirmar o que pensava ao deputado e sua secretária. O que me deixou ainda mais desconfiada, vendo como os dois se entreolharam no momento em que gritei aquilo. Era como se estivessem surpresos pela minha conclusão.
Donato Pessoa exigiu que eu roubasse a proposta de programação de Pedro, para que pudesse ajudá-lo a conseguir o que tanto queria, o cargo de vice-presidente. Relutei, resisti, mas fora em vão. Ele finalmente me confirmara que sabia onde estava minha filha e que nunca mais a viria se não fizesse o que ele mandara. Eu não tinha outra alternativa. Pensava em contar tudo a Pedro, mas ficava imaginando o que poderia acontecer a minha filha, se não cedesse àquela chantagem. Verdadeiramente, não sabia se estava realmente falando sério ou se era um blefe. Achava estranho os olhares entre o deputado e sua comparsa. Quando falavam sobre aquele assunto, lançavam um olhar ansioso sobre o outro, como se estivesse na expectativa de minha reação, para saber se eu cairia ou não em sua armadilha. Eu só não sabia que armadilha era aquela.
Aos poucos ia percebendo que os dois já sabiam muito de mim antes mesmo de se apresentarem e me proporem o pacto. Mas o que eles sabiam? Fiquei me perguntando durante um bom tempo como poderia me parecer tanto com outra pessoa, como se fôssemos irmãs gêmeas, de tão parecidas. Havia tomado um grande susto quando vi as fotos que Pedro guardava de sua amada. Mirela e eu éramos realmente muito parecidas, embora, supostamente, seria mais velha que eu, se estivesse viva, estaria com trinta e três anos. A única diferença perceptiva entre a gente, além do sinal em meu rosto, do lado direito, que ela não tinha, era o corte e a cor de nosso cabelo. Mirela tinha o cabelo negro ondulado, na altura do ombro e eu ruivo e liso, um pouco mais longo. Parecia também ter sido alta, como eu. Pelo que eu sabia, o meu corpo era também como o dela, magra e de seios pequenos. As fotos mostravam que seus olhos tinham o mesmo desenho amendoado dos meus, bem como a boca carnuda. Definitivamente, não entendia como éramos tão parecidas. Mas de uma coisa eu tinha certeza, o deputado Donato Pessoa e sua secretária sabiam porquê. E até cheguei a indagar, certa vez, num de nossos inúmeros encontros. Obviamente que não obtive resposta, pelo menos a que eu queria. Mas eles sabiam e, mais cedo ou mais tarde, eu descobriria. Talvez fosse também um trunfo contra mim, para me terem nas mãos, como no caso de Clara.
Senti-me obrigada por minha própria covardia a fazer o que ele estava me exigindo. Exatamente no dia em que Pedro me fizera uma surpresa, lavando-me para conhecer seu novo apartamento, o qual seria o cenário de nossos encontros, de nosso amor, tivera a oportunidade de ficar sozinha na sala, diante de seu laptop. Imediatamente, abri meu e-mail, no próprio aparelho, anexando os arquivos que guardavam as idéias de Pedro para a programação da RTN e os enviei para meu próprio endereço eletrônico, não tivera coragem de mandar ao deputado, como ele havia me orientado, como se quisesse ganhar tempo. Em seguida, tirei o pen-drive, substituindo-o, momentaneamente, pelo que havia recebido de Luísa, provavelmente um vírus. Como que uma providência Divina, exatamente no momento em que devolvia o pen-drive de Pedro à entrada de USB do aparelho fui surpreendida por ele. Acho que foi um dos maiores sustos de minha vida. Com certeza, estaria tudo descoberto. Por um segundo senti um alívio, como se tirasse um peso de minhas costas. Eu não poderia continuar enganando o homem por quem estava apaixonada. Mas logo aquela sensação de que estava tudo resolvido, foi substituída por uma tristeza profunda. Tivera muitas oportunidades de contar-lhe toda a verdade e não o fizera, agora ele descobrira da forma mais estúpida. Eu era uma estúpida! Acho que me chamei de estúpida um milhão de vezes numa fração de segundos.
“O que você está fazendo aí, meu amor?”
Aquela pergunta me tirara do chão por alguns segundos, que pareceram uma eternidade. Não entendia o que estava fazendo da minha vida, como tinha tido coragem de enganar, mentir, fazer-me passar por outra pessoa, brincar com os sentimentos da pessoa mais sincera que eu havia conhecido. E tudo acabaria da forma mais idiota, num flagra de minha atitude vil. Definitivamente eu não tinha tido sorte, ou era a pessoa mais sortuda do mundo. Estaria aquela situação absurda resolvida sem eu precisar de dar uma palavra, pelo menos ter que tomar iniciativa de contar.
Todavia, lembrei também dos momentos que tivéramos juntos em nossa primeira sessão de Biodança, no dia anterior àquele. Pedro até me apresentara seu grande amigo Adriano Cordeiro. Era um homem de sessenta e cinco anos, grisalho, bonito, carismático e extremamente jovial, parecia que todos ali o adoravam. Fazia parte também do grupo, mas tinha faltado na sessão anterior, a qual havia participado pela primeira vez, por motivos de trabalho. Era como se quisesse muito me conhecer, por já ter ouvido o amigo falar tanto de mim.
Pedro e eu havíamos passado toda a verbalização olhando um para o outro, sem conseguir nos concentrar no que as pessoas falavam. Parecíamos estar longe dali, num mundo só nosso, envolvidos numa energia de muito afeto e amor, de muita vontade de estar juntos. Dava até para perceber que o facilitador já tinha se dado conta do que estava acontecendo e parecia cúmplice, pois sabia da história de Pedro e Mirela. Chegamos a fazer várias vivências juntos, quando o facilitador nos convidava a procurar um par, era como se nos procurássemos pelo salão e até ficava sempre por perto, para facilitar o encontro. Sentia vergonha do grupo, achava que com certeza estavam todos percebendo, mas não conseguia me controlar, era mais forte que eu. Numa das vivências, em que tínhamos que caminhar de olhos fechados pelo salão, numa atitude de entrega aos caminhos da vida, tremi ao passar por ele e sentir o seu cheiro. Era como se vivêssemos a magia de um encontro de almas, ali, e não tivesse mais ninguém, além de nós dois. Ao passarmos um pelo outro, encostamos apenas as mãos e sentimos o calor, o nervosismo que nos fazia tremer, paramos por alguns instantes e, nos abraçamos intensamente, como se confirmássemos a presença um do outro. A música que nos conduzia naquele exercício tinha uma característica transcendente, mas também afetiva. Sentíamo-nos extremamente convidados a viver aquela experiência do encontro. Éramos todo amor.
Tudo poderia então acabar!

CELINA GONDIM
Capítulo 23

Minha irmã tinha quarenta e dois anos e era uma mulher muito bonita, extremamente elegante, de porte majestoso, educada, contudo, nunca conseguira manter uma relação verdadeira de amor com alguém, desde seus primeiros namorados. Ainda cursando o último ano da faculdade de administração, aos vinte e um anos, casara-se com Willames Macena, dono da WM, uma das maiores agências de publicidade do país, no Rio de Janeiro e sócio de papai em sua agência aqui em Fortaleza. Um homem quinze anos mais velho, que não conseguira retribuir sua intensa paixão e se privar da vida de playboy, cheia de mulheres, que o tornara famoso. Um casamento que durara apenas dois anos, apesar dos grandes esforços de Maria Eugênia para mantê-lo, com as duas gravidez, de Maria Antônia, motivo maior da oficialização da união, e João Henrique. Nem mesmo cheguei a conviver com Willames, de quem sempre ouvi falar maravilhas como pessoa, além de sua beleza e charme irresistível. Ele acabara voltando ao Rio, passando a encontrar com as crianças apenas nos períodos de férias.
Acredito que Maria Eugênia nunca o tenha perdoado, fazendo os filhos acreditarem em sua irresponsabilidade e que os havia abandonado. Talvez tenha sido exatamente por esse motivo que ela aceitara se casar com Donato Pessoa, quatro anos depois de sua separação, apenas para provocar os ciúmes do ex-marido e chamar a atenção de papai, ou melhor, roubá-la exclusivamente para si. Ela bem sabia das desconfianças de todos sobre as verdadeiras intenções daquele homem, de seu desejo de subir na vida, mesmo assim insistiu naquele despautério. Verdadeiramente tenho minhas dúvidas se Donato não fora realmente comprado por minha irmã, para criar uma suposta situação problema em sua vida e ter todos os cuidados voltados para si naquele instante, o que se manteve por oito anos, para a surpresa de todos. Tratava-se, no entanto, de uma relação fria, sem amor, recheada de relações extraconjugais, tanto de uma parte, quanto da outra. Era como se fosse uma aliança entre os dois e tudo faziam para esconder a real situação de seu casamento. Eu mesma cheguei a flagrá-la aos beijos com um funcionário da agência, na sala de ginástica, numa das festas promovidas em nossa casa.
Minha irmã era marcada por sua amargura e frieza, parecia nunca sorrir, pelo menos que eu me lembre, jamais a vi sorrindo verdadeiramente, a não ser por ironia ou mesmo para celebrar alguma armação contra mim. Acho que no quesito humor, ela realmente combinava com Donato. Para falar a verdade, pareciam ter sido feitos um para o outro, embora não tivesse dado certo o casamento. No entanto, permanecia a parceria de trabalho. Desde a WM, da qual papai era sócio, até à rede de televisão, mantinham um pacto estabelecido no início de seu casamento, quando ela descobrira algumas armações do marido dentro da empresa, para ganhar mais dinheiro ilegalmente, sem que papai soubesse. Tornaram-se então cúmplices, ou sócios nas negociatas.
Maria Eugênia, que também era movida pela ambição e parecia querer cada vez mais poder, sonhava, na verdade, em assumir a presidência da RTN – Rede de Televisão Nacional, enquanto Donato, a vice-presidência. A ascensão dos dois dentro da empresa fazia parte do tal pacto: enquanto ela assumiria o lugar de papai, ele ficaria com o cargo que pertencia desde a fundação da emissora a Alberto Lucena e naquele momento estava com Pedro, seu filho. Embora essa relação fosse conduzida pelo pacto de ascensão profissional, nunca experimentaram verdadeiramente a amizade. Não perdiam a oportunidade de criticarem um ao outro, bem como de se agredirem mutuamente. Na verdade, ela não o perdoava por ter se entregado à paixão pela secretária Luísa, motivo maior do final do casamento, quando Donato decidira pôr um ponto final naquela relação absurda.
A vida amorosa de Maria Eugênia Gondim se fazia tabu na mansão das Dunas. Desde o final do segundo matrimônio, havia sete anos, encarnara o papel de mulher solitária, voltada exclusivamente ao trabalho e ao “cuidado com a família”. Ninguém podia imaginar, contudo, as escolhas por ela realizadas a fim de suprir suas carências e desejos mais secretos, cujos resultados levaram-na a experimentar uma vida dupla, transformando-a, em algumas noites, de poderosa executiva da RTN a ninfomaníaca de momentos ardentes, deliciando-se nos braços de três ou quatro garotos de programa, simultaneamente. Montara um luxuoso apartamento, na Beira Mar, fazendo-o cenário de suas intermináveis noites de prazer, longe do conhecimento da família e de todos.
Naquele mesmo período de separação, Maria Eugênia fora apresentada, coincidentemente, a Nacélio, irmão de Lorena, sua secretária, que acabava de chegar a Fortaleza e planejava montar um bar, na Praia de Iracema, o qual serviria de base para seus negócios. O mesmo era cafetão e agenciava garotos de programa. A idéia do bar “Mukifo”, negócio no qual minha irmã entrara como sócia, era de ser um centro de prostituição masculina, tendo como público, homens e mulheres. 
A misteriosa dona do Mukifo, transformara-se num mito para os diversos rapazes que prestavam serviços ao espaço. De posse de um book, com fotografias de todos os garotos, uma ou duas vezes por semana, ela entrava em contato com Nacélio a fim de requisitar a presença de alguns escolhidos para suas noitadas, em seu apartamento secreto, na Beira-Mar. O que se transformava num frisson entre os jovens. “Quem seriam os felizardos da noite?” E isso, não apenas por conta dos belos cachês oferecidos pela dama misteriosa, mas aquilo passara a ser encarado pelos garotos de programa como prova de sua virilidade, de seu potencial, poder de sedução. Havia uma disputa acirrada dentro do bar, a qual era alimentada intencionalmente por sua sócia majoritária, em cumplicidade com Nacélio. O que parecia fortalecer a minha irmã em sua auto-estima.
Tanto os garotos do Mukifo, quanto Nacélio só não esperavam que um dia a poderosa mulher, que nunca pisara os pés no bar, fosse eleger alguém como preferido. O que acontecera naqueles últimos meses de 2004, depois de conhecer o “moreno alto de olhos azuis”, como o chamava.  Sempre que citava a pequena lista de três ou quatro nomes para suas noites, via telefone, a seu sócio, requisitava com ênfase a presença de Guel Serrado, fazendo-o alvo de inveja e muitos comentários dentre os demais. Este, por sua vez, agia com soberba, vangloriando-se por seus feitos e sucesso com todas as mulheres. O encanto de minha irmã pelo rapaz, todavia, não se dava apenas por conta de sua beleza sedutora sobressaltada em seus um metro e noventa de altura, de seu olhar cafajeste ou do corpo atlético que ele ostentava, mas devido à sua performance na cama. Embora jamais admitisse, ela sabia dele como um excelente profissional do sexo, assim como o ele próprio, presunçosamente, considerava-se.
Foi exatamente Guel Serrado, quem conseguiu com Maria Eugênia, realizar o fetiche do patrão. Nacélio adorava colecionar vídeos das transas dos garotos com suas clientes. Tachando-os de incompetentes por nunca terem conseguido gravar os momentos com a dama misteriosa, narrados por todos como enlouquecedores. Ela fazia de tudo na cama, com quantos parceiros tivessem, à noite inteira. E, finalmente, ele tinha também em sua coleção um vídeo da sócia ninfomaníaca, protagonizando cenas de sexo explícito com três garotos além de Guel.
A dona do Mukifo fora, no entanto, surpreendida, no início de 2005, pela saída de seu principal garoto ou quase amante, do bar. Guel Serrado alegara motivos pessoais para Nacélio, deixando o trabalho. O rapaz nem imaginara a fúria despertada naquela mulher. Em sete anos, ela nunca havia escolhido ninguém, e de repente, aquele nome era citado duas ou três vezes por semana dentre os demais, os quais se revezavam. Para ela, era inadmissível aquela demissão, sem nenhuma explicação mais esclarecedora.  Desejava encontrá-lo e descobrir então por quê.  Certamente o faria. 

CELINA GONDIM
Capítulo 24

Maria Eugênia sabia como intimidar a todos com seu olhar de superioridade, ou pelo menos tentava. Era deste modo que agia comigo, em todos os momentos em que nos encontrávamos. Às vezes, eu gostava de tomar o café da manhã na piscina, respirando o ar puro do jardim de nossa casa, a brisa das dunas de Fortaleza. Ela não perdia a oportunidade de se aproximar em algum instante em que eu era deixada sozinha por Dulce.
- Ora vejam só quem está tomando sol, hoje logo cedo, se não é minha irmãzinha caçula...
Aproximava-se com um sorriso sarcástico tomando-lhe a face.
- Onde está sua empregada?
- Não é de sua conta.
Tentava não lhe dar ouvidos, nem mesmo responder-lhe as provocações. Mas achava injusto suas atitudes, suas agressões.
- Não devia estar trabalhando?
Perguntei como se quisesse distraí-la.
- Tem razão. Mas tive que resolver uns assuntos importantes com João Henrique. – Já estava se sentando na cadeira ao lado – Afinal tenho uma família também, não é? Não sou apenas uma executiva. Como sabe, minha querida irmã, tenho muitas preocupações, muitas “ocupações”. Claro que não sabe mais o que é isso, ter ocupações. Deve ser realmente horrível sua situação. Além de perder o marido, não poder mais fazer nada, nem mesmo se coçar.
Podia perceber que Maria Eugênia já estava rindo, feliz em me fazer sofrer, em destilar aquelas afirmativas venenosas. Queria ter forças e não me deixar cair em seu jogo, o mesmo desde que nos conhecemos. Sua intenção sempre fora de me humilhar, de acabar com qualquer possibilidade que me fizesse feliz.
- Por que não me deixa em paz, Maria Eugênia?
- Como assim em paz? Estou apenas querendo conversar.
- Sabe do que estou falando.
- De que está falando? Fale, tente falar, vamos, querida, tente, que tentarei te entender, mesmo você com essa voz enrolada.
Maria Eugênia sabia como me atingir. Minha dificuldade de me expressar, de me fazer entender, às vezes, impossibilitava minhas interações e aquilo me comprimia a alma. Não aceitava minha condição e ela percebia bem aquele incômodo.
- Engraçado como é a vida, Celina, passei minha vida inteira tentando arranjar uma forma de tirar você do meu caminho. – estava rindo com seu comentário – E não precisei fazer absolutamente nada, o próprio destino deu conta dessa situação, de tal forma que hoje tenho pena de você, minha irmã, muita pena.
- Dispenso sua pena.
- Não importa. Se fosse uma pessoa normal, faria algo para me impedir de sentir pena ou expressar meu sentimento, mas desse jeito. – com um gesto desdenhando diante de meu estado físico.
Por um instante entendi que minha irmã estava coberta de razão. O destino do qual falava era Deus e Ele tinha tirado de mim o direito de me defender. Nada podia fazer ou dizer, restava-me somente aceitar e sentir, sentir pena de mim mesma. Só não queria que fosse ali, diante daquela mulher que tanto me odiava e torcia pela minha infelicidade. Todavia, nem nisso Deus estava do meu lado. As lágrimas rolavam-me o rosto e eu sentia ainda mais raiva de mim mesma, por não conseguir evitar de expor meu sofrimento por sua vitória.
Já não conseguia mais dizer nada. Perdia totalmente o domínio das palavras, que davam lugar ao choro embargado, dolorido, que relutava em sair.
- Está chorando? Não chore, querida. Se for se lamentar por ser inválida, passará o resto de sua vida num vale de lágrimas.
“O resto de minha vida” – Pensei então enquanto tempo seria o resto de minha vida, em quanto tempo teria de agüentar suas ironias, suas agressões, seu ódio e desprezo fazendo de minha vida um inferno. Já não bastava eu estar presa numa cadeira de rodas, sem poder mover meus braços, minhas pernas? Quanto tempo eu ainda teria de suportar?
Eu não conseguia deixar de pensar, naqueles momentos, na possibilidade de, de alguma forma, tirar minha vida. E aí sim, estaria tudo acabado, o sofrimento, a dor, minha solidão, a carência. A presença doentia de Maria Eugênia em minha vida não seria mais um peso. E eu, não seria mais um peso para ninguém, nem muito menos para papai.
Pude perceber naquele instante quando Leonardo Gondim se aproximava. Então tratei de engolir o choro e procurar disfarçar. Queria evitar conflitos, principalmente por ele estar ainda se recuperando de uma estafa.

CELINA GONDIM
Capítulo 25

 Papai era incansável, parecia respirar trabalho. Talvez como meio de preencher sua solidão. Apesar de ser ainda um homem jovem, estava quase sempre sozinho, não se permitia viver muitas histórias de amor e, quando acontecia, acabava cedendo às pressões de Maria Eugênia e pondo um fim à relação. Ela exercia um certo poder, controle sobre ele, que o isolava do resto do mundo, como se lhe quisesse somente para si.
Eu não conseguia compreender em que minha irmã se recompensava com a solidão de papai, sendo que as desculpas eram sempre as mesmas, que faria de tudo para afastar de sua vida, interesseiras de olho em nosso patrimônio. Contudo, o que mais me indignava era como um homem tão maduro se deixava envolver pelos ciúmes infantis de sua filha ao ponto de abnegar-se totalmente de viver um grande amor.
Papai era um homem bonito. Aos sessenta e cinco anos, alto e elegante, sua calvície e barba grisalha lhe davam um certo charme, com um ar de aristocracia. Lembro-me bem o quanto mamãe o elogiava, ressaltando não apenas sua beleza, mas também sua gentileza e educação. Falava-me sempre do quanto era cavalheiro e cuidadoso, o que eu podia perceber claramente em nossos encontros, antes da morte de mamãe, que mesmo sendo rápidos, deixavam-me extremamente feliz com sua presença calorosa, e mais tarde, quando passamos a morar juntos em sua casa, passei a admirá-lo ainda mais.
Acreditava que papai se enterrava no trabalho como uma forma de fugir de si mesmo e da possibilidade de viver uma história verdadeira com alguém. Por isso passava o dia inteiro e parte da noite e, muitas vezes, entrava pela madrugada, primeiro na agência de publicidade, depois na RTN. Transformava sua vida profissional inteiramente em pessoal. Fora do trabalho, uma de suas poucas diversões era sua coleção de espadas. Para ele, um símbolo do conhecimento, como alguém um dia lhe dissera.
Ao lado do quarto de papai havia uma sala, com prateleiras e mesas com tampos de vidro ostentando a coleção de espadas, de todos os tamanhos, cores e modelos. Para Leonardo Gondim, uma grande paixão, fazendo-o acumular centenas, nos últimos trinta anos. Ali estavam peças vindas de diversas partes do mundo, de diferentes valores, que já ultrapassava milhões de dólares, segundo ele mesmo, orgulhando-se de seu feito. Papai adorava contar a história de cada peça, de onde havia vindo, seu valor por conta dos detalhes, e muitas vezes, a dificuldade em arrematá-las nos disputados leilões. O que para ele era motivo de orgulho e ainda mais valorização pelo objeto. Passava horas naquela sala apreciando suas aquisições, chegando a esquecer do tempo. E não se cansava em contar as mesmas histórias sobre cada espada inúmeras vezes. Querendo alegrá-lo com um presente, bastava oferecer-lhe uma espada. Não teria erro.
“São peças belíssimas, imponentes. Lembram-me força, coragem, poder.” Dizia ele entusiasmado.
Papai era completamente apaixonado por suas espadas. Naquela sala, passaria horas, limpando-as pessoalmente, como se limpasse a relíquias. A cada nova peça que chegava, mais uma alegria. Ali, esquecia do mundo, até dos negócios.
Fuga ou não em sua dedicação ao trabalho, Leonardo Gondim era um grande empresário. Quase trinta anos antes, fundara em sociedade com Willames Macena, a agência de publicidade que viera a se tornar anos mais tarde a maior do Nordeste, filial da WM, agência de Willames, no Rio, uma das maiores do país. Nesta agência, trabalhara por dezoito anos, até a venda de sua parte para o genro. O grande sonho de papai na verdade sempre fora abrir um canal de televisão. E depois que conseguira a concessão com o Ministério das Comunicações, enfrentara uma luta de poder contra Maria Eugênia, que não aceitava sua decisão de se desfazer de sua parte na agência. O apoio de minha irmã à empreitada de papai só veio após ela considerar aquele rompimento profissional com Willames Macena uma vingança pelo fim de seu casamento com ele.
Fundara então a Rede de Televisão Nacional – RTN. Na época, um pequeno canal transmitindo programações locais de Fortaleza a outros seis estados do Nordeste, através de emissoras afiliadas que foram também inauguradas no mesmo período. Investira tudo o que tinha naquela empreitada, mesmo contra a opinião de muitos profissionais que com ele trabalhavam naquela época, já que achavam impossível a realização de seu grande sonho – transformar aquele pequeno canal numa das maiores redes de televisão do país – e tudo por estar fora do eixo Rio-São Paulo. Acreditava-se na época, que a RTN jamais conseguiria a audiência nacional com uma programação local, e que seria inviável se construir uma grade de programação que agradasse o público nacional, daqui de Fortaleza, longe dos dois grandes centros de produções televisivas do Brasil.
Neste sentido, papai foi um visionário, reconhecido pelos grandes empresários do país, como um homem inovador, sinônimo de criatividade, coragem, confiança e desejo de projetar a cidade de Fortaleza como um grande centro do país, em condições de servir seus moradores e todo o povo brasileiro de uma vida digna e propostas de crescimento e desenvolvimento.
Ao longo dos primeiros anos de existência, a RTN foi constituindo afiliadas em diversos estados brasileiros e, aos poucos, papai foi contratando profissionais de renome nacional para as áreas de produções da emissora, dando uma tônica nacional à programação até então regional.
O primeiro grande projeto da RTN foi a contratação de uma grande equipe jornalística, de nomes conhecidos de telejornais nas áreas de apresentação, reportagem e edição, lançando em seu quarto ano de vida o Revista Notícia – A Máquina da Informação – Um telejornal diferente, ágil, com três apresentadores comandando o noticiário diretamente de São Paulo, Brasília e Fortaleza, simultaneamente, saindo dos tradicionais balcões dos demais telejornais das outras emissoras, para uma apresentação em movimento. Esta nova empreitada tinha como característica principal uma redação clara que fosse acessível a qualquer telespectador de qualquer classe social, além de quatro escritórios internacionais montados em Nova Iorque, Londres, Moscou e Israel, com toda uma equipe. E ainda trazia séries de reportagens, documentários exclusivos, furos, denúncias e entrevistas especiais. Conseguindo durante uma hora de duração, no horário nobre das vinte uma e trinta da noite, uma média de quatorze pontos de audiência, chegando ao segundo lugar nacional. Fora um grande projeto que deu certo, dando visibilidade à RTN em todo o país.
Todavia, era apenas o princípio do sonho de Leonardo Gondim. No ano seguinte, concomitantemente com a jornada de crescimento da emissora fortalezense em constituição de novas afiliadas por todo o país, ele deu início a mais um grande e ousado projeto, contratando diretores, autores e grandes nomes da teledramaturgia, para constituir o seu núcleo de novelas. Investiu dez milhões de reais na produção de sua primeira novela que tinha como título Tiara. Ambientada na capital cearense, a história conseguira média de apenas três pontos de audiência, no horário das dezenove e quarenta e cinco. As cenas de estúdios eram gravadas no Rio de Janeiro e as externas em Fortaleza.
A segunda novela, Força de Vontade, seis meses depois, com quatro pontos de audiência a mais que sua antecessora, exibida às vinte horas, veio confirmar a intenção de Papai, de levar a realidade e cenários cearenses a todo o Brasil. A idéia era que todas as novelas da RTN fossem ambientadas no Ceará, procurando mostrar ao país as mais diversas visões acerca de nosso Estado.
Foi, contudo, a terceira novela que consolidou o sucesso da RTN com seu núcleo de teledramaturgia, no horário alternativo das vinte e duas e trinta, logo após o Revista Notícia – A Máquina da Informação. Sertão, conseguira média de quinze pontos de audiência, alcançando o segundo lugar nacional. Assim, chegava a ameaçar, as grandes emissoras do país. A partir de então, todas os folhetins do canal fortalezense mantinham esta média e até ultrapassavam, muitas vezes, chegando a atingir vinte pontos. Incluindo, minha novela, baseada em meu primeiro livro, sobre o mundo das drogas, pouco antes do acidente.
Conseguindo visibilidade e respeito, papai colocara sua emissora no patamar das grandes redes de televisão do país. Estendendo o sucesso de suas novelas e telejornal aos demais horários, com outros programas inovadores, que eram gravados em estúdios no Rio, São Paulo e Fortaleza. O que todos achavam que não passaria de um grande sonho, transformara-se, nos últimos anos, num imenso império, fazendo de Leonardo Gondim um dos empresários mais importantes do Estado e do Brasil.
Podíamos perceber claramente o cansaço de papai. Naquela época, fora abatido, segundo ele, por uma forte estafa, que o tirara do trabalho por alguns dias, para a surpresa de todos. Até então ele só havia se afastado por conta de viagens e reuniões de negócios. No entanto, escondia de todos nós o real motivo de seu súbito desmaio, dias antes, no café da manhã. Eu estava extremamente desconfiada de seu estado de saúde. Há algum tempo vinha atentando às freqüentes dores de cabeça das quais ele se queixava, o que culminou com o tal desmaio. Mas foi ao ouvir, sem querer, um telefonema dele para seu médico, que me despertou, de fato, a preocupação por sua saúde.
Os dias em que papai esteve em casa, se recuperando, por ordens do médico, mesmo contra sua vontade, mexeram com toda a família. Maria Eugênia parecia ter até ficado feliz com a ausência dele na empresa, afinal era um ensaio do que realmente desejava. Já Maria Antônia mostrava-se extremamente empenhada em sua recuperação e exigia dele, permanentemente, o cumprimento rigoroso de dieta e cuidados de repouso, orientados pelo médico. Os dois tinham uma relação de intenso afeto e cumplicidade. Papai acabava fazendo tudo o que ela queria. Quanto a João Henrique, ficara bastante abatido com o acontecido, era também muito apegado ao avô e não aceitava que ele tivesse sofrido nenhum problema de saúde, como se fosse inatingível e nada pudesse lhe derrubar. Estranhava, na verdade, vê-lo de cama, doente, o que o indignava.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 26

Tudo o que Pedro e eu vivêramos naquelas últimas semanas não poderia acabar diante de uma situação daquelas. Eu não queria que fosse daquele jeito. Pelo menos que eu tivesse a oportunidade de tomar iniciativa e revelar toda a verdade. Apostei então todas as minhas fichas, dizendo-lhe que estava ali quando ouvi uma espécie de sinal, barulho no computador e havia me aproximado para verificar o que era.
A sorte estava lançada. Ele poderia acreditar ou não, quando visse o que acontecera a seu trabalho. Contudo, quando percebeu que um vírus tinha apagado todos os seus arquivos, ficou transtornado. Dava para perceber a preocupação, a decepção dele, com a testa franzida, ali diante da máquina, mexendo rapidamente nas teclas, na esperança de reaver alguma coisa.
“Meu Deus, o que é isso? Mirela, parece que perdi tudo!”
Estava desesperado, fazendo várias tentativas, tentando uma função e outra, mas o vírus tinha apagado todo o disco rígido da máquina, inclusive os arquivos do pendrive, já que estava inserido na entrada de USB.
Tive tanta pena de ver o homem por quem eu esta apaixonada daquele jeito, desesperado, jogando o cabelo para trás com as mãos, deixando ainda mais livre a beleza de seu rosto, no mesmo momento em que respirava fundo, uma atitude sua sempre que se via em situações perturbadoras. Ele precisando de ajuda e eu ali, com tudo em meu poder, poderia apenas abrir meu e-mail e estava lá, todo o arquivo, todo o seu trabalho de meses, pois tinha iniciado os projetos de novos programas antes ainda da tal proposta da RTN para eleição da vice-presidência. Era um grande profissional e estava pensando em grandes estratégias para aumentar ainda mais a audiência da emissora e garantir a disputa com as grandes redes de TV do país, do Sudeste. Admirava Leonardo Gondim, o dono da empresa, por seu empreendedorismo, sua iniciativa de transformar uma rede local num grande canal de televisão, a primeira experiência deste porte, no país, afinal, todas as grandes redes sempre foram do Rio e São Paulo, a RTN era a exceção.
Estava me sentindo um monstro por ter tido coragem de fazer aquilo com o homem que eu amava. Pela primeira vez, vi Raquel não me apoiar numa decisão.  Raquel tanto tinha me aconselhado a contar tudo, antes que ele descobrisse. Tínhamos até ensaiado certa vez, como seria o momento. Ela torcia para que eu revelasse a verdade, achando que se eu o fizesse, Pedro me perdoaria, se era tão bom, tão compreensivo, maduro o quanto eu falava. Ela sempre quisera o meu bem, mesmo quando estava contra seus irmãos, naquela situação não seria diferente. Havia me aconselhado, me dado força e coragem naquele mesmo dia, pouco antes daquele infortúnio. Mas eu não seguira os seus conselhos, havia preferido o caminho da mentira, do mal. Senti-a quase que decepcionada por mim, pelo que eu tinha feito, quando lhe contei que estava com os arquivos em meu e-mail e não os havia entregado a Pedro, permitindo o seu desespero.
Raquel sempre me falava que quando realmente amamos alguém, jamais permitimos o seu sofrimento. Por um momento, até cheguei a compreender o que ela fazia com Djair, seu marido. Não tenho nenhuma lembrança de cuidado e proteção dele para com ela, mesmo assim ela sempre esteve com ele, nos momentos em que mais precisou. Djair sumia freqüentemente por meses, dizendo trabalhar como representante de produtos de limpeza, viajando por vários estados, embora nunca trouxesse dinheiro para casa e ajudasse na criação dos dois filhos Zezinho, de seis anos e Rafael, de cinco. Mesmo persistindo naquele casamento, era uma mulher solitária, carente de cuidado. Acho que nunca experimentara ser amada realmente. Eu senti pena de Raquel por várias vezes, quando a via passar noites em claro esperando Djair, que havia prometido que viria e não aparecia, ou mesmo quando sumiu com todo o dinheiro que ela recebera de indenização quando fora demitida do hospital, dizendo que ia investir na entrada da compra da casa própria e depois de muitas desculpas, chegara um dia contando que fora roubado nas estradas de Minas, dentro de um ônibus. Eu via que ela sabia da verdade, sempre soube, mas acreditava que um dia ele melhoraria, mudaria, ou desejava profundamente que aquilo acontecesse um dia. Djair tinha trinta e oito anos, a mesma idade da mulher, mas gostava de se cuidar e parecia bem mais jovem, com um jeito de malandro, sempre tivera muitos rabos-de-saia. Apostava em seu taco e se sentia o próprio Dom Juan dos subúrbios. Eu chegava a enojar aquela figura pernóstica, que tanto enganava a minha amiga, embora ele se desse bem com todas as pessoas. Djair era o tipo de homem que não se indispunha com ninguém nunca, sempre teria uma carta na manga para se livrar de situações embaraçosas e se dar bem.
Doía ver até Raquel contra mim. Contudo, sua postura não poderia ser diferente diante daquele fato absurdo. Talvez tenha sido exatamente sua postura que me incentivara a não entregar os arquivos ao deputado, pelo menos não naquele momento, apesar de sua pressão, que ia se intensificando quando ia chegando ainda mais perto da data estipulada para entrega dos projetos de programações. Na verdade, acho que torcia para que Pedro conseguisse reescrever suas idéias a tempo. Mas a situação, as cobranças por parte daquele homem horrendo tornaram-se ainda mais terríveis quando eles ficaram sabendo, através de uma secretária dentro da empresa, que o projeto de Pedro havia sido destruído por um vírus. É claro que fizeram a ligação e logo se certificaram que parte de seu plano fora desenvolvido, só não contavam com a minha mudança de planos de não lhes entregar mais os tais arquivos.
No entanto, Donato Pessoa sabia exatamente como conseguir o que queria de mim. Trouxera-me notícias do paradeiro de Clara, dizendo que haviam descoberto o endereço da casa de praia onde o tal casal que compraria minha filha estava em Aquiraz, além do nome e endereço do caseiro, que trabalhara para os holandeses naquele momento. Diante daquela notícia eu não poderia hesitar, não poderia brincar com aquele homem, havia uma grande possibilidade de ser verdade, e se fosse, eu seria louca de não fazer algo em prol da minha filha. Em seguida, ele fora ainda mais direto, propondo trocar aquelas informações pelos arquivos de seu rival profissional. De fato, eu não sabia se poderia confiar em sua palavra, mas o fato era que não tinha escolha, ou confiava e apostava na possibilidade de saber de minha filha ou experimentava a lealdade com o homem a quem amava, ou dizia amar, pois naquela situação, se o que Raquel falava fosse realmente verdade, eu não o amava coisa nenhuma, sendo responsável pelo seu prejuízo.
Uma mãe seria um monstro por tentar encontrar a sua filhinha de um ano, embora que prejudicando uma pessoa? Achava que a resposta para aquela indagação que ficava em minha mente permanentemente, tirando-me a atenção no momento presente, como se tivesse uma esperança de encontrar uma resposta negativa, era sim. “Os fins não justificam os meios!” – Dormi noites seguidas repetindo aquela frase em minha cabeça. Achei que fosse enlouquecer.
Acabei entregando o que o deputado Donato Pessoa tanto queria. Pude perceber o seu olhar de vitória, num gesto de cumplicidade com Luísa, no momento em que mandei os arquivos para seu e-mail.
“Bom trabalho, Júlia. Você foi formidável.”
Tive vontade de vomitar ao ouvir aquilo. Era como se quisesse estabelecer uma intimidade, uma cumplicidade que verdadeiramente não existia. Eu estava sendo forçada pelas circunstâncias a fazer aquela barbaridade. Era a minha filha que estava em jogo, não era por eles, nunca seria por eles. Acho que as náuseas que senti não foram bem por causa do deputado, foram de mim mesma. Mais uma vez estava demonstrando minha fraqueza, minha falta de princípios, de caráter. Lembrei o quanto era rigorosa com as pessoas, com o mundo, sempre exigindo uma atitude ética, correta diante de situações em que me indignava, fosse pessoalmente ou até mesmo assistindo um programa pela televisão, ou uma matéria/manchete em algum jornal ou revista, estava eu ali, julgando, culpando, punindo, estipulando penas. Minha história naquele momento era um prato cheio pra mim mesma, para que eu pudesse destilar a minha crítica e mostrar ao mundo que eu era a senhora sabe tudo, a senhora justa e correta. Que ironia aquela. Podia perceber naquele instante que os meus princípios, que acreditava serem inabaláveis, não passavam de pó e tinham sido varridos pela minha própria fraqueza. Por um momento, não sabia mais quem eu era, o que estava fazendo.
Poucos dias depois aconteceu a apresentação dos projetos de programação na RTN, numa reunião especial, com todos os diretores. O trabalho de Donato Pessoa fora praticamente o mesmo projeto de Pedro Lucena, o qual conseguira através de mim. Quando Pedro chegou em casa, naquela noite, estava completamente atordoado, sem saber o que pensar. Havia perdido todo o seu trabalho, de meses, por um vírus, que inexplicavelmente entrara em seu computador, segundo ele, e depois, se deparara com quase todas as suas idéias sendo apresentadas por seu mais forte concorrente ao cargo de vice-presidente dentro da empresa. Sem sombra de dúvidas, era algo, no mínimo muito estranho. Chegara a cogitar que tudo poderia não ter passado de uma estratagema do rival, o que me deixara de cabelo em pé e me causara calafrios, só em pensar que ele poderia ampliar as suas desconfianças a mim. No entanto, o próprio Pedro depois desconsiderou a hipótese, achando-a absurda, absolutamente impossível, a não ser que tivesse sido através de mágica.
Mal sabia ele que não fora por meio de mágica, mas através da mulher que amava e confiava. Rezei muitas vezes para que Deus me desse coragem de contar toda a verdade, que não era Mirela e sim Júlia Serrado, e mais, que fora eu quem roubou suas idéias e havia as entregado a Donato Pessoa. Passados alguns dias, entretanto, os diretores da RTN foram surpreendidos com a decisão de Leonardo Gondim, o dono da emissora, declarando Pedro Lucena o vice-presidente definitivo da empresa. Embora seu projeto de programação estivesse inacabado e muitas de suas idéias já tivessem sido apresentadas no projeto de Donato Pessoa, havia demonstrado uma profunda competência durante os meses em que assumira provisoriamente o cargo, já implementando novos programas, séries, que dera à emissora bons pontos a mais na audiência, elevando seu faturamento mensal.
A decisão de Leonardo causara um grande frisson nos corredores da RTN. Todos comentavam a vitória de Pedro Lucena. Haviam aqueles que o elogiavam, reconhecendo seu trabalho como uma brilhante atuação, e haviam também aqueles que o criticavam, taxando-o de oportunista e ladrão de idéias, já que apresentara seu trabalho após a apresentação de Donato Pessoa, trazendo várias propostas idênticas as do respectivo projeto. Quem o criticava achava que deveria renunciar ao cargo, por uma questão de ética. Na realidade, Pedro chegara a saber, através de D. Jandira, sua secretária, que se tratava de uma manobra política de seu concorrente dentro da empresa, assim como fazia em todas as suas campanhas eleitorais. Verdadeiramente não entedia a posição de Donato Pessoa e sua hostilidade para com ele, achava que uma velha amizade de tantos anos não poderia ser trocada pelo desejo de poder assumir um grande cargo ou manter o controle sobre qualquer coisa que fosse. De fato, não conseguia mais reconhecer seu grande amigo, a quem tanto ajudou e que esteve presente em tantos momentos importantes de sua vida. Chegou a procurá-lo para conversarem, queria saber o porquê de seu afastamento, sua indiferença a ele, se era somente pela disputa de poder dentro da emissora. Mas a atitude do amigo o deixara ainda mais perplexo e desconfiado, pois agira como se nada estivesse acontecendo, se não tivesse realmente nada contra ele e como se fossem fantasias de sua cabeça. Surpreendia-se com o cinismo de Donato, não conseguindo reconhecer aquele tipo de postura como um traço seu durante todos os anos em que se conheciam, embora estivessem longe, sem conviver diariamente desde sua ida para Londres.
Deus é pai! Estava tão feliz com aquela notícia. Tivemos um jantar especial, num restaurante na Praia de Iracema, de frente para o mar, onde brindamos ao seu reconhecimento, à sua vitória sobre a falta de sorte que tivera em relação aos arquivos no computador. Pedro entendia aquilo como uma forma do universo reparar a fatalidade eletrônica, rindo da situação.
“Mirela, acredito que o maior problema do ser humano é sua falta de fé. Quando confiamos em Deus e nos entregamos verdadeiramente a Ele, tudo acontece para o nosso bem, da forma que é melhor para nós. O que nos prejudica, é nossa mente, no momento em que deixamos nosso ego falar mais alto. Não conseguimos compreender que é exatamente aí que nos perdemos e nos tornamos infelizes.”
Era como se Pedro soubesse do que se passava em minha cabeça. Às vezes ficava perplexa com sua assertividade em relação a meu momento existencial. Chegava a pensar que lia meus pensamentos, minha aflição. Sentia-me precisamente como ele descrevia, perdida em minha falta de fé, fazendo o que passei minha vida inteira achando que era errado. Ainda bem que meu pai não estava ali, testemunhando minha completa covardia e, conseqüentemente, falta de caráter. Não sabia se estava sendo dura demais comigo mesma, mas com certeza seria aquilo que diria se se tratasse de outra pessoa e soubesse daquilo. Achava então que nunca mais julgaria ninguém por pior que parecesse uma atitude de alguém, podia existir por trás um forte motivo que não necessariamente faria daquela pessoa alguém ruim. Das duas uma, ou eu não era mal-caráter e estava sendo vítima de meu próprio ego, como falava Pedro, ou era totalmente desprovida de vergonha, moral e ética. Mas não seria aquela, a dança que a vida me convidava a dançar naquele momento, ou era eu mesma quem estava criando aquela música? Necessitava daquelas respostas, o quanto necessitava de respirar, para prosseguir minha caminhada.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 27

A cada dia que se passava, amava Pedro Lucena cada vez mais. Alimentava uma admiração profunda por sua ética, seu respeito ao ser humano, seu cuidado com as pessoas, sua solidariedade indiscutível. Pedro sempre tentava ver o lado bom de todos com quem interagia, apostando cegamente na verdade, na essência das pessoas. Achava impressionante quando ele tentava entender até mesmo as atitudes de Donato Pessoa, que segundo ele, sabia que o amigo tinha tido uma infância difícil, desprovida de condições financeiras dignas, de uma formação de qualidade, quando criança. Era de seu conhecimento que ele havia se revoltado muitas vezes contra a sua realidade social, e achava que poderia ser por aquele motivo, sua hostilidade para com ele, como se ele, Pedro, fosse a lembrança das condições sociais e financeiras que nunca tivera. Era como se tentasse minimizar a tristeza que sentia pela falta do amigo.
O mesmo fazia Pedro em relação à Vanessa, embora ela tivesse declarado guerra contra nosso relacionamento, ao descobrir minha existência, o que acontecera poucos dias após eu tê-la visto pela primeira vez, momento antes de começar uma de nossas sessões de Biodança. Vanessa nunca havia desistido de tentar uma reconciliação e voltara a procurar por ele, prometendo pedir desculpas ao grupo pelo que fizera ali semanas antes, quando teve uma de suas crises de ciúmes ao flagrá-lo numa vivência de abraços com uma de nossas colegas. Por pouco não fomos pegos por ela nos beijando, naquele dia, mas segundos antes saí de onde estávamos, nos arredores do salão, exatamente no momento em que ela chegava, para tentar falar com ele. Pedro era sempre muito discreto, procurava não chamar atenção sobre sua intimidade e afastou-se do salão para conversar com a ex-mulher. Mas pouco tempo depois, fomos flagrados por ela num shopping.
Aos trinta e quatro anos, Vanessa era realmente linda, como Pedro já havia me dito. Olhos verdes, cabelo curto e loiro. Uma mulher extremamente elegante, de porte fino, apesar de perder totalmente sua classe, quando tomada pelo ciúme do ex-marido.
Que situação constrangedora aquela. Senti um arrepio ao ouvir aquele grito, chamando por Pedro.
- O quê que você está fazendo aqui com essa mulher, Pedro? Quem é essa mulher? Quem é?
Estava aos berros em pleno shopping, roubando a atenção de todos que por ali passavam. Era como se nós estivéssemos fazendo algo de muito errado e de repente tivéssemos sido pegos em flagrante.
- Por favor, Vanessa. Nós podemos conversar mais tarde, em outro lugar.
- Conversar? Então é com essa vagabunda que você tem saído?
- Por favor, Vanessa...
Dava para notar o cuidado de Pedro tentando contê-la, para que não fizesse tanto escândalo. Por um momento senti pena de vê-lo naquela situação, tão embaraçosa. Definitivamente, ele não merecia passar por aquilo. Senti-me culpada, mesmo sem ter provocado aquela cena, se não fosse por mim, ele não estaria sendo tão exposto. Agradeci a Deus quando ele pediu para que eu fosse embora e levou sua mulher dali, mesmo contra a vontade dela.
“Você não vai ficar com ninguém, Pedro, não vai! Se você pensa que vai se livrar de mim assim tão fácil, você está redondamente enganado, está ouvindo?”
Fiquei com aquelas afirmativas se repetindo por dias em minha mente. Ela parecia ter muita convicção do que falava, não era um blefe, uma simples ameaça de alguém desesperado. De fato, Vanessa começou a fazer de nossas vidas um inferno. Proibira a entrada de Pedro em sua casa, para que não visse Felipe, exigindo o término de nosso relacionamento. Ligava permanentemente para o apartamento dele e numa dessas ligações, dissera-lhe que o filho tivera outra crise de suas alergias e quase fora levado ao hospital, com a garganta praticamente vedada, sem conseguir respirar, depois de provar num prato de camarão que estava na geladeira. Eu sabia que Pedro estava extremamente preocupado, quase que desesperado, apesar de procurar manter a calma, nem havia me falado detalhes do acontecido, para que eu não me sentisse culpada, mas acabei ouvido uma de suas conversas pelo celular com seu amigo Adriano, pedindo-o para que procurasse falar com Vanessa e tentasse ver o menino. Estava disposto a não ceder às chantagens da ex-mulher, mas sofria, passava noites em claro, preocupado, tentando ligar para ela e depois de muitas tentativas frustradas, conseguia falar, embora que para ouvi-la reafirmar suas reivindicações de retorno ao casamento.
Eu não poderia compactuar com aquilo. Entrara naquela história por causa de minha filha, jamais permitiria que alguém, muito menos o homem por quem estava completamente apaixonada passasse pela mesma situação pela qual eu estava passando, sendo impedido de conviver com seu filho. Sabia que aquela mulher levaria suas promessas às últimas conseqüências, e Felipe precisava do pai. Não seria eu quem permitiria aquela barbaridade acontecer. Pedro estava sofrendo muito e eu podia ajudá-lo. Não me importava mais o plano, aquele maldito plano que me colocara dentro daquela relação. Deus me mostraria um outro jeito de reaver minha filha, não poderia ser com base no sofrimento de Pedro. Sem falar que era um ótimo momento para acabar com tudo aquilo sem causar grandes danos à vida dele. Talvez não precisasse saber que eu não era Mirela, sua amada, poderia ter conhecimento de minha real identidade somente mais tarde, quando já tivesse acabado o que sentia por mim. De certo, sofreria menos e eu não teria que enfrentar sua raiva, sua decepção. Poderia ser mais uma atitude egoísta de minha parte, mas diante daquela situação eu já não sabia mais onde estava toda a coragem que me acompanhara durante toda a minha vida e me fazia ter forças para lutar pelo que eu sempre almejei. Sempre fui uma mulher forte, que trilhava o caminho do bem e de repente me via fraca, um verme, como se todas as minhas crenças tivessem desaparecido. Nunca antes teria sido capaz de mentir, enganar, viver uma falsidade. Naquele momento, me via totalmente afogada em uma trama sórdida, como se tivesse caído num filme e vivesse uma personagem que até então eu não conhecia. Sim, seria o momento certo de acabar com aquilo, com o meu sofrimento e com a angústia do homem a quem amava.
Juntei alguns pertences pessoais, algumas roupas, que deixava ali no apartamento de Pedro e decidi sair de uma vez por todas de sua vida.
- Eu não poderia permitir jamais que você ficasse longe de seu filho. A Vanessa não está brincando e o Felipe precisa de sua presença, de seu cuidado. Um filho deve estar acima de qualquer coisa, de qualquer situação.
Fazia um esforço sobre humano para manter-me firme, sem chorar ou hesitar.
- Você não entende. Eu te amo e não vou ficar bem, longe de você. Eu preciso de você ao meu lado. Nós não podemos desistir diante da primeira dificuldade.
- Não se trata de uma simples dificuldade. Vanessa não está brincando.
- Nem eu. Mirela, passei minha vida inteira contendo os ciúmes, as manipulações da Vanessa. Meu casamento foi uma grande mentira. Definitivamente, não quero mais isso pra mim.
- Felipe precisa de você.
- Eu sei. Tenho feito tudo o que posso para cuidar dele. Mas não é cedendo a chantagens. O caminho não é cair novamente numa vida de mentiras, entende?
- Não há outra chance.
- Sempre há.
Parecia estar dizendo para mim, em relação à mentira que o havia envolvido.
- Então, o que fazer?
- Ainda não sei. Mas podemos descobrir juntos.
- Não existe o que fazer a não ser isso.
- Deve existir sim.
- Pedro, você não merece isso.
- Nós não merecemos, Mirela.
- Falo de você.
- Falo de nós.
- É seu filho.
- Não o estou preterindo. Apenas dei um basta nas manipulações de Vanessa. Ela precisa compreender que não pode tudo. Infelizmente Felipe está sendo atingido, mas descobriremos uma forma de fazê-la enxergar a maldade com nosso filho.
- Eu tenho medo, Pedro.
- Mas eu estou aqui.
Sentia-me pior diante de tal fortaleza de sua parte. De sua crença em “nós”.
- Sinto muito, sinto muito mesmo!
E como eu queria ceder àquele apelo, abraçá-lo, beijá-lo, sentir seus lábios mais uma vez. Mas não poderia, tinha que acabar logo com aquilo, pôr um ponto final naquela farsa, para a nossa felicidade.
Fui embora naquela tarde, mesmo contra a minha vontade, e apesar de diversas tentativas de Pedro de me dissuadir. Todavia, eu estava completamente decidida a abandonar o papel de Mirela e voltar à vida real. Até porque eu teria que retornar à boate também, pois o prazo de afastamento que havia conseguido com Charles já estava terminando e eu precisava retornar aos palcos, bem como ao meu show, do qual havia me afastado exatamente num momento de grande sucesso. Era hora de retomar minha vida, minha história real e deixar aquele sonho para trás. Foi o que eu fiz.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 28

Meu filho Nando era um homem maduro, tentara se explicar por diversas vezes, mas por fim, acabara aceitando o término da relação com Olívia, embora injustiçado, compreendera a situação e sua dificuldade em lidar com aquele tipo de problema. No fundo, eu desconfiava que Tony tinha alguma coisa a ver com o que acontecera, mas preferia não alimentar aqueles pensamentos, até para que Nando não se chateasse com ela.
Na verdade até gostei, não do desfecho de tudo, mas de Olívia e meu filho terem terminado. Sabia o quanto ela esperava de um homem e, definitivamente, Nando não responderia às suas expectativas. Seria, de uma forma ou de outra, mais uma frustração. Como ele mesmo findara pensando, foi bom tudo ter acontecido antes que estivessem mais envolvidos.
Em meio a toda aquela confusão armada, sem que soubéssemos, por minha sobrinha, Nando ainda tinha tempo para se preocupar com seus desentendimentos ideológicos com Maria Antônia, amiga de Alexandre, aluna do curso de Sociologia da UNICE. Parecia ser uma jovem da idade de Tony, e meu filho a descrevia como uma patricinha mimada, menina rica, que achava poder tudo, por conta do dinheiro de sua família. E ainda por cima, metida, segundo ele, a intelectual, procurando sempre que possível, no ambiente de sala de aula e acadêmico, desfazer de suas idéias socialistas. Uma vez ou outra estava Nando falando-me de seus incômodos em relação àquela garota. Eu não a conhecia ainda, mas já dava para perceber que se tratava de uma jovem inteligente e determinada, que vivia confrontando seus conceitos e opiniões, acusando-o de não tirá-las do papel e viver somente um discurso pronto e acabado.
Era notório o incômodo mútuo que se manifestava nos encontros de Nando e Maria Antônia, nos corredores da universidade ou em qualquer lugar em que se cruzassem. Um incômodo que surgia de uma admiração não revelada tanto de uma parte quanto da outra, pois enquanto meu filho dispensava um bom tempo para corrigir especialmente os trabalhos de Maria Antônia, esta por sua vez, deliciava com a leitura minuciosa da tese de Nando.
Nando permitia-se absorver completamente pelos problemas da academia, o que o deixava bem, mesmo depois do término da relação com Olívia.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 29

Parecia que minhas alegrias nunca eram completas, sempre faltava algo. Fui ao apartamento de Holanda, poucos dias depois de minha última discussão com Alceu, quando fui expulsa e passei horas ao relento, no jardim de minha casa. Ainda tentava esconder alguns hematomas, resquícios das agressões de meu marido, mas sem nenhum sucesso, Holanda logo percebeu as marcas em meu braço, impulsionando-se a vê-las melhor.
- Ele te bateu novamente, mãezinha?
Sua voz já estava carregada de indignação. Hesitei antes de tentar inventar uma história que roubasse sua atenção.
- Não tenta me esconder, mãezinha! Eu sei que ele te bateu novamente. Eu só quero que a senhora me diga.
- Não é o que você está pensando, meu filho.
- O que foi? Caiu e bateu o braço, a perna, o pescoço? Foi isso, mãezinha?
Sua indagação tinha um ar de ironia e revolta.
- Já tem algum tempo, filho. Não quero que você se preocupe com isso.
- Algum tempo?! Que tempo?
- Ele me prometeu que não faria novamente.
- Ele sempre promete isso.
Já estava de pé, com as mãos na cabeça, como se procurasse compreender o porquê. Por um instante me arrependi ter ido àquele encontro. Poderia ter deixado passar mais uns dias, para que não percebesse. Não queria jogar os meninos contra o pai.
Holanda não compreendia o motivo que me levava a continuar com Alceu, diante de tantas atrocidades cometidas por ele, durante todos os anos de nosso casamento. Indignava-se ao saber das surras que eu continuava levando. Desenvolvera um  certo ódio pelo pai, por esse motivo. E saíra de casa depois de uma grande briga na qual foi impedido por Nando de retribuir as agressões físicas do pai, o que já havia acontecido há quatro anos. Gênio forte, por isso não conseguira conviver com o pai. E eu sofria com nosso afastamento desde então. Alceu me proibiu de encontrá-lo e sempre que o fazia, tínhamos a ajuda de Nando, que era o elo entre nós. Os dois sempre foram cúmplices, amigos e nunca perderam a amizade.
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 30

Meu filho Francisco havia completado trinta e dois anos há pouco tempo e gostava de ser chamado pelo sobrenome Holanda desde a adolescência. Talvez mais bonito que Nando, ou pelo menos se cuidava melhor. Vaidoso, gostava de academia, boas roupas, ótimos perfumes. Lembro-me que ainda menino, orgulhava-se quando apaixonava alguma garotinha. Uma vaidade inocente, no entanto, que nunca chegara a fazer mal a ninguém, a não ser a ele próprio.
Holanda não chamava atenção apenas de mulheres mas também de homens, com sua beleza ou seu jeito doce e ao mesmo tempo sedutor. Na mesma época em que saíra de casa, havia conhecido o empresário Renato Brandão, treze anos mais velho, apesar de não aparentar, com quem iniciou uma grande amizade, a qual acabara se transformando num romance. Tratava-se de uma relação em que Holanda era beneficiado não apenas com a possibilidade de ter acesso a um mundo sofisticado, com o qual sempre sonhara, bem como de crescer profissionalmente. Renato logo lhe abriu todas as possibilidades de trabalho, conseguindo-lhe uma colocação na agência de publicidade WM, a maior de Fortaleza, da qual era sócio com Willames Macena, ex-genro de Leonardo Gondim, o dono da RTN.
Meu filho crescera profissionalmente e ocupava então um cargo importante dentro da agência, e até voltara a estudar, concluindo a faculdade de Publicidade. Contudo, mantinha uma relação complicada com Renato, com quem morava desde que saíra de casa, fazia quatro anos. Diferente do parceiro, Holanda não se considerava mais apaixonado e se permitia ainda àquele convívio somente por pura gratidão a tudo o que seu companheiro lhe proporcionara enquanto profissional. Visto que Renato investira alto na carreira de meu filho. E foi exatamente esse o motivo da última briga de Alceu e Holanda.
Naquela altura do campeonato, Holanda não suportava mais a relação absurda com Renato e chegava a lamentar profundamente o dia em que o conhecera. Falava-me do desejo de poder voltar atrás e fazer tudo diferente.
- Consegui tudo o que eu queria de material, mãezinha. Mas não consegui paz no meu coração.
- Ainda é tempo de voltar e consertar.
- Não! Não é mais possível.  - Deixou uma lágrima escorrer em seu rosto. - Seria muito doloroso para o Renato. Eu não posso, não depois do que ele fez por mim. Não posso agora de uma hora para outra, deixá-lo.
- Filho, mas isso é ainda pior.
- Não, mãezinha, não é. Ele gosta de mim, muito!
- Exatamente por isso, filho. Você deve isso a ele.
- O quê, ingratidão? Não, eu não posso. - Ele fitava um copo em sua mão, como se procurasse naquela transparência a resposta. Não conseguia falar no assunto olhando em meus olhos. Era claro o seu incômodo, voltando-se a todos os cantos da sala, menos para mim. - O Renato não merece.
- Com certeza ele não merece viver uma mentira por tanto tempo e continuar vivendo, acreditando ser uma verdade. Isso é muito pior que ele saber que você não quer mais continuar. Você não percebe, filho? Vocês estão vivendo uma bola de neve, que não terá fim, se um de vocês não der o basta. E quem deve dar esse basta é exatamente você.
- Eu queria que ele percebesse.
- Porque seria mais fácil pra você.
- Não! Para ele sofrer menos.
- Porque seria mais fácil pra você! - Apertei-lhe as mãos, fitando-lhe bem os olhos. - Você me pergunta por que permaneço com seu pai, convivendo tantos anos com sua dureza, sua agressividade, sua violência. Pergunte-se por que convive com Renato há tanto tempo, sem lhe dar a oportunidade de saber que você não o ama mais, para que possa escolher continuar ou não.
- Gratidão. - Respondeu-me subitamente.
- Veja realmente no fundo do seu coração, pois o cuidado que diz ter não é com Renato e sim com você mesmo.
Sei que meu filho não compreendia o que estava lhe dizendo. Mas o que achava que era cuidado para com o parceiro, era na verdade medo de enfrentá-lo, de se ver causador de seu sofrimento, de se perceber vilão numa história na qual acreditava ser mocinho.  Queria que enxergasse, mas não podia lhe dizer assim, não acreditaria e logo encontraria um subterfúgio, para se resignar da culpa.

O fato é que nos quatro anos em que convivera com Renato Brandão, Holanda não se permitiu viver nenhuma história com mulheres, mesmo diante de seu instinto e de inúmeras oportunidades que tivera. Devia-lhe fidelidade, era o mínimo que podia fazer, além de sexo e oferecer-lhe sua companhia. Encontrava-se, contudo, cansado, exausto não somente das obrigações sexuais com Renato, bem como das privações amorosas, quando se sentia atraído por alguma mulher. Lamentava tudo o que sentia naquele momento. Se pudesse escolher seus sentimentos, escolheria com certeza amar seu parceiro, ou pelo menos estar mais empolgado como quando haviam se conhecido. Formavam um belo par. Renato também era um homem muito bonito, de aparência jovial. Como meu filho, gostava de cuidar de seu corpo e beleza, além de investir bastante em alimentações naturais e terapias alternativas. Um homem generoso, de coração puro, segundo Holanda. Talvez o que tenha o encantado e o estimulado a começar aquele romance, quatro anos antes. Não somente o poder que ele seria capaz de lhe proporcionar. Meu filho, na época em que o conhecera, realmente parecia ter se envolvido emocionalmente. 

JÚLIA SERRADO
Capítulo 31

Deixei para trás todo o meu sonho de viver um grande amor. Só não imaginava o quanto sofreria com minha própria decisão. Era difícil ficar longe, quando na verdade queria estar perto. Conseguia esquecer um pouco a falta que Pedro me fazia, somente em meu trabalho, mesmo porque precisava estar inteira nos ensaios, na criação dos passos, dos movimentos. Esquecia a falta, a dor, mas não sua imagem, o desenho de seu corpo sobre o meu, a delicadeza de seus lábios deixando-me trêmula. As lembranças eram minha fonte inspiradora na criação das coreografias, que fizeram de meu show ainda mais intenso.
Entretanto, não conseguia saborear o sucesso de meu trabalho, não somente por estar longe do homem que amava, mas também por conta da pressão do deputado Donato Pessoa, ao saber de minha desistência acerca do nosso plano contra seu rival na RTN. Estava seguro que Pedro havia encontrado os tais documentos que provavam suas transações ilegais, que deixavam transparecer seu conhecimento de determinados conteúdos, como uma provável relação do departamento comercial da emissora com campanhas eleitorais de alguns deputados e prefeitos. Ele estava transtornado e me impunha ainda mais medo. Mas eu me encontrava irredutível, mesmo diante da informação de que tinha descoberto que o tal casal holandês que comprara minha filha, não tinha ainda saído do país e, provavelmente, estivesse em São Paulo. Eu não podia mais acreditar naquele homem sórdido, ele era capaz de tudo e poderia muito bem estar mentindo também para mim. Eu queria confiar em Deus, eu tinha que confiar naquele momento. Eu o temi ainda mais quando afirmou que se eu não fizesse o que ele queria e encontrasse os tais documentos, acabaria com a minha vida e também com a da minha filha. Às vezes eu tinha a impressão de que ele sabia onde Clara estava, ou que tinha a ver com seu sumiço, apesar de aquilo parecer absurdo, afinal ele não sabia nada sobre mim, antes de Clara ter sido roubada pelo próprio pai num conchavo com seu irmão. Ou sabia? Não, não poderia, era de fato ridículo pensar aquilo.
Pedro não poderia me encontrar, pois o único endereço que dispunha era o do apartamento que Donato Pessoa havia me arranjado como suposta moradia de Mirela, e eu nunca mais havia voltado lá, nem ligado o celular que usara no plano, embora tivesse muita vontade e por várias vezes pensasse em usá-lo para saber como estava. Mas pelo menos soube através de Luísa que Vanessa lhe permitira voltar a ver Felipe.
Embora soubesse que era melhor para nós dois não mais nos encontrarmos, parece que o destino resolvera dar uma forcinha e promover o nosso reencontro. Estava chegando à boate numa tarde, quando Pedro me avistou, de dentro do carro, ao fazer o giro na Praça Portugal. Tentei me esconder por trás de alguns carros que ali estavam, na frente de um shopping, mas quando o vi saindo do carro em pleno trânsito, gritando por mim, prestes a sofrer um acidente, não podia continuar fugindo, corri ao seu encontro. Estava nervosa, trêmula, com as mãos transpirando, meu coração acelerado diante daquele homem, que mexia comigo profundamente. Parecia ainda mais lindo, ficava também belíssimo de paletó e gravata, alto, numa elegância natural que emoldurava a sua beleza. Seu olhar de tensão, logo dera lugar a um sorriso sedutor. Era como se minha simples presença tivesse desfeito toda a tristeza que sentira durante aquela semana, a qual passamos longe um do outro. Sem que eu pudesse dar conta, já estava em seus braços, desfrutando de seu calor, de sua alegria ao me ver. Nem entendi como pude passar tanto tempo sem aquela presença amorosa, sem sentir seu carinho, sem ouvir sua voz afetiva afirmando permanentemente que me amava.
- Você não sabe como me fez falta, Mirela!
- Eu também senti muita falta.
- Não quero mais ficar longe de você.
- Nem eu.
Beijamo-nos em plena rua, sem nos importar com as buzinas reclamando de seu carro aberto em meio ao trânsito da Praça Portugal.
Eu achava que poderia viver aquele amor. Era muito forte e pela primeira vez, senti algo tomando conta completamente de mim, de minhas forças, de meus pensamentos. Só precisava naquele instante encontrar um bom momento para contar a verdade a ele, sobre os motivos que me fizeram aceitar a fazer parte do plano de Donato Pessoa, para seduzi-lo e roubar os tais documentos comprometedores sobre sua vida. Eu queria finalmente viver a verdade, como ele sempre falava e convidava a todos a sua volta. Precisava ser honesta, mas não podia estragar tudo e perdê-lo, de contra partida, sabia que se não contasse logo, aí sim estaria tudo acabado e perderia de uma vez por todas a oportunidade de viver aquele grande amor. Estava disposta a enfrentar a todos, mesmo que o deputado viesse com sua fúria, que Vanessa nos importunasse com sua loucura, ainda assim, os enfrentaria para ficar com Pedro e lutar pelo seu perdão.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 32

Vanessa jamais perderia a oportunidade de descobrir a verdade sobre a mulher que, segundo ela, lhe roubara o marido e ter um trunfo para tentar acabar com aquele romance. Exatamente em minha apresentação, com a boate lotada, fui surpreendida com sua presença infeliz assistindo o meu espetáculo. O mundo parecia ter saído debaixo dos meus pés, a impressão que eu tive, foi que, por alguns segundos, que pareceram uma eternidade, não ouvi a música, que me conduzia. Achei que de fato seria o fim. Nem lembrei que estava com máscara e que talvez nem estivesse me reconhecendo. Foi então que relaxei um pouco e prossegui minha apresentação, embora preocupada. Ela acompanhou todo o número, como se soubesse quem era, tinha um olhar firme, de quem tem outra intenção além de apreciar um show. Ao terminar aquela apresentação, corri para o camarim, precisava me trocar rapidamente e sair dali, antes que tivesse tudo acabado e Vanessa me flagrasse. Poderia nem ser o que eu estava pensando, era possível que ela só estivesse passando o tempo e tivesse ido assistir ao show que estava tão badalado em Fortaleza. Mas eu sabia, pelo pouco que Pedro me falara dela, que não sairia sozinha, para uma proposta daquelas, embora a boate fosse muito bem freqüentada, com certeza, não seria um ambiente para ela, parecia não gostar de badalações em locais públicos. Mesmo assim, fiz de tudo para dar tempo de sair logo da Mirage, antes de encontrar com ela. No entanto, Vanessa mais uma vez me surpreendeu, estava bem ali, diante de mim, no momento em que abri a porta do camarim, para ir embora.
“Seu show foi ridículo, Júlia Serrado!” O tom agressivo de Vanessa deixava claro porque ela tinha ido à boate. Já sabia de toda a verdade e queria tomar satisfações.
   Como eu já esperava, Donato Pessoa não deixaria barato depois de me ligar cobrando minha resposta se continuaria em seu plano sórdido contra Pedro. Ficara enlouquecido ao ouvir meu categórico “não” e afirmou que eu me arrependeria daquela decisão. E como que para me dar uma amostra do que era capaz de fazer, contou a Vanessa sobre minha identidade. Era um plano perigoso, pois sabia que poderia pôr em risco todo o estratagema para conseguir os tais documentos. Todavia, o deputado era um homem inteligente, calculista e não tinha medo de jogar alto, ainda que comprometesse sua posição, seu poder. Era apenas um aviso para que eu não pensasse que sairia sem lesões.
“Eu vim aqui apenas para te dizer que saia de uma vez por todas da vida do meu marido, sua vagabunda.” Vanessa fez aquela afirmativa trancando a porta do camarim. Parecia ter feito alguma coisa para segurar os demais dançarinos lá fora e não deixá-los chegar perto. O que me passava pela cabeça era apenas o medo daquela mulher fazer mais um escândalo e me prejudicar em meu ambiente de trabalho. Se ela resolvesse contar tudo ali, ou gritar falando que eu estava me fazendo passar por Mirela para lhe roubar o marido, eu estaria, além de perder o homem que amava, perdida também em meu trabalho. Olívia Cordeiro, a dona da Mirage, nem mesmo Charles, não admitiriam trabalhar com uma bandida, como Vanessa também me taxava. Que situação, meu Deus! Via-me completamente perdida. Acho que minha maior sorte era Vanessa estar segura demais com o que havia descoberto sobre mim, não parecia ter dúvida que logo me desmascararia e acabaria o meu romance com seu ex-marido, por isso não agiu com histerismo como da outra vez, no shopping, quando nos encontrara pela primeira vez juntos.
Vanessa me disse que estava sabendo de tudo, que eu não era Mirela e sim Júlia Serrado e que tinha seduzido seu marido para roubar-lhe o projeto de programação, com o qual Donato Pessoa quase conseguira a vive-presidência da RTN. Eu sabia que ele jamais teria lhe falado todo o plano, não poderia, se não ele também estaria perdido e a oportunidade de estar com o dossiê que, nas mãos de Pedro, podia servir de arma contra si mesmo.
- Você é vulgar, pior do que eu pensava.
- Acho que podíamos conversar em outro lugar.
- O momento é agora, sua vagabunda.
- Vanessa, aqui não é o lugar, nem a hora.
- Não entendo como um homem do porte de Pedro pôde se envolver com uma mulherzinha vagabunda como você, do seu nível.
- O que sabe sobre mim? – Começava a perder a paciência.
- Que você é uma vagabunda.
- Olha aqui, chega! – O nível da minha voz já se fazia ouvir mais alto.
- Ah, está ficando com raivinha?
- Eu entendo você, mas...
- Entende? Não. Você não me entende nada. Não faz idéia de como estou.
- Eu sei que é difícil.
- Difícil o quê, perder o marido para uma vagabunda como você?
- Chega!
- Chega dessa aventura, vagabunda.
- Você não sabe quem eu sou.
- Sei, claro que sei. É uma prostituta, contratada para seduzir meu marido e lhe roubar. É isso que você é.
- Agora chega!
Eu não poderia permitir que aquela mulher me agredisse daquela forma. Sabia de minha atitude com Pedro, mas nunca fui mal-caráter, nunca fizera nada contra ninguém, antes de ter tido minha filha seqüestrada, roubada de mim.
- Fora daqui! Você não tem o direito de invadir meu local de trabalho, vir me agredir.
- Tenho, claro que tenho, sua vagabunda! Você roubou o meu marido...
- Não roubei ninguém, você está fora de si.
- Sou louca pelo Pedro. Sou capaz de qualquer coisa por ele.
- O casamento de vocês já não existia há muito tempo. Ou melhor, nunca existiu.
- Quem pensa que é para julgar minha vida, meu casamento.
- Agora nós estamos juntos.
- Não por muito tempo.
- Sinto muito, Vanessa.
- Não sinta. Serei motivo de muita tristeza pra você, sua vagabunda.
Sei que de fato seria. Se não, não teria acabado com o próprio casamento, por sufocá-lo com seus ciúmes doentios. Tinha um ar esnobe na fala, como se se sentisse superior, melhor do que eu, como se estivesse acima de meu mundo.
- Não tenho mais tempo pra você, Vanessa.
- São dez anos de casamento. Você acha realmente que ele vai jogar fora uma família, o amor do Felipe pra ficar com uma prostituta?
Dei-lhe um tapa!
Entreguei-me ao meu instinto e quando percebi já havia lhe agredido. Não pude conter, foi mais forte que eu. Era como se aquela mulher estivesse agredindo toda a minha vida, a minha história, minha dignidade. Não poderia compactuar com aquilo.
- Saia já daqui! – Era eu quem estava gritando.
- Desgraçada, você vai se arrepender, eu prometo!
- Vai embora daqui, sua perua mimada!
- O Pedro vai ficar sabendo de tudo isso, ah se vai...
Vanessa saiu furiosa. Mas não poderia ter sido diferente. A única coisa que eu conseguia pensar era em Pedro e no que aconteceria dali para frente. De certo, contaria imediatamente tudo a ele e faria sua cabeça contra mim. Talvez fosse melhor assim, pelo menos eu deixaria de sentir o peso gigantesco que carregava em minhas costas com aquele segredo. Só não esperava tudo terminar daquele jeito, Pedro sabendo através de outra pessoa e logo por Vanessa.
Eu não tive coragem de me encontrar com ele, como havíamos combinado, que depois de meu trabalho, meu ensaio com um grupo de dança, como dizia a ele, nos veríamos em seu apartamento. Fui direto para minha casa, quase que correndo para o colo de Raquel. Lembro-me ter passado a noite em claro, chorando, imaginando como o enfrentaria depois de tudo. Com certeza já estava sabendo sobre mim e o projeto de programação e que era cúmplice de Donato Pessoa, ou melhor, que eu era sua grande parceira naquele plano sórdido. Raquel acreditava que ele entenderia e me perdoaria, mas era difícil para mim aceitar essa possibilidade. Não, pessoas como Pedro, que acreditam nas pessoas, quando descobrem que estão sendo enganadas, perdem completamente a confiança. E mesmo que perdoem, sempre ficará aquela dúvida, sempre.
Acabei atendendo uma ligação de Pedro, depois de muitas das quais não tinha tido coragem de atender. Fomos almoçar juntos naquele dia, momento em que ele aproveitou para me contar que tinha sido procurado por Vanessa, como eu previa e ela afirmara que faria, para lhe contar sobre minha verdadeira identidade.

MARINA PESSOA
Capítulo 33

Algumas vezes, em meu sofrimento, chorando calada, sem que Donato visse, questionava o significado real de um casamento, ou melhor, do nosso casamento, já que não via ninguém sendo tratado como se fosse uma propriedade, sendo impedido de falar com as pessoas, de sair na rua sem ser acompanhada por alguém. Era aquela situação que me sufocava cada vez mais, que me entristecia e fazia duvidar de minha vontade de permanecer vivendo aquela relação. Sentia-me muitas vezes como uma prisioneira dentro de minha própria casa, e ele sempre dizendo que queria me proteger, cuidar de mim.
Na noite daquela festa, demorei muito a dormir. Minha cabeça parecia que ia explodir, depois de tanto chorar, não somente pela forma com que Vanessa havia me tratado e afirmado que Felipe me esquecera, mas também pela proibição de Donato. Sabia que eles, morando aqui no Brasil, seria fácil de me reaproximar, conseguir o perdão de minha irmã e estar mais uma vez perto de meu sobrinho. Todavia, meu próprio marido era então o único e forte empecilho.
Creio que era exatamente aquelas insatisfações reprimidas que faziam de minha noites, verdadeiros infernos, com meus pesadelos que pareciam uma vivência real de situações banais aterrorizantes.
Levantei-me de onde estava, num canto de um muro escuro, na madrugada, vestida apenas de camisola e pés descalços, como fora dormir naquela noite. Aproximei-me de um portão que separa aquele lugar sombrio da rua, caminhando com cuidado para não machucar meus pés, nas pequenas pedras que estavam espalhadas por todo o chão que minha vista alcançava. Ao chegar no velho portão coberto de ferrugem, fui tomada por um desespero, percebendo que estava impossibilitada de passar, por estar trancado, ou melhor, emperrado pelo ferrugem, pois não tinha fechadura aparente, então não compreendia porque realmente não conseguia abri-lo. O formato do velho portão lembrava as grades de uma prisão e aquilo me enchia de desespero. Do outro lado, sentado na beira da calçada, de frente para mim, pude avistar um garotinho, de cabeça baixa, voltada às pedrinhas que tinha na mão e brincava com elas. Percebi que eram iguais às pedras nas quais havia sido obrigada a pisar para chegar ali. Era como se tivesse sido aquele menino que jogara as pedras, impedindo minha passagem.
- Ei, menino, por que fez isso? – indaguei-lhe, ainda forçando a abertura da grade. – Por favor, me ajude, eu preciso sair!
Vi aquele garoto levantando a cabeça lentamente, como se quisesse esconder algo. Estava com os olhos vermelhos, de alguém que chorou muito. Era loirinho, deveria ter uns cinco anos apenas, tinha o cabelo meio assanhado e vestia apenas uma bata branca, tipo de hospital, um pouco suja de sangue já envelhecido. Senti um medo aterrorizante ao fitar os olhos daquela estranha criança, como se pudesse ver uma tristeza profunda em seus olhos.
- Ajude-me a sair daqui, garoto! – Tornei a insistir.
Ele voltou a baixar a cabeça, fitando as três pedrinhas que tinha em sua mão. Então vi uma lágrima cair e molhar suas pedrinhas.
- Ei, garoto, por que você está chorando?
Queria ajudá-lo. Mas estava impedida pelo grande portão. Chegava a sentir as ferrugens das grades, arranharem meus braços que estendia e balançava de um lado para o outro, como se quisesse alcançar aquele menino ou forçar a minha passagem, atravessando aquele obstáculo. Num só momento que baixei a cabeça, voltando-me a uma pedra que estava encrava em meu pé, o pequeno garoto desapareceu dali. Já não conseguia mais ver sua imagem, nem para onde teria ido e, de repente, também já não existia mais o grande portão que outrora me impedira de chegar até aquela criança. Corri, então até o outro lado da rua escura, onde o garoto estava, encontrando apenas as três pedrinhas, com as quais brincava segundos antes. Vi que estavam sujas de sangue, o que me causou um grande arrepio. Sem que eu pudesse perceber ao certo o exato momento em que aconteceu, era eu quem estava coberta de sangue, minhas mãos, pernas, meu rosto, tudo estava sujo. Comecei então a gritar desesperada.
- Alguém me ajude! Por favor, alguém me ajude! Alguém me ajude, por favor! Alguém me ajude!
Contudo, estava completamente só no meio da madrugada. Sentia muito frio e medo. Encolhia meus braços para que pudesse me resguardar um pouco do vento, que se intensificava cada vez mais. Vi então o pequeno garoto, de momentos antes, entrar no prédio em frente, de onde supostamente eu teria saído. Havia me dado conta de que se tratava do prédio onde eu morava. Então a calçada onde estava não era mais a mesma e sim o calçadão da Beira-Mar, totalmente deserto. Corri para atravessar a rua e quase fui atropelada por um carro velho e, ao olhar quem estava na direção, assombrei-me ao ver a figura de Donato, sorrindo para mim, com seu velho sorriso forçado, de quem carrega consigo outro sentimento que não o aparente naquele momento. Meu medo aumentou ainda mais, quando vi no banco detrás do carro, o mesmo garoto que há pouco entrara em meu prédio, brincando com as mesmas pedrinhas de momentos antes.
- Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh! – Acordei com meu próprio grito, trêmula, com a respiração ofegante.
Podia ouvir as batidas de meu coração, quebrando o silêncio do grande quarto. A porta da varanda estava aberta e o vento forte da madrugada jogava as cortinas de um lado para o outro. Logo me atentei que estava sozinha na cama, como quando havia me deitado. O relógio digital da mesa de cabaceira marcava três e vinte e quatro, quarenta minutos a mais de quando eu começara a dormir. Estava meio desnorteada, sem entender bem o que acontecera. Tentei imaginar onde meu marido estava e logo lembrei que o havia deixado no escritório, chateado pelo meu encontro com Vanessa na festa. Tomei um pouco de água rapidamente, o resto que estava no copo, do lado da cama e me precipitei em direção ao escritório.
Eu estava prestes a encontrar meu marido e Luísa sem roupa, no sofá, num clima de muito erotismo e intenso prazer. Ele parecia se realizar sexualmente com aquela mulher. Tinham, segundo ela, como ficaria sabendo mais tarde, uma química perfeita, que os fazia completar-se e esquecerem do mundo, no instante em que transavam. Era um homem violento na cama e ela permitia que desse vazão a todas as suas vontades, diferente de mim, que cuidadosamente lhe impunha limites, procurando deixar claro meus incômodos frente às atitudes bruscas que se revelavam uma vez ou outra. Na verdade, Luísa parecia até gostar, apesar de sentir fortes dores, principalmente quando faziam sexo anal. Eram como dois animais brutos, fazendo daquele escritório um ambiente de dor e prazer.
Eu até podia ouvir os sussurros e gemidos ainda do corredor, bem antes de chegar na sala, que separava aquela dependência de onde eu estava, embora não soubesse o que era, bem como de quem se tratava.  Sentia-me ainda desorientada devido o pesadelo. Mas precisava encontrar alguém e pôr um fim ao medo que me dominava naquele momento. Não sabia ao certo o quê, entretanto olhava para todos os lados, para trás, temendo algo que não conseguia definir. Como se o que experimentara minutos antes, dormindo, pudesse voltar de alguma forma.
Ao chegar na sala, pude ouvir um forte gemido, que vinha exatamente do escritório, embora não tivesse como perceber que era de Luísa, bem no momento que culminavam o seu prazer.
O destino de meu casamento estava a alguns passos dali, mesmo que eu não tivesse consciência. Era como se uma força estranha me chamasse para ver o que estava diante de meus olhos há anos e não conseguia enxergar.
Claro que meus sentidos pareciam mais estar voltados naquele momento para o que eu sentira pouco tempo antes em meu pesadelo. Jamais poderia imaginar o que se passava realmente naquele escritório. Por mais que tivesse minhas desconfianças, eu preferia acreditar que se tratava apenas de uma boa relação profissional, como ele sempre afirmava.
No instante em que ouvi aquele gemido, cheguei a pensar que tivesse algo a ver com o pesadelo, ou até mesmo que eu ainda estava dentro dele e que o menino poderia aparecer a qualquer momento. Era horrível pensar aquilo. Por um instante não tinha mais a consciência do que era real ou fantasia. Estava totalmente atormentada, sem saber de fato pelo quê ou por que. Cheguei a hesitar em continuar, afinal poderia me deparar com o que eu não queria naquele escritório – encontrar aquele garotinho ou algo que me lembrasse detalhes daquele sonho terrível. A única coisa que não me passava pela cabeça era que fosse meu marido e sua secretária, vivendo um momento de intenso prazer.
No entanto, logo tomei coragem e segui adiante. Precisava acabar logo com aquilo. Se fosse mais um instante de meu pesadelo, que eu me deparasse finalmente e enfrentasse, se não, descobriria que barulho era aquele.
Aproximei-me então da porta, pronta para descobrir do que realmente se tratava e pôr um fim àquela angústia.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 34

Vanessa havia contado tudo a Pedro. Meu Deus, que aperto senti em meu coração. De repente, estava com a boca seca, faltando-me também o ar. Pensei que pudesse ter ali um buraco para que tivesse pelo menos o direito de me esconder e não sentir tanta vergonha, tanto constrangimento. Acho que estava vermelha, pois o sangue parecia ter me subido a cabeça e um calor tomara conta de todo o meu corpo. Numa fração de segundos, senti uma gota de suor cortar-me as costas. Acabara a minha angústia de todos aqueles últimos meses, mas junto com ela também fora embora a possibilidade de viver um grande amor. Era o fim!
- Mas não se preocupe com nada disso, meu amor, eu já esperava que Vanessa não se rendesse aos fatos e não aceitasse a nossa relação, assim tão fácil.
Será que eu estava de fato ouvindo aquilo ou era um sonho?
- Mas, Pedro...
- Eu te amo, muito.
- Você não acreditou nela?
- Devia?
Devia. Ela estava coberta de razão.
- Ela é sua esposa.
- E você a mulher que amo.
- Pedro...
- Juntos, nós vamos enfrentar todos os obstáculos. Não serão as mentiras da Vanessa, os seus delírios que vão nos separar.
De fato, não poderia ser verdade aquilo. Justo quando pensava que estava tudo acabado, sou surpreendida com aquela declaração. Não podia ser apenas por causa de Mirela, afinal quem estava ali na sua frente não era ela, mas sim eu, com meu jeito de ser, de pensar, de agir. Com certeza éramos completamente diferentes enquanto expressão. Não sabia nada daquela mulher que já morrera tantos anos antes, até porque não necessitava saber, já que para o plano, eu teria sofrido amnésia, depois do acidente. Acho que ele jamais teria mantido seu relacionamento comigo se realmente não tivesse se apaixonado pelo meu jeito, por mim, Júlia Serrado.
Não sei se estava feliz ou triste, mas o beijei tanto que acredito que ele tenha percebido que era uma atitude dissociada. Talvez sentisse as duas coisas. Amava-o e era, de qualquer maneira, bom ouvi-lo falar daquele jeito, como se nada nem ninguém pudesse abalar nosso amor. Até cheguei a pensar que Raquel tinha razão e ele me perdoaria quando soubesse de tudo. Mas sabia que Pedro via o amor como algo sagrado, e minha atitude profanava a nobreza de seus sentimentos.
Eu estava decidida a contar tudo naqueles dias. Tive coragem de me abrir com minha nova vizinha, D. Clarinda, que parecia ter a clareza da maturidade, além de me passar uma energia de mãe, de cuidado, de proteção em seu olhar tristonho. Diferente do que pensava, em nenhum momento me julgou nem condenou, pelo contrário, entendera tudo o que eu tinha feito e até estava feliz pela descoberta do amor.
- D. Clarinda, eu lamento a chegada de Pedro na minha vida logo agora, nessas condições.
- É Deus quem coloca as pessoas em nossas vidas para que possamos ser felizes com elas. Não acredito que tenha sido por acaso, nem que tenha sido uma fatalidade o encontro de vocês dois. Essa situação existe, com certeza, para que vocês possam aprender com ela e crescer com ela. Não acredito em destino, Júlia, mas creio que Deus providencia para que sejamos felizes. Vocês tinham que se encontrar.
- E essa mentira?
- Essa é a história de vocês.
Era confortante ouvir aquilo, mas difícil de acreditar verdadeiramente, diante da situação em que estava metida. Por que então descobrir um amor em meio a tantos empecilhos, se era para nos entregarmos e vivenciá-lo somente? Não tinha certeza se D. Clarinda realmente tinha razão. Mas pedia uma luz, um sinal do universo, que me respondesse o porquê de tudo aquilo pelo qual estava passando.  
Pedro tinha razão quando pensava que Vanessa jamais aceitaria nossa relação de bom grado, calada. Mesmo que ele não tivesse acreditado em suas revelações, não poderia me despreocupar, pelo menos enquanto eu tomasse coragem e contasse toda a verdade, o que eu queria fazer muito breve. Queria ganhar um pouco mais de tempo, embora tivesse dito a Donato Pessoa que não podia mais contar comigo em seu plano, ele acreditava que eu ainda o ajudaria, e enquanto acreditasse nisso, eu poderia ter alguma notícia de minha filha, pois estava esperando notícias de São Paulo, onde disse ter sabido do paradeiro do tal casal de holandeses que comprara Clara. Se eu abrisse o jogo logo, poderia pôr tudo a perder. E ele sabia que eu podia conseguir os tais documentos, pois eu já havia comentado que realmente achava que Pedro estava com eles, devido os comentários que fazia sobre o deputado.
Naquele exato momento eu me dava conta do meu jogo contra Donato Pessoa ou a favor de minha filha. Mas estar jogando me fazia mal. Nunca acreditei no jogo de conveniências como caminho para nada, mas estava ali, fazendo o mesmo que ele. Pensei várias vezes em desistir e contar a verdade, falar de meus reais objetivos, que com certeza não eram mais continuar procurando os tais documentos e trair mais uma vez o homem que amava.
Consegui alguns dias sem trabalhar novamente na boate, tentando evitar que Vanessa me surpreendesse mais uma vez. No entanto, não poderia adiar por muito tempo, logo tive que retornar ao trabalho e precisamente no momento em que entrei no palco, iniciando meu show, dei de cara com Pedro, parado ali na minha frente, ao lado de Vanessa. Meu Deus, que situação aquela! Ele tentando me descobrir por baixo da máscara, com um olhar interrogativo, curioso, tenso, e eu ali, assistindo a um filme em minha cabeça, numa fração de segundos, pensando no quanto o amava e que ele não compreenderia o que eu havia feito, porque havia feito. Foi a primeira vez em que não me senti inteira no palco, fazendo o meu trabalho. Não conseguia parar de pensar no quanto eu havia sido idiota, em não revelar a verdade enquanto ainda tinha tido tempo. Era tarde e Pedro me falaria aquilo, decerto, logo após minha apresentação. Ainda haveria tempo de me salvar?

CELINA GONDIM
Capítulo 35

Mesmo com meus limites de expressão, procurava me fazer presente na vida de meu sobrinho. Gostava também muito de Maria Antônia, mas era João Henrique, o caçula, que demonstrava uma necessidade maior de apoio emocional. Tinha sofrido muito durante os anos em que sua mãe estivera casada com Donato Pessoa, que o maltratava e o oprimia com castigos e ameaças, por não gostar da criança. Além de tudo, sempre sentira falta do pai, que morava no Rio e viajava permanentemente a negócios. Transformara-se, com isso, num jovem tímido, com dificuldades de se relacionar e demonstrar seus sentimentos e opiniões, principalmente quando se via no meio de outras pessoas fora de seu núcleo de intimidade. Sem falar em sua mãe, a quem temia enfrentar e contrariar diante de qualquer situação.
Minhas investidas não eram muito bem sucedidas, mas às vezes João Henrique acabava me falando um pouco de sua angústia e da vontade de dizer para o mundo o que pensava realmente sobre a vida, sobre as coisas, falar de seus sentimentos, ter coragem de ir contra a mãe e fazer o que realmente desejava e sonhava.
Aos dezenove anos, João Henrique acumulava muitas dúvidas sobre seus sentimentos. Escondia-se atrás dos óculos, que lhe davam um aspecto intelectual e encobria um pouco a sua beleza, embora chamasse a atenção de muitas garotas na faculdade e em outros lugares. Tivera poucas namoradas, todas indicadas e arranjadas por Maria Eugênia, que procurava, segundo ela, cuidar das boas relações de seu filho, já que não conseguia exercer o mesmo controle na vida de Maria Antônia. Com sua timidez, João Henrique sentia uma profunda dificuldade em suas relações de par. Conquistava muitas colegas, das quais se aproximava nos trabalhos da faculdade ou por estarem com algum problema em seus namoros, as quais acabavam transformando-o em seu confidente, e quase sempre, interessavam-se amorosamente por ele. Sua timidez só não encobria seu aspecto afetivo e cuidadoso, o que encantava a todos e fazia com que suas colegas terminassem apaixonadas por ele, mesmo sem intenção de conquistá-las.
João Henrique estava quase sempre acompanhado do amigo Alexandre, da mesma idade, neto de Adriano Cordeiro, um velho amigo da família. Uma amizade que lhe fazia, ao meu ver, muito bem. Alexandre era exatamente o seu oposto, um jovem extrovertido, de fácil comunicação com todos, bem humorado e metido a conquistador, apesar de se dizer apaixonado pela namorada Carola, também amiga e colega de faculdade de meus sobrinhos. Embora fosse perceptível a falta de responsabilidade de Alexandre e até ressaltada permanentemente por Maria Antônia e mesmo por Carola, talvez fosse um pouco disso que meu sobrinho precisasse, naquele momento, para dosar a sua repressão interna, trazendo-lhe um equilíbrio que precisava para sobreviver naquele instante.

CELINA GONDIM
Capítulo 36

Além de mim e da relação de profunda amizade e cumplicidade com a irmã Maria Antônia, João Henrique encontrava em Mena, nossa cozinheira, o colo de que precisava em muitos momentos. Ela estava sempre cuidando dele e de todos nós através de seus pratos deliciosos e de seu carinho, percebido até quando calava, frente às conversas e decisões familiares importantes.
Mena era baixinha e gorda, uma negra de cabelos já grisalhos, aos setenta anos, uma idade que parecia não lhe pesar. Sua vitalidade irradiava-se da cozinha para todos os espaços daquela imensa casa, como se tudo tivesse realmente a sua cara, seu jeito. Estava com papai desde seu primeiro casamento, antes mesmo do nascimento de Maria Eugênia. E nos tratava como se fôssemos seus filhos, o que irritava profundamente a minha irmã, exigindo-lhe uma postura profissional, sem essa proximidade pessoal, evidente em seu tratamento para conosco. Fora Mena, sem dúvida, a pessoa que mais me apoiara em minha chegada àquela casa, a quem eu dediquei muito o carinho e consideração desde então. Creio que a partir daí, Maria Eugênia tenha alimentado uma certa repulsa a ela, por sua proximidade e cuidado para comigo. O que resultou na contratação de Lorena, a secretária de minha irmã, também como governanta de nossa casa, para tirar de Mena o controle e administração da mesma.
A intenção era que Lorena assumisse o cargo, criado por Maria Eugênia, provisoriamente, até a contratação de uma nova governanta, até porque ela já era sua secretária e não poderia se dedicar como queria. Uma situação que já vinha se arrastando por cinco anos e resultou na mudança de Lorena para nossa casa, para que pudesse exercer a função de governanta sem deixar de ser a secretária de minha irmã.
Lorena tratava a todos os empregados a mão de ferro, inclusive a Mena, que parecia não se importar. Era uma mulher sábia e tinha a consciência de que se tratava de uma estratégia de Maria Eugênia para lhe atingir e afastar-lhe de mim.
Mesmo sendo uma pessoa mal humorada, Lorena chegava a ser engraçada. Podia-se perceber claramente o quanto se devotava a Maria Eugênia e a endeusava, como se fosse seu grande ídolo. Vestia-se semelhante a ela e fazia alguns gestos como arrumar o cabelo discretamente no meio de uma conversar ou ajeitar o brinco, que eram de sua patroa.  Aos cinqüenta anos, ainda que se vestisse muito bem, não era um exemplo de beleza, mas considerava-se bela e sedutora, o que lhe dava um ar de arrogância, que só se desfazia na presença de Maria Eugênia, a quem temia. Mas era Dulce quem conseguia tirá-la realmente do sério.
Travou-se um verdadeiro clima de rivalidade entre Lorena e Dulce, desde que esta entrara em nossa casa pela primeira vez, como uma guerra de ego e vaidade. Dulce sentia-se profundamente incomodada com a postura esnobe da outra, e esta, por sua vez, procurava impor limites arbitrariamente em sua expressão dentro de casa. Chegava a ser engraçado e eu, confesso, me divertia com a birra das duas. Só comecei a achar a situação delicada, ao saber do envolvimento amoroso de Dulce e o nosso motorista Djair. Ela, que tentara me esconder a relação, bem como de todos na casa, para não prejudicar, segundo a mesma, o rapaz, confessara-me não querer nada sério com o ele. O problema é que acabei por descobri-lo aos beijos com Lorena no escritório, fazendo-lhe juras de amor e fidelidade.
Parecia ironia do destino, Dulce e Lorena, que tanto se detestavam, disputando, de certa forma, mesmo sem saber, a atenção amorosa do mesmo homem. E tudo, sem que Maria Eugênia soubesse. Para falar a verdade, acho que somente ela não sabia do envolvimento de sua secretária e o motorista. Caso descobrisse, o mandaria embora com certeza.
Dulce se mostrava empolgada com aquela relação. Não para um envolvimento mais sério, mas no intuito de atiçar ainda mais seu fogo, por considerar Djair um vulcão.
Minha enfermeira acabava passando um pouco seu tempo implicando com nosso jardineiro Zeca, um homem reservado, porém bem-humorado, que cuidava de nosso jardim com um zelo que jamais pude perceber em outro profissional. Não sabíamos muito sobre ele, exceto que tinha uma noiva, que morava em outro estado, com quem se correspondia freqüentemente através de cartas e telefonemas.
Aos trinta e seis anos, Zeca cultivava um ar misterioso que chamava a atenção de minha enfermeira. Mesmo preservando bastante sua intimidade, vivia cantarolando em seu trabalho, como se quisesse partilhar de algo seu, um sentimento, que não sabíamos bem qual era, com todos a sua volta. E sempre que dava, isolado em seu quarto, ensaiava algumas notas no violão, seu companheiro de anos, segundo ele.
Tudo era motivo para alimentar as implicâncias de Dulce a Zeca, como o som do violão, nas poucas vezes que se podia ouvir as belas notas se propagando na ala dos profissionais de nossa casa. Ela sempre alegava estar com enxaqueca, para justificar sua presença na porta do quarto do rapaz, requisitando, de forma autoritária e sarcástica, o fim da “cantoria”, segundo ela.
- Não sei não, viu, meu filho? Talvez fosse necessário você ter umas aulinhas de violão, para não tirar o sossego das pessoas, exatamente no horário em que estão tentando descansar. Esse som é horrível!
Sabíamos todos ali que ela não tinha razão. Zeca tocava muito bem, belas e variadas melodias, além de muitas vezes acompanhá-las com a boa afinação de sua voz. Não somente eu, mas Mena e os meus sobrinhos, quando tínhamos a oportunidade de ouvi-lo em sua expressão, acabávamos não compreendendo por que a falta de interesse e manifestação de sua parte para tornar conhecido o seu trabalho. Podíamos perceber claramente que se tratava de um artista, enrustido, por algum motivo, que não conhecíamos. 
Embora não desse muito cartaz às implicâncias de Dulce, aumentando ainda mais seu incômodo em relação a ele, Zeca, uma vez ou outra, rapidamente, a provocava, afirmando ser ela uma mulher frustrada pela solidão ou pela falta de um companheiro, principalmente por já estar beirando os quarenta anos. E aquilo realmente a deixava enfurecida, procurando imediatamente retrucar com negativas e classificações a ele, como um homem machista e boçal.
- Quem diz o que quer, ouve o que não quer. Minha mãe já dizia. 

* * *

Eu acabava me divertindo com aquelas historias, dando um pouco mais de sentido a minha vida, já que não experimentava mais do que um grande vazio depois do acidente. Era como se eu me misturasse à vida daquelas pessoas, preenchendo-me com sua historicidade, fazendo de suas vivências a minha. Diante da vitalidade que sentia em meus sobrinhos e meu pai, em nossos empregados, criava um mundo em minha mente, no qual só eu poderia entrar e ficar a salva de tudo o que me lembrava a minha invalidez.
Tinha muitas vezes, uma vontade enlouquecedora de transformar aquele mundo criado dentro de mim, inspirado pela vivência das pessoas à minha volta, em uma nova história. Pulsava em meu peito o desejo profundo de voltar a me expressar e transcender os limites que a vida me impusera. Papai, em vários momentos, até me incentivara a voltar a escrever e trabalhar, trazendo-me de presente certo dia um novo laptop.
Desejei arremessar aquele presente na parede, ao abri-lo. A escritora Celina Gondim morrera naquele maldito acidente juntamente com seu grande amor. Desde então, nunca mais havia sentado diante de um computador e digitado uma só palavra. Ganhar um computador naquele momento parecia uma provocação, uma gozação ao meu estado físico, à minha condição inerte. Só não o fiz em consideração a papai, sabia de sua intenção e que jamais brincaria com meus sentimentos.
As palavras de Maria Eugênia acercada daquele presente de papai, ficaram se repetindo em meu pensamento.
- Ficará ótimo como enfeite de sua escrivaninha.
Papai ainda chegou a repreendê-la, mas minha irmã tinha toda razão. Aquele computador, para mim, não passaria de um enfeite. E por vários dias, não tive coragem de abri-lo. Até que certa manhã, ao acordar, aproximei-me da mesa onde ele estava, em meu quarto e depois de um pouco de esforço, consegui erguer seu visor. Hesitei, lembrando de quanta história já havia escrito em meu passado, antes daquele terrível acidente, que me tirara os movimentos, a mobilidade com minhas mãos. Pensei por um instante em fechar aquela máquina, a qual me lembrava ainda mais de minha inutilidade, mas era mais forte que meus limites físicos. Acabei por ver a imagem na tela se abrir, depois de apertar o pequeno botão, com o qual parecia ligar minha própria vida. Tremia e sentia as lágrimas banharem-me o rosto. Estava eu ali, no limiar, diante da possibilidade de me fazer viva novamente.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 37

Logo após o espetáculo, Vanessa não hesitou em levar Pedro ao camarim para provar a minha farsa. Deparando-se com uma mulher extremamente parecida comigo, de cabelos longos, lisos e ruivos como os meus, alta e magra, de rosto afilado, dizendo-se ser Júlia Serrado, a mulher andróide do show, descrição idêntica a que Vanessa havia feito. Pedro tinha ido à boate depois de muita insistência da ex-mulher, que lhe prometera deixá-lo em paz depois daquela noite.
Fiquei sabendo de toda a cena constrangedora de Vanessa e Pedro abordando minha sósia, logo depois, quando me encontrei com ele. Estava muito envergonhado, por ter se prestado a tal papel, mas vira naquela atitude uma possibilidade de nos vermos livres de uma vez por todas das perseguições da ex-mulher, que ficara enlouquecida diante de Leila, minha colega dançarina na boate, que era muito parecida comigo, a quem, num momento de desespero, tivera coragem de pedir ajuda, fazendo que ela se passasse por mim. Vanessa ainda tentara levar o ex-marido para falar com Olívia Cordeiro. Por sorte, ele não aceitara dar continuidade àquele absurdo.
Não sei se foi uma idéia de Deus ou do diabo, mas daquela situação eu tinha conseguido me livrar. Queria apenas naquele momento, ter coragem e finalmente contar a verdade. Poderia falar de Clara. Exatamente, poderia começar falando do roubo de minha filha por Joel e Guel Serrado, e somente depois contaria sobre o deputado Donato Pessoa. Assim, primeiro eu o sensibilizaria, para depois revelar que fora enganado. E então, percebi que mais uma vez estava tramando, jogando com um homem que sempre fora sincero, verdadeiro. Era o momento de contar-lhe, exatamente naquele instante.
- Eu preciso muito falar com você, Pedro. Não podemos mais adiar essa conversa. Você precisa saber da verdade sobre mim.
- Muito bem. Sou todo ouvidos.
Ele estava parado diante de mim, atento, surpreso com o jeito como eu havia começado a conversa. Com um olhar curioso, de quem quer logo descobrir que revelação poderia ser feita naquele momento.
Eu não sei se fui salva ou atrapalhada pelo universo. Felipe tivera mais uma crise de alergia e parecia estar mal em casa, pelo menos foi o que Vanessa conseguira dizer pelo telefone, naquele exato instante em que eu iria contar tudo a ele. Agradeci a Deus e lamentei ao mesmo tempo, não por Felipe, claro, mas por não ter que enfrentar aquela situação. Lembrei de quando era criança, que ficava com medo de contar a meu pai quando fazia algo de errado, temendo ser repreendida ou ficar de castigo. Meu castigo para aquele pecado seria muito grave, talvez até o afastamento total de Pedro. Ele não me perdoaria!
Sendo ou não perdoada, eu lhe contaria tudo assim que voltasse de sua casa. Estava farta daquela situação, de tantas mentiras, de tantas situações perigosas, de tanta tensão e preocupação. Queria ter paz e poder deitar a cabeça em meu travesseiro tranqüila. E foi exatamente o que afirmei ao deputado, assim que o dia amanheceu, quando me procurou mais uma vez, para tentar me dissuadir a continuar em seu plano sórdido. Não me trouxera nenhuma novidade sobre minha filha, com certeza estava mentindo, não sabia de nada, usava a história apenas para garantir a minha parceria no jogo.
- Se não vai ser através de você, será de outra forma, mas eu conseguirei este dossiê, antes de Pedro. E quanto a você, minha cara, vai se arrepender amargamente de estar contra mim. Nunca mais verá sua filha, eu te prometo!
- O que o senhor sabe realmente sobre minha filha, deputado?
- Mais do que você pensa.
Só podia ele ter algo a ver com o seqüestro. A forma como falava, deixava-me com muitas dúvidas.
- Foi o senhor?
- O quê?
- Foi o senhor que mandou roubar minha filha?
Pronto. Tivera coragem finalmente de enfrentá-lo.
- Ficou louca?
- Só pode. O senhor parece saber demais realmente quando me ameaça.
- Sou apenas uma pessoa inteligente.
- Inteligente e perigosa.
- Disso você entende. O que fez com Pedro lhe coloca numa classificação parecida com a minha, não acha?
- Não. E fiz pela minha filha.
- E eu pelo meu emprego. O que nos diferencia?
- O motivo.
- A nobreza dos motivos? Os fins não lhe fazem melhor do que eu. Os meios pelos quais você tenta conseguir seu objetivo lhe fazem tão suja quanto eu.
- Isso não é verdade. Eu sou uma mãe desesperada. Perdi minha filha bebê.
- E isso lhe concede o direito de mentir, enganar, roubar?
- Não, mas...
- Não é melhor do que eu coisa nenhuma, moça!
- Quero apenas minha filha.
- E eu os documentos de que preciso. E aí? Isso é importante para mim como essa criança é para você. Somos duas pessoas lutando para conseguir o que consideramos importante a nossas vidas.
- Eu só preciso saber se o senhor tem realmente alguma coisa a ver com o sumiço de minha filha.
- Pode ser que sim, pode ser que não.
Ele tinha um riso cínico o qual me enojava.
- Só me resta procurar a polícia.
- Faça. Acabará o resto dos seus dias atrás das grades.
- Será um escândalo e não será nada bom pro senhor.
- Certamente que não. Mas logo tudo estará esquecido, como tudo o que acontece a qualquer político neste país. Quanto a você, minha cara, encontrarei um modo de fazer com que apodreça na cadeia. Falsidade ideológica é crime, sabia? No mais, ficará sem sua filhinha, para o resto de sua vida.
Eu tive vontade de esbofetear aquele homem asqueroso, canalha. Mais uma vez eu tive a impressão de que ele sabia de Clara, de seu paradeiro, ou melhor, que tinha a ver com seu sumiço. Talvez tivesse de armação junto com Guel, querendo me convencer a estar ao seu lado no plano, por eu ser tão parecida com a tal Mirela, contratou Guel para ajudá-lo a tirar Clara de mim e assim conseguir a minha participação. Mas como, como sabia de mim, como teria pensado em tal plano? Não! Era muita fantasia de minha cabeça. Ele poderia estar blefando somente. De qualquer forma Guel seria a chave para desvendar esse mistério.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 38

Fui aprendendo, com o tempo, a me preocupar cada vez mais com a vida de meus filhos e ir me afastando de meus interesses enquanto mulher, como se minha felicidade fosse exclusivamente as suas vidas. Procurava diariamente não pensar sobre os porquês de minha existência, mas se meus filhos estavam bem ou precisando de algo.  Deste modo, meus medos, angústias deixavam de se estruturar na difícil convivência e violência de meu marido, passando a se originar na ausência e mágoa de Tony, por algo que eu não sabia ao certo o que era, bem como dos caminhos escolhidos por ela a fim de conseguir subir na vida; ou ainda no afastamento forçado de meu filho Holanda, depois de cortar relações definitivamente com o pai, e de seu relacionamento errôneo com Renato.
O que também tirava-me o sono, era a falta de notícias de Ronie, o caçula, de quem eu ficava sabendo alguma coisa apenas quando procurava os irmãos em busca de dinheiro. Era na verdade quem mais me preocupava, naquele momento. Já não o via há mais de seis meses. E eu sabia de seu vício.
Fora Ronie quem mais me dera trabalho nas épocas de colégio, com suas confusões constantes, freqüentes expulsões e falta de interesse pelos estudos. Valia-me de Nando para ensinar o irmão em casa, bem mais que Francisco, na esperança de que se recuperasse e conseguisse passar de série. O que se repetia ano após ano. Os problemas se complicaram ainda mais em sua adolescência. Vivia envolvido com as piores amizades, garotos que sabíamos não serem de boa família e estarem metidos com roubos pela vizinhança. Certa vez a turma de que meu filho fazia parte, entrara no supermercado de Ceiça e Rubinho, levando todo o dinheiro da caixa registradora. Rezei para que meu filho não tivesse nada a ver com aquilo, embora soubesse que todos na rua desconfiavam com quem ele estava envolvido sim, pois o viam junto com esses outros adolescentes permanentemente, inclusive Ceiça, que passara a me olhar com desconfiança, quando ia no mercadinho comprar algo. Lembro ainda que Alceu dera uma grande surra em Ronie, por conta da desconfiança. No entanto, só comecei a ter as confirmações, semanas depois, no momento em que aparecia um dia ou outro com roupas novas, saídas constantes para shoppings e praia. Não podia ser de outro lugar a fonte de seu dinheiro.
Depois de adulto não era diferente, Ronie continuava se relacionando com pessoas perigosas e mal-quistas na rua. Já fazia três anos que saíra de casa para dividir apartamento, segundo ele, com um colega, a quem nunca cheguei a conhecer. Fiquei sabendo através de Holanda que estava trabalhando de garçom num bar na Praia de Iracema, o que pelo menos já me tranqüilizava, embora vivesse recorrendo aos dois irmãos para que o ajudassem a pagar uma conta ou outra, as quais meu coração me dizia tratar-se de despesas com drogas. Ele tinha dezesseis anos quando o flagrei com um cigarro de maconha dentro do quarto.
Na verdade o trabalho que dizia ser de garçom, servia apenas como disfarce para o que realmente fazia. Aos vinte e sete anos, era um homem muito bonito, corpo atlético, moreno e jeito de sedutor misturando-se a um ar de menino levado, e se aproveitava de seu sucesso com as mulheres, para ganhar a vida. Nunca gostara de trabalhar no pesado e sempre procurou uma forma de ganhar dinheiro fácil, sem ter que o fazer.
Logo que soube do endereço do tal bar, onde Ronie dissera a Holanda que estava trabalhando, tratei de procurá-lo. Inventei para Alceu que iria visitar uma cliente, a qual teria me encomendado uma roupa, lá pelos lados da Praia de Iracema, onde na verdade ficava o bar “Mukifo”. Evidente que o nome não espelhava o ambiente, o qual tinha uma estrutura requintada. Com certeza, era freqüentado por pessoas de muito dinheiro, talvez turistas. Depois de ser atendida por um dos colegas de trabalho de meu filho, conheci seu Nacélio, o gerente, um homem de meia idade, cabelos grisalhos, vestia-se com camisas soltas floridas. Chamou-me atenção o seu sotaque carioca bem carregado. Gentil, parecia boa gente. As aparências enganam muitas vezes, já dizia a mamãe. Decerto, agenciava todos aqueles garotos de programa. Era final de tarde e o bar preparava-se para abrir. Vários rapazes de boa aparência, bem vestidos, estavam ali, conversando, rindo e falando das clientes com as quais saíram na noite anterior. Pude ouvir algumas histórias, no momento em que entrei, sem que percebessem a minha presença. Só depois de falar com seu Nacélio, pude encontrar meu filho, que havia dado uma saída rápida e logo voltou. Percebi seu constrangimento de me ver ali, como se tivesse sido revelado o seu segredo, embora eu tentasse agir com naturalidade. Estava feliz de vê-lo bem, pelo menos fisicamente. A única coisa que queria naquele momento era abraçá-lo, nada mais. Nem precisavam explicações, mentiras, as histórias que se sentia mobilizado a criar para me fazer acreditar que não fazia nada demais. O que eu desejava naquele instante era poder tocá-lo, sentir sua cabeça em meu peito, protegê-lo de qualquer mal.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 39

Sonhava um dia em viver novamente junto de meus filhos e vê-los todos bem, sem problemas, num clima de paz e harmonia, coisa que nunca experimentara em minha casa. Estava com cinqüenta e oito anos de idade e trinta e cinco de casamento, e naquele momento a única felicidade que provava eram os reencontros com meus filhos, o que aconteciam em grandes intervalos de tempo e marcados por tensão e medo. Alceu jamais poderia descobrir de meu contato com Holanda e muito menos com Ronie. Ao primeiro chamava de viado, ao caçula de bandido e me proibira de me relacionar com os dois.
A última discussão que Alceu e eu tivemos, a qual me rendeu uma noite ao relento, depois de muitos machucados, foi exatamente por causa de Holanda. Não suportei vê-lo falar que desejava a morte do filho pela escolha de viver com um outro macho, segundo ele. Exigia de mim pensamento semelhante e por isso começaram as agressões. Na verdade ele não necessitava de motivos concretos para me bater, bastava chegar em casa embriagado, depois de ter perdido nas mesas de baralho do colega Quaresma, para começarem as agressões. Chegava a rezar para que não perdesse ou que  seu rival se saísse mal nas jogadas. Deste modo, chegaria bem em casa e nem falaria comigo, a não ser para cobrar seu jantar e as roupas limpas em cima da cama, depois do banho.
Sempre que Holanda ou Nando me questionavam, sobre o porquê de minha permanência naquele casamento, chegava também a me perguntar, a procurar dentro de mim uma resposta. Seria medo do que Alceu poderia fazer comigo, acomodação ou realmente pena dele, como falava muitas vezes? Era difícil responder. Eu era simplesmente infeliz e nada fazia para mudar aquela realidade.
Sabia que Alceu guardava um ódio dentro de si, que lhe movia em suas atitudes violentas. Um sentimento de frustração e inveja de mim e do amor que sentia por Adriano Cordeiro na época de nossa juventude. Éramos todos amigos de escola, inclusive Alceu e Alberto Lucena. No entanto, ele nunca aceitara esse amor e vibrou quando Adriano foi forçado pelo pai a se casar por ter engravidado sua ex-namorada. Fora a maior decepção de minha vida, levando-me a engatar namoro com Alceu de Holanda.
Pouco tempo depois do nascimento de sua filha Olívia, Adriano se separou da esposa, mesmo contra a vontade de seu pai, na esperança de reatar comigo. Sua decisão fora a maior prova de amor que poderia me dar. Contudo, meu pai jamais aceitaria me ver casada ou namorando com um homem separado, para ele era como se eu estivesse acabando com um casamento, união sagrada. Mesmo assim, pus um fim no noivado com Alceu, que não aceitava minha decisão.
Certa vez, numa viagem de papai e mamãe ao interior, para a casa de seus pais, fui surpreendida com a visita de Alceu, em mais uma tentativa de voltarmos o noivado. Mas eu estava decidida, mesmo diante da proibição de papai a meu romance com Adriano. Não suportava mais ficar com alguém sem gostar realmente. Alceu não aceitava e insistia no retorno. Tentou então me beijar, tomando-me em seus braços bruscamente. Minha tentativa foi de correr e logo percebi que a porta estava fechada. Ele sabia bem o que estava fazendo, tinha pensado em tudo, agiu na ausência de meus pais e meus irmãos. O desespero começou a tomar conta de mim e senti um frio em meu estômago. E mais rápido que lembrasse de gritar, ele já estava tapando minha boca e me deitando ali mesmo no tapete da sala, entre a mesinha de centro e o sofá. Prendia-me com peso de seu próprio corpo por sobre o meu, segurando meus braços com uma mão e tapando minha boca com a outra. Não acreditava no que estava acontecendo, mais parecia um pesadelo. O amigo que fora durante tantos anos, com quem depois dividi anos de intimidade e cumplicidade em namoro e noivado, violentando-me, roubando-me a honra. Gritei por dentro ao sentir-me rasgada em minhas entranhas! Não demorou muito e logo tudo estava terminado. Quando levantou vi seu pênis sujo de sangue, recaído para fora do zíper. Seu olhar era de ódio, totalmente transtornado, como nunca antes o vira, depois de tantos anos de amizade, namoro e noivado. Recompôs-se rapidamente e me deixou ali mesmo, jogada ao chão, tomada por um choro compulsivo.
O que seria de mim depois daquilo, como enfrentaria papai e minha família, como todos me olhariam após aquele absurdo? Acreditaria papai se lhe contasse que o que acontecera fora sem a minha vontade, que havia sido violentamente agredida pelo homem que havia me jurado fidelidade e cuidado, se se casasse comigo? Não sei se realmente acreditaria. Lembrei-me de um fato, de uma moça que teria sido estuprada no Montese há alguns anos, na época ainda de minha adolescência e, vi papai denegrindo sua imagem, sem acreditar que fora de fato um estupro, e se tivesse sido realmente, era uma mulher sem honra, segundo ele.
Senti-me enojada de pensar daquela forma. Mas lamentavelmente era assim que a sociedade pensava. Eu havia sido vítima de uma violência e teria de me calar se não quisesse ver meu nome sujo, ou ser até mesmo rejeitada pela minha própria família.
Os dias que se seguiram após aquela monstruosidade foram marcados por uma tristeza profunda. Lembro que não tinha vontade de comer ou falar com ninguém. Queria apenas viver minha dor. Alceu levara de mim, não apenas minha virgindade, bem como meus sonhos, minha pureza. Algo dentro de mim havia mudado e eu não sabia bem o que era.
Assim que meu pai voltou de viagem, tivemos a presença de Alceu olHolandaHHHHnnsjsjsno almoço. Depois de passarem mais de uma hora conversando na sala, sozinhos, fui chamada juntamente com mamãe, sendo comunicadas que dali a um mês eu seria a senhora Clarinda de Holanda. Senti náuseas e corri para o banheiro. Estava condenada a passar o resto de minha vida ao lado daquele monstro. O que mais me magoara era o fato de papai não se importar com meu bem estar e exigir minha união com ele.
Somente depois de nosso casamento, fiquei sabendo que Alceu não havia falado a verdade a papai, e sim que tínhamos cometido o pecado da carne, mas que estava disposto a reparar o erro, casando-se antes que alguém soubesse.
As palavras me faltam para expressar o que senti ao saber daquele absurdo. Estava totalmente indignada e não hesitei em tentar agredi-lo. Foi a primeira vez que Alceu me bateu, depois de nosso casamento. Dias depois, descobri que estava grávida, fruto do pior momento de minha vida. Questionei se era da vontade de Deus o nascimento daquela criança e senti vontade de tirá-lo, livrar-me daquela marca que me acompanharia para o resto de minha vida.
Passara então os últimos trinta e cinco anos vivendo a tristeza de estar casada com o homem que roubara de mim a esperança de minha felicidade, lamentando a frustração de não ter podido viver esse grande amor com Adriano. E Alceu sempre soubera de meus reais sentimentos para com ele, talvez por isso nunca tenha me perdoado e admitido a minha indiferença, nem o amor que carregava comigo ainda em meu coração.
Durante muitos anos ainda tivemos contato com Adriano Cordeiro, que uma vez ou outra aparecia para nos visitar, por conta da grande amizade que existia entre nós, e até mesmo entre ele e Alceu. A cada visita do amigo, meu marido ficava cada vez mais agressivo, acusando-me de flertar com ele, durante todo o momento em que estivera conosco. Com o tempo, comecei a pedir que não viesse, na tentativa de acabar com o inferno que estava se tornando a minha convivência com Alceu. Por mais que sofresse em ficar longe de mim, Adriano não queria me ver sofrer e logo tratou de atender os meus apelos. Passávamos então anos sem nos ver, até que o destino, de uma forma ou de outra nos colocava um na frente do outro, em encontros inusitados e relâmpagos, nos quais mal podíamos trocar algumas palavras. No entanto, a cada um deles, eu sentia o meu coração bater mais forte, toda a emoção do início ainda se fazia presente, pelo menos de minha parte.
Adriano nunca ficara sabendo o que realmente acontecera, para eu decidir me casar com outro homem. Inicialmente, acreditava que eu tinha me descoberto apaixonada por Alceu, assim como eu tinha dito, depois percebeu que não. Com o tempo, parou de tentar entender, inclusive o motivo que me levava a manter aquela relação estúpida com um homem de quem eu não gostava e ainda me fazia sofrer permanentemente.
Nem ele, nem ninguém nunca saberia o que me fazia permanecer ao lado de Alceu. Achava que era um segredo que levaria comigo para o túmulo. Acho que nem mesmo o meu próprio marido entendia, e chegara a expressar essa dúvida vez ou outra, quando arrependido das atrocidades cometidas no dia anterior.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 40

Era chegado o momento de acabar com toda aquela farsa e contar a verdade a Pedro. Fui direto para seu apartamento, decidida a pôr um ponto final no plano de Donato Pessoa. Fui, no entanto, surpreendida por Vanessa, que já estava de saída.
- O Pedro já sabe de tudo, sua vagabunda. Eu quero saber agora que mentira vai inventar para se livrar dessa.
Não podia ser mais um de seus devaneios. Ela sabia bem o que estava dizendo. Mas como teria conseguido provar alguma coisa? Não importava como, se ele já estava sabendo ou mesmo que não soubesse, saberia naquele momento por mim. Pedro estava na sala, sentado no chão, segurando algumas fotos, como que perdido em meio a várias outras fotos e papéis à sua volta.
- O que houve, meu amor?
Dava para perceber que chorava, mesmo calado. Nem conseguia olhar para mim. Senti uma dor profunda ao vê-lo daquela forma, sofrendo, com um olhar perdido, sem conseguir fixá-lo em lugar nenhum. Suas mãos percorriam sua cabeça, jogando o cabelo para trás, numa coreografia que se repetia, como sempre fazia em situações perturbadoras. Pensei que tivesse acontecido algo com Felipe, talvez uma forma de fugir da realidade, do que realmente eu sabia que estava acontecendo. Tinha descoberto tudo e estava sofrendo por isso. Os papéis e fotos eram tudo sobre minha vida, sobre minha real identidade e a verdadeira ligação entre a tal Mirela e eu.
Pouco tempo depois de meu nascimento, meu pai recebera uma carta anônima delatando um romance secreto de minha mãe e um primo seu, pondo em xeque a paternidade de minha irmã mais velha – Mirela. Pensando ter sido traído pela esposa, meu pai fora embora, levando-me consigo. A verdade nunca viera à tona. Nossa família fora separada pela dúvida da traição. Fui criada somente por meu pai, viajando de cidade em cidade, sem nos fixarmos muito tempo em lugar algum, por conta de seu trabalho como general da marinha. Eu então vim morar aqui depois de muitos anos, mesmo sem saber da existência de uma família em Fortaleza. Já Mirela, anos após a morte de nossa mãe, havia morrido em um acidente de carro, sem saber por onde andávamos papai e eu.
Estava completamente chocada diante daquelas revelações. Era como, se de alguma forma, uma parte de mim não fosse conhecida por mim mesma. Sentia-me estranha, desconsertada, sem saber ao certo o que pensar. Por um momento esqueci que Pedro estava ali na minha frente, de posse de toda a verdade também, sabendo que Mirela de fato estava morta e que meu nome real era Júlia Serrado, coreógrafa e bailarina da Mirage, como Vanessa tentara lhe dizer tantas vezes antes.
Era tudo muito confuso para mim. Não sabia se me preocupava com Pedro ou com aquela nova história sobre minha vida. Afinal, eu tinha assumido a identidade de minha própria irmã, passando-me por ela e vivido um romance com seu grande amor. Era realmente tudo muito louco. Não somente ele estava diante da verdade, mas eu também estava sendo surpreendida com aquela revelação. Havia sido usada por Donato Pessoa, sem saber de nada. No entanto, ele sabia exatamente o que estava fazendo e não contara nada antes, para usar aquela informação no momento que achasse oportuno, como aquele. Estava certo quando dissera que não deixaria barato a minha desistência de seu plano para enganar o concorrente dentro da empresa. Tinha entregue todos aqueles documentos sobre minha vida a Vanessa para que ela acabasse comigo.
Bem, mas eu precisava apenas contar a Pedro sobre Clara e meu sofrimento, os motivos que me levaram a entrar naquele jogo.
- Pedro, você precisa saber da verdade.
- De qual verdade? - Finalmente pude ouvir sua voz. – Quem está falando agora, é Mirela ou Júlia Serrado? - Aquela pergunta chegou-me como um balde de água fria. – Já sei de toda a verdade, Júlia. Sei que fui um pateta nas suas mãos, que me enganou, tripudiou o quando pôde encima de mim, dos meus sentimentos, do amor que sentia por Mirela.
- Não, eu nunca tripudiei...
Estava entrando em desespero, não era possível que ele estivesse achando que eu não o amava.
- Como não?
- Pedro, acredita em mim, eu te amo!
- Acreditar em você? - Estava mais alterado. – Quem você é, garota? O que você é, afinal? Eu não sei com quem eu estou lidando. Acreditava estar diante da mulher que amei a vida inteira. E agora, isto.
- Isso não é verdade. Você não estava diante da Mirela. Eu posso até parecer muito com ela, fisicamente, mas não por dentro. Você estava agora apaixonado, não por ela, mas por mim.
- Eu estava apaixonado por uma mentira.
Ele levantou-se e, por um momento, achei que iria me agredir.
- Eu entreguei meu amor a uma farsa, porque eu acredito nas pessoas, acredito que todo mundo fala a verdade, vive a verdade, como eu procuro viver.
- Eu também sempre procurei viver a verdade.
- Se fazendo passar por sua irmã?
- Não! Eu preciso te explicar.
- Que mentiras vai inventar agora? A Vanessa tinha toda razão sobre você. Desde o principio ela soube que era uma impostora, que não era Mirela, sempre me disse isso e eu, burramente, não acreditei, não a escutei.
- Eu fui obrigada.
- Ele te ameaçou?
- Não, não foi isso. Mas eu precisava encontrar a minha filha.
- Que filha?
- Ah, isso eles não te falaram?
- Eu estou começando a achar que você precisa de um médico, garota.
Era desesperador vê-lo falar daquele jeito, com tanto desprezo de mim.
- Não fala assim comigo, Pedro. Minha filha foi roubada. Donato Pessoa prometeu encontrá-la se eu...
- ...me seduzisse, me enganasse? Ora, Júlia Serrado, você acha realmente que eu vou acreditar nessa história mirabolante, depois de tudo o que eu soube sobre você?
- Você tem que acreditar! – Meu tom já era de quase desespero. E me vi segurando-lhe pelo colarinho, como que para ele não escorregar das minhas mãos, sair da minha vida.
- Me solta. Não sei quem você é. Não acredito em nada, nenhuma palavra. – Falava com certo asco.
- Eu estou falando a verdade, Pedro. Entrei nesse plano, mas acabei me apaixonando por você.
- Isso é pior do que eu pensava. – Levantando-se de onde estava.
- Acredita em mim, por favor!
- Eu juro que eu queria.
- Eu te amo, Pedro. – Minha voz já era embargada pelo choro.
- O que eu sinto agora, é uma dor profunda, que você não tem idéia.
Eu vi seus olhos encherem-se de lágrimas. E com a voz entrecortada pelo choro que insistia em lhe tomar:
- Vai embora. Me deixa aqui, eu preciso raciocinar, pensar em tudo isso.
- Se você soubesse o quanto eu estou arrependida. - Tomada completamente pelo choro. - Eu vinha te contar tudo.
- Vai embora, por favor, não piore as coisas.
- Pedro, acredita em mim.
- Saia daqui, por favor.
- Eu tenho uma filha. Ela agora tem quase dois anos. Meu marido a roubou com a ajuda do irmão. Queria vendê-la a um casal de estrangeiro.
- Meus Deus, que família! Com quem fui me meter?
Era como se o que eu revelasse piorasse ainda mais minha situação.
- Fui vítima também, droga!
- Vítima? Não sei, não sei mesmo o que pensar. – Caminhando de um lado para o outro. Passava a mão no cabelo, no rosto.
- Esse Donato Pessoa chegou me falando que poderia me ajudar a encontrar a Clara. Acreditei que podia assim descobrir onde estava minha filha.
- É muita coisa para minha cabeça, de uma vez só. Sinto muito.
- Pedro, acredita em mim. É o que te peço.
- E se eu acreditasse, do que adiantaria? Mentiu, me enganou, me traiu.
- Foi por uma boa causa.
- Então é capaz de matar, se julgar ser por uma boa causa?
- Não. Não é assim. Está sendo muito duro comigo.
- E o que esperava que eu fizesse?
- Que acreditasse em mim.
- Acreditei. E no que deu?
- Não sei o que dizer.
- Pois eu sei. Acredito nas pessoas até que elas me provem o contrário. E você o fez. Fazer-se passar pela irmã morta, trazendo uma história à vida de uma pessoa anos depois que já havia se refeito desta dor... Não! Isso é absurdo! É monstruoso! Eu não acreditava que isso poderia acontecer na vida real.
- Me perdoa.
- Saia daqui, por favor.
- Pedro...
- Saia daqui, eu lhe peço.
Ainda tentei me aproximar e ele se afastou. Queria distância de mim. Como doeu aquilo. Via-me desesperada, sem conseguir mostrar-lhe todo o meu amor, e o quanto eu também havia sofrido com tudo aquilo, o quanto eu pensei e tentei lhe contar a verdade.
Entedia plenamente, no entanto, sua atitude. Não conseguia acreditar em mais nada do que eu falava, e quando mais eu tentava me explicar, era como se quebrasse ainda mais a magia, a verdade do que havíamos vivido naqueles meses.
Saí daquele apartamento como que tivesse uma faca cravada em meu peito, tamanha era a dor que levava comigo, a qual se intensificava ainda mais ao lembrar do rosto do homem que amava chorando, sofrendo com tudo aquilo. Definitivamente, ele não merecia, e era o que me fazia ainda pior. Estávamos separados pela minha covardia, minha burrice, minha falta de fé. 


CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 41

Acabei por me isolar na solidão de meu casamento, no dever de minha religião e nas preocupações com minha família. Temia que um dia alguém soubesse. Apesar de ter morado minha vida inteira na mesma rua, no Montese, não era muito de amigos íntimos. Não conhecia quase ninguém da vizinhança e tinha como amiga mais próxima, Ceiça, proprietária do mercadinho da esquina. Uma mulher que não se preocupava com a vida das outras pessoas. Sabia de seu conhecimento sobre a minha situação e até me ajudara algumas vezes, contudo, nunca tocara no assunto diretamente, para me preservar.
Ceiça era uma senhora bem humorada, de meia idade, porém bem cuidada, aparentando ser bem mais jovem que eu. Vestia-se bem, embora com roupas modestas. Todos na rua sabíamos que sua situação financeira melhorara bastante, com o aumento das vendas no mercadinho, embora não gostasse de ostentação. Era casada há mais de trinta anos com Rubinho, pouco mais velho, por quem tinha uma completa veneração. Achava difícil ver um casal junto há tanto tempo e continuarem tão apaixonados um pelo outro. Formavam um simpático casal. Ele era um homem magro, calvo, de cabelos grisalhos, detestava quando alguém chamava atenção para sua careca.
O mercadinho de Ceiça e Rubinho funcionava como pointe da rua Romeu Martins, onde todos se encontravam em horários diferentes, no momento das compras, para colocarem o papo em dia. Mesmo sendo uma mulher que não gostava de fofocas, acabava sabendo da vida de muitas famílias do Montese, através das próprias pessoas, que transformavam suas compras numa espécie de seção terapêutica.
Ceiça e Rubinho acabaram se transformando em figuras folclóricas do bairro, devido à veneração dela pelo marido. Não se cansava de afirmar a todos, em todos os momentos, o quanto era um homem bom, de boa índole, honesto, fiel, corajoso e um amante maravilhoso. Ela era completamente fã do próprio marido. Eu, assim como muitas pessoas, não suportava vê-la elogiar o esposo permanentemente, em cada história, em cada segundo de sua fala, acabando por não segurar o riso. Às vezes tinha vontade de dar boas gargalhadas.
No fundo, eu os admirava. Exagero ou não, Ceiça e Rubinho experimentavam a felicidade. Claro que em alguns momentos, no intervalo de um elogio ou outro ao marido, ela mostrava-se preocupada com os filhos.
Dorival, o filho mais velho de minha vizinha, de trinta anos, policial por desejo da mãe, também já era alvo de seus elogios exagerados, transformando-o num grande herói, por ser, segundo ela, um homem extremante corajoso, dotado de inúmeras virtudes, capaz de entregar a própria vida em prol da lei e da justiça. Além de uma beleza estonteante, lembrando seu grande ídolo do cinema Marlon Brando, de quem mantinha um enorme quadro na sala de sua casa, ao lado das fotos de tamanho similar do marido e do filho.
Bem, que Dorival realmente era muito bonito, isso sem sombra de dúvidas, mas daí ser parecido com Marlon Brando, já era exagero seu. Apenas minha vizinha conseguia perceber a tal semelhança.
Ceiça não suportava o fato de Dorival, um rapaz tão virtuoso e belo, estar se envolvendo com Salete, a bela mulata que se mudara para a casa em frente ao mercadinho. Sabia-se que a moça era solteira e a rua comentava que gostava de ter muitos namorados. O que mais incomodava à Ceiça talvez fosse o jeito meio vulgar, segundo ela, com que a moça se vestia e falava, sempre maquiada em qualquer hora do dia, fumando um cigarro atrás do outro. Andava acompanhada freqüentemente de Vera Sheila, moça mal falada de nossa rua, com quem todos os rapazes da vizinhança haviam perdido sua virgindade. E o pior, para minha vizinha, Salete parecia já estar falando em casamento. Aquilo estava lhe tirando o juízo, completamente. Dizia baixinho para mim que seu filho, tão bonito, inteligente, bom homem, não poderia jamais se casar com uma mulher tão vulgar, usando roupas tão curtas. Eu chegava a rir, algumas vezes, de suas colocações, quase ingênuas. Mas preocupação de mãe não se explica.
A outra filha de meus vizinhos, também lhes dava um pouco de trabalho. Marluce se mostrava completamente alucinada por meu filho Nando, e não perdia a oportunidade de estar ao seu lado, tentando me ajudar nas costuras ou nos afazeres domésticos, o que me deixava, diversas vezes, constrangida, ou ainda tentar momentos de estudos com ele. E tudo para ficar mais perto de sua paixão, que parecia se cansar dela cada vez mais, principalmente depois de tê-lo beijado dentro de seu carro, no estacionamento da faculdade, causando o fim do namoro de Nando e Olívia Cordeiro. Assim, como ele, Ceiça achava a filha inconseqüente e pedia-me ajuda para colocar mais juízo em sua cabeça.

* * *

A outra vizinha de quem senti também desejo de me aproximar mais foi Júlia Serrado, que chegara na rua, morando na casa de frente à minha. Existem coisas que não sabemos explicar. Desde quando nos conhecemos, no dia de sua mudança, senti algo de bom em sua presença. Devia ser uma boa moça. Pelo menos trabalhadora era, parecia ser ela quem sustentava a casa, com a cunhada e os dois sobrinhos. Eu ficara sabendo do roubo de sua filha, através dos comentários de duas vizinhas, que conversavam no mercadinho. Nunca tive um filho roubado, mas sabia bem o que era não poder vê-los ou conviver com eles. Sendo que o caso dela era ainda mais grave, por ser apenas um bebê. Minha intuição nunca falhou. Desde o primeiro momento em que conversamos, Júlia e eu, percebi uma certa tristeza que carregava consigo. Queria poder lhe ajudar de alguma forma.

* * *

Acho que procurava me envolver nas histórias de minha família e vizinhos somente, como forma de esquecer o vazio em meu coração. Não era somente o fato de permanecer ao lado de Alceu, mas também a distância de meu grande amor. Adriano Cordeiro já estava com sessenta anos, e era um homem que carregava consigo muito charme e beleza, pelo menos eu achava na última vez em que nos vimos, que faziam cinco ou seis anos. Mesmo depois que me reaproximei de Olívia, não obtinha notícias dele, sendo ela brigada com o pai, desde sua gravidez, fazia vinte anos. Sabia apenas que ele continuava morando com D. Norma Mesquita, uma senhora de oitenta anos, de quem administrava todos os bens, através de uma imobiliária, criada especialmente para este fim, desde a morte de seu marido, dez anos antes. D. Norma era para ele, como uma mãe, e ela o considerava também como filho. Nunca cheguei a conhecê-la, mas ele falava muito e com bastante admiração, de sua firmeza, beleza e verdade. Devia ser uma figura realmente interessante. Desejava conhecê-la um dia. Isso, se um dia, nós ainda nos reencontrássemos.
Pensar na possibilidade de nunca mais reencontrar Adriano, doía-me na alma, como se eu mesma arrancasse de mim, a última oportunidade de ser feliz um dia. Embora achasse ou soubesse que seria realmente impossível ter ainda alguma coisa com ele, mesmo que qualquer tipo de relação. Jurara para mim mesma que ficaria com Alceu até o dia de sua morte. Não poderia nunca pensar em quebrar aquela promessa, embora me custasse a própria vida. Meu próprio desejo era meu algoz! Afinal, éramos casados. E casamento é para sempre, como diziam meus pais.   



Parte II
Junho a Agosto de 2006

  

JÚLIA SERRADO
Capítulo 42

Chorei a noite inteira, depois de sair do apartamento e deixar Pedro para trás, de posse de toda a verdade, ou parte dela. Sabia finalmente que não havia retornado seu romance com o grande amor de sua vida, Mirela, mas que tinha entregado seu coração a uma mulher que se fizera passar pela própria irmã para enganá-lo. Não acreditara em uma só palavra que eu havia tentado lhe dizer, os motivos que me fizeram tomar aquela atitude, ou até mesmo o porquê de Vanessa ter conseguido as provas contra mim.
Deitei no colo de Raquel naquela noite, falando repetidamente sobre o quanto eu estava arrependida e quanto amava Pedro Lucena. Poderia me lembrar que por diversas vezes aconselhou-me a contar a verdade, mas não o fez. Escutava-me com toda a paciência do mundo, acariciando minha cabeça, debruçada em seu colo.
- Não se preocupe, Júlia, logo tudo estará resolvido. Pedro vai saber da verdade sobre Clara e vai entender. Sei que é um homem bom, além de te amar.
Raquel só não pensava naquele instante que também era um homem traído, que entrara em contato pela segunda vez com a notícia de que Mirela estava morta, que os sonhos os quais se reacenderam dentro de si haviam novamente sido apagados e justamente por mim. Não pensava com tanto otimismo quanto Raquel. E era exatamente isso que machucava o meu coração ainda mais.
Sei que ninguém nunca morrera de amor antes, no entanto, a dor que experimentava naquele momento, chegava a me sufocar, a doer fisicamente. Lembrava-me dos momentos em que estivemos juntos nos últimos meses, a cumplicidade, o afeto, o carinho, os sonhos, os planos, a possibilidade da felicidade eterna. E então, tudo estava acabado. Pensar que não teria mais o seu calor, que não sentiria mais o cheiro, que não compartilharíamos mais nossas idéias, nosso dia-a-dia, fazia-me entrar em contato com um vazio, que disparava descargas de adrenalina em meu corpo, adormecendo-me as pernas.
Para Pedro a situação não se desenhava diferente. Há muito tempo não entrara em contato com tamanha dor. A última vez a qual passara por coisa parecida, fora realmente na perda de Mirela, há quinze anos. Desde então, não vivera nada tão intenso que lhe fizesse sentir tamanha falta. Esteve casado com Vanessa por dez anos e dedicara-se somente ao filho e ao trabalho, bem como tentar conviver com os ciúmes da mulher. Nem mesmo a morte do pai, seis meses antes, trouxera-lhe tanto sofrimento. Na verdade, não conseguia chorar desde a morte de Mirela. Embora tivesse uma relação de muita amizade com o pai, não experimentara o vazio o qual sentia naquele instante. E aquilo o deixava ainda mais angustiado.
Depois de passar horas vendo e revendo cada foto, cada linha do relatório sobre a minha vida, ou pelo menos sobre o meu envolvimento num plano para dar a Donato Pessoa a vice presidência da RTN, Pedro decidira sair e encontrar, embora que de madrugada, com o amigo Adriano Cordeiro, em quem se apoiara, em seu momento de dor. Finalmente conseguira colocar para fora toda a sua angústia, seu desespero, sua tristeza, num choro compulsivo, como se chorasse todos os seus infortúnios dos últimos quinze anos.
- Tenho muita consciência de que não choro nesse momento pelo que ela fez comigo somente, mas por cada perda, por cada dor, dos últimos anos da minha vida, Adriano.
- O universo, muitas vezes, nos mostra saídas um tanto tortuosas, meu amigo. A moça precisou chegar na sua vida, pra te fazer essa limpeza. Na verdade, você estava necessitando de algo que te impulsionasse a acordar para o que é real em seu coração. Você fugia disso há anos, Pedro.
- Eu sei.
O choro ainda lhe veio de forma compulsiva, dificultando-lhe a fala.
- Talvez tudo isso tenha sido muito bom ter acontecido exatamente agora...
Hesitava um pouco e continuava.
- ...pra que... pudesse destampar essa pedra que... que me impediu de “sentir” durante tantos anos. Mas dói muito, amigo! Dói muito! Muito mesmo!
Falava aquilo, procurando enxugar as lágrimas em seu rosto.
Estavam praticamente sozinhos no bar, na companhia apenas dos garçons e demais funcionários. E o dia já estava quase amanhecendo. Podiam ouvir os primeiros cantos dos passarinhos, nas árvores da calçada do ambiente, que ficava na Avenida Virgílio Távora, pertinho da Dom Luís.
E Adriano bem sabia do que Pedro estava lhe falando. Lembrava-se do quanto sofrera com seu afastamento do grande amor de sua vida, D. Clarinda, bem como do quanto sofria com a distância de sua filha, Olívia, desde que a expulsara de casa grávida, fazia vinte anos, de quem desejava poder se reaproximar novamente. Chegava a ficar também emocionado de ver o amigo daquela forma.
- Sabe o quanto eu gosto de você, Pedro. Seu pai e eu fomos grande amigos, desde garotinhos. Praticamente vi você nascer. E hoje, somos também grandes amigos. É como se você fosse para mim um filho. E me dói profundamente vê-lo dessa forma. Eu queria muito poder te ajudar, amenizar o que você está sentindo. É isso que um pai sente, quando vê um filho sofrer.
E deixou que uma lágrima rolasse pelo seu rosto.
- Mas eu sei que é muito importante o que você está sentindo nesse momento, Pedro. Importante que eu digo, para o seu crescimento como pessoa, como ser humano. O sofrimento é apenas como nós nos posicionamos diante de certos convites do universo, os quais consideramos desagradáveis.
E Pedro, ainda tomado pelo choro:
- Eu fico ainda tentando não encontrar subterfúgios que proliferem essa dor, mas é quase impossível não pensar que poderia ter sido diferente... e eu nem sei como poderia ter sido diferente. Pior, não haveria como ter sido diferente. Era tudo uma grande mentira, uma grande farsa...
Baixou um pouco a cabeça, entregando-se ao choro. E então continua:
- Eu não posso fechar os olhos e imaginar que isso tudo não passa de um grande pesadelo, entende? Que não poderia ser diferente, porque... a Mirela...
O choro lhe interrompia diversas vezes.
- ...a Mirela, na verdade... ela está morta!
- Eu compreendo exatamente o que você está sentindo, Pedro. Essa coisa da gente de repente imaginar que fosse diferente, é como se, por alguns segundos, a gente trouxesse a felicidade de volta, e conseguisse de fato transformar a tristeza, deixar de senti-la. São mesmo subterfúgios para enganar a dor.
- E eu sei que isso só dificulta ainda mais o processo. A gente acaba adiando o que é inevitável, o fim.
- Na verdade, o que queremos adiar, não é o fim, e sim a dor que ele nos provoca. Você precisa ser muito forte, meu amigo.
Pedro pensara no quanto a vida era inusitada. Parecia ter vivido num conto de fadas, nos últimos meses, reencontrando seu grande amor. E de repente, deparou-se com a triste realidade que não apenas Mirela estava realmente morta, mas também havia sido vítima de um golpe de seu melhor amigo, embora estivessem afastados nos últimos anos, ainda o considerava assim e gostava de Donato Pessoa como um amigo.
Era como se fossem vários golpes simultâneos, uma decepção que se dividia em muitas outras.
Na verdade, Pedro chorava ali, na companhia de Adriano, a dor pela morte de Mirela, a saudade que sentira do pai desde que fora morar em Londres, a pressão do casamento com Vanessa, o afastamento de Donato Pessoa, os problemas de saúde de Felipe, a sua separação, e mais tarde, a morte do pai, a decepção com o melhor amigo de sua vida inteira, e finalmente, a desilusão com a falsa Mirela.
Quando o dia amanheceu eu estava queimando de febre. Raquel se dividia em cuidar dos filhos, ajeitando-os para irem à escola e me dar assistência, até lembrar de chamar a vizinha, D. Clarinda de Holanda. Ela já estava a par de toda a história, eu havia lhe contado há algum tempo, pouco depois de nos mudarmos ali para o Montese. Diferente de Pedro, ela não só acreditava em minha inocência, como ficara do meu lado, tratando para que a febre baixasse. Em alguns momentos, cheguei a delirar, enxergando meu grande amor entrar procurando por mim. Os delírios se revezavam com breves momentos de lucidez, que me traziam de volta a dor pela perda de Pedro, fazendo-me soluçar num choro compulsivo. Lembro-me bem de D. Clarinda tentando me acalmar.
- Filha, logo tudo ficará bem. Não se preocupe.
Era como se não falasse apenas para me deixar melhor, assim como fazia Raquel. D. Clarinda parecia saber realmente do que estava falando, como se tivesse certeza de sua afirmativa. E aquilo me deixava mais calma. Embora segundos depois soubesse que não.
- Não, D. Clarinda, ele não vai me perdoar! Não vai!
Ouvia mais meu próprio choro, que o barulho de meus sobrinhos Zezinho e Rafael se negando a escovar os dentes, logo ali do lado, no banheiro. Não sabia ao certo se o que Raquel lhes dizia era realmente para eles ou se se referia a mim, num desabafo.
- A gente não pode fazer tudo o que a gente quer na vida. Vamos... Agora!
Desejei ter alguém que me tivesse impedido de fazer o que eu fiz com o homem que eu amava, assim como Raquel estava interferindo no desejo das crianças. Deste modo, eu não teria me machucado tanto, nem teria causado tanto sofrimento em alguém que jamais merecia estar passando por aquilo.
- Eu fiz o que há de pior no mundo com o homem que eu dizia amar, D. Clarinda!
- Você fez o que achava que era certo, filha.
- Eu não podia tê-lo enganado!
- Às vezes erramos porque somos mães, Júlia. - Ela retrucava, enxugando-me as lágrimas. - Não se culpe ainda mais, filha. Lembre-se dos motivos que lhe levaram a fazer o que fez. Eles nunca foram uma mentira.
- Foram fraqueza!
- Mas não foram mentira. Eles eram reais e você sofria com eles.
- Eu fui fraca!
- Não tinha obrigação nenhuma de ser forte.
- Como não?!
- Ninguém tem. Seria melhor ser forte, mas nem sempre somos. - Ela sorria, acariciando-me a cabeça. - Júlia, você sabe o quanto sofreu durante todo esse tempo em que carregou esse fardo, essa farsa. Nunca fez por mal, por querer se dar bem em cima de ninguém, e muito menos de Pedro. Pelo contrário, preocupou-se com ele sempre. Queria ter lhe contado...
- Mas não contei na hora certa. 
- A hora certa é a hora da verdade, mas nem sempre conseguimos enxergá-la diante do medo, principalmente do medo de uma mãe, de não mais ver sua filha. Júlia, eu não quero tirar aqui a sua responsabilidade diante do que aconteceu, mas não tem, neste momento, que ficar pensando no que deveria ter feito e sim, no que vai fazer daqui para frente.
- Eu preciso aprender, D. Clarinda.
- O passado é para nos servir de lição, não para ser vivido. Olhar o passado é vida facilitada, viver no passado é tempo perdido.
E eu sabia bem o que D. Clarinada procurava me dizer. O meu sofrimento se pautava na idéia de que não poderia mais voltar e fazer tudo de forma diferente. Era isso que ela chamava de perda de tempo. Mais uma vez estava distante do que era real. Primeiro fiquei presa nas armações de meu próprio ego, em meus medos de achar que era aquele o caminho para reencontrar minha filha, em minha falta de fé. Depois encontrava-me perdida na dor por não ter vivido uma situação que considerava como ideal e deixava de pensar no que era verdade naquele instante. Funcionava como uma forma de adiar a vivência daquilo que realmente era verdade e, consequentemente, de tentar mascarar a dor pela não entrega a este convite.
Devo ter passado uns dois dias em casa, procurando me recompor. Meu objetivo não era simplesmente viver a dor, como achava Raquel, mas encontrar-me comigo mesma, rever meus valores, meus princípios de vida, dos quais havia me perdido, na relação com Pedro. Passei minha vida inteira acreditando na verdade como condutora das relações e de meus atos e, de repente, havia me permitido a viver uma história totalmente mentirosa e enganar as pessoas, para conseguir alguma coisa em troca. Antes de aceitar a proposta de Donato Pessoa e Luísa a assumir a identidade de minha irmã Mirela, eu ficava me questionando se os fins justificavam os meios. Naquele momento optei por pensar que era mais importante a possibilidade de reencontrar a minha filha, legitimando o pensamento em questão, isto é, negando tudo o que eu acreditei durante toda a minha vida.
Chegava à conclusão de como era fácil errar e justificar os meus erros, ou melhor, minha falta de coerência, fazendo de minha vida algo sem sentido. Lembrava-me de papai me dizendo que nós somos aquilo que pensamos e fazemos. Deste modo, somos seres eternamente em transformação, já que nossos pensamentos hoje fazem sentido, amanhã não. Sendo estes pensamentos os condutores de nossos atos, tornamo-nos aquilo que sentimos, em cada momento. E então, chegava a me questionar sobre a minha identidade. Quem sou eu realmente ou como posso saber qual é a minha identidade, se é que tenho alguma identidade verdadeiramente definida na vida?
Deparava-me com uma série de questionamentos, aos quais não obtinha respostas. Chegava apenas à conclusão de que me encontrava completamente perdida, sem referenciais de valores claros. Contudo, necessitava retornar à minha vida, às minhas responsabilidades, trabalhar, encontrar minha filha.

MARINA PESSOA
Capítulo 43

No exato momento em que eu ia abrindo a porta do escritório, onde eu achava ter visto meu marido e sua secretária transando, fui abordada por dona Deise.
“A senhora está bem, D. Marina?”
Foi uma mistura de susto e alívio, simultâneos. Mas pelo menos alguém presente que pudesse trazer-me de volta ao mundo real, visto que eu não sabia ao certo se estava dormindo, em meio a um pesadelo, ou acordada. A única coisa que eu fiz foi abraçar aquela mulher, como se fosse um pedido de socorro e até agradecimento por estar ali diante de mim. Fui conduzida por D. Deise até meu quarto, como uma mãe faz com um filho, que levantou da cama no meio da noite. Às vezes, sentia isso em relação a ela, fazendo coisas e tomando atitudes que pareciam ser minha mãe.
O cuidado de D. Deise e o alívio pela certeza de não estar mais dentro do pesadelo, fizeram-me esquecer completamente do barulho no escritório. Devo ter ficado por quase uma hora na companhia daquela boa senhora, até Donato voltar ao quarto. E aí, eu já estava quase dormindo, exausta pelo acontecido, que mal o vi chegando. Lembro-me de tudo como um sonho.
Logo cedo, no café, Donato e eu falamos sobre a possibilidade de eu voltar a procurar Vanessa. Necessitava reatar com minha irmã e me reaproximar de minha família. Estava também curiosa de saber como Felipe estava e poder desfrutar de sua presença. Uma criança nesse momento talvez me fizesse bem. Mas não poderia fazer isso sem que meu marido soubesse, já que não concordava com essa reaproximação.
Meu marido achava que era Vanessa quem devia nos procurar e tentar se retratar diante de nós dois, visto ter sido contra a nossa união e até ter tentado nos impedir de ficar juntos. Não admitia de maneira nenhuma que eu a procurasse, até porque a considerava nociva ao nosso casamento. A via de fato como uma inimiga. Tentei falar-lhe de minha necessidade de voltar a me relacionar com minha família e da saudade de Felipe, a quem ajudara a criar, mas ele estava irredutível e nem me dava a devida atenção, considerando ser um assunto absurdo e que não merecia gastarmos tempo falando naquilo. Respondia-me em intervalos, entre um comentário ou outro com Luísa sobre os clientes da empresa.
Minha vontade foi de sair correndo daquela mesa e gritar, exigindo atenção e respeito a meus sentimentos. A impressão que eu tinha, muitas vezes, era que Donato tratava meus problemas como se fizessem parte da RTN ou fossem até menos importantes, que sempre pudessem ser deixados para depois, um depois que nunca chegaria. E eu estava começando a ficar farta de ver o meu marido passando a maior parte de seu tempo discutindo questões de trabalho ou política na companhia de Luísa, como se fosse ela sua companheira. Embora soubesse de sua competência e total doação ao trabalho com meu marido, me incomodava o fato de ele nunca querer comentar nada comigo, excluindo-me totalmente de sua vida, como se a única pessoa de confiança que tivesse fosse exatamente sua secretária, a ponto de convidá-la a morar conosco. Restando para mim somente a companhia de D. Deise, que geralmente era muito séria, nem sempre estava disposta a conversas.
Verdadeiramente, não entendia o que meu marido esperava de mim. Não permitia que eu me envolvesse em nenhuma amizade, nem tão pouco me dispensava a atenção que eu realmente precisava. E havíamos nos distanciado ainda mais depois de ter ingressado na política. Dividia-se totalmente entre a RTN e as reuniões do partido, bem como às viagens a Brasília, que quando fazia, eram ao lado de Luísa.

* * *

Donato vinha tendo diversas reuniões com alguns articuladores políticos, muitas delas aconteciam em nosso próprio apartamento, a fim de estabelecer novos conchavos com líderes políticos de bairros de Fortaleza e outros municípios cearenses, para apoiarem seu nome ao senado nas eleições que aconteceriam no segundo semestre. Aquilo estava tomando muito o seu tempo e nos afastando cada vez mais.
Quando as reuniões aconteciam em nosso apartamento, Donato me pedia para recepcionar a todos. O que eu fazia com muito gosto, por me sentir mais perto de meu marido. Os encontros aconteciam na grande sala de estar, espaço que comportava confortavelmente as oito ou dez pessoas participantes das reuniões.
A orientação de Donato era para que eu me retirasse após a chegada de todos, para o início dos trabalhos. O que me doía era saber que Luísa estaria presente durante todo o processo. Ela tinha com meu marido uma cumplicidade que eu invejava profundamente. Embora soubesse que ele zelava por minha integridade e não queria, na verdade, me envolver naquela sujeira.
Muitas vezes me escondia no corredor, ouvindo parte das reuniões.
A idéia principal que conduzia os encontros políticas de meu marido e seus correligionários era adquirir financiadores para a campanha, em troca de favores políticos depois de eleito, que facilitassem o crescimento das empresas financiadores através de serviços prestados a altos custos às instituições públicas.

MARINA PESSOA
Capítulo 44

No final do primeiro semestre de 2006, Donato passou a se dedicar mais à campanha política, visando sua eleição ao senado dali a alguns meses, do que à conquista do cargo de vice-presidente da RTN, o que me deixava aliviada, por não vê-lo tramando nada contra Pedro Lucena, meu cunhado, a quem eu admirava profundamente e tinha um carinho todo especial, embora tivéssemos estado distantes nos últimos cinco anos, desde meu casamento.
O contato com meu cunhado era pequeno, mesmo depois de seu retorno ao Brasil no ano anterior, com a morte de seu pai. Mas sempre que nos encontrávamos, sentia uma energia boa e um cuidado todo especial de sua parte em relação a mim. Sentia seu carinho, através de seu olhar, como se me dissesse silenciosamente que eu podia contar com seu apoio a qualquer momento.
Pedro sempre fora um grande amigo, desde seu namoro com Vanessa, quando eu era apenas uma garotinha. Dedicara a mim, durante os anos em que morei em Londres com eles, um zelo paterno, que se presentificava em cada encontro, mesmo que não tivéssemos tempo para conversar. Era algo que ficava no ar e chegava a chamar atenção de meu marido, que não falava do assunto diretamente, mas se mostrava extremamente incomodado, procurando intervir em qualquer aproximação ou contato mais duradouro, onde nos encontrássemos.
Neste último encontro, na casa de Leonardo, Pedro me aconselhara a procurar Vanessa e resolver nossa relação de uma vez por todas, falando-me de seu amor por mim e da falta que eu lhe havia feito e a Felipe quando voltei ao Brasil, após meu casamento. Não conversamos mais por causa de Donato, que percebera nossa aproximação e tratara de interromper, chamando-me para me apresentar a um amigo de Leonardo, presente no jantar.
As poucas palavras de Pedro, fizeram-me passar noites em claro, refletindo sobre a possibilidade de procurar minha irmã e implorar para que me amasse. Sabia que havia muita coisa mal resolvida em minha vida e precisava dar um basta nessas situações inacabadas, com ou sem a autorização de Donato. Na verdade, o que me fazia de fato hesitar era o receio de que ele fizesse algo contra mim. Mas o que poderia fazer? Não teria coragem de me agredir, nunca o fizera. Deixar-me também, creio que não. Meu marido me amava muito para isso. Então o quê? Por que eu tinha tanto medo, e exatamente de quê?... Era chegado o momento de pensar um pouco mais em mim e em minha felicidade. Ele, além de seu casamento comigo, lutava por seu crescimento dentro da RTN, sua ascensão política. Nunca deixara de fazer aquilo que lhe garantia a manutenção de seus objetivos na vida. Por que eu teria de abnegar tudo a seu favor, inclusive do amor de minha família?
Eu estava decidida a procurar por Vanessa e pôr um fim àquela angústia que me atormentava a alma e fazia de mim uma pessoa tão infeliz. Mas eu precisa de algo que me desse ainda mais coragem de enfrentar as ordens de meu marido.
Estava almoçando apenas na companhia de D. Deise, como de costume, que ficava ali, em pé, do lado da mesa, aguardando alguma ordem ou pedido meu, para providenciar o mais rápido que pudesse. Resolvi então compartilhar minha decisão, de uma forma não-clara, para não correr o risco de me comprometer, através de uma indagação.
- D. Deise, a senhora deixaria sua família, irmãos, parentes, se alguém a quem a senhora amasse muito lhe pedisse?
Ela lançou a mim um olhar de surpresa por aquela indagação, talvez nunca esperasse que eu lhe fizesse uma pergunta daquelas, de repente. E mais, no fundo, sabia de que eu estava falando. Apesar de ser uma pessoa discreta e nunca termos conversado nada sobre minha vida e minhas angústias, acompanhava minha história e minha solidão, desde o princípio de meu casamento. Podia ser que soubesse mais de nossas vidas que qualquer outra pessoa.
- Desculpe, não entendi a pergunta, D. Marina...
Eu sabia que tinha entendido, mas procurei ser ainda mais clara.
- Abandonaria sua família a pedido do homem que amasse?
Nossa curta conversa fora interrompida por Donato, entrando na sala, repentinamente, como se tivesse saído do nada.
- Não percebe que D. Deise não sabe do que você está falando, minha querida.
Aquele velho sorriso sarcástico pairava em seu rosto, o sorriso artificial de quem não estava gostando nada daquilo e insistia em passar uma imagem de que estava tudo bem. Aproximou-se de mim, beijando-me a testa.
- Estou indo a Brasília agora. Quero que arrume suas coisas e venha comigo.
Apertou-me a mão, como um aviso para que eu nem tentasse prosseguir aquela conversa. Senti um frio no estômago, como se tivesse sido pega fazendo algo errado, embora não fosse realmente o caso. Não poderia ser errado uma pessoa querer estar perto de sua irmã, seu sobrinho, sua família. Por mais que Donato não suportasse a idéia, iria acabar tendo que concordar.
Cheguei a pensar na hipótese de me negar a viajar, para poder fazer o que havia decido em relação à Vanessa. Mas não poderia perder aquela oportunidade de estar um pouco mais perto de meu marido. Nunca me levava às viagens, nem à Brasília, nem a viagem nenhuma. Estava quase sempre na companhia de Luísa. Não queria perguntar por que ela não nos acompanharia daquela vez, para que não corresse o risco de ele mudar de idéia e me punir pelas indagações, decidindo não mais me levar. No fundo sabia sua intenção em me levar àquela viagem. Não estava confiando em me deixar, estava certo que eu procuraria minha irmã, e queria impedir. Por mais que eu precisasse resolver aquela pendência com meu passado, não poderia perder a oportunidade de fazer o que eu tanto desejava e não fazia comumente.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 45

Retornei então, depois de alguns dias afastada, à Mirage. Retomamos os ensaios de meu show, bem como dos demais espetáculos apresentados pela nossa equipe de dançarinos. Tanto conduzindo o trabalho dos meninos, quanto no palco, sentia-me inteira, sem máscaras ou subterfúgios. Era como se me deparasse com todas as respostas que estava procurando. Ali, conseguia um pouco de paz.
Precisava estar em pleno vapor de criação, permanentemente, visto que nosso público retornava em curto intervalo de tempo, o que exigia de nossa equipe, em todos os shows, uma dinâmica incessante, com passos novos e detalhes inéditos. Na parte de criação dos shows, minhas idéias casavam-se perfeitamente com as de Charles. Fazíamos uma bela dupla. Mas, infelizmente, em meados de julho de 2006, ficamos sem sua presença mágica na boate.
Foi mais uma grande perda em minha vida. A viagem de Charles Moreno a Europa, me deixou totalmente desnorteada. A sua despedida foi um momento de muita comoção na boate, por parte de todos. Fizemos uma festinha surpresa para ele, numa tarde, antes de abrirmos. Eu já vinha há muitos dias sofrendo com sua partida, e por mais que eu tentasse evitar, as lágrimas insistiam em encharcar meus olhos o tempo inteiro. Queria que ele soubesse de minha felicidade por ter dado certo a sua viagem, contudo, não conseguia parar de pensar no medo de ficar sozinha. Primeiro Clara e Joel, depois Pedro, e naquele momento Charles. Sentia-me egoísta por não conseguir sintonizar de fato com a possibilidade de seu crescimento profissional. Antes de abrimos as portas naquela noite, Charles e eu tivemos uma conversa na qual me falara de sua solidão, bem como do quanto era responsável por aquilo. No momento em que tivera a oportunidade de estar com a pessoa que amava, optou pelos medos, pelos condicionamentos, pelo receio da entrega, perdendo seu grande amor. E então, encontrava-se ainda apaixonado pela mesma pessoa, sem uma segunda chance de viver essa história.
Eu sabia de quem Charles falava. Embora não citasse nomes, sabia que se tratava de Renato Brandão, sócio da Mirage, que estava há alguns anos vivendo com um outro companheiro, desde que terminara seu romance com Charles. Uma vez ou outra o rapaz até aparecia na boate, causando um certo incômodo ao meu velho amigo, embora Holanda, o namorado de Renato, fosse uma boa pessoa. Foi então que eu descobri que este rapaz, era filho de minha vizinha e amiga, D. Clarinda de Holanda, ao ver uma foto dele em sua casa.
A verdade era que Charles não estava deixando o Brasil por conta de uma boa proposta de trabalho na Europa, e sim para tentar fugir da dor de não poder viver seu grande amor e ainda vê-lo nos braços de outro.
Charles era extremamente discreto, e não me falara sobre aquilo apenas para desabafar, queria me ver bem e me ajudar. Era como se fosse um convite para que eu pudesse enfrentar a dor e correr atrás de meu grande amor, sem me deixar levar pelo medo e me fazer vencida pela covardia de não lutar por meus sonhos, defender meus sentimentos e tudo fazer para estar com o amor de minha vida. Ele viajara deixando comigo a marca de sua força e de seu afeto.
Enfrentava um novo desafio em minha vida. Em meio ao sofrimento por tudo o que me acontecera nos últimos meses, como o roubo de Clara, a trágica morte de Joel, a separação de Pedro e, por último, a viagem de meu grande amigo, experimentava um novo momento em minha vida profissional. Com a saída de Charles Moreno da Mirage, eu deixava de ser somente a coreógrafa para assumir a direção artística do espaço. Ficaria sob a minha responsabilidade a criação e direção dos espetáculos, bem como a gerência de pessoal, na equipe de dança da boate. E justo no momento no qual eu me sentia menos inteira, menos entregue, sem condições de me doar plenamente.
Olívia Cordeiro e Renato Brandão haviam confiado o cargo a mim, tanto pela indicação de Charles, que era na verdade o grande peso para a minha contratação, quanto pelo meu desempenho como coreógrafa durante o último ano. Charles e eu havíamos desenvolvido um belíssimo trabalho, que rendera casa cheia todas as noites, nos finais de semana, transformando a Mirage numa grande sensação nas noites de Fortaleza. O que rendia à boate notas em revistas nacionais.


CELINA GONDIM
Capítulo 46

Diante daquele computador com o qual papai me presenteara, senti por alguns instantes, uma fortaleza que há muito não experimentava. A possibilidade de provar novamente da liberdade que aquela máquina poderia me proporcionar, deixava-me entusiasmada, cheia de vida. Um vigor que subia pelo meu corpo e parecia tomar conta de meus braços, impulsionando-os a tocar cada tecla, como se novamente pudesse ver a vida abrindo-me uma nova porta.
Mas o que eu escreveria na verdade depois de tudo o que havia acontecido? E então me veio à lembrança o rosto de Vinícius, seu amor, suas incansáveis tentativas para me ajudar a deixar o vício, seu sofrimento ao me ver completamente drogada, sua dedicação, e por fim, o terrível acidente que lhe tirara a vida.
Um impulso incontrolável tomou conta de meus braços, como se não me houvesse limites físicos, fazendo-me derrubar aquela máquina no chão, seguido de um grito ensurdecedor. Não! Eu não podia voltar a escrever, não mais conseguiria criar histórias de vida e amor se eu tinha sido para o homem a quem amava o canal de sua morte, a autora de seu fim. No mínimo escreveria acerca da tragédia de minha vida, de meu sofrimento, de minha morte em vida, de minhas limitações e do quanto odiava aquele estado físico no qual me encontrava.
Por diversas vezes, nos últimos dois anos, tive a oportunidade de ouvir pessoas com deficiências físicas, nos mais variados níveis, aquelas que já haviam nascido com suas limitações e aquelas que, por alguma razão do destino, foram acometidas de situações trágicas às quais lhes deixaram seqüelas irreversíveis. Eram depoimentos nos quais os portadores de deficiência ressaltavam o quanto estavam felizes por permanecerem vivos e poderem de algum modo reaprender a viver, embora que, em sua grande maioria, com profundas dificuldades.
Seria eu, deste modo, um péssimo exemplo para essas pessoas. Nem ao menos compreendia como conseguiam ver a vida daquele modo depois de suas tragédias, quando eram na verdade, ao meu ver, para estarem numa tristeza profunda pelas limitações existentes em suas vidas.
Chorava naquele momento a dor pela minha prisão num corpo incapaz, o peso e a culpa pela morte do homem que eu amava. Debrucei-me sobre a mesa, num choro compulsivo, sendo abordada por Dulce, que assustada, me vendo naquele estado, ao entrar em meu quarto, logo procurou me ajudar e saber o que tinha acontecido. Contudo, ninguém poderia fazer nada por mim, ninguém poderia me devolver os movimentos, a alegria, minha vivacidade. Estava nas mãos de Deus, se Ele realmente existia.
Dulce apanhara o computador do chão, lamentando o que tinha acontecido, lembrando-me ter sido um presente de papai. A mim não importava naquele momento, a tal máquina representava um convite o qual eu abominava e jamais aceitaria. Acreditava escrever a minha própria essência e naquele instante, esta era negra e machucaria na certa a quem lesse.
No fundo, todos estavam torcendo para que eu voltasse a escrever. Maria Antônia me falara de uma pesquisa que estava fazendo na faculdade e precisara reler um de meus livros o qual tratava da vida na rua, de pessoas sem moradia, sem um lar. Como se para me mostrar o quanto meu trabalho fora ou era importante. João Henrique insistia em afirmar seu desejo de poder apreciar novamente meu trabalho, fosse em livros ou em numa produção para a televisão. Papai tentava de todas as formas me convencer, sempre que tinha uma oportunidade, chegara a me propor fazer parte de uma empreitada na RTN de criar uma série que tivesse como pano de fundo uma instituição que trabalhava com deficientes físicos, dizendo confiar a mim esta missão. Até Mena, torcia e me aconselhava a voltar. Mas eu não podia, era difícil.
Maria Eugênia ficara uma fera ao saber do convite de papai. Chegara a questionar sua intenção numa reunião na RTN, ressaltando a proposta de uma série nestes moldes como sendo um chamado para a população acerca da problemática do deficiente físico, um meio de denunciar o descaso dos governantes e da sociedade e ao mesmo tempo uma forma de mostrar vida onde muitas pessoas acreditam não mais existir. Para minha irmã eu não seria jamais um exemplo neste sentido e sim a confirmação da deficiência como sendo um terror na vida de qualquer pessoa. O pior que ela estava coberta de razão. Claro que sua intenção era também de não permitir minha expressão e a possibilidade de me ver novamente bem, gerando de alguma forma a vida.
Em todo caso, papai, assim como Pedro Lucena, se apoiavam na visão de que a minha participação no tal projeto seria uma estratégia de enriquecer o trabalho, a partir de minha visão, fosse ela qual fosse, até porque eu seria apenas uma das autoras e ninguém melhor que a própria pessoa vivendo na pele um drama, para traduzi-lo. Maria Eugênia, apoiada por seu ex-marido, Donato Pessoa, no entanto, tentaria de todas as formas impedir que eu voltasse. Para ela, seria inaceitável me ver novamente dentro de “sua” emissora. Por isso, exigira do ex-marido que a ajudasse na tentativa de convencer os demais diretores da RTN a não apoiarem a escolha de meu nome para o referido trabalho.
Donato como sempre tinha um trunfo. A idéia seria propor ao diretor artístico da emissora a contratação de sua sobrinha, a quem queria ajudar, e também era portadora de deficiência, com um problema bem menor que o meu, claro. A outra autora pensava exatamente de forma contrária a mim e já havia participado de um trabalho como co-autora numa de nossas grandes concorrentes, do Rio. E isso com certeza pesaria para a escolha do nome. O que minha irmã e seu parceiro passaram a defender dentro da diretoria da RTN era a minha presença no projeto como um pé para o fracasso e para a crítica, fundamentalmente de associações e instituições voltadas para trabalhar uma visão positiva do deficiente. Mesmo a emissora estando consagrada, um passo em falso seria crucial para uma grande queda, devido o nível de exigência para com ela, por estar fora do eixo Rio-São Paulo e já ser considerada como uma grande ameaça à audiência dos canais do Sudeste.
No fundo, eu achava que Maria Eugenia tinha razão. E de modo algum queria pôr o sonho de papai em risco. Sabia das dificuldades as quais enfrentava para manter sua rede de televisão como umas das mais assistidas do país, disputando com os grandes canais brasileiros. Transformar uma pequena TV local dentro de Fortaleza em uma das maiores emissoras do país, custara caro a papai. Além de dever gigantescos favores políticos e empréstimos ao governo do Estado, passara a vender cotas publicitárias de programas, que muitas vezes ainda nem haviam estreado, prometendo antecipadamente índices de audiências os quais, em muitos casos, não conseguia cumprir, acumulando a dívida da emissora junto também a seus patrocinadores. Uma política de expansão publicitária que tinha Donato Pessoa e Maria Eugênia como mentores, e que Pedro Lucena estava tentando acabar.
Definitivamente, eu não queria ajudar a destruir o árduo trabalho da pessoa a quem eu mais amava. Não sabia ao certo de quanto era a dívida da RTN, mas estava consciente do perigo que seria a minha presença num projeto que estava custando milhões de dólares e poderia se transformar numa nobre produção para as classes B e A, o que renderia bastante à emissora, não somente em nível financeiro, mas como imagem de um canal sério, empenhado em ajudar a sociedade e produzir programas de qualidade, a fim de levar uma mensagem de vida e esperança ao público. A série, idéia original de Pedro Lucena, em parceria com papai, que ainda nem tinha um título definido, era uma possibilidade de sucesso e consagração da RTN nacionalmente, bem como poderia representar seu fracasso e a prova de sua inabilidade na produção de projetos sensíveis. 

CELINA GONDIM
Capítulo 47

Confesso ter me sentido tentada a aceitar a proposta, principalmente quando tive a visita de Pedro, meu velho amigo, que tanto me ajudara no passado a enfrentar meu vício e me encontrar comigo mesma. Era bom vê-lo falar da vida, do quanto acreditava em seu trabalho como um meio potente de fazer as pessoas perceberem a linha tênue entre o desespero e a felicidade, sendo ela a responsável por pontuar com mais exatidão o caminho presente em seu coração.
As palavras de Pedro me confundiam em minhas crenças e sentimentos. Sentia-me contaminada com a vida existente em sua idéia. Era sem dúvida uma pessoa apaixonada por aquilo que pensava, ou melhor, expressava com firmeza e convicção a sua paixão, tornando-a desejável a qualquer pessoa que com ele interagisse. Além se ser um profissional ousado, capaz de apostar tudo na presentificação daquilo que acreditava.
Mas não era assim tão fácil. Voltar a escrever naquele momento acerca da deficiência física, seria não somente um retorno ao trabalho, bem como um encontro direto com meus medos, com o terror existente em meu peito, com a preservação do mal gerador de dor em meu coração. E isso aniquilava qualquer possibilidade de aceitar a proposta, por mais que eu soubesse, como Pedro me dissera, que também poderia representar a minha redenção, a superação de tudo, um retorno, mesmo que indiretamente, à vida. E talvez fosse este último argumento o mais forte, por incrível que parecesse, à minha negação.
Pedro fora profundo em suas colocações, fazendo-me perceber a mente humana como um universo infinito de possibilidades, e a criação artística como simplesmente a apropriação do mundo magnífico e indiscutivelmente plural de nossas idéias, sendo este universo o responsável direto pelo estado maior de nossa felicidade. Ou seja, que a felicidade nada mais é que uma expressão autônoma do ser humano frente a sua própria criação de vida.
Segundo Pedro as tristezas ou alegrias experimentadas por mim, por ele ou qualquer outra pessoa poderiam ser transformadas, conforme a nossa expressão na vida. Isto é, quanto mais nos expressamos enquanto singularidades, mas felizes nós somos, quanto mais reproduzimos padrões um dia criados e não mais modificados em nossa existência, mais provamos o sabor da infelicidade.
Era claro e confuso ao mesmo tempo. Entretanto, enquanto artista, criadora ou escultora do mundo infinito de nossa mente, eu sabia que a transformação era possível em todos os níveis da vida. E isso chegava a me amedrontar, como se eu não mais soubesse viver na possibilidade da alegria, ou ainda quisesse de fato permanecer numa escuridão criada por mim mesma, como forma de autopunição, pela culpa de ter sido eu a causadora da morte de Vinícius.
O fato é que a visita de Pedro Lucena mexera profundamente comigo, a ponto de eu pedir um tempo para pensar sobre o assunto, causando um frisson em nossa casa, deixando a todos numa atitude de celebração, exceto Maria Eugênia.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 48

Tão logo assumi a nova função na boate, fui chamada para uma conversa a portas trancadas com Olívia. Ela estava extremamente desapontada com o que viera a descobrir a meu respeito. Ninguém sabia como, o relatório de Donato Pessoa sobre mim e meu envolvimento com Pedro Lucena, fazendo com que esta também ficasse sabendo de toda a história. Ela, por sua vez, encontrava-se completamente chocada de posse daquelas informações.
Olívia olhava-me como se não acreditasse verdadeiramente no que lia. Entregou-me os papeis, pedindo-me gentilmente que eu lhe explicasse melhor do que se tratava. Tive vontade de me enterrar de tanta vergonha. Como lhe explicar aquele absurdo? De certo, da mesma forma que Pedro, não acreditaria em meus motivos, no que havia me levado a cometer tal barbaridade.
- Eu preciso que você me explique o que significa isto, Júlia. Confesso que estou um pouco confusa com tanta coisa.
- Ah, Olívia, eu não sei nem o que lhe dizer.
Minha voz quase não se fazia ouvir. Mal podia fitar seus olhos, procurando olhar aqueles documentos como se ali fosse encontrar um lugar no qual eu pudesse me refugiar. Avistei na mesa, por trás da cadeira de Olívia, uma águia dourada em posição de pouso em cima de uma pedra. Desejei por um instante ser aquele pássaro e sair dali, ganhar asas e me perder no mundo, sem ter que encarar ninguém ou dar qualquer explicação.
Senhor, onde eu estava com a cabeça, quando aceitei participar daquele plano sórdido, juntamente com Donato Pessoa? Acho que no instante em que decidi fazer parte do jogo, não pensei que as pessoas poderiam ficar sabendo e que além de me sentir vil, todos à minha volta conheceriam essa Júlia Serrado a qual queria esconder naquele momento.
- A única coisa que posso falar agora, Olívia... - Estava com dificuldade de pronunciar aquelas palavras. Sentia todo o meu corpo tremer. - ...é que sinto uma vergonha gigantesca pelo que fiz.
Percebia que Olívia me olhava com pena e ao mesmo tempo surpresa por saber do que eu havia sido capaz de fazer. Dera um suspiro e depois falou:
- Olha, Júlia, é muito difícil eu ficar sabendo de tudo isso e nada fazer. Conheço Pedro Lucena desde criança, nossos pais sempre foram amigos. Além do quê, sei que é uma pessoa muito boa, de caráter. E mesmo que não fosse... O que você fez, não tem justificativa!
- Eu sei, Olívia. E concordo plenamente com você. Eu sei que não tem desculpas, mas eu estava completamente desesperada.
Acabei por contar-lhe com detalhes sobre o roubo de minha filha e as promessas de Donato Pessoa de encontrá-la. Queria que soubesse que eu não era uma pessoa má, mas uma mãe desesperada, tentando encontrar sua filha roubada. Sabia que ela era mãe e uma pessoa sensível, podia ser que acreditasse em meus motivos e me compreendesse.
Depois que terminei de lhe contar a história, Olívia levantou-se, voltando-se para alguns porta-retratos com fotos suas e de seu filho Alexandre, numa prateleira que ficava à sua direita. Como se ganhasse tempo para pensar, discernir sobre que eu havia lhe dito. Rezei em meus pensamentos para que Deus a iluminasse e a fizesse entender o meu sofrimento. Procurava entregar nas mãos Divinas.
Olívia falou-me ainda de costas, sem conseguir fitar-me os olhos:
- Confesso que estou um pouco confusa com essa história, Júlia. Mas o fato é que não dá pra continuar com você aqui, depois de saber de tudo isso. Como lhe disse, conheço Pedro desde criança, tenho um bom relacionamento com Vanessa. Seria constrangedor para mim, entende?
Pelo menos parecia acreditar em mim, estava me demitindo por uma questão de consideração aos amigos. Menos mal. Fui embora naquela tarde com um misto de tristeza e raiva ao mesmo tempo. Reconhecia minha responsabilidade no que estava acontecendo. Por um instante senti um pouco de mágoa de Olívia, mas logo a compreendi. Talvez em seu lugar fizesse o mesmo. De fato ela estava numa situação delicada, visto que conhecia tão bem Pedro. Não seria bom realmente para o seu relacionamento com ele, bem como com Vanessa. E se não fosse naquele momento a minha saída da boate, logo aconteceria, mais cedo ou mais tarde. Vanessa não deixaria barato e com certeza exigiria de Olívia exatamente aquela atitude.
Nem ao menos consegui chorar com minha saída da Mirage. Era também como se fosse uma forma de auto-punição. Não tinha o direito de me entristecer com aquele desfecho, afinal, eu tinha procurado e teria que pagar o preço pela minha fraqueza. Achava justo, ou queria achar.
Contudo alguma coisa eu precisava fazer. Não poderia ficar sem trabalho. Raquel ainda estava desempregada, com os dois filhos dentro de casa e eu também sem trabalho. Tratei de elaborar meu currículo e enviar a projetos sociais e ONGs, a fim de trabalhar como professora de dança, como também entrei em contato com todas as pessoas que conhecia de grupos artísticos de dança,  para divulgar a minha necessidade de trabalho naquele momento. De braços cruzados, eu não ficaria. E foi o que me sustentou de pé, durante os dias que seguiram, até meu reencontro com Pedro.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 49

Estava saindo de casa para fazer umas compras, quando, fechando o portão, avistei Adriano Cordeiro, do outro lado da rua, em frente à casa de Júlia. Senti meu coração palpitar e minhas mãos suarem frio. Estava diante do homem que tinha sido o grande amor de minha vida, com quem construí sonhos e o desejo de passar o resto de meus dias. Continuava bonito sim, como há cinco ou seis anos, a última vez em que havíamos nos visto. Ganhara um pouco mais de peso, mas permanecia com a mesma elegância, bem vestido. Os óculos escuros e os cabelos bem mais grisalhos realçavam seu charme.
Tão logo havia saído do portão, tratei de entrar de volta, para que ele não me visse. Nem sei ao certo por que fiz aquilo, mas não queria, acho, que ele me encontrasse mal vestida, com aparência descuidada. Além do quê se Alceu soubesse, seria um inferno dentro de casa. Ele não suportava a presença de Adriano, odiava os sentimentos que nós nutríamos um pelo outro, na época de nosso casamento. E apesar de terem sido amigos de juventude, haviam perdido o contato, por conta dos ciúmes de meu marido.
Acompanhei a imagem daquele homem desde o momento em que saíra da casa de Júlia e entrara em seu carro, estacionado logo em frente. Só saí novamente do portão, depois de me certificar que o carro já tinha realmente deixado a Rua João Firmino.
Sabia que mais cedo ou mais tarde aquilo poderia acontecer. Uma vez ou outra Júlia falava em Adriano, já que era o grande amigo de Pedro Lucena, e também fazia parte de seu grupo de biodança. Ultimamente, ela vinha, inclusive, insistindo para que eu fosse conhecer o grupo. Já pensou que absurdo, uma velha dançando no meio de um salão? Além de reencontrar Adriano ali. Seria uma loucura. Evidentemente que Alceu jamais permitiria, mesmo sabendo que não tinha nada demais.
Fiquei feliz ao saber que Adriano estava disposto a ajudar minha amiga a se reconciliar com Pedro. Ele não havia perdido sua bondade e a mania de se preocupar com as pessoas, sempre tentando ajudar alguém. Era de uma solidariedade admirável, desde a época em que namorávamos. Acho que seu único deslize fora de fato sua reação ao descobrir a gravidez de Olívia, um preço alto que pagava até hoje.
Júlia era uma mulher perspicaz e logo percebera que existia algo além de uma velha amizade. Não me importei de lhe falar sobre nossa relação antes de me casar com Alceu, e de meus sentimentos em relação a Adriano. Minha maturidade não me impedira, contudo, de me encontrar embaraçada, com a indagação de minha amiga:
- D. Clarinda, a senhora ainda ama esse homem?
Senti um certo desconforto e até desrespeito. Afinal, era uma mulher casada. Como ser abordada com tal pergunta? A própria Júlia percebera o desconforto gerado e procurara desconversar, falando do plano de Adriano para que ela e Pedro pudessem se entender.
Mas aquela pergunta ficara me martelando durante dias.
“D. Clarinda, a senhora ainda ama esse homem?”
Como uma simples indagação poderia me deixar tão ansiosa? Logo eu, uma mulher tão madura, que havia aprendido com o sofrimento as respostas certas da vida. Creio ter me esquecido nos últimos anos de me indagar sobre meu coração. Passara tantos anos da minha vida, preenchendo o meu tempo com as costuras de minhas clientes, os problemas de meus filhos e a agressividade de Alceu, que deixara de lado a verdade sobre os meus sonhos.
Não demorou muito para que Adriano e eu nos reencontrássemos realmente. Foi ali mesmo, na casa de Júlia. Ele chegou de súbito, sem avisar, a fim de falar com minha vizinha sobre a conversa que ela e Pedro haviam tido no dia anterior. No momento em que Raquel atendeu a porta e eu ouvi sua voz, ainda de fora, pedindo desculpas por ter vindo sem avisar, mas explicando que precisava falar urgentemente com minha vizinha e não conseguira por telefone, eu quase me queimei com café, de susto.
Júlia levantara-se para receber o amigo e logo ele estava ali, bem diante de mim, depois de anos sem nos encontrarmos. Quando Adriano se deu conta de minha presença na sala, pude perceber que a surpresa e o nervosismo eram mútuos. Parecíamos dois adolescentes, diante de alguém com quem queriam estar, mas não podiam.
- Clarinda?!
- Como vai, Adriano?
Seu sorriso, acompanhado de um olhar espantado me fizeram viajar no tempo e trazer à memória, numa fração de segundos, as mais variadas cenas de nossa história: os namoros no pátio do colégio das Dorotéias, onde estudava e ele sempre dava um jeito de visitar, usando como pretexto a presença de sua irmãa presença de sua irmele sempre dava um jeito de visitar, usando como pretesto   urga porta e eu ouvi sua voz, ainda de fora, p, que era da mesma turma que a minha; ou ainda os passeios de mãos dadas, na Beira-Mar; Bem como os almoços na casa de nossa amiga Clarinha, que morava numa casa grande, perto da Igreja de Fátima, onde podíamos namorar, no banco do jardim, que ficava na frente da casa, de onde podíamos avistar o movimento da igreja. Brincávamos dizendo que um dia nos casaríamos ali.
Velhos tempos que chegaram com toda a força em minha memória, fazendo-me emocionar, por um instante. Meu Deus, que situação constrangedora! Uma mulher casada, emocionada ao reencontrar um antigo namorado, na casa de sua vizinha. Uma cena no mínimo ridícula. Procurei então me conter, para que não causasse nenhum constrangimento a Adriano, nem muito menos a Júlia e Raquel, que na certa já se encontravam bem embaraçadas.
- E os meninos, Clarinda, como vão? – Perguntou a ele, para quebrar o gelo.
- Bem. – Eu me sentia ainda meio atrapalhada. – Vão bem.
-  Encontrei outro dia com Nando, em uma viagem de São Paulo a Fortaleza. Acabamos conversando a viagem inteira.
- É, ele terminou há pouco o tempo o doutorado dele lá.
- Me pareceu bem feliz. – Tomando o café.
- Sim. Está mesmo. – Eu não sabia ao certo nem onde pôr as mãos. – E D. Norma Mesquita, vai bem? – Perguntar sobre D. Norma me daria mais assunto e me deixaria talvez menos constrangida.
- Está. Inclusive pensa agora em escrever um livro sobre sua vida. Não gosta de estar com muito tempo ocioso. Reclama muito disso.
- Ativa como ela sempre foi. – Ri, meio sem graça. – Deve ser ruim mesmo.
- Verdade. – Adriano não parecia constrangido como eu. Pelo contrário, talvez até estivesse mesmo feliz.
-  Mas, Clarinda, como estou feliz, por encontrá-la aqui! – Abriu largo sorrido.
- E eu fico feliz por promover esse encontro de velhos amigos em minha casa. – Afirmou Júlia, sorridente. – D. Clarinda tem sido uma pessoa muito importante em minha vida, Adriano. – Completou minha vizinha, olhando vez para mim, vez para ele.
- Certamente, Júlia. – Confirmou Adriano, fitando meus olhos. – Clarinda sempre foi uma pessoa amiga, que se preocupava com todos. Ela melhor que ninguém sabe o significado da palavra solidariedade. - Eu estava completamente vermelha. E Adriano percebia meu embaraço. – Não precisa ficar com vergonha, Clarinda. Tudo o que estamos falando aqui é a mais pura verdade.
- Pode acreditar, D. Clarinda. – Completou Júlia.
- E eu concordo plenamente. – Ainda confirmou Raquel, recolhendo as xícaras de café, com a bandeja.
- Mas e esse livro de D. Norma, sai quando? – Procurei desconversar.
- Ainda são planos. – Adriano reconhecia meu constrangimento, e tratava a pergunta feita por mim como se realmente eu tivesse interessada. E naquele momento, certamente eu não estava.
- Que bom. Fico feliz por ela. – Completei, procurando disfarçar.
- Eu fico curiosa de saber um pouco da vida de D. Norma, pelo que Adriano já falou. – Trouxe Júlia, como se já tivesse se dado conta de toda a minha situação,  meu constrangimento.
- Ela parece ser uma pessoa de fibra, não é? – Também colaborou Raquel.
- E é. Trata-se de uma pessoa admirável. – Respondeu Adriano, como se trouxesse à memória a importância daquela mulher em sua vida. Devia muito a ela e a seu marido, quando era vivo. O haviam tratado como a um filho.
- Bem, eu já vou. – Levantei. Desejava ir logo embora dali. Pensava que quando me reencontrasse com Adriano eu reagisse de uma forma menos estúpida, infantil.
-  Mas a senhora acabou de chegar, D. Clarinda. – Lamentou Raquel.
- Fique mais um pouco, D. Clarinda. Pediu Júlia.
- Por favor, Clarinda. É cedo ainda. Faz tanto tempo que havíamos nos encontrado. Fique um pouco mais. – Insistiu Adriano.
- Me desculpem, mas o Alceu já deve estar me esperando.
Havia sido um conversa de quem não sabe ao certo o que falar e fica procurando assunto para aniquilar com o silêncio, que insiste em se presentificar.
Tratei de me despedir e deixar Adriano conversando com Júlia. Precisava ir para casa, me recompor. Saí abominando minha atitude. O que minhas vizinhas e ele mesmo iriam pensar de mim? Que vergonha! Desejei que aquilo não tivesse acontecido ou eu tivesse assumido uma outra postura, algo mais coerente com uma senhora casada. Senhor, que vergonha!
Passara pela rua em passo apressado, para que ninguém me visse, como se as pessoas pudessem também testemunhar o meu desconforto e nervosismo, por ter me encontrado com um namorado de adolescência. Definitivamente, aquilo não era algo justificável. Eu precisaria depois me explicar de alguma forma às minhas vizinhas, que no mínimo, não haviam entendido nada. Se bem que Júlia, com certeza percebera o que havia acontecido ali em sua sala. Como então eu olharia para a cara da minha vizinha? Realmente eu havia me comportado pessimamente. Graças a Deus nenhum de meus filhos, nem Alceu presenciaram aquela situação grotesca. Não teria explicação, e certamente meu marido perceberia tudo. 
Ao entrar em casa, fui surpreendida por Alceu, sentado na cadeira de balanço, que ficava de frente para a porta. Não parecia estar com a cara muito boa, ali, balançando-se freneticamente. Logo pude avistar a cerveja em cima da mesinha de centro da sala.
Será que ele sabia com quem eu havia estado?

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 50

Eu havia entrado em casa ainda nervosa pelo reencontro com Adriano Cordeiro na casa de minha vizinha Júlia. E Alceu estava à minha espera, como eu pensava. A cadeira de balanço rangia com o peso de seu corpo impulsionando-a para frente e para trás,  de forma ansiosa. Não parecia bem. Temi que ele percebesse com quem eu havia estado minutos antes.
- Onde você estava?
Sabia que aquela pergunta queria dizer algo.
- Tinha ido deixar umas roupas de uma cliente, pertinho da casa do Português. Depois passei na casa da Júlia, a vizinha aqui da frente. - Respondi, já saindo da sala em direção à cozinha. Queria sair dali. Aquela pergunta não tinha me cheirado bem. Mas ele me acompanhou.
- A casa dessa sua vizinha agora é ponto de encontro, é?
Certamente Alceu já havia visto Adriano na rua. Pior, na casa de Júlia!
- Do que você está falando?
Ele me olhou com jeito de quem queria descobrir exatamente o que havia se passado do outro lado da rua, minutos antes. Meu coração já estava acelerado. Quando bebia, parecia um demônio.
- Clarinda, você estava agora na casa dessa sua amiga, acompanhada do Adriano Cordeiro?
Aquela pergunta foi como uma pancada em mim. Pensei em não dizer a verdade, mas não adiantaria, na certa ele sabia realmente, teria visto Adriano entrar, talvez. Como agir então? Desejei que Nando estivesse em casa. Hesitei um pouco e lembrei que podia ser exatamente meu filho que me tiraria daquela situação.
- Nando... não voltou ainda? - Tive um pouco de dificuldade para completar a frase. Mas falar em nosso filho, o lembraria que ele estava para chegar do trabalho. Então, completei: - Ele vai chegar hoje mais cedo. Ligou depois do almoço avisando.
Alceu já estava a poucos centímetros de mim, revestido por um silêncio o qual temia profundamente.
- Então ele vem mais cedo do trabalho?
- É, disse que vem. - Respondi, procurando passar por ele, para deixar a cozinha, quando senti uma forte pancada em minhas costas, seguida de um grande barulho. Mal pude entender o que tinha acontecido e eu já estava caída no chão, vitimada por uma grande dor.
- Desgraçada! – Gritou. Nem lembro se ouvi aquele grito antes do tombo ou pouco depois. Procurei, mesmo com dificuldade, me erguer um pouco e me arrastar até a sala. Mas fui impedida por uma série de chutes. - Sua desgraçada! Sem vergonha!
- Pára, Alceu! Pára! – Eu suplicava. Eram muitas pancadas, que nem me davam tempo direito para respirar, sequer para gritar. - Por favor, Alceu, pare! - Ele estava tomado por uma força incontrolável que o impulsionava cada vez mais a me espancar. Chutes, murros... Eu tentava me defender, mas nada podia fazer contra a sua força. - Por favor, pare, Alceu! - Meus gritos não eram tão potentes quanto as pancadas que eu recebia em todas as partes de meu corpo.
- Você, me paga, sua desgraçada, sem vergonha! – Batendo ainda mais. - Toma! Toma!

Se alguém assistisse aquela atrocidade, não conseguiria contar quantos chutes, murros ele me dera. Mas foi uma forte pancada, empurrando minha cabeça contra o chão, que me deixara meio zonza. E aí seus gritos me agredindo, se tornaram distantes e, por um segundo, vi papai me batendo, eu, com apenas seis ou sete anos, correndo e me escondendo em meu quarto, depois de um tapa, por ter deixado uma bandeja com copos cair, quebrando tudo. Era uma dor que me apertava o peito, maior até que a dor provocada pela pancada no rosto. Achávamos terrível quando papai nos batia, o que não acontecia comumente. Por isso, ficava tão magoada. Cheguei a adormecer em meu quarto, sentada no canto da parede, depois de chorar durante horas seguidas, até ser acordada por mamãe, acariciando-me a cabeça.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 51

Quando abri os olhos, com uma certa dificuldade, pelo inchaço provocado pelos murros de Alceu, eu estava deitada em minha cama, sendo tocada cuidadosamente por Nando, que me aplicava compressas com gelo nos hematomas deixados em meu corpo. Tudo parecia doer e eu me sentia meio atordoada, sem entender ao certo o que havia acontecido.
- Fique tranqüila, mãezinha, está tudo bem agora.
Ouvi a voz suave de meu filho, sem compreender ainda o que se passara para que eu estivesse tão machucada. Eu não conseguia raciocinar direito, organizar nenhum pensamento. E minha visão estava meio turva.
- Nando...
- Não faça nenhum esforço, mãezinha. Está tudo bem agora. – Pedia meu filho. Aos poucos fui recobrando a consciência e a imagem de Adriano Cordeiro me veio à mente. E tão logo a alegria de vê-lo diante de mim na casa de Júlia, a aflição do encontro com meu marido, logo em seguida, ao chegar em casa. E então, lembrei dos murros, chutes, da dor que se alastrava pelo corpo, seguida de uma dormência. Os gritos carregados de ódio daquele homem se faziam presentes em minha cabeça, como se naquele instante eu estivesse revivendo todo o transtorno novamente. E um grito de socorro me veio á garganta subitamente. Nando se debruçara sobre mim, fazendo-me sentir sua presença protetora. - Calma! Já passou, mãezinha, já passou.... estou aqui.
Ninava-me como uma criança e pude sentir seu cuidado, seu carinho e uma sensação aliviada de proteção. Dormi por horas seguidas, sentindo a tranqüilidade do colo de meu filho. Cheguei a acordar algumas vezes, tomada por pesadelos que traziam a imagem de Alceu me agredindo, ameaçando contra minha vida ou a vida de meus filhos. Nando permanecia, no entanto, ali diante de mim, velando o meu sono, cuidando para que eu experimentasse a paz de que eu necessitava naquele momento. Depois de ter sido medicada, só pude acordar no dia seguinte.
Aos poucos fui me dando conta do que havia acontecido realmente. Provara mais uma vez da agressividade, da violência e ódio do homem com quem estava casada há trinta e cinco anos. Aquela havia sido apenas mais uma das crises de ciúmes e expressão de sua indignação diante da certeza de meus sentimentos por Adriano Cordeiro, o que fizera de minha vida um completo inferno no decorrer dos anos. Mesmo sem saber, era meu ex-namorado o motivo da transformação de Alceu naquele homem amargo e violento, diferente do que conhecera nas épocas de colégio e bem antes de nosso casamento. O estupro, fora na verdade o marco entre um Alceu e o outro.
Mesmo com dificuldade, levantei-me e caminhei em direção à sala, de onde podia ouvir a voz de Holanda e Nando, conversando.
- Nós já devíamos ter feito isso há muito tempo! - A afirmativa de Holanda estava carregada de indignação, falava alto, quase gritando, caminhando de um lado para o outro da sala. - Esse monstro está acabando com a vida da mãezinha!
- Calma, mano! Você sabe que ela jamais permitiria. - Nando parecia mais equilibrado, como de costume.
- Eu não sei onde eu estava com a cabeça, que não havia chamado a polícia antes. Passamos a nossa vida inteira, apanhando e vendo a mãezinha sendo espancada, Nando... E o que nós fizemos, hein? - Holanda já tinha a voz embargada de choro, sentindo a dor pelo meu sofrimento, o qual presenciara durante toda a sua vida. Nando logo se aproximou, segurando-lhe o ombro.
- Foi uma escolha dela, você sabe disso, mano. Nós só fizemos o que estava a nosso alcance. Eu acho que não adianta agora a gente ficar se culpando. A mãezinha nunca faria nada contra o nosso pai.
- Não me lembre que este monstro é nosso pai!
Holanda foi tomado por um choro compulsivo, entregando-se nos braços do irmão. Era um misto de culpa, indignação e dor pela imagem do pai. Nando parecia mais calmo, no entanto, emocionado pelo sentimento do irmão.
- Holanda, nós temos que estar fortes. Você sabe que a mãezinha não vai aceitar. A gente precisa ver uma forma de convencê-la de que é o melhor, pra ela, pra ele, pra todos nós.
- Dessa vez ela vai ter que aceitar, cara! - Holanda procurava já se recompor, quando entrei na sala.
- O que aconteceu? Onde está o pai de vocês? – Perguntei, com dificuldade de falar. Tudo em mim doía.
- Mãezinha, você já levantou? - Nando foi ao meu encontro, ajudando-me a passar por entre os sofás e me aproximar de Holanda, que me abraçou firmemente, como se não me visse há tempos.
- Você está bem, mãezinha? - Já era Holanda quem indagava, lacrimejando e com um sorriso forçado tentando encobrir a dor e raiva presentes em seu olhar.
- Agora estou. Mas eu preciso saber o que está acontecendo aqui. Onde está o pai de vocês? – Não sabia de onde tirava forças.
Os dois ficaram se entreolhando por alguns segundos, como se combinassem telepaticamente quem contaria. Nando logo procurou fazer com que eu me sentasse, preparando o terreno para a notícia, o que me deixara ainda mais aflita.
Fora logo após eu ter perdido a consciência, por bater a cabeça, que Nando entrara em casa, presenciando a fúria do pai contra mim.
- O que é isso, pai?! - Pela primeira vez, meu filho tivera uma atitude agressiva contra Alceu, jogando-o contra o sofá, depois de segurá-lo pelo colarinho. - Chega disso! Você já passou dos limites!
Por estar desacordada, nem pude testemunhar os gritos de Nando contra o pai, que ficara atônito, amedrontado e surpreso ao mesmo tempo pela ação inesperada do filho. Por um triz Nando não lhe agrediu, chegando a levantar a mão.
Meu filho, tomou-me nos braços, levando-me para o quarto. Depois de ligar para um médico amigo, entrou em contato com a polícia. Mesmo com dificuldade de falar, tomado pela emoção, pediu a Dorival que conseguisse uma viatura para vir até nossa casa, por eu ter sido espancada há pouco tempo pelo pai. A lágrima escorreu-lhe pelo rosto, ao desligar o telefone. Doía ter que fazer aquilo, mas precisava tomar uma atitude diante de tantas atrocidades cometidas por Alceu durante todos aqueles anos em que estivemos casados. O sofrimento de meu filho se dava pelo fato da obrigação de delatar o próprio pai, como se estivesse cometendo uma traição, ferindo um princípio ético de proteção à própria família, a alguém de seu sangue, a seu provedor. Embora soubesse que não havia outra alternativa e que alguém precisa pôr um limite à doença do pai, entristecia-se de chegar a tal ponto e vê-lo sendo preso, por uma denúncia sua. Sempre rezara, na verdade, para que não precisasse tomar aquela atitude e ver a família que eu tanto tentara preservar sendo desfeita por uma decisão que fosse sua.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 52

Alceu estava na porta do quarto, quando o filho desligou o telefone. Experimentava um sentimento de ódio, por sentir-se traído por sua cria. Sabia que o que fizera não era correto, por isso sempre se arrependia, após as surras às quais me submetera a vida inteira. No entanto, considerava ainda mais absurda a atitude do próprio filho de querer vê-lo na cadeia.
- Foi isso o que você sempre quis, não foi, seu moleque? – Alceu perguntou, expressando a raiva que o dominava naquele momento.
- Deus sabe que não, pai. – Nando respondeu com os olhos transbordando em lágrimas.
- Mentira! – Retrucou Alceu rapidamente, direcionando-se à porta da rua, numa tentativa de fuga. - Vocês não vão conseguir acabar comigo, bando de abutres!
Ainda podíamos ouvi-lo.
- Não é isso, pai. – Nando ainda tentou convencê-lo, correra atrás do pai.  Precisava impedir sua fuga. - Mas o senhor vai ter que parar com isso! – Ouvi ainda dizer antes de segurá-lo, talvez na sala. Eu estava ainda meio zonza. 
- Me solta, seu moleque! – Alceu gritava indignado. Empurrara então o filho contra uma mesinha perto da porta, deixando a sala. Alceu, contudo, fora surpreendido na porta de casa, por uma viatura da polícia, Dorival, o filho de Ceiça e mais dois policiais diante do portão. - Vocês não vão acabar comigo! – Disse aos policiais, analisando como fugiria dali. Ao tentar recuar, fora impedido pelo filho, que havia se colocado no meio da porta.
- Podem levá-lo! - Nando dissera aquilo experimentando uma dor terrível.
Alceu tentara ainda reagir, mas fora em vão, sendo algemado e colocado de viatura a dentro.
- Vocês estão cometendo um erro! Meu filho, me ajuda! Me solta! Me solta, Dorival! Manda eles me soltarem, Nando! Manda eles me soltarem, filho!
Podia-se ouvir seus gritos, mesmo depois de fecharem a porta do carro.
Nando estava ali, parado diante da porta de nossa casa, testemunhando a prisão do próprio pai, resultado de uma denúncia sua. Mal podia ver o rosto das pessoas na rua, que paravam para ver o ocorrido. Sentia um misto de vergonha, pena e dor.
Eu mal podia acreditar a que ponto tudo havia chegado. Como Alceu tinha dificultado nossa vida, nossa convivência! O que poderia ter sido algo não tão doloroso, fora transformado por ele num calvário. Conseguira o que tanto quisera que era casar-se comigo, e não soubera aproveitar, saborear a delícia de sua vitória. Teria a minha presença em sua vida para sempre, mas não lhe era o suficiente. Alceu fora um homem que não experimentara o afeto enquanto criança. Abandonado pelos pais, havia sido criado por uma tia, que o maltratava constantemente e ainda o forçava a trabalhar desde pequeno, aproveitando-se de seu dinheiro. Ele trazia consigo essa marca e parecia querer me punir por todos os seus sofrimentos. Projetara em nossa história, no término de nosso noivado, a rejeição de seus pais e, por conseguinte, em nosso casamento, a violência e martírio do convívio com a tia. No fundo, eu sentia pena dele. Apesar de me privar da felicidade, de uma vida tranqüila, da presença de meus filhos, era talvez ele quem mais sofria, obcecado por seus fantasmas os quais lançava sem pena e nem dó em nossa relação e com nossos filhos, como se culpasse o mundo, as pessoas que amava de sua amargura, tratando-nos como reflexos, como extensões desse passado doloroso e punitivo o qual experimentara.
E era em nome dessa consciência que eu tinha da difícil história de vida que Alceu trazia consigo, que eu me sustentava naquele casamento, além, claro, de minha promessa, a qual me fazia escrava da situação insustentável em que se transformara o nosso casamento. A promessa! Meu Deus, não podia jamais deixar Alceu, permitir a nossa separação. Por mais que eu sofresse, não era possível, e eu bem sabia. A quebra da promessa acabaria com minha vida, e aquilo meus filhos não compreendiam. Certo de que não sabiam do que se tratava. Contudo, eu precisava fazer algo para reverter à situação e trazer meu marido de volta. Parecia loucura, mas eu entendia por que e não tinha como revelar. Não! Ninguém compreenderia o que eu havia feito. Era impossível pensar na possibilidade de trazer aquela velha história à tona, depois de tantos anos. Além do que meus filhos não me perdoariam, assim como todas as pessoas. Meu dever era apenas de cumprir com a minha palavra, de ser honesta com Deus e fazer valer a promessa.
Nem podia explicar aos meninos, visto que havia um segredo, mas tentei de todas as formas expor meu desejo de libertar Alceu e trazê-lo de volta, mesmo frente à indignação e revolta de meus filhos.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 53

Pensei várias vezes em não aparecer mais no grupo de Biodança, por ser um espaço de Pedro. Não poderíamos continuar no mesmo grupo depois de tudo o que havia acontecido. Ali era um espaço de expressão e verdade e eu havia chegado carregando comigo uma grande mentira. Seria difícil permanecer depois de falar sobre a minha verdadeira identidade e todos saberem que haviam sido enganados. No entanto, desejava voltar e me despedir, agradecer o apoio e a confiança de abrirem a sua intimidade para mim. Precisava também reencontrar Pedro, nem que fosse pela última vez. Talvez ele fosse verdadeiramente o motivo real de minha vontade de retornar ao grupo. Sabia, mas era preferível pensar que não era por sua causa, para facilitar o meu processo.
No momento em que entrei no espaço onde acontecia o grupo, senti minhas pernas tremerem. Não sabia qual seria a reação das pessoas, se já sabiam. Tratava-se de um grupo ao qual tinha a maior consideração, apesar de nossa pouca convivência. Seria doloroso ser desprezada por ele. O que me deixava extremamente ansiosa. Chegara um pouco antes do início da verbalização. Tinha apenas algumas pessoas e o facilitador, ao fundo do salão, manuseando um catálogo de discos, como se preparasse o início da sessão. Nem sei ao certo o que me impulsionou a ir ao seu encontro, era como se não sentisse minhas pernas, de tão nervosa eu estava. Fui, contudo acolhida pelo facilitador num caloroso abraço. 
- Eu quase não vinha.
As palavras saltaram-me a boca em meio ainda ao abraço. O facilitador olhou-me bem nos olhos, como que tentasse me acalmar.
- Estava lhe esperando.
- Eu não sei se vou ficar. Não sei se o Pedro lhe falou.
- Falou sim. Nos encontramos e conversamos. Mas foi bom você ter vindo.
Tive vontade de chorar e abraçar aquele homem ainda mais. Ele passava-me paz, tranqüilidade, o que eu não sentia há tempos. Meus olhos transbordavam em lágrimas.
- Eu estou muito envergonhada.
- Você precisa estar em paz com você mesma.
E eu não estava em paz comigo. Não poderia estar, não depois das barbaridades que havia aprontado com Pedro, o homem que dizia amar. Fiquei me perguntando, se ele não iria ao grupo naquele dia. No fundo, esperava que sim, mas pedi a Deus internamente que não. Seria uma dura provação. Talvez não tivesse sido uma boa idéia ter ido ali, num espaço de intimidade que já era dele.
- Pedro deve estar chegando daqui a pouco, disse que se atrasaria, mas deve estar a caminho.
O facilitador parecia ter lido os meus pensamentos.
Cumprimentei todos os outros colegas e me recolhi num canto no salão. Ainda me chamavam de Mirela. Senti-me extremamente incomodada, mas não adiantava colocar individualmente. Seria um esclarecimento grupal. Começamos com uma pequena meditação, como de costume e logo foi aberto o momento de verbalização da sessão. Eu não consegui me concentrar nas falas que foram se seguindo. A imagem de Pedro e o receio de colocar a verdade ali no grupo, não me saíam da cabeça. Minha mãos estavam geladas.
Senti meu coração acelerado quando vi, pela cortina de cipó que separava o salão do estacionamento, o carro de Pedro chegar. Ele vinha acompanhado de Adriano Cordeiro, como de costume. Os óculos escuros escondiam-lhe a sinceridade exposta em seu olhar, porém davam-lhe todo um charme juntamente com a roupa informal, diferente das gravatas e paletós usados no cotidiano. Camiseta vermelha, uma calça frouxa de cor bege e sandália de dedos em couro, a mesma de quando eu o havia visto pela primeira vez, deixando à mostra os longos dedos de seus pés bem-feitos.
Nossos olhares se encontraram assim que os dois chegaram à entrada do salão. Nunca senti tanta alegria em vê-lo tocar a cabeça e jogar para trás o cabelo que insistia vez ou outra em cobrir-lhe o olhar, como sempre o fazia. Em poucos segundos lembrei de vários momentos em que estivemos juntos ali mesmo naquele lugar. Imaginava se ficaria ou se iria embora, para evitar interagir comigo. Bobagem, logo, numa questão de segundos eu saberia. Pedro tirou então a sandália e os óculos, deixando suas coisas no banco, ali fora, e entrou no salão, procurando não voltar mais seu olhar para mim. Pelo menos ele não iria embora!
 Já se aproximava das dezesseis horas, quando começaria o segundo momento da sessão, com os exercícios e a dança, quando finalmente tomei coragem de falar.
- Pensei muito em não voltar mais aqui no grupo, por uma série de questões. - Minha voz estava trêmula. - Mas eu precisava reencontrar vocês novamente e pedir perdão. - As lágrimas já começavam a rolar pelo meu rosto. - Vocês me acolheram, com todo o cuidado, carinho, atenção, verdade. E eu não respondi à altura. Todos vocês, aqui no grupo, me conhecem como Mirela. Mas na verdade, meu nome não é esse. - Parei e suspirei. Estava muito nervosa. - Meu nome é Júlia... Júlia Serrado. É assim que eu me chamo. - Baixei um pouco a cabeça e caí em prantos. Pedro mostrava-se bastante incomodado, procurando fugir seu olhar para um canto do salão. Uma vez ou outra, voltava-se a mim. Tinha seus olhos também nadando em lágrimas. - Eu precisei usar um outro nome, numa tentativa de reencontrar a minha filha, que foi roubada há mais de seis meses, no final do ano passado e vendida para um casal de estrangeiros que eu não sei onde estão, se ainda vivem no país. Por esse motivo, acabei me aliando a algumas pessoas que me ajudariam a reencontrá-la, mas para isso eu precisaria usar uma identidade falsa e me envolver numa situação, para conseguir alguns documentos que estas pessoas queriam. - Pausei para respirar e retomar o fôlego. Percebi que Pedro, assim como algumas pessoas do grupo, não conseguira evitar que lágrimas lhe banhassem a face. E então prossegui: - Acabei magoando pessoas que acreditaram em mim. - Voltei-me para Pedro, a fim de que todos no grupo soubessem de quem estava falando. - Fiz sofrer pessoas que aprendi a amar, com quem reavaliei meus princípios de vida e reencontrei o sentido da felicidade. Não nestas pessoas, mas em mim mesma, diante dessas pessoas. - Alguns dos presentes já olhavam também para Pedro, reconhecendo-o como aquele de quem eu estava falando. - Eu queria agradecer a cada um de vocês, pela força, pela presença e por terem confiado em mim, embora eu não tenha retribuído da mesma forma. Eu não vou poder continuar no grupo, mas quero continuar na Biodança. Hoje, a reconheço como um caminho que facilita o encontro comigo e me ajuda a interagir melhor com os outros, sem negá-los na sua expressão.
Logo depois de minha fala, o facilitador tomou a palavra discorrendo sobre a importância da vivência da verdade em nossas vidas e como esta contribuía para a manutenção de nossa saúde. Senti-me amparada em sua explanação. Dava para perceber em cada olhar o carinho, a compreensão. Era verdadeiramente uma pena eu ter que deixá-los, visto que naquele grupo eu me sentia cuidada e respeitada em minha expressão.
Começamos a vivência com uma dança em roda. A letra da música alegre e progressiva, na voz de Geraldo Azevedo, nos convidava a, juntos, esquecermos tudo o que doeu em nós, sendo que nada vale tanto para rever como o tempo em que ficamos sós. A música falava exatamente de mim, do que eu estava passando naquele momento. E sentia-me feliz de estar ali, fazendo parte daquele grupo, me expressando em movimento junto com todas aquelas pessoas, que tão bem me acolheram e me aceitaram. Pedro parecia me ignorar. Deve ter sido mais ou menos na metade da sessão, num exercício em que o convite do facilitador fora encontrar alguém, um par, com quem pudéssemos viver o afeto, numa dança a dois, que finalmente nos encontramos. Não tínhamos outra escolha, todas as outras pessoas já tinham encontrado seu par, só restávamos nós dois. Uma música afetiva-transcendente nos conduziu num momento de muita entrega. Senti um certo desconforto da parte dele, no princípio, mas logo relaxou e se permitiu à vivência. Parecia um sonho providenciado por Deus estarmos ali, um diante do outro, em movimentos leves, cuidadosos, sentindo o calor um do outro. Procurei saborear cada segundo de sua presença. Seu toque suave deixa-me trêmula. Podia, mesmo que por alguns minutos, sentir de perto o seu cheiro. E logo estávamos no meio do salão, abraçados, vivendo intensamente aquele momento. Desejei que não acabasse mais a música e pudéssemos eternizar o instante.
Logo acabado aquele exercício, Pedro continuou a me evitar, como se o que tivéssemos vivido não houvesse sido significativo para ele, como fora para mim. Então começava a compreender porque não seria interessante continuarmos no mesmo grupo realmente. Estaríamos o tempo inteiro deixando de ser espontâneos, para tomarmos atitudes arquitetadas dentro do salão, quando o convite era exatamente o contrário.
Terminada a sessão, procurei conversar com Pedro, a fim de esclarecermos de uma vez por todas aquela situação desagradável. Não era possível que não conseguisse compreender a minha atitude, se todas as pessoas que estavam fora compreendiam. Por um instante questionei se de fato ele me amava. Mas logo percebi o que fazia. Exigia dele uma atitude, tirando de mim a responsabilidade por tudo o que eu lhe causara. E por isso resolvi lhe procurar.
- Fui muito machucado, Júlia. Tenho tentado compreender, mas é muito difícil para mim. Passei quinze anos da minha vida sofrendo pela perda de um grande amor, que nunca esqueci. De repente, descubro que este amor, não morreu, como pensava, estava viva. E aí, me vejo novamente em seus braços, redimensionando sonhos, planejando novamente uma vida juntos. Mas tão logo tenho a felicidade pelo seu retorno, descubro que sou vítima de uma farsa, que este amor está morto sim.
Seus olhos já transbordavam em lágrimas, assim como os meus.
- Descubro que a mulher, a qual pensava ser meu grande amor, é na verdade uma impostora, tentando me enganar, me passar a perna.
- Eu precisei fazer, Pedro.
- Os motivos podem ter sido nobres, Júlia, as atitudes não.
- Eu te amo.
- Eu não sei quem você é.
- Eu te amo mesmo assim.
- Me desculpe.
Saiu cabisbaixo, direcionando-se ao carro, onde Adriano já lhe aguardava. Tive a oportunidade de ser feliz com o homem da minha vida e deixei-a escorrer por entre os dedos. Como aquilo me doía!



MARINA PESSOA
Capítulo 54

Donato finalmente me levaria para Brasília.
Tratei de arrumar minha bolsa imediatamente. Seria uma viagem rápida de apenas um dia, mas eu aproveitaria como se fosse um longo momento, instante propício para estar próxima do homem que amava e desfrutar de sua companhia e do papel de sua esposa. Foi o que eu fiz.
No momento em que entramos no avião, Donato dera seu recado.
“Espero não ter nenhum aborrecimento com você, minha querida. Sabe que quero lhe ver bem e tudo o que faço é para lhe proteger, lhe poupar de sofrimentos, de situações que podem lhe causar tristezas. Não gosto de surpresas, sabe disso. Nem quero descobrir que meus esforços para lhe deixar sempre bem, foram em vão.”
Estava claro o recado de meu marido. A viagem era apenas para me tirar de Fortaleza naquele momento e afirmar seu desejo de me ver longe de Vanessa e Pedro Lucena. Quase o respondi, falando de meus sentimentos, do quanto me sentia infeliz por estar longe de minha irmã. Não tive coragem, no entanto.  Ele era um homem de poucas palavras, sem muita paciência. Eu nem conseguia imaginar ao certo o que Donato seria capaz de fazer contra mim, mas temia descobrir. Durante segundos, chegava a me arrepender de ter me casado com ele. Era como se eu tivesse escolhido um caminho sem volta.
Permanecemos toda a viagem sem pronunciar uma só palavra. Chegando em Brasília, fomos direto para o hotel, onde Donato me deixou, para ir ao congresso. Chorei por todo o resto da tarde, sem conseguir colocar nada na boca.
Precisava sair para tomar ar fresco. Por um instante achei que estava em nosso apartamento, mesmo com a sala completamente vazia, sem móveis, somente cortinas sendo jogadas de um lado para o outro pelo vento. Parecia já ter anoitecido, embora eu não tivesse noção real do horário. O ambiente estava apenas iluminado por uma vela, no canto da sala e pelas luzes da rua que entravam pelas janelas. Aproximei-me da porta, para finalmente sair e fazer algo por mim, mas estava trancada. E ao olhar com mais atenção, percebi que a porta era contornada de grandes fechaduras. Era como se a angústia que sentia em meu casamento, quando Donato me impedia de sair ou interagir com alguém, bem como de fazer qualquer coisa que denotasse algum controle sobre minhas próprias vontades, tivesse se multiplicando a ponto de me causar náuseas.
Estava presa e não sabia como sair daquele ambiente. Mas, na verdade, sabia que não tinha sido meu marido quem providenciara aquilo, embora não soubesse como. Lembrei-me de sair pelos fundos e depois de algum esforço, consegui abrir a porta da cozinha, que também estava completamente vazia, como se nosso apartamento tivesse sido abandonado. Comecei a correr as escadas abaixo, na ânsia de encontrar alguém.
“D. Deise! Donato!”
Queria muito encontrar alguém que me tirasse da solidão que aquele lugar vazio me trazia. Os lances de escada pareciam não ter fim. Até chegar a um lugar que parecia a casa em Pacoti, onde Vanessa e eu passávamos finais de semana com papai e mamãe, ainda garotinha. Estava num grande corredor, cercado de um lado por janelões que davam para o quintal da casa, e do outro por grandes portas que davam para os três quartos. Um vento frio entrava pelas janelas, que me fazia sentir ainda mais desprotegida.
 “Alguém aí?”
Minha voz já estava trêmula. O lugar que tantos anos antes me trouxera diversas alegrias, naquele instante era portador de uma energia macabra e solitária que me fazia sentir um medo incontrolável. E de repente, um menino corre de uma porta para a outra do corredor, sem que eu pudesse vê-lo perfeitamente. Como se fosse um vulto que sugira ali em minha frente.
Pelo menos, poderia ser um sinal de alguém naquela casa. Tratei então de correr até a porta pela qual a criança desaparecera, mas esta, por sua vez, estava trancada. Comecei então a bater na porta, tentando abri-la.
- Por favor, alguém aqui! Por favor, alguém me ajude! Por favor...!
Do nada, ao meu lado, estava a minha imagem ainda criança, com uma boneca na mão, chorando por ter me perdido de Vanessa. Estávamos brincando de esconde-esconde e ela, há horas, não aparecia. Tive vontade de conversar com aquela garotinha, mas não tinha coragem. Era como se minha voz não saísse e eu não conseguisse me expressar diante de mim mesma. Vi então ela se afastando, foi então que percebi por baixo de seu vestido, uma bata branca de hospital e seus pés já não estavam mais calçados, como há segundos antes, e de repente, quando subi o olhar, já não era mais a minha imagem criança e sim o garotinho de meus sonhos.
- Ei, garoto... você....
Não conseguia falar muita coisa, como se as palavras tivessem desaparecido de meu vocabulário. E ele então se voltou a mim. Seu olhos estavam vermelhos, cheios de lágrimas, como que chorasse há horas. Em sua mão, carregava um pedaço de pau, que parecia machucar sua mão, fazendo-a sangrar.
- Garoto... a sua mão.... esse pau...
Minha voz estava embargada. Eu não tinha muito domínio sobre as palavras. Mas estava tomada pelo medo daquela casa, daquela situação. Curiosamente, eu não temia aquele garotinho, embora fosse uma figura estranha, e passasse tristeza e ódio em seu olhar.
- Garoto, você está se machucando.
Aproximei-me, tentando ajudá-lo. Mas ele se afastou bruscamente, numa atitude de proteção.
- Você está se machucando, quero apenas ajudá-lo.
- Não fui eu!
Ouvi sua voz pela primeira vez. Era firme e carregava um tom de raiva.
- Como? O que disse?
- Não fui!
- Do que você está falando, garoto?
- Não fui eu que fiz sangue em mim.
Hesitou por um instante, olhando para a mão sangrando e prosseguiu.
- Foi você!
Olhou para mim violentamente. Tive a impressão, por um instante, que suas lágrimas fossem sangue. O que me deixou ainda mais assustada. O garotinho saiu correndo em prantos.
- Volta aqui, garoto!
Corri desesperadamente atrás daquela criança. Precisava entender o que ele tentara me dizer, o que eu tinha a ver com seu machucado, por que estava aparecendo para mim, o que queria verdadeiramente comigo...
Acordei assustada na poltrona do quarto em que eu estava hospedada em Brasília. Passava das dezoito e trinta, quando olhei para meu relógio. E nada de Donato, nenhum telefonema, nada. A única coisa que experimentava em minha vida naquele momento eram as emoções, o medo, a angústia, trazido por aqueles pesadelos, que roubavam minhas noites, no último ano. Veio uma vontade incontrolável de chorar e por para fora todo aquele sentimento ruim de vazio, que me dominava naquele momento. Por mais que eu não conseguisse compreender aqueles sonhos, não gostava, não faziam bem e só podiam ter a ver com tudo o que eu estava vivendo com Donato, nossa distância, minha total abnegação a tudo aquilo que fazia bem, em função e manutenção de meu casamento. Era a única resposta que eu tinha para tudo aquilo. E eu estava farta, farta de sofrer, farta de não fazer nada para reverter aquela situação, farta de não conseguir dar um basta às atitudes absurdas de meu marido, farta de ser vítima de mim mesma e de minha própria tristeza.
Eu, Marina Pessoa, estava prestes a tomar a primeira atitude rumo à libertação de minhas próprias amarras, de meus medos e covardia. Chamei um táxi e fui para o aeroporto. Seria de fato uma loucura, mas quando Donato desse por minha falta, talvez eu já estivesse de volta a Fortaleza. Precisava resolver minha vida e meu marido necessitava saber que eu não era um joguete em suas mãos.

MARINA PESSOA
Capítulo 55

Às onze e meia da noite, já estava desembarcando de volta a Fortaleza. Tomei um táxi e fui direto para o apartamento de Vanessa, que não era muito distante do meu, ficava numa rua paralela, a uns quatro quarteirões da Beira Mar,. Quando eu me fiz anunciada pelo porteiro, ela pareceu hesitar e demorou um pouco a dar-lhe uma resposta, até autorizar minha subida ao apartamento.
Vanessa já estava pronta para dormir, colocara apenas um robe por cima de seu camisola, a fim de me receber. Abrira a porta assustada, sem entender ao certo o que estava acontecendo, por que eu estava ali, já passando de meia noite.
- O que aconteceu?
- Eu preciso de você!
Fiz o que tive vontade de fazer em nosso reencontro na festa de Leonardo Gondim, e não tivera coragem naquele momento. Abracei-a intensamente sem dar-lhe chance de impedir-me.
- O que é isso, Marina? O que está acontecendo?
Embora estivesse assustada e confusa, sem entender ao certo aquela situação estapafúrdia, no fundo gostara e por alguns segundos, procurara também sentir-me no abraço. Embora guardasse mágoa de mim, não deixara de me amar.
Comecei então a chorar compulsivamente, sem conseguir deixá-la sair.
- Calma, Marina! O que está acontecendo?
Eu já conseguia ouvir em sua voz um tom de preocupação e cuidado. O que me fazia naquele momento a pessoa mais feliz do mundo.
- Nada! Quero apenas poder sentir você cuidando de mim mais uma vez, como quando eu era pequena.
Vanessa já não conseguia também controlar seu choro e se entregara ao momento, abraçando-me também fortemente, como se quisesse resgatar o que havíamos perdido ou deixado de viver.
- Eu senti tanto a sua falta, menina! Por que você me deixou?
Afastava-se um pouco para poder fitar meus olhos, também afogados em lágrimas e depois voltava a me abraçar.
- Marina, você fez muita falta, muita mesmo, para todos nós!
- Eu sofri muito, Vanessa!
- Eu também!
- Me perdoa!
- Eu te amo tanto, menina!
Nem conseguíamos falar muito ali, como se não houvesse tempo e as palavras fossem pouco e roubassem o tempo que já havíamos perdido outrora e só aquele abraço seria capaz de resgatar. Não sei ao certo por quanto tempo ficamos paradas ali na porta, abraçadas, balbuciando poucas palavras que tentavam exprimir a falta e o sofrimento que a distância uma da outra havia causado.
E de repente, já estávamos sentadas no sofá, tomando chá e rindo de histórias vividas por Vanessa e Pedro nos últimos anos em Londres. Era como se não houvessem passado quase seis anos de nossa separação. Permanecíamos com o mesmo sentimento de cuidado e amor uma pela outra. Ali diante de mim, Vanessa já não era mais aquela pessoa fria que tentava passar para todos, nem muito menos a mulher irritada com qualquer coisa que a tirasse de sua zona de conforto. Naquele momento, era apenas a minha irmã. E rimos muito juntas naquela madrugada.
Antes de dormirmos fomos até o quarto de Felipe e durante alguns minutos contemplei seu sono tranqüilo. Estava enorme, um rapazinho e ainda mais lindo. Lembrava os olhos do pai e a boca da mãe. Senti uma emoção gigantesca diante daquela criança. Cheguei a ter um arrepio, lembrando do garotinho de meus sonhos. Talvez fosse a minha culpa por ter abandonado meu sobrinho, no momento em que ele precisara muito de mim.
Um peso saía de minhas costas. Acreditava que estava livre de uma vez por todas daqueles pesadelos horríveis que preenchiam as minhas noites nos últimos tempos. Se era algum assunto não acabado, e finalmente tinha posto um ponto final e podia começar a escrever uma nova história. Teria apenas de enfrentar meu marido. Ah, meu Deus! Como seria com meu marido? Eu havia me esquecido completamente do que eu tinha feito em Brasília, de ter voltado a Fortaleza sem avisar, sem ao menos um telefonema, e o dia já estava quase amanhecendo. Mas não era hora de pensar naquilo. Fizera o que deveria ter feito há muito tempo e não disponha de coragem.
Vanessa preparara o quarto de hóspedes para mim, colocando-me para dormir, como quando eu era garotinha. Fora a sensação mais intensa que eu experimentara nos últimos anos. Há muito não me sentia tão cuidada, tão protegida. Vanessa sempre fora uma mãe para mim, desde a morte de nossos pais. Mesmo sendo uma pessoa difícil muitas vezes, nós nos amávamos muito e ela sabia ser cuidadosa quando precisava.

* * *

Acordei praticamente na hora do almoço. Quando percebi, estava sendo observada por Vanessa e Felipe, da porta do quarto. Fui surpreendida por um forte abraço de meu sobrinho.
- Você ainda lembra de mim, lembra?
Mal pude conter as lágrimas. Felipe apenas ria, como se considerasse boba minha pergunta. Nos abraçamos muito, juntamente com Vanessa.
Durante o almoço, fiquei sabendo que os problemas alérgicos de meu sobrinho haviam se agravado, nos últimos meses, e ele estava sob tratamento intensivo. Não podia comer muita coisa, bem como estava privado de fazer quase tudo que uma criança normal fazia.
Cecília, a babá de Felipe, ainda permanecia trabalhando com eles. Devia ter mais ou menos a idade de Vanessa e, graças a Deus, amava muito o garoto, o tratava como um filho. Para a família, Cecília nunca fora uma simples babá, mas uma pessoa dedicada, responsável e extremamente amorosa com meu sobrinho. E por isso tinha todo o respeito e consideração de Vanessa e Pedro.
Gostei bastante também de Carminha, a empregada que fora contratada desde que minha irmã voltara ao Brasil. Diferente de D. Deise, era mais expansiva e sorridente, estava sempre como se esperasse um gesto de cumplicidade para sorrir e servir.
Senti-me extremamente feliz e reintegrada a minha família, apesar de lamentar a falta de Pedro naquele núcleo. Dava para perceber, pela forma que Felipe falava do pai, o quanto era querido ali, não só por ele, mas também por Vanessa, que uma vez ou outra deixava escapar a certeza do retorno do marido ao lar.
“Pedro estava muito confuso, quando voltou a Fortaleza, depois da morte do pai. Por isso precisou de um tempo. Mas eu acredito que logo, logo ele estará de volta, alegrando este ambiente.”
Percebi com esta fala de Vanessa, o quanto o amava e nutria esperanças de um retorno. No entanto, pude perceber que o próprio Felipe não acreditava naquela hipótese, procurando desconversar, mudar de assunto quando a mãe tocava nesse ponto. Era como se até ele, com apenas dez anos, fosse consciente da realidade que minha irmã se negava a aceitar. Pedro já havia comentado comigo sobre suas certezas e seu cansaço acerca do casamento com Vanessa, num de nossos encontros rápidos, nas recepções de Leonardo Gondim. Preferi não me intrometer naquele momento. Afinal, estava apenas chegando, não poderia já intervir num assunto tão delicado para minha irmã.
O fato é que eu desejei profundamente que aquele momento se prolongasse eternamente. Parecia tão perfeito, minha reconciliação com Vanessa, minha reaproximação de Felipe. Contudo, perfeito não era. Eu precisava prestar contas com Donato, que aquela altura do campeonato, ainda não tivera notícias de mim.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 56

No dia seguinte à sessão de Biodança, onde reencontrei Pedro, fui surpreendida com uma visita inesperada em minha casa. Adriano Cordeiro me procurou, para que pudesse entender melhor a situação. Parecia ser de fato uma boa pessoa, como o próprio Pedro já havia me dito por várias vezes. Ouviu-me com bastante atenção, interrompendo-me poucas vezes e de forma sutil, só para entender melhor o que lhe falava. Pude perceber o quanto se preocupava com o amigo e por isso estava ali. Mostrara-se comovido com a minha versão, embora compreendesse a atitude de Pedro em não me aceitar de volta. Pelo menos percebi que ele acreditava em meus sentimentos e estava disposto a me ajudar. Bendito Adriano Cordeiro! Talvez pudesse me ajudar sim a reconquistar o homem da minha vida. Senti-me até mais aliviada e ainda mais fortalecida. Estava determinada a fazer com que Pedro me perdoasse.     
Sabia que Pedro e eu havíamos nos separado por conta de minha falta de fé, minha fraqueza, por ter me distanciado de minha essência e me perdido no desejo de controlar as situações da vida, de poder ser eu dona da situação, passando por cima do que era sagrado, o amor. Contudo, estava disposta a lutar para reaver aquilo que havia perdido, a dignidade e meu grande amor.
Logo após a saída de Adriano, descobri que ele era um velho conhecido de D. Clarinda. E até mais que isso. Podia perceber seus olhos brilharem ao falar de seu amigo do passado. Embora fosse uma mulher devotada em seu casamento, era claro que guardava ainda um sentimento diferente e especial por aquele homem. Estava feliz por tê-lo reencontrado em frente, no momento que saía de minha casa. Parecia que não se viam há anos. Pensei em como a vida nos prega peças. Adriano Cordeiro e D. Clarinda, que viveram um amor no passado e haviam sido separados pelo destino, então se reencontravam como amigos e conselheiros de um novo casal, sem que soubessem de sua ligação.
Ficara ainda mais confiante depois que D. Clarinda de Holanda falara-me do quanto Adriano era um homem sensível e bondoso. E que, certamente, se empenharia em me ajudar e ver o amigo novamente feliz. Cheguei a questionar o que minha amiga me dizia sobre ele, lembrando do fato de Adriano ter expulsado a filha Olívia de casa, ainda adolescente, por estar grávida.
“Filha, você melhor que ninguém sabe que muitas vezes agimos de um modo que depois podemos nos arrepender para o resto de nossas vidas.” Disse-me D. Clarinda.
Diante daquela colocação eu me percebia também tomada pela fraqueza, em determinados momentos, em que me considerava incoerente, perdida em meu próprio ego, como se tivesse o controle de tudo. E então transformava-me de mocinha a vilã.
Entendia claramente o que D. Clarinda me dizia, ou melhor, sentia na pele o que me falava. Havia sido vítima de mim mesma, de meu ego. Optara por escolher o caminho do controle em detrimento da entrega, embora movida por boas intenções. E havia sido infeliz!

CELINA GONDIM
Capítulo 57

Minha irmã odiava qualquer coisa que me fizesse feliz e jamais concordaria com aquilo. Ela sabia que não bastava ganhar a diretoria, nem mesmo fazer o diretor artístico da RTN optar por sua sobrinha e lançar seu nome como proposta para o espaço no projeto. Caso eu aceitasse o convite, na certa papai enfrentaria a todos, com o apoio de Pedro e me colocaria junto na empreitada. Além do que confiava em minha competência como autora, afinal meu último trabalho, pouco antes do acidente acabara se tornando um dos grandes sucessos da RTN. E isso ela não podia negar, até criticava e o taxava como uma produção apelativa e desrespeitosa ao público, levando o mundo das drogas como temática principal, mas o resultado em audiência e retorno financeiro eram incontestáveis.
Deste modo, Maria Eugênia partira para o que sabia fazer melhor. Começara uma luta psicológica dentro de casa, a fim de me fazer optar pela não aceitação do convite. Ela sabia bem meu ponto fraco e a dor que este me causava, e tratava de fazer com que eu me deparasse com ele a todo instante. Fomentava a minha própria idéia de me ver enquanto inválida e grande responsável pela morte de Vinícius, apegando-se ao risco de transformar a série num grande fracasso de crítica e audiência, fazendo o tiro sair pela culatra, o que me tornaria ainda pior, por colaborar com a destruição do sonho de nosso pai.
Tratava-se de uma guerra de nervos a qual eu sempre perdia. Por várias vezes, chegava a me prometer que não me deixaria abater pelas afirmativas de Maria Eugênia, mas no memento que acontecia ela me fazia experimentar exatamente a dor de minhas feridas, bloqueando-me a qualquer resposta. E sempre que eu tentava reagir, ela parecia mais ágil e saía com outra afirmativa ainda pior. Sua ação se dava exatamente na ausência de qualquer outra pessoa, com exceção de Lorena, sua secretária e cúmplice. Ela procurava não se expor, nem muito menos se desgastar com papai, por isso, agia sem que ninguém soubesse, certa de que eu jamais comentaria com outra pessoa, visto não querer me sentir ainda mais dependente. Maria Eugênia agia de forma silenciosa a todos, mas fatal a mim.
Certo dia, minha irmã, deu seu golpe de misericórdia. Fora instigada por Donato a me apresentar o valor da dívida da RTN, a fim de me sensibilizar com a problemática da emissora, escondida por papai a todo custo, e me convencer a desistir de ser mais uma colaboradora para o seu fracasso. Assim o fez. Fiquei então sabendo que a dívida publicitária de nossa televisão, incluindo também a dívida com o governo do Estado e bancos, ultrapassava quinhentos e cinqüenta milhões de reais. Um valor, naquele momento, impagável.
Minha decisão estava tomada! Jamais poderia aceitar a proposta de papai e Pedro em integrar a equipe para a série sobre o universo dos portadores de necessidades especiais. O fato era que não me sentia plena, inteira para voltar a trabalhar. Sabia o quanto minha participação teria força no trabalho, dando-lhe também minha tônica, o que não seria, segundo meu pensamento e de minha irmã, o melhor para o projeto em questão. Estava então fora do trabalho, para a decepção de papai, Pedro, meus sobrinhos, Dulce, Mena, exceto para Maria Eugênia, que vibrara com a notícia.

CELINA GONDIM
Capítulo 58

Em meio a todas aquelas questões familiares e de negócios, minha irmã jamais esquecera a saída de Guel Serrado de seu bar. Por isso encarregara Nacélio de descobrir seu paradeiro, onde estava morando, a fim de encontrá-lo e entender como teve coragem de deixá-la. Para ela, era uma questão de honra, embora nunca admitisse envolvimento com quem quer que fosse.
E realmente não demorou muito para Nacélio obter notícias do rapaz. Descobrira onde morava e que estava envolvido com uma jovem. Guel fora então procurado por sua ex-patroa, com quem voltara a se encontrar uma vez ou outra, a fim de realizar seus desejos e garantir que não atrapalharia seus planos junto à namorada Tony. E para minha irmã, estava ótimo, pois voltaria a ter novamente o que queria,  quando desejasse. Ela sentia, explorando o corpo daquele homem, o que não sentia com mais ninguém. A única exigência do rapaz, cheio de si, feliz pelo reconhecimento de sua virilidade, era que os encontros fossem apenas entre os dois, sem a presença dos demais garotos de outrora. Guel dava conta do recado e ela sabia bem. Não seria problema ceder ao pedido.
A dona do Mukifo permanecia, entretanto, com o velho hábito de fazer sua listinha ao sócio, para os momentos de sexo coletivo, como gostava. Estar sozinha com Guel Serrado, de vez em quando, seria somente mais uma de suas diversões, longe de nossos olhares e dos executivos da RTN.
As listas da dama misteriosa, sempre eram motivo de discórdia ou decepção dentro do Mukifo. Os rapazes menos escolhidos ou nunca requisitados entendiam aquilo como uma avaliação negativa a seu respeito. Os preteridos eram alvo de gracinhas por parte daqueles que mais estavam com a bela e poderosa dona do bar. Como Ronie, amigo de Guel, que nunca tivera a oportunidade de estar com aquela mulher, da qual falavam ali dentro com mistério e prazer. Ele torcia para ouvir seu nome citado, quando Nacélio dizia estar com a lista. Ora, não ser requisitado, significava que ela sequer se interessava pelas fotos. “Droga!” a lamentação de Ronie sempre vinha silenciosa, por constatar que seu nome não estava na lista.
O rapaz preterido por minha irmã, decidira então fazer uma troca com seu patrão. Ele gravaria vários vídeos de clientes, sem nada cobrar, a fim de que tivesse seu nome incluído numa daquelas listas, “por engano”. O resto ficaria por sua conta. Fechado! Nacélio até gostara do desafio. Seria divertido vê-lo expulso do tão desejado apartamento da Beira-Mar. Expulso? Que nada. Mesmo achando estranho a presença do rapaz, por ter ela quase certeza de que não o havia escolhido, optara por sua permanência. Dando-lhe a oportunidade, sem que ela soubesse dos grandes desejos do rapaz, de mostrar-se eficiente. Para Ronie, contudo, tratava-se de seu futuro. Sonhava que Maria Eugênia, envolvendo-se com ele, como havia se envolvido com Guel, o ajudaria a sair de sua vida de miséria.
Ronie fizera tudo o que estava ao seu alcance, tentando de todas as formas surpreender a patroa e superar o desempenho sexual desenvolvido pelos outros dois companheiros, parceiros daquela lista. A decepção veio então, na lista seguinte, quando não ouviu seu nome citado por Nacélio.
- Droga! Do que será que essa mulher precisa?
Certamente não desistiria fácil do intento.

CELINA GONDIM
Capítulo 59

Maria Eugênia encontrava-se extremamente feliz naquele momento, por minha desistência do projeto. Na verdade, havia se empenhado tanto em me afastar de “sua empresa”, como chamava em muitos momentos, que chegara a esquecer um pouco dos filhos, dando-lhes uma certa trégua nos conflitos dentro de casa. Não aceitava o desprendimento financeiro de Maria Antônia, bem como sua escolha à faculdade de Sociologia, a fim de trabalhar em prol de uma sociedade mais justa. João Henrique também pudera respirar mais sossegado, neste período, sem ter que se aventurar, como de costume, nos namoros arranjados com as filhas das amigas de sua mãe.
Na certa, fora João Henrique quem mais se sentira aliviado com as ocupações de Maria Eugênia. Longe da vigilância permanente da mãe, pudera curtir mais a amizade com Alexandre, nos intervalos dos estudos da faculdade. Recebia frequentemente o amigo acompanhado da namorada, juntamente com Maria Antônia. Enquanto as duas conversavam sobre idéias para trabalhos da faculdade, meu sobrinho se deliciava com as histórias dos esportes radicais do amigo. João Henrique, muitas vezes, parecia hipnotizado com a espontaneidade e liberdade que eram tão peculiares a Alexandre e que nunca conhecera enquanto postura própria de vida.
Alexandre questionava regras e condicionantes de vida com uma leveza que deixava João Henrique totalmente encantado, num misto de surpresa e adoração, como se experimentasse o deslumbramento a cada frase ou colocação do amigo acerca de qualquer assunto. Era como se Alexandre conseguisse desconstruir facilmente, numa questão de segundos, o que ele levara a vida inteira acreditando como sendo importante para sua sobrevivência. E aquilo o deixava completamente fascinado, a ponto de não parar de falar no amigo, mesmo em sua ausência, o que chamava atenção das pessoas.
Certa tarde, depois de um banho de piscina juntamente com Carola e Maria Antônia, João Henrique e Alexandre subiram para se trocar. Meu sobrinho estava no chuveiro quando o amigo entrou no banheiro, inesperadamente, completamente despido, conversando sobre uma colega que estava lhe dando mole, segundo ele, quando ia pegar a namorada na faculdade. Alexandre aproximou-se da pia, começando a tirar a barba. Do chuveiro, João Henrique fitava o corpo do outro, sem que este percebesse. Era um misto de curiosidade, nervosismo, incômodo e excitação. Admirava-o por ter um físico atlético, malhado, com musculatura bem definida, coisa que ele mesmo não tinha. Acreditava até então que o que mais o chamava atenção no corpo do amigo era o resultado de horas diárias de academia. Mas passara a estranhar sua própria reação ao vê-lo sem roupa, sua excitação.
João Henrique lembrava de alguns momentos em que o mesmo havia acontecido em outras situações, desde a adolescência e aquilo lhe incomodava profundamente. Sentia-se acometido de um sério distúrbio e lhe faltava coragem para pedir ajuda a alguém. Apesar de sua grande amizade e cumplicidade com a irmã, como revelar sua excitação ao ver um homem sem roupa? Ou até mesmo, como contar para ela que havia se sentido atraído pelo próprio amigo, namorado da amiga Carola? Não! De modo algum poderia revelar aquilo a Maria Antônia, ou a qualquer pessoa que fosse. Se ele mesmo não aceitava, quanto mais sua irmã ou alguém mais. Seria uma decepção, ninguém acreditaria que ele não era homossexual. Preferia não correr esse risco.
Meu sobrinho tratara de esconder a ereção com a toalha, ao sair do chuveiro, procurando deixar o banheiro o mais rápido possível, para que não se sentisse tentado a olhar. Enquanto o amigo, continuava conversando naturalmente, sem imaginar a angústia que estava causando a ele. Não entendia ao certo o que sentia, mas percebia que um desejo incontrolável de apreciar e até tocar, se fazia presente naquele momento. Algo que era mais forte e não poderia explicar, mais forte até do que muitas vezes sentira ao estar com alguma namorada. De fato, não tinha como mensurar, se era igual ou mais intenso do que o que sentia por uma mulher. Sabia apenas que não conseguira sentir o mesmo pela maioria das poucas namoradas que tivera.
Contudo, João Henrique repetia mentalmente para si mesmo que não estava sentindo aquilo, que jamais poderia sentir, para desfocar e conter sua excitação. O que não acontecia facilmente, visto que a imagem de Alexandre, sem roupa, bem ali diante dele, não saía de seu pensamento, fazendo-o voltar à porta do banheiro, para que pudesse ver por mais um segundo que fosse aquele belo corpo. Queria acreditar que era apenas pelo desejo de ter um corpo como o do amigo, malhado, bem definido, e não por atração física.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 60

Pedro sofria por tudo o que acontecera, mas estava bem. Continuava tentando também encontrar o tal dossiê deixado pelo pai sobre Donato Pessoa e suas ações ilícitas dentro da RTN. E até tentara, sem muito êxito, conversar com o dono da emissora, acerca do assunto. Contudo, não podia entrar muito em detalhes, visto que não dispunha de provas e tudo não passava de desconfianças. Sabia que Donato seria uma pessoa capaz de negar friamente e exigir tranquilamente as provas e até chegar ao ponto de abrir um processo contra ele, alegando calúnia e difamação. Pedro usava de prudência e ponderação, como de costume, por isso procurara o presidente da empresa e lhe falara com cuidado a respeito de suas desconfianças. Mas preferira não comentar sobre mim e o plano para conseguir o suposto dossiê, bem como o roubo do projeto de programação.
Depois de muito pensar, Pedro decidira procurar Donato para entender melhor a questão do plano que me envolvia assumindo a identidade de minha irmã Mirela.
- Fiquei com receio que você permanecesse na vice-presidência da RNT, Pedro. Almejo este cargo há anos. Sabe o que significa isso? Sei da minha contribuição para esta emissora ter chegado aonde chegou e ser hoje uma das maiores do país, mesmo tendo sua sede aqui em Fortaleza. Este cargo é meu por direito.
- Em nenhum momento se preocupou comigo, se podia ou não sofrer?
- Às vezes sim. Mas estamos afastados.
- Apesar de estarmos afastados há anos, Donato, nunca deixei de me preocupar com você. Foram anos de amizade.
- Que você acabou.
- Então é uma forma de me punir?
- Que nada, Pedro. Não tem mais tanta importância assim pra mim.
- Então consegue me ver somente como um inimigo?
- Não seja drástico. Não somos mais amigos.
- Não me veja como inimigo, Donato. Nunca fui.
- Está em meu caminho.
- As coisas aconteceram naturalmente. Nunca tive a intenção de lhe roubar nada, nem de me colocar em seu caminho.
- Deixe a RTN então.
- Até poderia o fazer, e compactuar com um jogo sujo o qual causou a morte de meu pai.
- Seu pai não morreu por conta disso, Pedro.
- Eu não sei.
- Eu estou lhe dizendo.
- Não confio mais em você, Donato. Como disse, não somos mais amigos.
- Não se arrependa então.
O que deixava Pedro surpreso não era o fato de Donato desejar a vice-presidência da empresa, mas o que fora capaz de fazer para conseguir o que queria. E onde ficavam os quase vinte anos de amizade entre os dois? Não sentia ele nada por Pedro? Isso era difícil de compreender. Até porque sofria em saber aquilo do amigo de tantos anos.
Somente quando Pedro partilhou com Donato Pessoa sua desconfiança de que ele podia estar envolvido na morte de seu pai, percebeu uma alteração emocional de sua parte, afirmando não ter nada a ver com o ocorrido. Até porque a causa da morte de Alberto Lucena fora enfarte. No entanto, Pedro se referia ao fato de Donato ter estado com seu pai pouco antes de sua morte, na casa de praia, no Porto das dunas, e sumira de lá, logo após o acontecido. Conforme ficara sabendo através de um pescador do lugar. E isso o deixava confuso. Se não tinha nada a ver com a morte, com algo que pudera ter provocado o ataque cardíaco de seu pai, por que sumira da casa, deixando que todos pensassem que não havia estado no local?
Donato Pessoa pareceu convincente ao se defender sobre as desconfianças de Pedro acerca da morte do pai. E até deixara transparecer uma certa dor ao falar no assunto. Por mais que fosse uma pessoa ambiciosa, devia gostar sim de Alberto Lucena, que lhe dera todas as possibilidades de crescimento e ascensão profissional e social. No entanto, negara que tenha me contratado para conseguir o tal dossiê e sim para lhe roubar somente o projeto de programação. Obviamente não assumiria sua intenção totalmente para não se expor, visto que Pedro não dispunha de nenhuma prova da existência dos documentos. Não perdera também a oportunidade de tentar jogá-lo contra mim. O deputado Donato Pessoa não dava ponto sem nó, sabia muito bem o que estava fazendo, e jogava alto para isso.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 61

Nando sentia-se exposto e desrespeitado por ter tomado a atitude extrema de mandar prender o pai e naquele instante eu clamar por sua soltura e retorno às nossas vidas. E no fundo, ele tinha razão. Não somente pelo que havia acontecido no dia anterior, onde todos os vizinhos foram testemunhas, mas, sobretudo, por todas as barbaridades cometidas por Alceu em todos aqueles anos. Finalmente alguém tomava uma atitude de dignidade e eu estava ali a invalidando, negando o desrespeito pelo qual fomos todos submetidos por tanto tempo. Meu filho ressaltava tudo isso, tentando me dissuadir de meu pedido. Holanda era quem mais se indignava diante de minha postura, chegando a me ameaçar.
- Escuta bem o que eu vou dizer, mãezinha... se por acaso a senhora insistir nessa insanidade, retirar a queixa na polícia e trazer aquele homem pra dentro de nossa casa novamente, e se submeter a essa vida absurda a qual a senhora e nós vivenciamos durante toda a nossa vida, es-que-ça que eu e-xis-to! - Falou o final da frase compassadamente, para que eu entendesse de uma vez por todas que não voltaria atrás em sua decisão. E prosseguiu: - Esse homem precisa pagar pelo que ele fez. Se ele voltar, nunca mais, veja bem, nunca mais, a senhora vai me ver!
- Calma, mano! – Nando ainda tentara amenizar a situação.
Holanda, entretanto, estava decidido. Afastando-se do irmão.
- Calma nada, Nando! Eu sei muito bem o que estou fazendo. – Voltou-se mais uma vez para mim. - Ela precisa entender que esse homem é um câncer e que nós precisamos nos curar!
- Ele é nosso pai. – Completou Nando.
- Há muito ele não é meu pai, desde quando ele me renegou como filho. – Respondeu prontamente Holanda.
- Você conhece o gênio de seu pai, meu filho.  – Tentei intervir. 
Doía-me a alma vê-lo falando com tanta mágoa, com tanto ódio do próprio pai. Por mais que Alceu tivesse nos feito sofrer, era de nossa família e precisa de ajuda. Como os próprios meninos falavam algumas vezes, era um homem doente. E por isso, não podíamos abandoná-lo. Os dois, contudo, estavam convictos de sua decisão, seria impossível demovê-los daquela idéia, pelo menos naquele momento. Eu precisava esperar a poeira baixar um pouco para tirar Alceu da cadeia, sem muitos conflitos com os meninos. Não poderia, claro, querer que eles engolissem tal atitude minha depois de tudo o que havia acontecido, sem maiores explicações.
Nando cuidou para eu nem precisar ir à cadeia, ver questão de alimentação ou pensar na possibilidade de visita a Alceu, nos dias que se seguiram. Ele mesmo fazia isso diariamente e me deixava a par do estado dele, para que eu não me preocupasse. Mas preocupada eu estava. Sabia que não era, mas me sentia culpada pelo que estava acontecendo a ele. Talvez se eu não tivesse reagido como reagi quando meu marido me indagou sobre Adriano Cordeiro, ele não tivesse ficado tão nervoso e desconfiado.
Na verdade, eu insistia numa culpa que não me pertencia. Não se tratava de Alceu estar ou não na cadeia, pelo que me fizera naquele momento, mas ao fato de eu nada fazer para tirá-lo de lá e prosseguir com nosso casamento, acontecesse o que acontecesse. O que me tirava o sono realmente era o dever de cumprir uma promessa e não ter argumentos para tal, ou melhor, de não poder revelá-los.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 62

O bom de toda aquela situação, desde a prisão de Alceu, era a presença de Holanda mais constante em nossa casa. Passava diariamente para me ver e saber como eu estava, sempre trazendo comidas, das quais sabia que eu gostava, ou presentes, que eu gostaria de ter. Sentia-me mais próxima de meu filho. Para falar a verdade fora a época que nós estivemos mais juntos, curtindo a presença um do outro, depois de ter saído de casa para morar com Renato Brandão.
A relação que Holanda mantinha com Renato estava a cada dia mais deteriorada. Meu filho estava cheio e se sentia sufocado com os ciúmes do parceiro, bem como cansado de suas demonstrações de afeto e carinho. O que mais o incomodava naquele instante era a obrigação de permanecer com ele na cama, mais até do que suas crises de ciúme, que no fundo tinham um pouco de fundamento. Holanda estava chegando ao seu limite e sonhava em viver um grande e verdadeiro amor. Não tinha intenção de trair o parceiro, ou mesmo magoá-lo, mas vivia um desejo latente, encoberto pela gratidão a Renato e tudo o que fizera por ele profissionalmente. O que fazia despertar dentro de si uma busca incessante por esse amor, em todos os lugares e em qualquer nova mulher com quem interagisse, fazendo-lhe parecer meio cafajeste, como se tentasse seduzir o mundo, embora lhe faltasse coragem para levar qualquer história à diante.
Holanda até tivera muitas oportunidades de viver esse fogo, o qual tentava conter. Uma vez ou outra, acertava em sua postura sedutora involuntária e criava situações em que as mulheres extravasavam seu desejo, tomando a iniciativa para levarem às últimas conseqüências o jogo de sedução, fosse na academia, na praia, no trabalho ou em qualquer lugar.
Meu filho terminava por colocar um limite e não levar a situação adiante, como se não compreendesse o que teria causado ou tivesse levado a moça a tomar tal atitude, visto que não reconhecia a sua parcela de responsabilidade no acontecido. Dizia sempre não entender como havia começado, nem o que fizera para fazer a pessoa pensar que poderia acontecer algo. Como se tudo não passasse de uma brincadeira. Chegara, inclusive, a receber alguns limites duros de vítimas que haviam sacado o seu jogo.
Renato presenciara algumas dessas situações, o que começara a provocar os seus ciúmes. Era completamente apaixonado por Holanda e não conseguia se perceber ou pensar na possibilidade de um fim à relação. Sentia o desgaste com meu filho e tentava lutar com as armas que dispunha.
Holanda foi surpreendido ao chegar do trabalho com todo o apartamento preparado para um jantar à luz de velas.
- Nossa! Uma fada madrinha passou por aqui. – Era a forma bem humorada de meu filho mostrar sua surpresa.
- Queria te fazer uma surpresa. – Disse Renato, sorrindo, ainda terminando de colocar uma vela no castiçal da mesa.
- E que surpresa! – Holanda estava meio sem graça. Não achava aquele um bom momento para jantares românticos com Renato.
- Você gostou? – Perguntou Renato, ansioso, olhando para todo o ambiente, na penumbra, iluminado pelas velas.
- Você é ótimo nessa coisa de decoração. – Disse, colocando a as chaves na mesa ao lado da porta e tratando de entrar. – Acho que se eu fosse preparar um momento assim ficaria mais parecido com um ambiente de oração do que com um cenário para pedido de casamento. – Holanda completou, com seu sorriso de menino.
E Renato não conteve a risada. Adorava o bom humor do companheiro. Aquilo tinha sido uma das coisas pelas quais ele havia se apaixonado em Holanda.
- Vai tomar seu banho. Eu tenho uma surpresa para você.
- Mais outra? – Holanda fez um olhar investigativo, brincalhão. – Assim você me deixa zonzo. – Completou, fingindo desmaiar, com seu sorriso maroto.
Meu filho tomou seu banho, preocupado. O que Renato estaria aprontando? O fato era que não existia clima para romantismos. E naquela noite, sentia-se cansado para fingir qualquer coisa. Decidiu ser espontâneo e não ceder a qualquer tentativa de clima amoroso.
Holanda voltou à sala, curioso e ao mesmo tempo reservado. Falou inicialmente amenidades da agência, mas logo foi tomado pela surpresa do companheiro.
- Holanda, eu fiquei sabendo há algumas semanas que o superintendente da WM de Pernambuco pediu demissão. – Partilhou, servindo meu filho. - Foi chamado para trabalhar numa outra empresa e aceitou o convite.
- Ah, eu fiquei sabendo também. – Holanda disse, propondo um brinde. – O Willames Macena está à procura de um diretor substituto, não é verdade?
- Estava.
- Já encontrou? – Perguntou, tomando um gole de vinho.
- Sim. O diretor daqui de Fortaleza.
- Sério? – Holanda ficou surpreso. – Ele não me faliu nada.
- Nós cuidamos de tudo em segredo. Eu venho tratando disso com o Willames há algum tempo.
- Sei. Mas aqui vai ficar descoberto.
- Não mesmo.
- Então já encontraram outra pessoa pra cá?
- Isso não foi difícil. Por isso eu estava engajado.
- E quem é?
- Você.
Holanda se engasgou.
- O quê?!
- Você é o novo diretor superintendente da WM de Fortaleza.
- Espera aí, Renato. Que história é essa?
- Isso mesmo que você ouviu. Eu sugeri o seu nome.
- E o Willames aceitou?
- Claro. Inicialmente ele pensava em outro nome. Mas depois de algumas conversas, acabou acatando minha sugestão.
Meu filho estava chocado.
- E então, feliz?
- Renato, eu ainda estou em choque. Comecei na WM há seis anos, e já sou diretor superintendente!
- Você tem competência.
Meu filho temia aquela promoção. Não o trabalho, mas o preço que teria de pagar para assumi-la.
- Renato, eu gosto do meu trabalho. Mas não sei se é o momento.
- Uma promoção é sempre bem-vinda. Sem falar que você é o melhor nome. Deixa de bobagem, Holanda. Isso é ótimo pra sua carreira.
- E se não fosse você?
- As pessoas sempre precisam de uma forcinha.
- No meu caso eu sempre tenho grandes empurrões. – Trazia no rosto um sorriso de certo desdém. – Queimo etapas o tempo inteiro.
- É assim que as pessoas crescem. – Reagiu Renato.
- Assim elas são esticadas. – Holanda respondeu prontamente, abrindo os braços e sorrindo. – E a força. – Completou.
- Isso é puritanismo, Holanda.
- Hum hum. – Negando com a cabeça. – Isso é vergonha na cara, Renato.
- E você aprendeu  quando? – Respondeu ele no impulso.
Holanda bem sabia do que Renato falava. Teve diversos empurrões daqueles em sua carreira dentro da WM desde o início de sua relação. Mas naquele momento sentia-se cansado, farto.
- Você tem razão. – Respondeu meu filho, jogando o guardanapo na mesa e levantando-se.
- Holanda, por favor, me desculpe. – Tratou de segurá-lo. – Eu não queria ter dito isso. Foi no impulso.
- Renato, foi só foi espontâneo. Relaxa. – Saiu em direção à sala de estar. E Renato foi atrás.
- Holanda, por favor. Eu não quis dizer isso.
- Está tudo errado.
- Tem razão. Eu fui um tolo um estúpido.
- Não, você está certíssimo! – Confirmava com toda a segurança. – Eu nunca tive vergonha na cara.
- Me desculpa, por favor. Era para ser um momento de comemoração.
- Relaxa, Renato. Está tudo tranqüilo. Pra te fala a verdade eu nunca estive tão consciente da minha vida e ao mesmo tempo tão tranqüilo como nesse exato momento. Eu acho que eu tenho perdido muito tempo me sentindo culpado e não fazendo nada pra mudar essa situação.
- Holanda, nada precisa mudar.
- Eu não vou aceitar esse cargo.
- Você não pode fazer isso. Já está tudo acertado com o Willames.
- Mas a decisão é minha. E ela já está tomada.
Com aquilo, meu filho colocava o primeiro basta na relação de troca com Renato Brandão. E sentia-se aliviado, feliz.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 63

Fiquei sabendo, através de Adriano Cordeiro, que Pedro não havia voltado para Vanessa, como eu pensava. Continuava em seu novo apartamento e visitava o filho diariamente. Felipe parecia ter piorado das crises de alergias depois de sua saída de casa. Evidente que eu não sabia se tinha tido uma piora significativa realmente ou se fora uma estratégia de sua mãe para ter a presença do ex-marido com mais freqüência. A piora de fato existira, o que Pedro só viria descobrir muito tempo depois, era que Vanessa fazia, sem que ninguém soubesse, com que o filho ingerisse comidas, as quais potencializavam as crises alérgicas. Por mais que amasse o filho, Vanessa não media esforços para garantir a presença de Pedro ao seu lado. Cuidava para que as doses de substâncias proibidas pelos médicos, ingeridas por Felipe, fossem doses pequenas, apenas o suficiente para não deixá-lo bem e fazer com que seu pai estivesse sempre por perto. Ela temia que acontecesse algo de grave com o filho e sempre rogava a Deus para protegê-lo, bem como compreendesse sua atitude. E até chegava a pensar que era talvez a forma que Deus estava lhe mostrando para conseguir seu marido de volta.
Adriano Cordeiro realmente se empenhara em ajudar em minha reaproximação de Pedro. Embora lamentasse a minha participação no plano do deputado, estava convencido de meu amor por seu amigo. E acreditava que o mesmo também me amava, apesar de lhe afirmar que seu coração pertencia ainda a Mirela. Ele conseguira então promover um encontro entre nós dois, alguns dias depois de ter conhecido a minha versão dos fatos. Pedro parecia ter mostrado certa resistência em conversar comigo, mas acabara sendo convencido pelo amigo que seria o melhor caminho, mesmo que fosse simplesmente para decidir nunca mais nos encontrarmos.

* * *

Eu estava extremamente nervosa no dia de meu reencontro com Pedro, o que me fizera chegar uma meia hora antes ao restaurante, que ficava na Rua Canuto de Aguiar, quase esquina com a Av. Virgílio Távora. Um ambiente rústico e requintado que convidava a uma intimidade.  O aguardei, numa sala de estar, do lado do estacionamento. Olhava cada pessoa que entrava, na esperança de que já fosse ele. Por duas vezes chegaram uns rapazes, que lembravam seu porte físico, alto, moreno, bem vestido, de blazer e óculos escuros, um estava acompanhado, talvez de sua namorada, o outro sozinho. Fiquei imaginando por onde começaria. Ensaiei mentalmente, por algumas vezes, o início da conversa.
“Pedro, tudo o que eu fiz foi para salvar a minha filha...”
Não, assim não poderia ser! Talvez ele logo levantasse e me deixasse falando só, se eu fosse repetir a mesma história.
“Pedro, eu sei que não tem nenhuma justificativa o que eu fiz...”
Também não! Rezei para que Deus me iluminasse a dizer as palavras certas para tocar o seu coração. Estava tão entretida com meus pensamentos que nem percebi o momento em que ele entrara. E de repente, já estava bem diante de mim.
- Demorei muito?
Tremi ao ouvir sua voz, a mesma voz que me trazia paz e me fizera tantas vezes a mulher mais feliz do mundo, ao ouvi-la. Estava ainda mais lindo. Parecia ter cortado o cabelo recentemente, com aspecto ainda mais jovem.
Ficamos Pedro e eu no ambiente ao lado, numa mesa afastada, um pouco isolados do resto do restaurante e seus demais espaços. Um lugar perfeito para uma conversa com a qual acertaríamos a nossa vida. Estava esperançosa, apesar do medo que me vinha de vez em quando. Raquel e D. Clarinda, até pareciam mais confiantes que eu, antes de sair de casa, destinada àquele encontro.
- Eu queria que você soubesse que eu estou sofrendo muito. – Falei segurando sua mão por sobre a mesa, olhando em seus olhos. Falar de meus sentimentos seria o melhor começo, segundo Adriano Cordeiro.
- Sofrendo? – Perguntou Pedro, desviando o olhar um pouco. – Como você acha que eu estou me sentindo?
- Se eu estou desse jeito, imagina você. – Respirei fundo e prossegui: - Pedro, eu estou me sentindo a mulher mais infeliz do mundo. Minha atitude foi de uma mãe desesperada, em busca de encontrar sua filha. – Ele desviou o olhar para os óculos escuros em cima da mesa. E eu continuei: - Mas eu sei que isso não justifica o que eu fiz.
- Não mesmo. – Voltando-se a mim. – O que você fez foi torpe, foi... – Procurava as palavras, com gesto de nojo. – Foi vil. Você atentou contra todos os meus sentimentos. – Fez-se um silêncio. E Pedro continuou: - Não sei nem como te tratar. É estranho não poder te chamar de Mirela, entende?
Eu olhava para a decoração rústica do restaurante em nosso entorno, como se ganhasse tempo para organizar meu pensamento.
- Sei bem do que você está falando, Pedro. Pra mim também é estranho, eu juro. É como se tudo fosse um filme. Pensei que na vida real as pessoas não fizessem o que eu fiz. Para falar a verdade, nunca pensei em um dia agir assim. Isso nunca fez parte de minha vida. Você pode acreditar.
- Eu não sei em que acreditar quando você fala.
- Eu estou sendo honesta.
- Eu não confio em você. Talvez até esteja dizendo a verdade, mas é difícil, sabe? Há poucos dias fui vítima da maior mentira que já inventaram na minha vida. – Parou um pouco e continuou: - E você a protagonizou. – Pedro levou o cabelo para trás, com as duas mãos e respirou fundo. – Hoje tem um turbilhão de sentimentos dentro de mim. Acho que estou ainda tentando organizar tudo, entende? E é também difícil estar aqui com você. É como se a minha dor fosse renovada.
Eu não contive as lágrimas.
- Passei minha vida inteira fazendo o que era correto, sabe, Pedro? Ouvir você falar assim me machuca por dentro. – Pedro me olhava, como se procurasse realmente se certificar do que era verdade em minha fala. – Você tem toda razão. O que eu fiz foi pequeno, foi nojento. Mas eu estou arrependida, muito arrependida. – Toquei em suas mãos, e ele afastou-as de mim.
- Adriano insistiu que eu viesse a esse encontro. – Era como se confirmasse sua falta de crença no que eu falava. – Diante do que a gente viveu, eu achei que devia te ouvir.
- Pedro, eu... – Pensei um pouco e tomei coragem. – Eu estou completamente apaixonada por você. – Ele desviou mais uma vez o olhar. E voltou-se. – Talvez você não compreenda, devido seu sofrimento.
- Você não sabe nada de mim. – Interrompeu-me, bruscamente. – Nada! Entende? Nada! – Seu tom era agressivo. – Você não sabe o que eu senti, o que eu estou sentindo. – Virou o rosto, tentando conter o choro. Voltou-se. – Eu perdi a pessoa que eu amava há mais de quinze anos, depois descobri que ela não havia morrido. – Parou e tomou fôlego. – Agora descubro que é tudo mentira, que ela realmente está morta. E mais, que a pessoa com quem eu fazia planos de ficar junto pelo resto de minha vida, é uma impostora. – Uma lágrima lhe escapou. E eu caí em prantos. – Você vem me falar agora de meu sofrimento, como se soubesse o tamanho de minha dor? Júlia Serrado, você não sabe nada de mim! Entendeu?
- Talvez eu não mesmo noção do que esteja se passando com você.
- Não, não tem mesmo! – Pedro interrompeu.
- Mas eu sei do que está se passando dentro de mim. Sei que estou arrependida e que eu te amo.
- Ama?
- Eu te amo, Pedro.
- Acho que agora é conveniente para você dizer isso.
- Eu sofro por tê-lo feito sofrer. Dói te ver assim. – Eu falei, fitando bem os olhos dele.
- Sabe o que me vem, ouvindo isso? – Esperei que revelasse. – Que Donato pode estar por trás dessa fala.
- Não! Eu juro que não, Pedro.
- Não jure, por favor! Você piora as coisas assim.
- Mas é verdade.
- Eu estou sofrendo muito, Júlia. Eu quero que você saiba que foi difícil vir ao seu encontro, e que eu só vim em respeito a tudo o que nós vivemos. Apesar de ter sido uma mentira. Que para mim não foi.
- A estrutura de nossa relação até podia ser uma mentira. Mas o sentimento que eu experimentei com você, Pedro, isso foi a maior verdade da minha vida.
Fez-se um silêncio.
- O fato é que não quero nenhum tipo de reaproximação com você, Júlia. – Pedro foi seco em sua afirmativa. E aquilo me cortou por dentro. – E eu queria te dizer também que apesar de não concordar com o que você fez, eu compreendo o seu desespero em querer achar a sua filha. Eu sei que realmente ela foi roubada. Mas mesmo as loucuras que nós fazemos frente a algum desespero, nos trazem conseqüências. Entenda, Júlia: Não é porque precisamos, que vamos assaltar um banco ou matar alguém. Deste modo, todos poderiam justificar seus crimes.
- Eu estava desesperada, Pedro.
- Eu sei. Mas se realmente você está sendo sincera agora, endente o que estou falando.
- Você tem toda razão. Eu só não esperava que fosse me apaixonar por você.
Pedro parecia incomodado quando eu falava de meus sentimentos a seu respeito. Desviava o olhar, mexias nos óculos em cima da mesa, fugia de minhas declarações.
- Eu havia me envolvido com uma mentira. – Disse ele, com frieza.
- Eu não! – Respondi prontamente.
- Estamos então em desvantagens. – Pedro entrou no ritmo, como em jogo de perguntas e respostas.
- O que quer dizer?
- Você vivia uma personagem, eu me apaixonei por ela. Eu, fui eu mesmo, entreguei todo o meu coração, você se apaixonou por mim. Não daria certo então. Eu não conheço você, Júlia. O que eu conheci, foi uma imagem que me lembrava o grande amor.
- Mas era eu. Você convivia comigo, Pedro, não com Mirela.
Ele hesitou um pouco.
- Você acha que eu teria me apaixonado caso fosse uma outra situação?
- Isso eu não posso responder.
- Mesmo que eu tivesse te conhecido como Júlia Serrado, ainda assim você estaria à sombra da Mirela, pela aparência física. O fato é que eu não conheço você, Júlia. Qualquer relação que fosse estabelecida entre nós hoje, nós precisaríamos de um tempo de construção. Esse tipo de coisa não acontece por decreto.
- Por que não nos dá esse tempo então?
- Por que não confio em você. Júlia, para mim você é uma estranha. Não existe nenhuma intimidade entre nós. Eu não conheço nada sobre a sua vida. Você não passa de uma pessoa desconhecida para mim.
- Isso não é verdade. Nós estivemos na intimidade do nosso coração.
- Infelizmente não dá!
CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 64

Holanda era grato a Renato e ele sabia disso, estando certo de que com mais aquela promoção dentro da agência de publicidade seguraria a difícil relação a qual experimentavam há anos. Ainda tentei convencer meu filho a não revogar sua decisão de dispensar o novo cargo oferecido pelo companheiro. E até sugeri que ele pedisse demissão da WM, assim se sentiria menos preso, diminuindo sua dependência profissional a Renato, para que não ficasse mais na obrigação de permanecer naquela relação mentirosa.
Renato Brandão, por sua vez, cercou meu filho de todos os lados, suplicando suas desculpas e procurando convencê-lo a reconsiderar a decisão. Armando um jogo completo de chantagens sentimentais e provocações de culpa em Holanda.
Eu não queria mal a Renato, pelo contrário, até considerava-os, ele e meu filho, um lindo casal. Na verdade, sentia pena por ser uma pessoa boa e se permitir a estar com alguém, sabendo de sua falta de amor, como se tivesse que comprar sua presença. Chegamos a conversar sobre este assunto, embora não fosse clara, direta em minhas colocações, para não magoá-lo ou ainda piorar a situação. Não queria também expor meu filho, colocá-lo na posição de mercenário ou interesseiro. Embora estivesse com Renato por uma questão material desde o princípio, nunca tivera a intenção de lhe fazer nenhum mal, pelo contrário, achava inicialmente que poderia dar a ele o que necessitava e vice-versa. Fora seu grande erro. Sua imaturidade, na época, fizera-o acreditar na relação como um negócio. Jamais pensava em enganá-lo ou se aproveitar de seu amor para crescer profissionalmente. Encarava tudo como uma conseqüência e era ainda consciente de sua competência enquanto profissional, mesmo sabendo que crescera rápido dentro da agência.
Meu filho acabara por ceder às provocações da vaidade e aceitara o cargo de diretor superintendente da agência, alegando que a empresa não poderia ficar sem direção, o que prejudicaria os negócios. No fundo sabia da manipulação de Renato em relação à transferência do outro diretor, mas tratavam do assunto como se não soubesse, como se assim se sentisse menos culpado, já que o convite viera do próprio Willames Macena, por telefone.
Holanda estava cada vez mais envolvido num jogo de mentiras e manipulação e sofria pela culpa de se permitir a tanto, embora não assumisse, bem como pelo fato de não poder viver uma verdadeira história de amor.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 65

Era bom estar mais perto de Holanda e vendo-o próximo ao irmão. Abria-se tanto comigo quanto com Nando, que pensava como eu, embora expusesse suas sínteses com menos veemência, sem tanta necessidade de convencê-lo do contrário. Fazia parte de sua personalidade. Nando era provido de uma certa leveza em suas colocações, menos quando se tratava de suas idéias socialistas. Parecia um paradoxo, como se quisesse convencer o mundo de que éramos escravos de um sistema, que precisávamos sair do grau de alienação ao que estávamos envolvidos, para uma revolução e o nascimento de uma novo sistema econômico.
Nando se apaixonava cada vez mais por suas idéias e provocava a mesma paixão em seus alunos de sociologia, na faculdade. A crença em Marx fazia dele um soldado na luta contra a alienação, para que então pudesse se fazer a revolução.
Aparentemente, a única pessoa que não seguia a crença de Nando e descordava de seus ideais, era a sua aluna Maria Antônia Gondim. A jovem deixava claro nas aulas, em seminários do qual participava, suas discordâncias às idéias de um dos professores mais respeitados na Sociologia da UNICE. Ela não acreditava numa revolução fora, como Nando parecia pregar, mas num movimento interno, intrínseco ao ser humano, em que ninguém daria a ninguém um atestado de liberdade à alienação, mas precisávamos promover uma vivência real das pessoas a um caminho que fosse diferente, mas construído por cada um, e não um caminho que já existia como ideal. Maria Antônia dizia acreditar no ser humano fazendo sua própria história e não escravo de um sonho de revolução, de uma utopia, que nunca iria acontecer.
Certa vez, num seminário em que estava ministrando, no auditório da Sociologia. Nando quase chegou a perder o controle com as colocações de Maria Antônia, descordando de seus pontos de vista minuto após minuto, como se quisesse de fato provocá-lo. O que já chegava a chamar a atenção de todos os alunos e professores presentes no ambiente.
- Desculpe, eu não compreendo porque tantas interrupções. - Ele já se esforçava para demonstrar gentileza frente às discordâncias constantes da jovem.
- Por eu estar tentando compreender realmente seu ponto de vista, professor. - A resposta da moça vinha carregada de ironia.
- Se procurasse realmente compreender não me atrapalharia tanto.
- Como assim? Então não podemos nos expressar? - Abria um sorriso irônico que o provocava ainda mais. - Ora, professor, se fala de sairmos de um estado de alienação, precisamos expor nossos pontos de vista. Isso é a prática de que falo, quando coloco que a alienação não é algo fora, faz uma vivência que precisa ser experimentada por cada um de nós. A partir da expressão do que pensamos.
- Não prego anarquia, estamos aqui numa aula.
- Lamento, professor, mas é o mesmo argumento de autoridade que o sistema que o senhor tanto combate, utiliza como cala-boca da população, fazendo-nos ainda mais alienados.
Nando respirou fundo, procurando manter a calma para não se expor, prosseguindo com a aula. Ao sair do auditório é cercado por alunos que tentam marcar orientação ou pedir alguma opinião sobre seus trabalhos acadêmicos. Ele, no entanto, não consegue tirar os olhos de Maria Antônia a alguns metros, que comenta o seminário com seus amigos. Na saída do saguão que antecede o auditório, ele percebe a oportunidade que queria, encontrando-a sozinha, esperando a amiga Carola, que fora provavelmente ao banheiro.
- Parece não ter gostado do seminário.
Maria Antônia voltou-se a ele assustada, por não esperar a abordagem.
- Pelo contrário, professor. O seminário foi interessante para que eu pudesse perceber como precisamos reestudar Marx.
O ar de ironia da jovem o deixava furioso, embora procurasse conter.
- Compreendo que pense de forma diferente, Maria Antônia, mas não admito desrespeitos.
- Professor, o senhor prega revolução e acha que pode dar um passaporte às pessoas de saída de um estado de alienação, no entanto, age com as mesmas armas que o próprio sistema que diz não acreditar, e pior, que diz combater.
- Não confunda as coisas, garota! - Já não conseguia mais conter sua raiva.
- O senhor se acha, não é professor?
- Olha aqui, garota, eu não admito falta de respeito!
- Não se desrespeita quando se discorda, se o senhor não sabe! – Ela também já alterava o tom. - Apenas pensamos de forma diferente, graças a Deus. Eu tenho uma opinião formada sobre as coisas, sobre o mundo e não temo expressá-la. Essa é a questão. Desculpe-me por não acreditar no mesmo que o senhor.
- De fato, não tem como ser diferente, Maria Antônia. – Ele trazia um tom de ironia. - Você vem de um núcleo que jamais admitiria as minhas idéias.
- Não me venha com esse tipo de pensamento preconceituoso, professor! – Ela se mostrava indignada com a colocação. - Eu tenho uma crença, independente do dinheiro da minha família.  – Chegava ainda mais perto de meu filho. - E diferente do que o senhor considera, eu não tenho culpa de ser filha de quem sou, pelo contrário, tenho orgulho, não pelo dinheiro, mas pelo amor.
- Falo de arrogância, garota. – Nando respondeu prontamente.
- Mesmo, professor? – Já trazia no rosto seu sorriso irônico mais uma vez. - Arrogância é achar que todas as pessoas do mundo têm de pensar igual ao senhor! Arrogância é não admitir que uma pessoa, independente de sua situação financeira, possa se interessar pelos outros, por uma causa social! Arrogância é querer fazer das pessoas ainda mais alienadas do que são com um pensamento massificado, ainda que cheio de boas intenções. E de boa intenções, o inferno está cheio, professor!
- Você nunca entenderia essa causa, garota!
- Não mesmo! Sou muito bem resolvida com minha situação financeira e social. Não carrego frustrações e não as transformo em discursos bonitos e bem arrumados para punir o mundo por uma vida que eu não tenho e desejaria ter.
- Você é bem fruto do sistema, de uma família rica, que acha que pode mudar o mundo com esmolas e depois abater no imposto de rendas.
- Escuta aqui, professor... – Ele finalmente havia conseguido desequilibrá-la. E estavam cada vez mais perto um do outro, suspirando de raiva. - ...abatendo em imposto de renda ou não, tem alguém fazendo algo em que acredita, alguém que descruza os braços diante do problema social e age conforme o que acha que é o certo. Falo de alguém que não tem culpa de ter construído um grande patrimônio, pelo contrário, só tem méritos, por fazer isso sem pisar em ninguém. Falo de alguém que realmente faz alguma coisa, que sai de dentro de uma sala e põe suas idéias em prática. Diferente do senhor, professor.
- Cada pessoa contribui como pode...
- Exatamente, professor, que bom que estamos nos entendendo.
- Por que a agressividade, garota?!
- Faça-se essa pergunta!
- De fato, é muito difícil manter um diálogo com você.
- Ao contrário do senhor, professor, não quero lhe convencer de nada. Admiro até a organização de suas idéias. Mas enquanto o senhor fica no blá-blá-blá, pessoas morrem de fome, a sociedade clama por trabalho e comida, não por idéias bem organizadas.
- Você de fato tem um discurso muito bonito, garota. Aprendeu a lição de casa. Mas é exatamente essa a estratégia do sistema, para manipular e impedir a revolução.
- Ninguém dá a revolução às pessoas. Isso deveria ser uma experiência íntima de cada um. No momento em que você quer que alguém acredite no que você acredita simplesmente porque acha o certo, está contribuindo exatamente com a alienação desta pessoa, substituindo um pensamento por outro. Mas nenhum destes pensamentos foi gerado por ela realmente. Quando o senhor compreender isso, talvez possamos conversar.
JÚLIA SERRADO
Capítulo 66

O momento no qual eu havia apostado todas as minhas fichas findava com a decisão de Pedro de não nos vermos mais definitivamente. E aquilo vinha como uma bomba explodindo em meu coração, devastando todas as minha esperanças de uma reaproximação. Não tinha mais o que ser feito, fora em vão o empenho de Adriano Cordeiro, a força de D. Clarinda de Holanda, a torcida de Raquel. Estava tudo acabado realmente. Eu havia perdido o homem da minha vida ou melhor, talvez eu nunca o tivera, já que o momento que estivemos juntos, Pedro pensava ter reencontrado o grande amor de sua vida, a minha irmã, a quem eu nem conhecia.
Fiquei pensando em tudo o que havia acontecido entre Pedro e eu, durante o percurso que ele fizera em seu carro, para me deixar na Mirage, onde eu acertaria as minhas contas. O fato era que eu não conseguia pensar especificamente em nada. Tudo me vinha e ao mesmo tempo fugia, transformando os meus pensamentos num vendaval de hipóteses e certezas, de dúvidas e convicções, sem conseguir chegar verdadeiramente a uma síntese.
Já não sabia mais se Pedro verdadeiramente me amara um dia, mesmo pensando ser minha irmã, como D. Clarinda e Adriano pensavam. Eles acreditavam que mesmo que Pedro achasse que estava envolvido com Mirela, era comigo que ele tinha reencontrado a felicidade. Embora eu estivesse vivendo uma personagem, era eu, com minha energia, que despertara a sua paixão. Contudo, eu já não pensava mais assim, tendo sido ele categórico em afirmar o seu não reconhecimento a mim.
Em meio a todos aqueles pensamentos confusos, eu ainda conseguia fitar a sua mão passando a marcha do carro, lembrando do quanto eu a desejava acariciando o meu rosto mais uma vez. Eu havia feito de tudo para me segurar e não tomar mais seu tempo. Mas acabei por ter uma crise de choro ao pararmos o carro, na Praça Portugal, em frente à boate. Senti um grande vazio tomar conta de mim. Estava perdendo tudo, todas as pessoas a quem amava. Clara, Joel, Charles, o meu trabalho e o homem por quem eu havia me apaixonado, depois de tantos anos sem abrir meu coração. E como eu o admirava. Mesmo diante de tudo, ele ainda se mostrava preocupado. Tirou o cinto de segurança rapidamente, ao me ver aos prantos, procurando me acolher num abraço.
- Calma, Júlia, calma!
Sua voz estava terna e ao mesmo tempo passava um pouco de surpresa. Acariciou-me a cabeça por alguns segundos, tentando me tranqüilizar, o que para mim, pareceu uma eternidade. Como era bom estar em seu colo, sentir seu calor, seu cheiro, sua energia de cuidado e afeto. Por mais que afirmasse não me conhecer e não reconhecer em mim nenhuma intimidade, transmitia naquele instante um zelo de alguém que carregava consigo um sentimento profundo de proteção, algo que não se tem por qualquer pessoa, como dizia que eu era, mas por alguém especial sim.
Deixei-me então levar por meus instintos e o tomei num beijo inesperado. Não me movia por nenhum objetivo de conseguir dissuadi-lo de sua decisão, mas pelo desejo profundo de senti-lo meu mais uma vez, mesmo que por um instante. Um beijo que parecia não acabar nunca, no qual fui correspondida, depois, claro, do susto inicial. Por alguns segundos, senti novamente tranqüilidade em meu coração. Aquele beijo, o seu calor, o seu hálito me revigoravam, davam-me forças para continuar. Fui mais uma vez, ainda que por menos de um minuto, a mulher mais feliz do mundo. Como alguém poderia ser tão importante a ponto de transformar, numa fração de segundos, o nosso estado de vida, fazendo-nos felizes ou infelizes? E feliz eu estava, até que ele interrompeu aquele momento. Pediu-me desculpas, embaraçado, afirmando ter que ir embora, voltar para a empresa. Desci do carro e o vi partir.
Pude perceber que Pedro não estava tão indiferente a mim, como dizia estar. Beijou-me com todo o desejo e com a mesma vontade que eu carregava comigo. Talvez Adriano e D. Clarinda tivessem razão e tudo fosse uma questão de tempo, para que nós pudéssemos ter uma segunda chance. E aquilo me deu novo ânimo.

MARINA PESSOA
Capítulo 67

Voltei para casa somente no final da tarde, depois de fazer as pazes com minha irmã. A própria Vanessa foi me levou. Preferi que ela não subisse comigo, por não saber como encontraria meu marido. Era melhor evitar qualquer transtorno envolvendo minha irmã, a quem eu tinha acabado de reencontrar. Donato estava no escritório, com roupas de casa, parecia não ter ido trabalhar depois de chegar de Brasília.  Fui então direto ao seu encontro. Desejava acabar logo com tudo e era melhor aproveitar enquanto estava com coragem.
- Boa tarde.
Ele me olhou como se quisesse me fuzilar. Luísa, que estava com ele voltou-se a mim, com um olhar de espanto.
- Luísa, por favor, nos dê licença. Meu marido e eu precisamos conversar.
Acho que ela estava mais espantada com meu ar de superioridade do que mesmo com o que eu tinha feito em Brasília. Donato não dera uma só palavra até sua saída.
- E então, Donato, como você está?
Creio nunca ter falado com meu marido, nos seis anos em que estávamos casados, daquele modo, de igual para igual. Era como se a reaproximação de minha família tivesse me proporcionado um novo vigor, ou a mesma energia com a qual Donato havia me conhecido.
- Marina, você some de Brasília sem deixar nenhum recado, volta a Fortaleza sem que eu soubesse, passa o dia inteiro fora de casa, chega e pergunta como “eu” estou?!
- Donato, eu estava com a minha irmã, na casa dela.
- Imaginei.
- Ótimo. Então vai me poupar muitas explicações.
- Como poupar? Definitivamente você não está bem, minha querida.
- Pelo contrário, Donato. Nunca estive tão bem em toda a minha vida. Eu estou muito feliz. Consegui o perdão de minha irmã, me reaproximei de meu sobrinho. Não poderia estar melhor.
Ele levanta e começa a se aproximar de mim.
- Eu não estou reconhecendo a minha mulher!
- Talvez não. Eu estava dormindo todos esses anos e agora acordei.
Ele já trazia no rosto seu falso sorriso, expressando seu ódio de forma dissociada.
- Marina, você não acha que isso vai ficar assim, acha?
- Eu estou farta, Donato! Farta!
Afastei-me um pouco, como uma forma de proteção.
- Farta de mim?
- Não. De mim, dessa forma de convivência, da sua ausência, dos seus ciúmes, dos meus ciúmes em relação à Luísa, da saudade que sentia de minha família. Enfim, de tudo aquilo que sempre me trouxe infelicidade. Eu estou farta de viver deprimida, desse apartamento, dessa prisão!
Já não conseguia conter meu choro, caminhando pelo escritório, enquanto ele me ouvia ali parado, diante da mesa, com um olhar interrogativo e ao mesmo tempo decidido.
- Definitivamente, você não está bem, minha querida.
- Pára de me chamar de “minha querida”, que eu sei que nesse momento não é o que você está sentindo!
Começava a me alterar. Donato se aproximou de mim, tentando tocar em meu rosto, como se o que eu estava dizendo não fizesse sentido algum. O que me deixou ainda mais irritada, fazendo-me gritar.
- Não me toca assim!
Afastei-me mais uma vez, a fim de evitar aquela situação que fazia de mim uma louca. Como uma mulher, que é tratada sempre com tanta gentileza, pode agir com tanta agressividade? Eu sabia bem a resposta. Estava realmente cansada de me sentir daquela forma, sabendo que cuidado não era um sentimento de Donato, não naqueles momentos. Seu toque soava falsidade. Aquela situação me deixara em prantos.
- Sei que não é o que você está com vontade de fazer!
- Você não está bem, minha querida...
- Eu estou ótima! Ótima! Não está vendo?
Sorria e chorava ao mesmo tempo, como se ao certo não soubesse qual sentimento se manifestava dentro de mim. Mas eu queria que ele soubesse o quanto eu estava feliz com a minha escolha.
- Você vai ter que aceitar, Donato! Eu finalmente fiz as pazes com Vanessa. Eu vou reconstruir a minha relação com a minha irmã.
- A Vanessa não quer o nosso bem, minha querida. Nunca quis.
- Mentira! Ela foi egoísta, é verdade. Mas agora já passou, Donato. Nós podemos ser todos amigos. Não há mais necessidade de vivermos afastados, você não vê? Ela não exige mais que nós nos separemos.
- Isso é o que ela diz agora, minha querida.
Donato voltou a se aproximar, abraçando-me por trás.
- Você é muito ingênua, Marina. A Vanessa é uma mulher madura, ela sabe muito bem o que está fazendo. Primeiro se faz de amiga, depois acaba com nosso casamento.
- Você está enganado, Donato.
- Ela prometeu que um dia destruiria a nossa união.
- Isso foi há muito tempo. Você sempre acha que todas as pessoas sempre têm algo por trás, não é? Mas isso é você. É você que pensa dessa maneira.
- A vida me ensinou assim, minha querida.
- A vida não é uma mentira. Você é uma mentira, Donato!
Tomei um tapa.
Fui então surpreendida com aquela pancada a qual me levou a cair na poltrona. Uma situação que pareceu demorar minutos. Na verdade, eu nem acreditava no que tinha acontecido. Por alguns instantes parecia estar zonza e minha cabeça latejando. Finalmente, eu não mais reconhecia o homem que estava ali diante de mim. Um estranho que fizera o que ninguém nunca antes havia feito. A beleza de nosso relacionamento se fora junto com aquele tapa.
Ficamos afogados por um silêncio gigantesco durante alguns minutos. Eu não conseguia definir qual sentimento se presentificava naquele instante, era um misto de dor, raiva, decepção, mágoa e lamentação. O sonho tinha finalmente acabado. Consegui num tempo recorde fitar detalhes de quase todas as peças e enfeites das prateleiras à minha frente, enquanto Donato, cabisbaixo, de braços cruzados, fitava os prédios que se projetavam pela janela e o mar um pouco mais à direita. Estávamos totalmente perdidos em nossas dúvidas sobre o que aconteceria dali em diante e como procederia nossa relação. O que tinha acontecido era um fato, não podíamos fingir que não era real.

MARINA PESSOA
Capítulo 68

O tapa que levei de Donato doeu em minha alma!
As lágrimas rolavam por meu rosto incontrolavelmente, por mais que eu tentasse conter qualquer som, como que para não dar a ele o direito de me ver sofrer. Nada mais aquele homem, a quem eu estranhava naquele instante, teria meu, nada! Nem mesmo meu sofrimento ele seria testemunha, não merecia.
Finalmente nosso silêncio foi quebrado por meu marido.
- Olhe, Marina, eu não queria... não podia...
Procurava palavras que amenizassem a situação, a dor que me causara, no entanto, palavra alguma teria esse poder naquele momento. Era melhor realmente que silenciasse, embora não fosse seu feitio.
- ...eu sei que... você deve estar sofrendo.
Eu não conseguia pronunciar uma palavra sequer, por mais que desejasse vomitar toda a minha indignação, a minha dor. Alguma coisa me fazia calar, substituindo as palavras pelo choro.
- Eu não suporto lhe ver assim, minha querida.
E então se aproximou de mim, tentando tocar-me a cabeça. Impulsivamente, levantei-me da poltrona que parecia conter minha vontade de gritar, de libertar a mim mesma do medo e da submissão aos quais eu havia me entregado nos últimos cinco anos.
- O que significa isso, Marina?
Respondi apenas com minha saída do escritório, do cenário que abrigou o fim da fantasia a que eu havia me submetido durante tanto tempo. Nós não podíamos voltar atrás, eu precisava sair enquanto meu sangue estava quente, por mais que me doesse. E quanto me doía. Passara os últimos seis anos de minha vida apostando num casamento que, para mim, sempre fora as correntes que me afastavam da felicidade, embora amasse Donato Pessoa mais que tudo, mais até que a mim mesma. Talvez tenha sido justamente esse o meu maior erro. Quanto mais eu havia me afastado do que eu realmente gostava e queria, a fim de agradar e responder as expectativas do meu marido, mais eu me aproximava de minha infelicidade, do eterno vazio em que a minha vida havia se transformado.
Corri em direção ao armário, tomando nas mãos uma das malas do canto. Joguei-a na cama, dando início ao fim de meu casamento, ao pegar peças de roupas e lançá-las ali, dentro daquela mala, que representava o passaporte para a vida real. Assustei-me ao ver a figura de Donato, parado na porta do quarto, assistindo de braços cruzados meu destempero. Reprovava e se enojava, aparentemente, com minha atitude. Mas para mim, pouco importava. Pela primeira vez na vida, eu, Marina Pessoa, estava sendo corajosa. A minha certeza era de que não permaneceria naquela casa, depois do que havia acontecido. Continuei pegando minhas roupas e jogando dentro da mala, em movimentos violentos, como se agredisse a mim mesma por ter me permitido a tanto, durante todo aquele tempo. Percebi quando ele deixou que seu sarcasmo fosse revelado por seu sorriso, como testemunhara tantas vezes, durante todos os anos em que estivemos juntos. E aquilo me irritou ainda mais. Estava cheia também daquele sorriso que tanto me amedrontara nos anos de nosso casamento.
- O que pensa que está fazendo, minha querida?
Odiei aquela pergunta.
- Está errada a sua frase.
Finalmente conseguia balbuciar alguma coisa.
- Como?
- A sua frase... – E então gritei - ...está errada!
- Não estou entendendo...
Ria ainda mais e aquilo me deixava cada vez mais furiosa, mesmo que não conseguisse colocar para fora tudo o que estava se passando em meu coração.
- Está errada a sua frase, Donato Pessoa. Não é “minha querida” que você deve falar nesse momento. Eu estou farta disso...!
- Mas do quê, Marina?
Sentia ainda mais raiva de mim por não conseguir dizer o que realmente me incomodava, o que havia interferido em nossa relação desde o princípio. Não suportava mais a farsa dos sentimentos, vê-lo dizendo ou fazendo algo que realmente não estava sentindo. Testemunhar milhares de vezes aquele sorriso macabro que tirava-me o chão.
A única coisa que eu precisa fazer naquele instante era pegar minhas coisas e sair dali, deixar para trás tudo o que não fosse verdade, tudo o que eu não pudesse verdadeiramente confiar.
- Está bem, Marina... Você não me deixa outra alternativa...
Deixou-me no quarto como se fizesse a coisa mais normal do mundo, registrando, claro, seu velho sorriso. Continuei a pegar as minhas coisas e, somente então, me dei conta do que estava acontecendo. Corri para a porta do quarto, procurando abri-la. Mal podia acreditar no que estava acontecendo. Pareciam que meus pesadelos estavam se tornando realidade. Fui tomada pelo mesmo sentimento de desespero experimentado por mim em meus sonhos, ao tentar abrir portas ou portões e deparar-me com grandes e intransponíveis, trancas. Encontrava-me presa em meu próprio quarto.
- Donato!
Duvidava do que estava acontecendo ao mesmo tempo que sentia um frio em meu estômago, sabendo que não se tratava de mais um pesadelo. O que me fazia tentar abrir a fechadura.
- Donato, por favor! Abre essa porta! Donato! Donato!
Batia na porta desesperadamente e meu marido estava do outro lado da porta, no corredor, cabisbaixo, escorado na parede, fitando a chave em suas mãos. Estava um pouco arrependido do que tinha feito, mas certo de sua atitude naquele momento, para segurar nosso casamento. Balançava a cabeça negativamente, como se reprovasse a si mesmo e ao mesmo tempo a mim, por tentar abandoná-lo em sua zona de controle. Fora tomado por um choro incontrolável que o fizera descer ao chão e finalmente se desprover de sua postura inabalável e autoritária. Nem sabia ao certo há quantos anos não experimentava tal sentimento. Donato Pessoa chorava todas as mazelas que lhe acompanhavam e faziam de sua vida algo sem sentido, uma eterna busca da superação. Um choro que era a expressão de um passado negado, abolido de sua vida, o qual eu ainda não conhecia.
“Donato, por favor! Abre essa porta! Donato! Donato, por favor! Donato!”
O choro compulsivo de Donato, que se prorrogara por horas naquele corredor, fazia-o não ouvir os meus pedidos, as minhas súplicas para que me tirasse dali e me permitisse sair daquele pesadelo, impedindo-me de experimentar acordada o mesmo desespero que me acompanhava em meus sonhos. Tratava-se de uma angústia profunda que chegava a dificultar minha respiração, fazendo-me acreditar no princípio de minha morte. Um pensamento enlouquecedor, gerado pelo medo, proporcionando-me ainda mais medo e terror. E então me veio à lembrança do menino, de bata branca, que poderia aparecer ali a qualquer momento, a fim de me aterrorizar ainda mais. Continuei insistindo em abrir a porta por horas, clamando por Donato, num choro desesperador. Chegava a ouvi-lo do outro lado chorando, o que me deixava ainda mais perturbada. Não sabia se era real ou se de fato estava presa em um de meus pesadelos. Certamente era ele sim, mas não podia, nunca tinha-o visto chorar, por nada, nunca!
Lembro-me que permaneci ali, tentando abrir a porta, incansavelmente, durante horas, até adormecer e fugir um pouco de tudo aquilo, livrar-me, em meu sono, daquele pesadelo.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 69

Recebi um telefonema de Olívia Cordeiro pedindo para eu ir encontrá-la na boate. Parecia coisa séria. Um encontro que me trouxe uma grande surpresa.
- Júlia, eu te chamei aqui porque o Renato e eu repensamos o caso de sua demissão. – Dizia Olívia, tomando uma xícara de chá, do outro lado de sua mesa, no escritório da Mirage. – Nós queremos saber se você ainda está disposta a continuar conosco.
Eu não acreditava no que ouvia.
- Mas... o que aconteceu para vocês mudarem de idéia?
- Bem... – Ela sorriu. – Como disse, conversei com Renato. – Pôs a xícara no pires. – Ele não concorda em perdermos uma profissional como você por questões pessoais. – Ajeitou as mangas de sua blusa. – Apesar de considerarmos sua atitude em relação ao Pedro Lucena, uma atitude grave. E que poderia atitudes parecidas serem tomadas aqui dentro por você.
- Olívia, eu juro...
- Não precisa mais se explicar, Júlia. – Ela me interrompeu. – Eu já sei de tudo. O fato é que resolvemos lhe dar mais um voto de confiança.
- Ah, Olívia, eu fico tão feliz.
- Isso é um sim? – Ela sorria.
- Claro. Claro que sim. - Tomei as mãos dela, em agradecimento. – Eu estou muito feliz, Olívia.
- Ótimo. Também fico feliz que continue conosco. – Soltou minhas mãos e prosseguiu: - Renato e eu acreditamos em seu trabalho, Júlia. Por mais que você e Charles tivessem uma relação de amizade, ele jamais indicaria o seu nome a substituí-lo se realmente não estivesse certo de sua competência. Você já está na Mirage há quase dois anos e provou ser capaz de assumir a equipe de bailarinos e a direção dos espetáculos.
Lembrei de Vanessa.
- Olívia você sabe que a Vanessa não vai gostar nada de saber de sua decisão.
- Certamente. Será uma questão delicada, por nossa aproximação. Mas este negócio é uma sociedade. Portanto, a decisão não é só minha.
Então se dependesse somente de Olívia, ela não teria repensando minha demissão?
- Compreendo. – Disse, com um tom de decepção.
- Júlia, não pense que se não fosse por Renato você estaria demitida. – Sorrindo. – Isto é apenas uma desculpa, por uma questão de conveniência. Conheço Vanessa há muitos anos, você sabe. Não quero me indispor com ela.
Olívia parecia ter adivinhado meus pensamentos. E aquela afirmativa me aliviou.
- Obrigada, Olívia. – Agradeci, pegando minha bolsa.
- Ah, mais uma coisa. Eu também conversei com D. Clarinda.
- Sobre essa história?
- Sim. Me desculpe, mas eu precisava saber onde pisava.
- Tudo bem. Eu confio muito nela.
- E ela em você.
Levantei e mais uma vez agradeci, preparando-me para sair.
- Bem, Olívia, agora quero voltar ao trabalho. Temos muito o que fazer.
- Júlia, D. Clarinda é uma pessoa muito importante para mim. E ela me fez enxergar essa história de uma forma diferente.
- Que bom, Olívia.
- Você tem uma grande amiga.
Agradeci a Deus pela presença de D. Clarinda em minha vida. Agia como um anjo da guarda. Liguei para ela logo depois, agradecendo. 
Eu estava de volta ao meu trabalho.
Entrei na Mirage com o espírito de despedida e fui convidada por Olívia a reassumindo a direção artística da casa.

CELINA GONDIM
Capítulo 70

Era difícil aceitar, para meu sobrinho, a possibilidade de sentir-se atraído por um homem e ainda mais pelo seu melhor amigo, namorado de uma amiga, com quem estava junto permanentemente. Seria uma traição dupla, para consigo mesmo e com Calora. Ainda mais com o nível de proximidade que tinham.
Justamente no momento em que experimentara o conflito de se ver atraído por um homem e seu melhor amigo, é surpreendido por Carola com uma indagação.
- João Henrique, você acha que esse meu relacionamento com Alexandre tem realmente futuro?
Ficara completamente desconsertado com aquela pergunta, não sabia se por ser algo inesperado ou por ela estar percebendo algo entre eles. Percebendo? Não! Impossível. Como? Até porque era algo unilateral, Alexandre jamais imaginara o que se passara dentro de João Henrique, do que ele havia sentido ao vê-lo sem roupa no banheiro. Talvez se soubesse, o abominaria. Carola não podia estar desconfiada, ou então percebera os olhares, pois eles sim eram comprometedores, somente de meu sobrinho para seu namorado, claro.
Com certa dificuldade, João Henrique indagara:
- Do que você está falando? Por que me perguntou isso?
Temia a resposta da amiga. Via-se exposto, mesmo sem saber o real motivo que a fizera dizer aquilo. Se fosse o que estava pensando, estava perdido.
- Como do que estou falando, João Henrique? Você melhor que ninguém tem acompanhado nossa história, as brigas, os desentendimentos. O Alexandre realmente é muito diferente de mim. Durante esse último ano tem me chegado mais perguntas que respostas, mais dúvidas que certezas sobre o nosso namoro.
João Henrique estava totalmente aliviado. Por alguns segundos pensara que todo o seu segredo pudesse ter sido descoberto. Agradecera a Deus por não ser o que esperava. E até sorriu, para o espanto da amiga.
- Por que está sorrindo?
- Não, nada. Lembrei aqui de outra coisa.
- João Henrique, eu estou muito incomodada com o que eu venho sentindo em relação a essa história. Eu gosto dele, mas...
- E com certeza o Alexandre também gosta muito de você.
Era como se quisesse garantir de alguma forma que Carola nunca chegasse desconfiar de nada.
- Caraca! Ele sempre me fala que te ama, boba.
- Não é disso que eu estou falando, João. Eu sei que o Alexandre me ama. O problema é o jeito dele, a forma que ele tem de levar a vida, suas irresponsabilidades. Esse é o nosso problema.
Estranhava vê-la falar daquela forma do que João Henrique na verdade venerava, embora não pudesse explicitar. Mas era exatamente aquele jeito desprovido de responsabilidades de Alexandre que o fascinava e alimentava sua grande amizade por ele. Afinal, Alexandre era tudo o que ele nunca seria. 
- Realmente eu não te entendo, Carola. Caramba, o Alexandre, um cara super bacana, irreverente, de bem com a vida, se dá bem com todo mundo e todo mundo gosta dele. Às vezes ele exagera, vá lá, mas é um cara dez.
- Hoje, pra mim, ele está sempre exagerando, sabe, João Henrique? Essa dos estudos, por exemplo, o que ele pensa que vai fazer da vida dele?
João Henrique sabia que em parte Carola tinha suas razões, mas não achava motivo suficiente para questionar o relacionamento. Partindo do pressuposto que todos nós temos defeitos e qualidades, por que valorizar exatamente os defeitos de alguém e não as qualidades? Principalmente em se tratando de Alexandre, um cara tão gente fina, e que além de tudo, era completamente apaixonado por ela.
O romance de Carola e Alexandre vinha sendo temperado freqüentemente por discussões acerca do tempo ocioso do rapaz, bem como pelas desconfianças da jovem de que ele a traía com outras garotas, o que de fato acontecia permanentemente. E embora João Henrique não compactuasse com as atitudes do amigo, sabia de todos os detalhes, ficando numa situação conflituosa. De um lado seu melhor amigo, a quem admirava profundamente e desejava estar perto o tempo inteiro. Do outro, uma grande e leal amiga, com quem estava construindo uma relação de verdade e cumplicidade.
Sempre que João Henrique era procurado por Carola a fim de desabafar e conseguir conselhos sobre o direcionamento do namoro falido, sentia-se atormentado pelo desejo de deixá-la ciente das aventuras amorosas de Alexandre. Entretanto, não poderia trair o primeiro amigo que tivera depois da infância. Passara toda a vida sentindo falta de uma presença masculina em seu cotidiano, começando pela ausência do pai. Nunca tivera muitos amigos, quando criança, sendo apontado pelos colegas de colégio como “mulherzinha”, por seu jeito sensível e retraído, o que o fizera se isolar um pouco do convívio social. Talvez fosse exatamente isso o que mais admirava em Alexandre, sua disponibilidade de se fazer amigo, sem se importar com que os outros dissessem. 
Maria Antônia era esperta e conhecia bem o irmão, logo se dando conta de sua angústia. Embora não soubesse do que se tratava, tudo fizera para lhe ajudar, insistindo para que se abrisse. Contudo, se João Henrique compartilhasse as suas dúvidas, estaria colocando a irmã na mesma situação conflituosa em que se encontrava. Além do que, ela jamais guardaria aquele segredo. Odiava injustiças e não permitiria que sua melhor amiga fosse enganada, sendo ela cúmplice de tal situação.
O que restava a João Henrique era somente tentar abrir os olhos de Alexandre, aconselhando-o a se envolver mais em sua relação com Carola, bem como abandonar sua postura de sedutor e galinha. Sabia, no entanto, que era exatamente isso o que Carola mais detestava em seu namorado, e que o fazia uma pessoa irresistível para ele.
“Fica frio, meu. A Carola é a mulher da minha vida. Mas o que eu posso fazer se eu preciso de outras gatinhas pra ser feliz? Deixa disso, brother, não te preocupa. Tudo está sob controle, ela nunca vai descobrir.”
A naturalidade com que Alexandre falava daquilo deixava João Henrique surpreso e, de certa forma, até o tranqüilizava, além de deixá-lo ainda mais encantado, não por vê-lo trair a mulher que dizia amar, mas por sua serenidade na forma de levar a vida e seus problemas. Parecia nunca se preocupar com nada, sem necessariamente negar os fatos, mas encarando tudo com muita simplicidade e leveza.
Até o fato de também ter sido criado sem pai, fazia de Alexandre uma pessoa a quem meu sobrinho desejava se espelhar. Apesar de não falar muito sobre o assunto, chegara certa vez a comentar com ele o desejo de conhecer o “coroa”, como chamava os mais velhos sem, no entanto, dar nenhum peso à história.
O que João Henrique queria na verdade era descobrir uma forma de conviver com Alexandre, aproveitando toda a sua amizade e aprendendo a descobrir uma forma livre de interagir com o mundo, bem como de ser fiel a Carola, sem a sensação de não corresponder à confiança a qual ela lhe depositara.

Embora eu percebesse a angústia que havia se instalado na mente de meu sobrinho, nada podia fazer. Como Maria Antônia, limitava-me a me fazer presente, sempre que possível, de modo a não invadi-lo, embora a minha vontade fosse de saber ao certo o que lhe afligia, para tentar, de algum modo, ajudá-lo.

CELINA GONDIM
Capítulo 71

O relacionamento secreto de minha enfermeira Dulce com o motorista Djair vinha pegando fogo. Ela estava decidida a assumir a relação dentro de nossa casa, embora o rapaz insistisse em manter o romance em segredo. Vinham, deste modo, tendo inúmeros desentendimentos.
Eu bem sabia porque Djair não queria assumir o namoro. Ainda que ele alegasse o medo por Maria Eugênia descobrir o fato e demiti-lo do emprego, temia na verdade a reação de Lorena, com quem mantinha outro romance.
A grande verdade era que Djair não amava nenhuma das duas, como afirmava veementemente, mas a condição de sedutor, de um homem disputado por duas mulheres. A tensão de sair do quarto de uma à noite e entrar no quarto da outra, valia a pena, por se sentir desejado. Muitas vezes, encontrava-se quase perdido, em situações embaraçosas.
Certa noite, Djair passara o maior aperto na companhia de Dulce, que insistia para que ficasse a noite inteira em seu quarto, chegando a trancar a porta e esconder a chave, numa distração do rapaz. Ele havia, no entanto, se comprometido com Lorena a estar em seu quarto, logo depois que ela acabasse uma reunião com Maria Eugênia, no escritório. Começara então a contar cada minuto, ao se aproximar do horário marcado com a outra e Dulce não se dispunha a deixá-lo sair. Estaria perdido, se Lorena se atentasse da desfeita e fosse lhe procurar em seu quarto, dando por sua falta. Como explicaria? Que história lhe contaria para acalmá-la, sabendo de seu gênio difícil?
A única alternativa que Djair encontrou para se safar da difícil situação fora fingir pânico de ambientes fechados. Dissera a Dulce que segurara o quanto pudera, mas que não era mais possível fingir e precisava revelar sua fraqueza, seu pânico de lugares em que não podia sair. Bastava a sensação de saber que não poderia sair, para entrar em crise, segundo ele. Somente então, conseguira sua liberdade provisória e se fazer presente em seu compromisso com Lorena, apenas com alguns minutos de atraso, no exato momento em que ela estava saindo do quarto, à sua procura, e já furiosa. Lorena era geniosa e não admitia ser contrariada, gostava de exercitar seu poder nas relações de par, como uma forma de sentir maior que uma simples secretária ou governanta.
Achei absurda e ridícula aquela história, quando Dulce me contara. E o mais estúpido, era que ela mesma não acreditava em Djair, mas insistia na relação. Chegava a ser contraditório: ela tão fogosa, senhora de si, orgulhosa por ter sempre o controle de todas as relações que vivera, se submetendo a um idílio clandestino, como se fosse a outra, sem mesmo saber que de fato era.
Na verdade, Dulce parecia confusa. O que chegava a ser cômico. Misturava uma história com a outra, sem dar a mim, ou a qualquer pessoa a quem estivesse contando, a noção de início, meio e fim. Ao mesmo tempo que expunha suas dúvidas e suposições mirabolantes acerca da postura incerta de Djair, como ele não estaria verdadeiramente envolvido e querendo algo sério ou  que seu real pânico fosse de casamento, por alguma grande traição já sofrida, falava de sua crença no homem como sendo um ser incapaz de viver uma história verdadeiramente inteira com alguém, por se tratar de um animal que carrega no sangue o impulso da mentira e da traição, citando o jardineiro Zeca como exemplo de tal teoria. Segundo ela, o mesmo teria fitado-lhe os seios, ao se abaixar para pegar umas sacolas que deixara cair. Questionando então os sentimentos dele pela tal noiva, com quem se correspondia há anos. E se gostava realmente da moça, por que não se casara?

JÚLIA SERRADO
Capítulo 72

Exatamente como eu esperava, poucos dias depois de meu retorno à Mirage, Olívia foi procurada por Vanessa. Cheguei a me encontrar com a megera na boate, logo após a apresentação de meu número. A casa estava cheia e quase passávamos desapercebidas uma pela outra, se não fosse por eu ter esbarrado nela e tê-la feito derrubar sua bolsa.
- Pensei que você já estivesse bem longe da minha vida. - Suas palavras pareciam temperadas com veneno, como se quisesse ali fazer-me desaparecer de sua frente. Sua beleza chegava a desaparecer diante do ódio que carregava consigo permanentemente. Procurei não revidar, até para não causar ainda mais transtornos a Olívia e Renato. – Até Olívia sendo enganada por você! – Mostrava-se decepcionada com a amiga, por manter-me trabalhando na boate, mesmo sabendo de tudo o que eu havia feito, para destruir, segundo ela, sua união com Pedro.
- Desculpe, Vanessa, eu preciso ir. – Respondi, saindo.
- Só um momento. – Segurou-me pelo braço. Eu olhei para sua mão em mim, mas preferi não enfrentar, evitando escândalos. Ela mesma me soltou. – Você está achando que vai ficar assim?
- Eu não estou achando nada.
- Pois não vai. Alguma coisa me diz que tem muito podre por trás dessa história. E eu vou descobrir.
- Tudo bem. Descubra então todos os podres e depois a gente conversa.
- Você pensa realmente que vai continuar enganando a todos, Júlia Serrado?
- Olha, eu estou cansada e não tenho mais tempo a perder com você.
- O Pedro não vai ficar com você.
- Ah, é mesmo? Eu não tenho nada a ver com seu casamento.
- Você é mesmo muito cara de pau!
- Vanessa, quando eu conheci o Pedro, vocês já estavam separados.
- Nós não estávamos separados. – O tom de Vanessa era mais agressivo. – Nós só tínhamos dado um tempo.
- Tempo? Pois não era o que ele pensava.
- Escuta aqui. Quem você pensa que é? O que você sabe do meu marido? – Ela já estava quase aos berros.
- Do seu marido nada. Mas do Pedro, talvez eu saiba muito mais do que você poderia imaginar saber em todos os anos que vocês estiveram juntos.
- Eu não sei onde eu estou que não acabo com você, sua desclassificada!
- Algum problema? – Perguntou Olívia, chegando para dar um basta àquela situação. Só então Vanessa se recompôs.
- Não. – Respondeu Vanessa prontamente. – Nenhum. A não ser esta mulher continuar trabalhando aqui.
- Vanessa, nós já conversamos sobre isso. – Disse Olívia calmamente.
- Definitivamente eu não entendo, Olívia. Esta mulher é uma ordinária.
Olívia fez um gesto para mim, para que procurasse me conter.
- Vanessa, por favor. – Insistiu Olívia.
- Está tudo bem agora. Não se preocupe, que não vou fazer nenhum escândalo em sua boate. Apesar de ser um ambiente propício, pelo tipo de gente que trabalha aqui.
Saí, deixando as duas.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 73

Era claro o incômodo entre meu filho Nando e a aluna Maria Antônia, e ia ficando cada vez mais acirrado dentro da sala de aula, nos corredores, em cada encontro.
Nando não conseguia tirá-la de seu pensamento e até se questionava algumas vezes sobre suas idéias. Mas sempre chegava à mesma conclusão, considerando-a esnobe e manipuladora, uma patricinha tentando chamar a atenção por sua inteligência, a mesma postura que ela afirmava ser a de Nando, acrescida de uma pitada de frustração pela situação social de nossa família.
Claro, eu não considerava normal a relação agressiva e de rivalidade estabelecida entre Nando e Maria Antônia Gondim, cheguei a questioná-lo se não estava interessado nessa moça, obtendo, contudo, uma reação de indignação.
- Que idéia, mãezinha! Ela não passa de uma criança mimada que acha que pode ter o mundo aos seus pés e fazer com que todos pensem conforme a sua família. Eu jamais me submeteria a uma situação dessas. Olha a minha idade e a dela... Não passa de uma menina tentando superar o professor. E eu não vou compactuar com esse joguinho manipulador e infantil. Eu tenho mais o que fazer!
A própria Maria Antônia fora também questionada várias vezes pela tia, pelo irmão e até pela amiga Carola. Como eu, ninguém considerava normal a relação estabelecida entre os dois. Ela tivera também a mesma reação de Nando, desconsiderando totalmente qualquer possibilidade de um envolvimento afetivo, com alguém tão arrogante e de mente tão fechada, como o tinha em conta.
Eu me preocupava com meu filho. Nem com Olívia eu o sentira tão envolvido, embora transparecendo incômodo. Para falar a verdade, nunca o tinha visto tão mexido por nenhuma mulher.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 74

Como eu gostava de ter meus filhos perto. Até Ronie pôde voltar a freqüentar nossa casa. Certa manhã estávamos todos nós reunidos na cozinha, rindo, lembrando de acontecimentos do passado, como uma vez que Francisco (Holanda), tinha subido na caixa d´água  e passado a tarde inteira escondido, deixando-me enfurecida por ter quebrado meu jarro preferido numa brincadeira com Nando. 
Eu procurava até não tocar no assunto do trabalho com Ronie, para que não se chateasse e deixasse de aproveitar aquele momento, que há tanto tempo não experimentávamos. Sabia, contudo, a natureza do que vinha fazendo na tal boate onde estava trabalhando. Me doía o coração imaginar que vivia de vender o próprio corpo, como uma prostituta. Sim, Ronie era um garoto de programa, não era diferente por ser homem, embora eu tentasse o ver de outra maneira, creio que para amenizar minha dor e minha preocupação.  Além de saber de seu envolvimento com gente da pior espécie.
Júlia, minha vizinha, acabara por reconhecer Ronie como um dos integrantes da quadrilha responsável pelo roubo e venda de sua filha. Fora então quando fiquei sabendo do perigo que Guel Serrado, namorado de minha sobrinha Tony, representava. Estava vendo minha família envolvida com um homem que era capaz de tudo para conseguir seus objetivos, pois até preso ele já havia sido, por tráfico de drogas, embora Holanda afirmasse que não, que havia sido por porte e consumo apenas. Mas isso era o que ele dizia a meus filhos e a Tony. Realmente não sabia ao certo se o próprio Ronie já não estava envolvido também com drogas, visto que eu já tinha a confirmação por parte de Júlia de que Guel era usuário até então.
Meu coração apertava quando pensava em minha família misturada com gente da pior espécie.
Implorei à Júlia que não envolvesse meu filho com a polícia, mas o que ela queria era apenas saber detalhes do plano de roubo da filha, provas que verdadeiramente incriminassem o cunhado e a levassem ao paradeiro da criança.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 75

 Ingenuamente achei que Tony pudesse me ajudar a encontrar alguma pista com Guel Serrado sobre o paradeiro da filha de minha vizinha Júlia, visto ser sua atual namorada. Mas percebi que não queria se envolver, nem criar problemas com o namorado. Ela estava, na verdade, mais preocupada com seu plano para aproximá-lo de Olívia Cordeiro e aplicar-lhe um golpe.
Nem percebi que Tony evitava então se aproximar de nossa casa, mesmo com a ausência de Alceu, pela presença de Júlia na rua, na casa da frente. Não queria que a visse, e que soubesse de nosso parentesco. Inclusive pediu para que eu não lhe mostrasse nenhuma foto. Elas se conheciam da boate, por Tony ser naquele momento uma das dançarinas da equipe de Júlia. Alegava querer subir pelo próprio mérito, o mesmo discurso em relação à Olívia. Mas coração de mãe não se engana e eu a tinha como uma filha. Contudo eu não poderia dificultar ainda mais nossa relação, que nunca fora uma das melhores. Então, optava por atender a seus pedidos e silenciar.
Júlia era, no entanto, um obstáculo para os planos de Tony e Guel. Precisam, deste modo, tirá-la de seu caminho. Lembrando de uma conversa que havia escutado, na Mirage, há algum tempo, entre Júlia e Charles, o antigo diretor artístico da boate, de quem a mesma era amiga, minha sobrinha sabia que poderia acabar com a presença da inimiga de Guel dentro de seu ambiente de trabalho, revelando à Olívia os detalhes do envolvimento de Júlia com o deputado Donato Pessoa e seu plano de sedução à Pedro Lucena, para conseguir o tal dossiê contra seu parceiro.
O plano contra Júlia estava então arquitetado. Guel passara um tempo rondando o apartamento de Pedro Lucena, bem como o de Vanessa, a fim de descobrir algo que pudesse levá-los a uma idéia de como desmascararia a sua rival. Criara então uma situação, onde pedira informações de um endereço imaginário a Carminha, a empregada de Vanessa Lucena, que também prestava serviço a Pedro, com o intuito de se aproximar da moça, para conseguir o que queriam. Os encontros entre os dois aconteciam frequentemente, sempre que esta saía de casa para resolver algo na rua. Guel usara todo o seu charme para seduzi-la, aproveitando-se de sua ingenuidade e carência afetiva.
Em pouquíssimo tempo, Carminha estava completamente apaixonada, acreditando ter encontrado seu príncipe encantado. Guel aproveitava-se de seu charme e beleza, encarnando ainda o papel do homem perfeito, cuidadoso e apaixonado, o que deixaria qualquer mulher enlouquecida.
Depois de descobrir a existência de fotos de Júlia e Donato Pessoa, em negociações, e ainda uma fita com a gravação dos dois planejando como seduziria Pedro e também roubaria seu projeto de programação para entregá-lo ao parceiro e garantir sua eleição ao cargo de vice-presidente da RTN, no apartamento de Pedro, Guel dera sua cartada final. Convenceu Carminha de que era um detetive contrato por Vanessa, a fim de conseguir as tais provas de volta, para que as mesmas não caíssem em mãos erradas e acabassem por prejudicar seu chefe.
Na altura do campeonato, Carminha já acreditava em tudo o que Guel lhe dizia, mesmo as coisas mais absurdas, acabando por entregar a ele o que tanto queria.  
O pacote contendo as provas contra Júlia fora deixado na mesa de Olívia, para que descobrisse a verdade e assim a mandasse embora. Fora um golpe de mestre. Pelo pouco que conheciam de Olívia, Guel e Tony sabiam que jamais admitiria a presença de Júlia na Mirage, depois de participar de um plano tão sórdido contra um grande amigo como Pedro Lucena. Exatamente o que aconteceu. O caminho estava livre para que ele pudesse se aproximar de sua vítima e dar continuidade ao plano.
O que eu sempre achei curioso em tudo aquilo, era Tony não se importar de ver sua paixão envolvido com outras mulheres o tempo inteiro. A sedução de Guel, era, na verdade, a arma mais forte da dupla para atingirem seus objetivos. Embora uma vez ou outra, ela também precisasse entrar em ação e levar alguém para a cama, como fazia o parceiro constantemente.

JÚLIA SERRADO
Capítulo 76

Fiquei perplexa por descobrir não ter sido Vanessa quem entregou as provas contra mim a Olívia. Ela mesma chegou a me confirmar outro dia na boate. Quem poderia ter tirado aquele envelope do apartamento de Pedro e o deixado na mesa de minha chefe? Ou melhor, quem teria livre acesso ao apartamento dele e ao mesmo tempo à sala de Olívia, fora a própria Vanessa? Realmente Raquel tinha razão, era muito estranho. Alguém além de Vanessa estava interessada em minha ruína. Só poderia ser Donato Pessoa. Ele sim era capaz e tinha como fazer aquilo, no momento que quisesse. Afinal, usava dos meios mais sórdidos para conseguir o que queria. Mas o que exatamente ele ganharia em me ver fora da Mirage? Talvez por vingança? Não sabia responder, era mesmo estranho!
A dúvida se fora o deputado quem fizera com que Olívia recebesse as provas contra mim, me fizera procurá-lo para tomar satisfações. Estava determinada a resolver aquela história de uma vez por todas e exigir que me deixasse em paz. Fui até a RTN, onde Luísa, sua fiel secretária, tentara me impedir de vê-lo. Cheguei a ameaçá-la de fazer um escândalo ali mesmo se não permitisse a minha entrada em sua sala, quando fui surpreendida pelo próprio acompanhado de Pedro saindo juntos do escritório. O inesperado me fez realmente perder meu foco. Senti-me totalmente embaraçada, perdida com aquele encontro. Não esperava encontra logo Pedro ali diante de mim. Mas é claro que seria possível, afinal ele era o vice-presidente da empresa, poderia estar em qualquer lugar do prédio, até mesmo na sala de Donato Pessoa, como estava. Pedro tinha ido resolver questões pertinentes ao departamento comercial da RTN, que era de responsabilidade de seu antigo amigo.
Mesmo nervosa, agitada e perdida de meu foco, tentei explicar o que me levava a estar ali, mas as palavras pareciam se confundir e eu não conseguia organizar meu pensamento. E foi a reação de Pedro que me deixou ainda mais desesperada.
- Não se preocupem. Já estava mesmo de saída. Vocês podem ter a reunião de vocês, que não vou atrapalhar.
- Pedro nós não tínhamos reunião nenhuma.
- Júlia, não precisa se explicar.
Aquilo já começava a me deixar perturbada.
- Pedro, não é o que você está pensando.
- Me desculpem, mas eu tenho muito trabalho. – Disse Donato, com sorriso irônico. – Vamos, Júlia. Está atrasada.
Desejei matá-lo.
- Atrasada? Que história é essa? – Tentei saber.
- Bom, eu já vou. Não quero mais interrompê-los. – Colocou Pedro, passando a mão pelo cabelo.
- Pedro, eu preciso falar com você. – Insisti.
- Donato está lhe esperando. – Respondeu, com olhar interrogativo.
- Ele não estava me esperando.
- Como não? – Insistiu o canalha. – Você me ligou há pouco, marcando nossa reunião.
O que Donato poderia ganhar com aquela mentira?
- Pedro, ele está mentindo.
- Júlia, não vejo motivo para esta cena. – Explicou Pedro. – Você já está aqui, vinha falar com o Donato. Mudou de idéia?
- Mas eu não vinha para o que você está pensando.
- E o que eu estou pensando?
- Júlia, entre, eu tenho outro compromisso. – Sugeriu Donato, sorrindo.
- Entre, Júlia. – Repetiu Pedro.
- Ele está mentindo, Pedro. Você não percebe?
Aquilo me indignava.
- Perceber o quê?
- Eu não tinha reunião nenhuma com esse homem.
- O que você está fazendo aqui então? – Colocou Donato.
- Eu queria apenas tirar uma história a limpo.
- Júlia, me desculpe, mas eu não tenho tempo para esse tipo de coisa.
Pedro saiu, fazendo-me segui-lo.
- Pedro, por favor. Me escuta.
- Júlia, nós estamos em um ambiente de trabalho. – Apertando o botão do elevador. – Aqui não é local, nem hora para, para essas cenas.
- Mas ele está mentindo.Esse homem não presta.
- Ah, não? – Só então perdeu a paciência. – E o pacto que vocês fizeram para me enganar, para me roubar? Realmente ele não presta, Júlia.
- Você tem razão. – Entrando no elevador. – Mas agora eu não vinha a nenhuma reunião com ele. Eu não tenho mais nenhum pacto com Donato Pessoa.
- Não é o que parece.
- Você está sendo injusto.
- Que bonito! Vocês armam contra mim, e eu sou injusto.
- Eu não vou embora enquanto você não me ouvir.
- É o que eu estou fazendo desde a sala de Donato. Mas até agora, não ouvi nada que me fizesse mudar de idéia a seu respeito.
Tive vontade de desistir. Mas estava bem ali diante de Pedro, em um espaço de dois metros quadrados, sentindo o cheiro de seu perfume, e até seu hálito, quando falava mais perto.
- Eu quero apenas uma chance para te provar que eu te amo e que estou arrependida por tudo o que fiz.
- Ponha-se no meu lugar, Júlia. Não é apenas o fato de você ter mentido, mas de ter fingido ser a Mirela. Descobrir a verdade foi sofrer duas vezes. Por saber que ela está morta e de você ser uma impostora. Compreende?
Sim. Entendia bem o que ele ma falava. E me doía reconhecer aquilo.
- Pedro, eu sei que foi tudo horrível. Mas eu te amo.
- É muito confuso.
- Para mim não. Hoje eu tenho certeza do que eu sinto, do que eu quero.
- Eu necessito de um tempo para digerir essa história.
Guiei-me pelo meu impulso e o beijei. Podia sentir as batidas de seu coração, a vontade de responder àquele beijo. Depois de certa resistência, entregou-se totalmente. Os espelhos daquele elevador testemunharam o a força que nos motivava, o desejo, nossa excitação.
- Não, Júlia... – Tentava ainda resistir. Mas era como se pedisse para continuar. E eu o atendia prontamente. Como era bom senti-lo inteiro, beijando a mim e não a Mirela. – Não, Júlia! – Afastou-se bruscamente, apertando os botões que o livrariam daquela situação.
- Pedro, por favor.
- Chega, Júlia. Chega! – Limpando o batom de sua boca. – Vai embora, por favor. É impossível.
- Como impossível? E esse beijo?
- Não significa nada.
- Nada?
- Quer dizer... significa.
- O quê?
- Você é muito parecida com a Mirela.
- Mentira! - Eu sabia que ele não pensava nela naquele momento. – Você está mentindo.
- De mentiras você entende muito bem. – Já estava fora do elevador. – Me esquece, Júlia. Não dá.
- Eu te amo, Pedro.
- Mas eu não. – Respirou fundo e continuou: - Eu não acredito em você, Júlia. Quer saber? Para mim, até essa sua tentativa de reaproximação pode ser um plano.
- Como assim um plano?
- Pode ter sido por isso que você veio se encontrar com Donato.
- O quê? – Absurdo aquilo! – Eu não acredito.
- E por que não? Depois do que você fez isso seria bobagem.
Tentava controlar meu choro.
- Você sentiu isso no nosso beijo?
Ele não podia dizer que sim. Passei todo o meu amor naquele beijo.
- A única coisa que eu sei, Júlia, é que eu não acredito em nada do que você me diz. Isso é um fato. E você precisa aceitar.
- Aceitar?
- Sim. Me deixar em paz.
- Em paz? - Procurei conter o choro. – Pode deixar.
Pedro ficara pensando que Donato e eu continuávamos com algum tipo de negócio ou acordo. E não aceitara qualquer tipo de explicação de minha parte. O que me deixara ainda pior. E mais uma vez as minhas esperanças iam para o buraco. Mas eu não poderia imaginar, nem ao menos supor a sua reação me encontrando ali, à procura de Donato Pessoa. Compreendia sua desconfiança, talvez em seu lugar pensasse o mesmo. Ainda assim, senti raiva. E por fim, indignação! Parecia até que tudo o que eu fizesse ou dissesse poderia ser usado contra mim. Certo que meu passado me condenava, mas daí eu não ter direito nem mesmo de me explicar... Era absurda aquela situação. Sentia-me como se estivesse de pés e mãos atadas, sem nada poder fazer para defender a mim mesma. Foi então quando eu decidi parar de tentar.
Pedro sempre dizia acreditar no que o ser humano tinha de melhor, e que todas as pessoas poderiam mudar. Então, porque não poderia me dar uma segunda chance e deixava pelo menos eu tentar me explicar? Era injusto comigo e incoerente da parte dele, já que tanto falava de coerência e retidão na vivência dos valores e crenças pessoais. Então existiriam exceções nesta postura de vida? Se existiam, podiam se assemelhar às concessões pessoais, que tanto abominava e desconsiderava no ser humano.
Certo que eu estava julgando e classificando a atitude de Pedro, mas não poderia ser diferente, era meu instinto de auto-proteção. Por mais que eu soubesse de minha culpa e responsabilidade naquela postura dele em relação a mim, não suportava vê-lo me acusar, sem o direito de defesa, de expor meu sentimento e minhas razões, por piores que tivessem sido elas. Eu não era uma pessoa má, apenas tinha agido com fraqueza , mas necessitava de uma chance de me redimir e reparar meu erro.

MARINA PESSOA
Capítulo 77

Foram semanas confinada àquelas paredes, presa por Donato em meu próprio quarto, de tal modo que cheguei a gravar em minha memória detalhes de cada canto do espaço. Donato tratara de mandar cortar a linha telefônica, reduzir meu contato à sua presença diária, ao chegar da RTN e antes de sair para o trabalho, bem como a de D. Deise, que me vinha deixar água, café da manhã, almoço, jantar e dois lanches, um pela manhã e outro à tarde. Tentei por diversas vezes que ela me deixasse sair, mas sempre me pedia desculpas e se ausentava. Por fim, parei de tentar e implorar para que conversasse algo comigo. Estava há muito tempo sem nada falar e aquilo estava me matando. Recusava-me a trocar qualquer palavra que fosse com Donato, como se quisesse puni-lo de alguma forma ou não dar-lhe o direito de me ouvir. Enquanto não voltasse atrás e terminasse com aquela loucura, não se aproximaria de mim. Quanto a isto, estava decidida.
Donato tentava estabelecer um diálogo a todo instante, comentando questões da RTN, de suas reuniões políticas. Mas nada, nada fazia-me mudar de idéia e lhe conceder qualquer palavra.  Lembrava-me diante de suas inúmeras tentativas de conversa, o quanto eu já havia desejado que tivesse aquela postura, de compartilhar sua vida para comigo. E, justamente quando estava tendo a oportunidade de desfrutar, não me permitia. Pensava no quanto a vida era contraditória e, em muitos momentos, chegava a quase desistir e voltar a falar com ele. Mas não podia compactuar com tal absurdo. Afinal, eu não era sua propriedade, para decidir a esse ponto o que fazer de minha vida, com quem falar e, até o que pensar. E ele precisava se dar conta disso.
Nem podia imaginar como ficara minha irmã. Donato lhe dissera, assim como para o restante das pessoas, que por mim perguntavam, que eu havia adoecido e, depois, que tinha decidido fazer uma viagem, a fim de me recuperar. Vanessa, inicialmente, não se dera por satisfeita e tentara de todas as formas descobrir o que realmente havia acontecido, até saber através de empregados de nosso prédio, que eu nunca havia saído, depois do dia em que estivemos juntas. O que a fez procurar por meu marido, ameaçando-o denunciá-lo à polícia, caso eu não aparecesse.  Contudo, tratava-se de um homem astucioso, então falou-me o que estava acontecendo, propondo-me elaborar uma carta através da qual eu explicaria para Vanessa um suposto arrependimento por tê-la procurado e reatado nossa relação, alegando ter pensado melhor e chegado à conclusão que ela não seria uma boa influência para meu casamento. Era exatamente a sua concepção que meu marido me exigira colocar na tal carta, pedindo para que minha irmã nos deixasse em paz.
Depois de muito pensar, percebi que Donato não devia estar em sua sã consciência para tomar atitudes tão extremas justamente comigo, sua esposa, a mulher pela qual insistia afirmar seu amor. Talvez até necessitasse de ajuda e cabia a mim, ajudá-lo. Não sabia ao certo o que pensar. Poderia ser uma forma de eu tentar amenizar a culpa de meu marido. Julgando absurda a sua atitude, preferia acreditar num desequilíbrio emocional de sua parte a considerá-lo capaz de me fazer realmente sofrer premeditadamente.
Com o coração partido, movida por um choro doloroso, optei por fazer o jogo de Donato e elaborar a carta para minha irmã, na qual exigia que se afastasse de nós e esquecesse de nossa reconciliação.  Doía lembrar da saudade profunda que senti de Vanessa e Felipe nos últimos anos e do quanto fora difícil a reaproximação, para abrir mão, através de um pedaço de papel levando consigo uma afirmativa mentirosa sobre meus sentimentos.
O que eu queria na verdade era ganhar tempo e a confiança de Donato, para que reconsiderasse e me deixasse sair daquele cativeiro em que havia transformado nosso quarto. Depois pensaria no que fazer e como proceder.

MARINA PESSOA
Capítulo 78

Certa manhã, logo após a saída de meu marido, no momento em que D. Deise fora me deixar o café da manhã, atentei para uma possibilidade de me ver longe daquele lugar. Por um segundo pensei no quanto havia sido burra em não ter chegado àquela conclusão. Esperei que ela fosse deixar a bandeja com a comida até a mesa, que ficava do outro lado de nossa grande suíte, sendo necessário atravessar todo o ambiente. Era apenas o tempo que eu precisava para fugir. Fitei a porta, no momento exato em que nossa empregada dera-me as costas, correndo em direção à minha liberdade. O tempo que nossa empregada levou para se dar conta do que estava acontecendo e correr para tentar me impedir, fora o suficiente para que eu me visse fora do ambiente, a ponto de trancá-la lá dentro.
O próximo passo era sair do apartamento, sem que ninguém percebesse. Ao chegar no corredor, já bem próximo à sala, podia ouvir a conversa de Donato e Luísa, que tomavam café da manhã.
- Você não vai poder mantê-la presa por mais tempo. Essa carta serviu apenas para que nós ganhássemos tempo. Mas logo, logo todos darão pela falta dela e aí nós teremos que pensar em alguma outra coisa.
- Eu não pretendo deixar a minha mulher presa pelo resto da vida, Luísa.
- Você acha que vai continuar tudo da mesma forma quando ela sair?
- Eu preciso apenas reaver o controle. A carta já é a prova de que está aos poucos retornando.
- Se eu fosse você não estaria tão certo.
- Eu sei bem o que estou fazendo. E você sabe muito bem que não gosto de intromissões. Esse assunto está encerrado.
Donato jogou o guardanapo na mesa, levantando-se. Vestiu o paletó que estava na grade da cadeira. E logo se atenta ao relógio.
- Nós estamos atrasados. Eu tenho uma reunião logo cedo com Pedro Lucena sobre as cotas publicitárias do tal programa que ele está querendo lançar nas tardes de sábado.
- Ok, então vamos. Tenho apenas que pegar minha bolsa no quarto.
Mais uma vez Luísa atrapalhando a minha vida, mesmo sem saber. Embora eu já tivesse saído do corredor que dava para os quartos e passado para a porta da cozinha, ela poderia se dar conta que D. Deise estava trancada em meu lugar, no meu quarto. Bastava que esta fizesse algum barulho, o mínimo possível, e tudo estaria descoberto. Tratei então de me apressar e procurar sair do apartamento pelos fundos. Assustei-me ao me deparar com Flávio, o motorista, sentado à mesa da cozinha, tomando café. Pensei por um segundo que estava perdida e minha tentativa de me ver livre daquele lugar fracassada.
De modo algum poderia entregar os pontos assim tão fácil. Faltava pouco para estar longe dali. Corri, sem que Flávio tivesse chance de entender o que estava acontecendo. Já das escadas, descendo o mais rápido que podia, ainda deu para ouvir os gritos de Donato, ordenando para que me impedissem de sair. No segundo ou terceiro andar depois da cobertura onde morávamos, peguei o elevador, o qual estava aberto, como se esperasse por mim.
Apertava minhas próprias mãos uma na outra, como se aquilo me deixasse menos nervosa, apreensiva. Temia que Donato me surpreendesse quando aquele elevador abrisse a borta. Mas Deus também não poderia estar compactuando com o despautério de meu marido. Se ele tinha permitido que eu saísse de onde achava que seria impossível sair, precisava continuar comigo, até que eu estivesse a salvo, bem longe dali.
A cada andar pensava para onde eu iria. O apartamento de Vanessa era óbvio demais. Certamente seria o primeiro lugar onde Donato procuraria por mim. Mas pelo menos lá teria o apoio de minha irmã e até de Pedro, embora não morasse mais com ela.
O elevador parou dois andares antes de chegar ao térreo. Não poderia ser! Rezei ansiosamente para que não fosse meu marido, ao abrir a porta. Meu coração estava acelerado, minha respiração ainda mais ofegante.
Era apenas uma moça, cheia de livros e puxando uma mala.
- Bom Dia.
Nem consegui responder-lhe o cumprimento, de tão nervosa estava.
Só então percebi minha aparência, olhando pelo espelho. Totalmente assanhada, com o rosto transtornado, vestindo apenas uma camisola. Com certeza, tinha chamado muita a atenção daquela moça, por mais discreta que ela fosse, minha aparência estava horrível.
Logo que abriu a porta do elevador, no andar térreo, tratei de correr para a saída, avistando o mar, depois de driblar o porteiro que tentara me segurar.
- D. Marina, seu marido pediu...
Nem lhe dei tempo que agisse, o empurrei, saindo definitivamente do prédio. Donato estava logo atrás de mim, vinha descendo no outro elevador, acompanhado de Luísa.
Tentando atravessar a Av. Beira-Mar, logo após sair do prédio, vi, numa questão de segundos, uma moto se aproximar de mim velozmente. Nem dera tempo de gritar. Seria o ponto final de uma história de angústia e sofrimento. A única imagem que me viera à cabeça naquele instante fora a de Vanessa cedendo ao meu abraço, depois de anos afastadas. Estava pronta!

                  CELINA GONDIM
Capítulo 79

Em meio ao romance secreto com Djair, que secreto mesmo era apenas para Lorena, Dulce vivia às voltas com Zeca, procurando saber sobre sua história com a moça das cartas, com a qual se correspondia, bem como pondo em dúvida permanente a fidelidade masculina.
- Fiel você, Zeca? Não sei não, viu? Nenhum homem é fiel, ou até pode ser, até aparecer algum rabo de saia, mesmo que em seus pensamentos.  
Dulce era dotada de um jeito sarcástico e provocante, equilibrado por um bom humor contagiante, que a fazia engraçada e ao mesmo tempo deixava os homens meio embaraçados, fora de seu controle. No caso de Zeca, parecia ser ela que experimentava uma certa dose de incômodo e estranheza, como se ele fosse inatingível e por mais que provocasse, com suas teorias feministas, não conseguia desequilibrá-lo. Zeca mantinha-se firme e tranqüilo em sua concepção sobre ela, que era uma mulher com um pensamento machista enrustido, a espera de ser arrebatada por uma grande paixão que a fizesse submissa.
A teoria de Zeca sobre a real condição de Dulce a deixava furiosa, num pé e noutro, exigindo explicações e aprofundamentos, exemplos de como a via daquela forma, ou melhor, do que o fazia a enxergar como uma “mulherzinha”, como ela classificava pejorativamente a maioria das mulheres que se submetiam à sociedade machista. 
E Zeca ainda complementava sua teoria acerca de Dulce, afirmando que o relacionamento clandestino o qual mantinha com Djair comprovava as suas suposições de que era uma mulher à espera e temerosa de um grande e verdadeiro amor, por isso insistia em manter uma história não inteira com alguém.
O pensamento de Zeca provocava não apenas uma inquietação, mas chegava quase a enlouquecer minha enfermeira, de modo a tentar convencê-lo de que estava errado, visto que se não assumia seu romance com Djair, não era mais por escolha sua, embora não pensasse, em hipótese alguma, na possibilidade de revelar a postura negativa de seu namorado a um namoro tradicional. De maneira nenhuma daria esse gostinho àquele arrogante do Zeca, como passara a o tratar depois de ele ter exposto sua conclusões a seu respeito.
Só restava à Dulce tentar dissuadir o namorado da idéia de permanecerem com seu relacionamento em segredo. Passara então a exigir dele uma anunciação oficial do namoro dentro da mansão. Chegara inclusive a pedir minha ajuda junto a Maria Antônia e papai, para que tentássemos facilitar a aceitação de Maria Eugênia no que dizia respeito ao assunto dentro de nossa casa.
Dulce estava convencida que logo provaria a Zeca de seu equívoco sobre ela, subindo com Djair ao altar. Embora Mena e eu achássemos um absurdo a decisão tomada por ela, estava certa do que queria. E o que queria realmente não era viver com Djair, mas provar para Zeca de que estava errado e que não passava de um frustrado por não viver uma relação verdadeira com alguém. Para Dulce, as correspondências do jardineiro com sua suposta namorada, não passavam de uma fantasia. Pelo menos queria acreditar naquilo.
Mas o que Dulce não esperava era a grande resistência firmada pelo namorado à idéia de assumirem de uma vez por todas o romance. A nova estratégia do malandro fora uma história de que sua mãe era extremamente possessiva e com a idéia fixa de que teria ainda de entrar para um seminário e servir a Deus. Estava muito doente e jamais aceitaria aquele namoro, segundo ele. E que assim, precisaria de um tempo para contar-lhe a verdade e apresentar Dulce como sua futura esposa.
Eu me perguntava se realmente minha enfermeira acreditava nas histórias de seu namorado, e chegava até a questioná-la sobre isto, expondo meu conceito acerca do mesmo, que para mim não passava de um grande malandro, tentando se dar bem. Procurava abrir-lhe os olhos, pedindo-lhe para ficar atenta aos passos de Djair. Não me sentia no direito de lhe revelar o verdadeiro motivo de ele não querer assumi-la como namorada dentro de nossa casa. Nunca fora de meu feitio, dedurar, nem muito menos me meter a tal ponto na vida de alguém, mesmo sendo de alguém tão querida para mim, como era minha enfermeira.
O mais irônico era que Dulce se achava toda esperta e dona da situação, não conseguindo perceber a traição do namorado, bem diante de seus olhos, e logo com Lorena, sua grande rival, que também nem imaginava a traição do amante.
Para a secretária de minha irmã, o caso era diferente. Ela não queria de maneira alguma expor sua intimidade com um simples motorista, achava-se superior, e seu romance com Djair não passava realmente de uma cama ardente. Imaginava, inclusive, que ainda arranjaria um marido bem sucedido. Seu relacionamento com ele era à base de autoritarismo e submissão. Lorena vivia com Djair todas as suas fantasias de ser uma mulher poderosa, pisando em seus subalternos. Já para ele, como confessava à Mena, tratava-se apenas de mais um estilo de relação, considerando-se um homem versátil. Na verdade, para Djair as duas não passavam de mais uma conquista, não importava a forma da relação, mas mantê-las.
No fundo, aquele triângulo amoroso trazia-me um pouco de ocupação dentro da imensidão de nossa casa.


CELINA GONDIM
Capítulo 80

Em muitos momentos, quando estava na piscina com Dulce, Mena, papai ou meus sobrinhos, fitava o nosso gigantesco jardim e pensava em tantas coisas que eu não podia mais desfrutar. Um pouco acima do canto esquerdo do muro que protegia a mansão, tínhamos a visão de uma parte do mar da Praia do Futuro. A brisa que mexia com meus cabelos, sem que eu pudesse evitar, lembrava-me de minha condição de aleijada, de um ser inútil entrevado naquela cadeira de rodas.
A alegria de meus sobrinhos e seus amigos, quando estava com eles, fazia-me sentir um pouco feliz e quase que simultaneamente entristecida. Ao mesmo tempo em que me sentia convidada a sorrir com a energia revigoradora da juventude, chorava por dentro a falta que Vinícius me fazia, bem como a impossibilidade de me locomover, sem depender de alguém, ou ainda de realizar movimentos simples com meus braços. O castigo fora realmente severo, trazendo consigo a ausência de quase todos os meus movimentos, do pescoço para baixo, além de interferir em minha aparência, repuxando um pouco os nervos de minha face e até dificultando a minha fala.
Pensava no quanto deveria ser difícil para a minha família conviver com uma figura bizarra como eu, tratando-a como se nada demais houvesse, para que não se sentisse ainda pior. E pior eu me sentia! Preferia que não fosse daquele maneira. Por mim, eu teria me isolado na casa de praia de nossa família, em Canoa Quebrada, a fim de não ser um estorvo na vida de ninguém. Afinal o castigo era meu, não das pessoas a quem eu amava.
Contudo, minha família não desistia de tentar transformar meu mundo em algo produtivo, de trazerem de volta à vida a escritora Celina Gondim. A tentativa final de papai e Pedro Lucena para me convencerem a aceitar integrar a equipe de redatores da série acerca de portadores de necessidades especiais, fora trazer a visita do diretor do projeto e da atriz que encarnaria o papel de uma mulher que cegara depois de ter sido vítima de um erro em uma cirurgia ocular e não aceitava a sua nova condição. Seria um dos papeis principais da história idealizada por Pedro. 
Inicialmente, tentei resistir à idéia de receber aqueles profissionais que viveriam na ficção o drama experimentado por mim, e, de certo, por muitas pessoas na vida real. Eles reabririam a ferida e isso eu não poderia permitir, já bastava de sofrimento.  Papai e Pedro apostavam, no entanto, em meu altruísmo, força forte que sempre me conduzira na vida, apesar dos caminhos tortuosos pelos quais eu havia me permitido passar.
A grande missão de um artista é revelar ao mundo o universo o qual experimenta isoladamente, para que as pessoas possam viajar no desconhecido, provando das maravilhas que a vida nos possibilita. Esta missão encontra-se no sangue de cada pessoa que se aventura em desenhar um novo mundo para si e para os outros, correndo fortemente em minhas veias e fazendo-me questionar mais uma vez a minha decisão de tentar bloquear em mim um canal que pulsava e gritava por expressão.
Pedro era inteligente e sabia bem o que fazia, como tocaria em meu ponto fraco. Acabando finalmente por me convencer, não ainda a integrar a equipe de autores, mas a servir de inspiração para uma das personagens centrais do projeto.
Aceitei então o desafio!

JÚLIA SERRADO
Capítulo 81

Graças a Deus eu tinha o apoio incondicional de minha cunhada, sempre disposta a me ouvir e me aconselhar, bem como de D. Clarinda, que nos últimos meses, estava sendo uma mãe em presença, embora ela já tivesse as suas preocupações pessoais com seus filhos e seu marido.
A única coisa que tirava Raquel realmente do prumo era a sua relação com Djair, que uma vez ou outra aparecia, cansado de suas viagens, segundo ele, e sem nenhuma ajuda financeira a ela e aos filhos. No fundo, era uma situação que a incomodava, por estar totalmente na minha dependência. Antes, ainda cuidava de Clara, o que, de alguma forma, justificava, a seu ver, a sua estadia em minha casa, sem colaborar financeiramente com nada. Cheguei a flagrá-la por diversas vezes chorando às escondidas, rogando a Deus que lhe desse um emprego ou fizesse Djair conseguir algo melhor, para tirá-la de minhas costas.
Na verdade, a companhia de Raquel me fazia muito bem, como se fosse uma irmã, sempre presente, cuidadosa, zelando por meu bem estar e minha felicidade. Às vezes eu brincava dizendo que sua comida justificava todo e qualquer esforço que eu fizesse para mantê-la comigo. E claro que ela cozinhava maravilhosamente bem. Contava com muito orgulho ter aprendido com sua mãe. Nós ríamos quando eu lamentava a minha dificuldade para manter a forma, chegando em casa e me deparando com os pratos deliciosos que ela preparara para me receber do trabalho. Principalmente quando fazia seu espaguete ao gorgonzola e atum, fazendo-me sempre repetir o prato.
Raquel e eu tínhamos uma ótima relação e verdadeiramente eu não mais me imaginava morando sem sua presença permanente e cuidadosa. O que me fazia respeitar seu sentimento por Djair e suportar sua presença desagradável, procurando, incessantemente, mostrar-se gentil e cavalheiro, mas de forma artificial, como que para galantear, chegando a se tornar vulgar e uma presença extremamente chata.
Que Raquel não soubesse, mas eu dava graças a Deus no dia que Djair ia embora, voltando às suas viagens, que lhe renderiam incansáveis histórias de que fora vítima de algum cliente esperto ou colega de quarto de hotel canalha que tentara lhe passar a perna e, muitas na maioria das vezes, segundo ele, conseguia. O que para mim, nada mais era que desculpas pouco inteligentes, para justificar sua falta de colaboração no sustento de Zezinho e Rafael.
Em alguns momentos, motivada pelas histórias ridículas contadas por Djair que o vitimavam, justificando a falta de dinheiro e os longos períodos de semanas que passava sem aparecer, eu chegava a questionar, de forma irônica, o desenrolar das mesmas. O que o deixava sempre embaraçado, gaguejando, procurando de alguma forma encontrar uma saída, uma justificativa para as incoerências ou falta de nexo das histórias. Sendo salva frequentemente por Raquel, que percebia minha atitude, bem como o embaraço do marido, se enrolando cada vez mais nas explicações infundadas e, com certeza, mentirosas, que o livrava dos constrangimentos por mim proporcionados chamando a atenção para algum fato da vida dos meninos.
Realmente eu não sabia se verdadeiramente Raquel acreditava nas histórias do marido ou o amava ao ponto de passar por cima das coisas mais absurdas para protegê-lo e garantir que ele voltaria, que não os abandonaria. O que me deixava furiosa. Estava certa de que Djair era uma grande canalha e se aproveitava da permissividade da mulher para viver sua vida dupla. Eu não sabia ao certo o que ele escondia, mas certamente não sabíamos muito sobre a sua vida.  
Tentei por diversas vezes conversar sobre as minhas desconfianças de Djair com Raquel, mas sentia que não havia espaço para isso. Ela fazia questão de me responder qualquer indagação que eu fizesse falando de sua certeza do quanto era um homem bom, generoso e a amava, embora fosse ingênuo. Procurava então relevar, para que nós não nos desentendêssemos e puséssemos em risco a nossa boa relação. Definitivamente, Djair chegava a ser um assunto proibido entre nós, já que ela também procurava não mencioná-lo na minha frente, para que eu não encontrasse uma forma de expressar minha percepção sobre a vida misteriosa de seu marido. O que eu respeitava, em consideração a sua lealdade a mim.
E não apenas leal, Raquel chegava a ser passional em me defender. Bastava me ver sofrer para transformar qualquer pessoa em vilão, ou situação em motivo de sua indignação. Embora tivesse sido contra o que eu havia feito com Pedro, achava também um absurdo sua falta de compreensão e perdão a meu respeito. Ficara quase furiosa quando soubera de sua reação ao me encontrar no escritório à procura de Donato Pessoa, para tomar satisfações.
“Isso também tem limites, Júlia, já chega! Esse Pedro já não é mais nenhuma criança. Quem ele pensa que é para ficar querendo te punir?”
Não sei ao certo se Raquel tinha razão e Pedro queria realmente me punir, mas o fato é que era exatamente assim que eu estava me sentindo, pagando por tê-lo enganado. Só não sabia discernir “punição” de “conseqüência” naquele momento. Por mais que doesse, chegava a ser difícil de me colocar em seu lugar e imaginar que reação eu teria se tivesse sido eu a enganada. Talvez nunca mais quisesse ver a cara da pessoa que tivesse me enganado.
Como D. Clarinda de Holanda dizia: “É fácil nos perdoar, quando não somos nós as vítimas!” E eu entendia bem o que ela queria dizer. Foi o que me impulsionou a procurar por Pedro mais uma vez e tentar novamente me explicar. Contudo, acabei por me deparar com ele, aos beijos com sua ex-mulher no saguão de seu prédio.
Naquele momento sim, senti que estava realmente tudo acabado!

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 82

Guel e Tony conseguiram que Ronie participasse de seu plano para se aproximarem da intimidade de Olívia Cordeiro, cobrando um antigo favor que meu filho devia a ele. A estratégia seria que usasse uma meia cobrindo o rosto e se fizesse passar por assaltante.
No momento em que Olívia Cordeiro saía da boate e abria a porta de seu carro, fora atacada por trás. Guel Serrado estava exatamente ali, em seu carro, saindo para ajudá-la. Ele pedira para que o suposto assaltante a deixe em paz, oferecendo-lhe o relógio, que parecia valioso. Como combinado, o falso bandido a soltara, aproximando-se rapidamente de Guel, a fim de pegar o suposto resgate. Sendo atacado pelo amigo, que o derrubara e jogara-se por cima dele, exigindo o relógio de volta. Depois de tomar um ou dois socos, Ronie conseguira então escapar.
Enquanto o falso assalto acontecia, Tony distraía os dois seguranças da boate, a poucos metros dali, deliciando-se nos braços dos fortes rapazes.
A sorte estava então lançada. Guel Serrado era o corajoso herói que salvara Olívia de um terrível assalto.
O plano era que tudo pudesse ocorrer numa progressividade que mexesse realmente com Olívia, que ainda sofria com o término de seu relacionamento com Nando. Logo depois de deixá-la segura de volta à boate, Guel despedira-se, alegando estar comprometido e não poder ficar. A intenção era exatamente chocá-la, deixá-la em suspense e depois agir, mostrar-se presente aos poucos, a fim de envolvê-la.
Tony e Guel estavam certíssimos no caminho que escolheram para conseguir a confiança de Olívia Cordeiro. Uma mulher marcada por inúmeras decepções amorosas de abandono e traições, ficara de fato mexida com o ato heróico, o cuidado e gentileza de um homem extremamente charmoso e galanteador. Embora estivesse mais do que nunca decidida a não acreditar mais em homem nenhum, pela última frustração com Nando, sem saber que também fora vítima de um plano para separá-la de meu filho, arquitetado pelos mesmos mentores daquele assalto.
O passo seguinte, fora as flores na manhã logo cedo e um telefonema no final da tarde. Guel se desculpara com Olívia pela ausência o dia inteiro, mas estava, segundo ele, numa rápida viagem de negócios. E fora ela, quem primeiro tomara a iniciativa, falando da possibilidade de se encontrarem, para que então pudesse agradecer por tê-la salvo. Tentava passar um tom despretensioso na fala, mas já estava clara sua curiosidade e desejo de conhecer aquele homem, que cuidadosamente se explicara por não poder atender seu convite, alegando compromissos de trabalho e, só viera aparecer uns dois dias depois, na boate. Colocar um pouco de dificuldade, fazia parte do plano, para aguçar ainda mais o seu interesse.
Tony sabia bem o que estava fazendo, na orientação a Guel. Estudara minuciosamente as estratégias, depois de ouvir diversos desabafos de Olívia a Charles Moreno ou a Izaíra, sua secretária. Esta última, dava a minha sobrinha ainda mais informações do que precisava, por adorar falar da vida dos outros, fazia-se de amiga pela frente e desdenhava de suas histórias por trás. O que chegava a ser engraçado para todos os funcionários da boate, servia de alicerce para os planos de minha sobrinha.
Fora uma grande surpresa para Olívia, quando avistou Guel em uma das mesas, assistindo o show daquela noite na Mirage. Aproximou-se disfarçadamente, fazendo parecer que só o enxergara no momento que esbarrara com ele. Conversaram uma boa parte da noite, sobre a estrutura dos shows promovidos pela boate, até a despedida de Guel, deixando-a extremamente perturbada. No fundo, Olívia esperava que ele tomasse iniciativa e a convidasse para outro programa, como um almoço ou um jantar. Guel, contudo, usava uma dose estratégica de charme e galanteios nas conversas e alegava ter que ir embora, exatamente no momento em que estava seguro de que ela se encontrava mais envolvida.
Tony cuidava de tudo com detalhes, para que nada desse errado. E já começava a perceber a ansiedade de Olívia Cordeiro, nas noites que se seguiram, para encontrar Guel na boate. Foram necessários mais um ou dois encontros, para acontecer o primeiro convite de almoço, por parte da própria vítima.
Aos poucos Olívia descobria muitos gostos em comum com aquele homem, que lhe conquistava a cada dia, principalmente em fazer programas que há muito não fazia. Como ver o pôr do sol, no passeio de barco, na Beira-Mar, ou ainda dançar a noite inteira num clube de danças de salão, aonde não ia desde a adolescência. E fora neste último encontro que acontecera o tão esperado. Em meio a uma dança, ela se vira extremamente envolvida fitando o azul dos olhos daquele homem, que parecia transpirar charme e sedução. Um frio lhe subira pelo estômago, deixando-a num estado de nervosismo e ansiedade que provocava o palpitar de seu coração. Já podia também sentir a sua respiração ofegante, o que a deixara mais à vontade. Ele finalmente a tomara e a beijara, saciando o desejo que há muito procuravam controlar.
Eu conhecia Olívia desde criança, a tinha visto crescer. De certo, não permitiria tal absurdo se tivesse sabido a tempo dos planos de minha sobrinha e seu comparsa. Como sempre, ficava sabendo dos feitos de Tony tarde demais, como a manobra para separar Nando de Olívia, flagrando uma conversa sua com Marluce, na sala de minha casa. Ainda tentara disfarçar, mas deu para ouvir bem quando a moça lhe cobrara a ajuda que havia prometido lhe dar em sua aproximação de Nando, por quem era apaixonada, desde menina.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 83

Marluce, a filha de nossos vizinhos, não pensava em outra coisa se não em um dia ficar com Nando. Sonhava com aquilo desde a adolescência, nas épocas em que recebia aulas de reforço de seu amado. Parecia incansável. Fazia questão de lhe pedir carona diariamente para a faculdade, mesmo que seus horários fossem diferentes. Aproveitava cada momento junto, cada fala, qualquer coisa que pudesse de alguma forma representar um pouco de cumplicidade com meu filho, como me ajudar em minhas costuras, por mais que parecesse absurdo, por ser filha de Ceiça e Rubinho, donos do mercadinho da esquina. Marluce não tinha necessidade financeira de me ajudar, chegando a implorar para tal, mesmo que de graça.
Ceiça era uma pessoa amiga e se preocupava com a filha. Uma vez ou outra, quando ia fazer compras, me acompanhava, para colocarmos os assuntos em dia. Sua grande paixão mesmo era o marido e o filho Dorival.
O único incômodo de Ceiça na verdade em relação a Dorival, era seu envolvimento com Salete. Não perdia a oportunidade de destacar sua indignação por vê-lo namorando uma mulher tão vulgar, segundo ela e ainda por cima, melhor amiga de Vera Sheila, a moça mais mal falada da rua. E mais, estava certa que ela o traía ou mesmo levantava suspeitas sobre seu trabalho, de como arranjava dinheiro para se manter, visto que ninguém sabia de Salete trabalhando. As duas, na verdade, se suportavam somente. E esta por sua vez não perdia a oportunidade de provocar a mãe de seu namorado, usando roupas cada vez mais curtas e decotadas, bem como mostrando ter muito dinheiro, sempre que ia pagar suas compras no mercadinho, ou ainda comentando de suas noitadas, das farras de que fazia com ou sem Dorival.
Salete sabia que era indesejada na família, por isso fazia questão de se fazer ainda mais presente na vida de Dorival, procurando ocupar por completo seu tempo, quando não estava de plantão, e assim, provocar ainda mais os ciúmes de Ceiça, que só se acalmava depois dos dengos do marido em público, para mostrar para todos o quanto se amavam.

CLARINDA DE HOLANDA
Capítulo 84

Minha vizinha Ceiça, era uma pessoa muito presente em minha vida, e sem mesmo procurar especular para não me constranger, mostrava-se sempre de prontidão nos momentos em que eu precisava. Fora exatamente ela, quem me acompanhara na visita a Alceu, na cadeia.
Causou-me uma dor ao ver meu marido naquele ambiente sujo, numa cela de quatro metros quadrados, com mais de dez homens, dividindo o mesmo espaço. Ele levantou-se e correu para a grade, ao me ver chegar.
- Me tira daqui, Clarinda, pelo amor de Deus! – Alceu parecia desesperado, enquanto os companheiros de cela zombavam de sua atitude. Nunca esperava encontrá-lo daquela forma, barbado, magro, sujo. Era realmente deplorável. - Eu prometo, eu juro, eu prometo, nunca mais eu encosto a mão em ti!
- Eu não posso fazer nada.
- Pode, claro que pode. Você é a única pessoa que pode me tirar daqui. O delegado já me disse. Só você pode retirar a queixa.
- E pra onde você iria?
- Deixa de besteira, mulher. Nós estamos casados há trinta e cinco anos. Por que isso agora? Eu tenho que voltar pra minha casa, que é o meu lugar.
Olhei para Ceiça, como se procurasse forças para continuar ali.
- Eu... eu tenho medo de você, Alceu. - Falava com certa dificuldade.
- Não te preocupa, eu não vou mais encostar a mão em ti, eu prometo, já disse! O que eu quero é apenas voltar pra casa, sair daqui. Já faz muito tempo que eu estou nesse lugar imundo.
- Eu vou pensar. - Saí rapidamente, para não ter mais que presenciar seu desespero trancado ali. Pude ouvir seus gritos.
- Clarinda, volta aqui! Não me deixa aqui, Clarinda! Eu juro que não encosto mais a mão em ti, mulher! Eu juro! Volta aqui! Volta aqui!
Procurei falar com Dorival, me certificar de que o estavam tratando bem. Fiquei então sabendo que dali a alguns dias ele iria ser transferido para um presídio em Itaitinga, cidade metropolitana de Fortaleza. Já fazia tempo que estava na delegacia, e eles não tinha mais como mantê-lo ali.
Eu não poderia permitir que o pai de meus filhos passasse por tal situação. Sabia que no presídio estaria exposto a todo tipo de perigo, ao convívio com pessoas da pior espécie. Seria perigoso, sem dúvidas. Pensei um pouco e acabei por revelar a meus filhos sobre a visita e a difícil situação de seu pai. Esperava que eles mesmos tomassem iniciativa e o tirassem de lá, sem que eu precisasse fazer nenhum esforço. 
Nando logo se sensibilizou quando falei sobre o presídio, mas Holanda permanecia irredutível, queria que o pai pagasse por tudo o que me fizera a vida inteira, e se era aquele o preço, que arcasse com as conseqüências. Chegara, inclusive, a reafirmar sua promessa de que se eu voltasse atrás e tirasse Alceu da cadeia, ele sumiria de minha vida.
Mas e a minha promessa? Eu não poderia persistir naquilo. A promessa fora quebrada e eu seria punida, com certeza. Seria difícil no início, mas logo, na certa, meu filho entenderia e me perdoaria, tinha bom coração.
Retirei então a queixa.

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Resenha por Andréia Regina Nogueira Cruz


Qual é a sua casa dos Anjos?
Essa pergunta aparece quase no fim do livro, mas te faz pensar muito...
O livro conta o drama de quatro mulheres que tem suas vidas, de certa forma, interligadas, apesar de uma e outra não se conhecerem.
Júlia é a personagem "central", que tem a filha de 1 ano desaparecida. Marina é uma mulher apaixonada e submissa. Celina, uma tetraplégica que não aceita sua condição e Clarinda, uma mulher que não se permite viver seu grande amor.
No começo foi meio difícil acompanhar as quatro histórias, porque quando voltava na personagem, eu tinha esquecido onde tinha parado, então voltava um pedacinho para acompanhar (eu tenho esse probleminha, eu esqueço as coisas muito rápido...). mas conforme as histórias vão se entrelaçando e você vai conhecendo-as melhor, você só quer saber mais e mais o que vai "rolar".
Basicamente, uma história de encontros, principalmente o de si mesmo. E vou te falar que fiquei com a maior vontade de conhecer um pouco mais sobre Biodança e praticá-la.
Quanto ao nome do livro, ele se deve a uma "casa" que Celina ganhou ainda na infância, onde guardava seus desejos, mas também...(leia o livro...rsrsrs...).
Eu acabei descobrindo, acho, a minha. Eu queria muito ler esse livro, mas acabei "enrolando", demorando a ler e acredito que acabei lendo-o na hora certa. Sabe quando você lê algo que parece ter sido escrito pra você? Pois é, eu me vi em determinados "sentimentos" e pela primeira vez, depois de muito tempo, resolvi exprimi-los e OMG, foi tão bom, me senti tão mais leve e feliz...
Então só posso dizer que gostei muito do livro...
Fica a dica...
Bjos!!!

Resenha por Jailson Batista


Quando eu comecei a ler o livro “A Casa dos Anjos” eu me deparei com o seguinte: 4 histórias sendo contadas por 4 narradoras diferentes. A princípio eu achei que isso atrapalharia a leitura e até mesmo o desenrolar da história. Porém o que aconteceu foi exatamente o contrario, na verdade ajudou. As historias se cruzam e é isso o que dá o algo mais a trama. A maneira que elas se encaixam é importante para entender melhor o enredo. Quando terminei de ler o livro e vim fazer a resenham relembrando fatos, me senti como se não fosse um livro que eu tivesse lido, mas sim uma novela que eu tivesse assistido. Original, essa é a palavra. Acredito que o Autor Antonio Rondinell quis mostrar os conflitos que temos, conflitos que nos mostra nossa verdadeira face. Lembro que li em algum lugar a frase: “A dor é suportável, exceto para quem a sente” e o livro mostra um pouco disso, um pouco de como lidamos com nossos sofrimentos. No aspecto físico dou destaque à capa, suave e encantadora, assim como a história.

Agradeço ao Autor Antonio Rondinell (Que mora aqui do lado :]) por ter cedido um exemplar do livro para resenha, espero que ele continue escrevendo (já estou sabendo de novos projetos :D) e nos agraciado com suas histórias.

Abraço e boa leitura.

Comentério do Leitor


A leitura de A Casa dos Anjos foi perfeita, o conteudo maravilhoso, me fez resgatar o habito que havia perdido. Estamos esperando ansiosamente pela segunda edição, deixou um gosto de quero mais. São historias que nos envolvem vivenciando as alegrias, tristezas e força de vontade de superar os problemas que surgem no decorrer de nossa caminhada como ser humano. Pra mim foi perfeito, e que venham logo as proximas ediçoes.

Vanessa - Leitora

Comentário do Leitor


"O livro é escrito com uma riqueza de detalhes que em muitos momentos me sentia sugada pelas cenas descritas. Era como se presenciasse aquele momento narrado, sentisse o que era dito pelas personagens. Ele envolve, seduz de uma forma tão sutil que quando você menos espera não consegue se separar querendo saber o desfecho da história. Vale a pena comprar e aceitar este convite a leitura."

Ticiana Otoch Moura - Psicóloga


Comentário do Leitor


Gostaria de parabenizá-lo pelo seu sucesso nacional. Li todo o livro e realmente é muito bom. Para quem tem sensibilidade, ao ler um livro como A Casa dos Anjos, descobre os valores de sua vida e da vida do próximo, avalia sua posição diante das dificuldades e porque não das facilidades, passando a valorizar a vida independente de sermos apreciados pelo outro. Descobri a importancia do ser, independente do ter. Nos convida a fazer uma reflexão dos nossos valores, atitudes e escolhas. Minha nota é 10. Parabens, um forte abraço.

Odília Gondim - Economista Doméstica e Educadora.



Comentário do Leitor


"A leitura de A casa dos anjos foi deveras prazerosa para mim, sobretudo pelas peculiaridades que me levaram ao livro: ter no escritor um amigo querido; a estória ambientada em Fortaleza; a narrativa de cada uma das quatro mulheres que me remetem a situações vividas em algum momento da vida. De fato, nunca levei a termo uma leitura de forma tão determinada como fiz com este livro, e o motivo era muito simples, a cada página que folheava sentia-me convidada, mais que isso, sentia-me instigada a continuar e continuar e continuar, e lia avidamente. No dia que conclui a leitura percebi que jamais havia lido um livro com tamanha empolgação e curiosidade que me acompanharam desde a primeira até a última página, foi uma experiência realmente fascinante e única para mim. Percebi também que, inexplicavelmente, sentia-me ligada aos personagens como se em algum lugar eles me aguardassem para continuarem suas vidas, como se eu fizesse parte da história deles ou quem sabe eles da minha... Já havia ouvido falar em “depressão pós livro”, mas só agora pude compreender do que se trata isso, não só porque chorei na leitura das últimas páginas, mas em especial pela enorme saudade que sinto de Júlia, Marina, Celina e Clarinda."

Norma Sampaio - Economista e Facilitadora de Grupos

Comentário do Leitor


"A Casa dos Anjos é um livro fascinante que nos instiga a mergulhar no universo de quatro mulheres, seus conflitos, sentimentos, numa busca que nos convida a refletir e a dialogar sobre felicidade, ética, valores, esperança, verdade, vida, amor. È um livro fantástico, emocionante que nos convida a ser,a sonhar e a viver quando sentimos a força, a dor, o vôo de liberdade, a doação, o amor de cada uma das personagens. Convido você a ler este livro e dialogar com cada uma destas mulheres."

Luciana Nogueira - Educadora / Licenciada em Letras


Comentário do Leitor


"Nunca tinha lido uma síntese da vida e do seu sentido, do nosso destino e das nossas possiblidades, permeado de cautela em relação aos nossos erros e acertos que podemos cometer nesse emaranhado que a vida e os nossos relacionamentos como A Casa dos Anjos. O livro tem passagens marcantes e tocantes. Júlia Serrado, Marina Pessoa, Celina Gondim e Clarinda de Holanda são mulheres que me habitam. Muitas vezes me sinto "tetraplégica", pelo medo de enfrentar a minha essência. Júlia Serrado me remete à Deusa grega Perséfone, ao ter sua filha sequestrada para o mundo avernal de Hades, o mundo do inconsciente e também da sombra, que muitas vezes me impedem de ver a luz. Perséfone é muito intuitiva e tem muita sabedoria, mas é preciso vigilância... Enfim, este livro é um convite a buscar a nossa essência, e vai além do Ter e Ser. Quem tiver oportunidade de ler, com certeza vai abrigar este espírito, a mente e o coração.
Obrigada, Rond."

Maria do Rozário de Oliveira - Psicóloga e Educadora.

 
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