Abra, entre e faça seu caminho...

Abra, entre e faça seu caminho...
A arte de escrever é para mim uma possibilidade de dar vida ao universo infinito de nossas criações. Precisava de um espaço onde isso fosse possível. Assim, nasceu este blog literário, com a ideia de ser um canal à expressão livre de muitas histórias, personagens, dramas e tramas que estão em minha mente, orientados por valores e crenças existenciais que representam a minha alma. Deste modo, seja muito bem vindo ao meu blog, e que minhas histórias possam lhe tocar o coração e a alma! (Antonio Rondinell)

O Pescador de Vidas (Segunda Parte)


Continuação

25


— O novo Saulo Sobreira, de presente para o mundo. — disse Thomás, alinhando a gola do blazer, como o irmão fazia, de frente para o próprio reflexo no espelho. Ensaiou um olhar mais insinuador, como o dele, procurando se desvencilhar dos traços de dor e amargura configurados em seu rosto.
A nova fase de seu plano de justiça começava a ser posta em prática, com o apoio de algumas pessoas compradas dentro da comunidade. O que lhe permitiria livre acesso a todos os lugares, com ou sem a presença do sósia. Os R$ 20.000.000,00 desviados da obra por Saulo para comprar seu distanciamento, seriam devidamente empregados no caminho a ser trilhado para fazer com que todos eles pagassem pelo que fizeram.
Thomás saiu do banheiro em um dos corredores que davam para o pátio da comunidade e quase esbarrou em Lucas, e se o jovem conseguisse perceber, com seu dom, quem realmente estava por trás daquelas roupas finas? O que faria? Como neutralizá-lo?
Por exatos doze anos não estivera tão perto de Lucas. Ele havia se transformado num bonito rapaz, com a mesma estatura que a sua. Além muitos traços que lembravam seu próprio rosto. Alimentara a ideia de que era seu filho, durante todo o tempo em que estivera preso, o que talvez tenha multiplicado o afeto por ele. Sempre imaginava que não saberia como se comportar em sua frente. Agora sabia que Lucas não era mesmo seu filho.
— Lucas? — Não sabia o que dizer ao rapaz.
— Oi, tio. É... — parecia sem jeito. — O senhor acha que... — como se quisesse dizer algo e não tivesse coragem. — O Salomão me chamou para dar uma volta com ele amanhã à noite. — completou rápido, quase sem respirar.
Os dois irmãos juntos. Seus filhos! Não, definitivamente precisava lembrar que Lucas era seu sobrinho. Esse amor que alimentara por anos não fazia sentido. Tratava-se da peça mais importante do Chiamare naquele momento. Precisava se ater a isso. O sobrinho teria um papel importante em seu plano, só!
— E pensam em ir para onde?
— Ele quer que eu conheça um lugar. Nunca saímos, então pensei que...
— Claro. — interrompeu-o. — Será ótimo para vocês nesse momento.
— O senhor permite que eu vá então?
Sabia que Lucas fora criado preso aos muros daquela comunidade, sem amigos, longe da vida normal de um jovem e da presença do próprio irmão, exceto em alguns finais de semana, liberado para visitar a casa do avô e estar perto da família. Deste modo, sua primeira providência como Saulo Sobreira, seria inverter a ordem estabelecida. Afastar Lucas da redoma construída para protegê-lo das influências mundanas seria de fundamental importância ao enfraquecimento do poder do irmão.
— Acredito que já seja o momento de você e Salomão se aproximarem.
O rapaz o observou de modo assustado, sem o reconhecer certamente.
— Como assim me aproximar do meu irmão? O senhor sempre disse que ele era uma péssima influência.
— Só sabemos se somos fortes de verdade quando enfrentamos as provações, meu filho. — justificou Thomás.
Lucas sorriu aliviado.
— Posso dormir na casa dos meus pais então?
— Claro que sim. Esteja de volta no dia seguinte.
— Obrigado, tio Saulo. — agradeceu quase saindo.
— Lucas? — chamou-o, aproximando-se. Desejou tanto abraçá-lo. Errado, Lucas não era apenas parte importante em seu plano, era seu afilhado, vira-o crescer. Recordou-se de quando era um garotinho especial, necessitando de cuidados especiais para crescer como uma criança normal, e do quanto o amava como filho de seus melhores amigos. Depois, lembrou também da felicidade sentida ao descobrir sua paternidade, há doze anos. Enquanto Salomão parecia não gostar da ideia de ter um outro pai que não Edgar, Lucas e Thomás estabeleciam uma relação que ia para além do apadrinhamento.
Se o abraçasse, talvez o rapaz desconfiasse da energia presente. Melhor não.
— Vá encontrar seu irmão. — disse, vendo-o desaparecer pelo corredor em passos apressados, como se fugisse da possibilidade de uma mudança de ideia.
Sua primeira atuação como Saulo Sobreira fora perfeita. Melhor ainda seriam as consequências daquela saída de Lucas. 

~
Lucas entrou na caminhonete do irmão cheio de expectativas por aquela noite. Nunca saíram assim. Além de Saulo Sobreira não permitir um contato de maior proximidade com Salomão, considerando-o uma péssima influência à sua formação espiritual, o próprio rapaz sempre o desprezou, e aquilo o machucava enormemente. Desde crianças, a relação dos dois era complicada, recheada de brigas, reclamações e agressões por parte do mais velho, que sofria por ser filho de Thomás e não de Edgar, acusando a todos de protecionismo e mimos ao caçula, bem como insistindo num tratamento quase sempre hostil ao mesmo. Exceto quando desejava se beneficiar de seu dom, chantageando-o em troca de uma aproximação. Por outro lado, Lucas cresceu alimentando grande admiração pela força, coragem e autonomia do outro — Salomão era tudo o que ele queria ser, uma pessoa normal, não uma aberração, como o próprio irmão o chamava muitas vezes. Desejando mais que qualquer coisa sua amizade.
Salomão falou da noite, do que rolava nos lugares para onde o levaria, das mulheres, que Lucas precisava se soltar mais, sair mais vezes com ele. Tudo o que queria ouvir! Olhou para o irmão, muito bem vestido, na moda, como um jovem de sua idade devia se vestir, não como ele, trajando roupas de um velho.
Quero aprender a ser assim!
Estava tão feliz em sua companhia. Nem acreditava que Saulo o havia liberado e se não permitisse outras vezes? Talvez fosse chegado o momento de ser como o irmão, corajoso e enfrentá-lo.
— Tu precisa se libertar do tio Saulo, cara! — afirmou Salomão, como se adivinhasse o que pensava. — Ele se aproveita de ti, mah, te explora. A droga dessa comunidade não é nada sem os teus poderes.
Droga de comunidade? Poderes? Só não gostava quando falava assim.
— Podemos ganhar o mundo, conquistar muitas coisas, juntos. O que acha, hein? — completou Salomão, dando um tapinha no peito do irmão.
Juntos! O que mais desejava, estar junto dele.
— Tenho medo. — respondeu, com receio do que Salomão pensaria.
— Medo? Besteira, mah! Eu te ajudo.
Sim, precisaria mesmo de sua ajuda para enfrentar seu líder espiritual, seus pais.
Foi quando Salomão falou de uma mulher, na qual estava interessado. Disse que ela também estava, mas temia levar a relação adiante por conta do noivo. Afirmou ser a mulher de sua vida. Em seguida, pediu que Lucas o ajudasse. Necessitava que usasse seu dom para fazê-la mudar de ideia e ficarem juntos de uma vez.
Quantas vezes Salomão se aproximou para conseguir seus objetivos através do dom de Lucas? Incontáveis. Na verdade, parecia que só o fazia nestas circunstâncias.
— Não posso manipular os sentimentos das pessoas, suas decisões, — Lucas tentou explicar. — meu dom deve ser usado para curar os ferimentos da alma.
A expressão de Salomão ao volante se transformou em impaciência.
— Que mané ferimentos da alma, o quê? Parece frase besta de livro de autoajuda. Isso é o que o tio Saulo quer que tu pense, mah. Tu mesmo não diz que só pode usar esse dom quando as pessoas estão abertas?
— Isso.
— Então. A Liza gosta de mim, me quer. Ela só não tem coragem. E covardia não é uma doença da alma? Preciso que a cure desta doença, faça ela ter coragem.
Preferia não ter aquele dom. Nunca agiu ou “curou” qualquer pessoa livre da sensação de manipular seu destino, interferir no que era natural. Tirar pessoas das ruas, trazê-las para o Chiamare e fazê-las servir na obra não seria o mesmo que negar seu livre arbítrio? Segundo Pe. Giuseppe e outros teólogos, não. Visto que este dom da cura da alma, só é possível quando a pessoa tem dentro de si um desejo incontido, mas que o ego, o vício ou o mal distorce em repressão. Deus não permitiria um dom que negasse seu princípio maior. A não ser que esse dom não fosse algo divino.
Dar coragem a alguém trair seu companheiro seria algo divino? O amor, como fica diante do exposto? Dúvidas que o corroíam naquele momento. Definitivamente não sabia o que fazer, que decisão tomar. Se não o fizesse, decepcionaria mais uma vez o irmão e decerto não teria sua amizade. Da infância à adolescência aquilo aconteceu diversas vezes. Não seria também uma forma de Salomão se aproveitar, como seu tio Saulo sentenciou a vida inteira? O que faria?
Salomão estacionou o carro e disse para acompanhá-lo, abraçando-o logo que desceram do veículo.
— Irmãozão, bom te ter aqui comigo.
A colegagem que sempre sonhou. Mas e o preço disso, estaria disposto a pagar?
Lucas entrou no ambiente com o irmão, lotado de outros jovens. Gente bonita, bem vestida, como Salomão. Algumas moças até olharam para ele. O outro, brincou com seu “dom de sedução”. Sentia-se assustado, com medo. Nunca havia estado num ambiente como aquele. Música alta, uma banda no palco tocava um ritmo chamado sertanejo universitário, segundo Salomão.
Pareço realmente de outro planeta!
O irmão parecia conhecido, cumprimentava muitas pessoas pelas quais passavam. Eles atravessaram todo o salão, até uma mesa perto do palco, onde estavam quatro rapazes. Conhecia dois deles, os melhores amigos do irmão, estavam juntos quase sempre. Salomão o apresentou e disse alguma coisa, que não conseguiu ouvir do que se tratava, fazendo com eles o recebessem muito bem. Em seguida, um deles serviu uísque nos copos e completou a bebida com gelo e energético, entregando-os a Salomão e Lucas. Incialmente, negou-se a aceitar, mas o irmão insistiu. Nunca havia provado algo tão forte, desceu queimando a garganta e bateu no estômago como ácido.
Em pouco tempo, Salomão pareceu avistar a moça de quem havia lhe falado e mostrou-lhe imediatamente.
— É agora que preciso de ti, irmãozão.
O outro saiu em direção à moça, que estava com algumas amigas e lá conversou por certo tempo, até que fez sinal para que Lucas cumprisse o “combinado”. Não entendia por que teria que ajudá-lo com aquilo, visto que exercia fascínio sobre as mulheres. Salomão fora disputado pelas garotas desde cedo e nunca se acertava com nenhuma delas. Adorava a fama de garanhão e se portava naquele ambiente como um pavão, ostentando o charme e os músculos.
De longe, conseguiu ler os lábios do irmão, dizendo-lhe, já de modo impaciente, para que fizesse sua parte. Mas não sabia. Pensou em desistir e ir embora. Talvez ali não fosse seu ambiente.
Meu Deus, isso é certo? 
No entanto, se não o fizesse, o irmão certamente o odiaria. Apoiou-se numa cadeira, baixou um pouco a cabeça e começou a se concentrar, visualizando a moça do lado de Salomão. Uma dor fina foi se formando em sua nuca e se alastrando pelo restante do crânio. Seus músculos começaram a tremer como se fossem esmagados por um choque. Alguns segundos depois, a moça tomou Salomão num longo beijo.
Os amigos do irmão vibraram ao lado de Lucas. Porém a comemoração foi interrompida por uma surpresa. O noivo da moça apareceu do meio da multidão, acertando o rival com um soco. A confusão se formou num piscar de olhos. Pessoas gritaram, outras correram e um espaço foi aberto ao redor dos dois. O rapaz traído parecia bom de briga, escanchando-se por sobre Salomão e o atingindo com vários outros socos em sequência. Os amigos de seu irmão nada fizeram para impedir.
— LUCAS! — gritou Salomão, meio sem forças, no intervalo entre um soco e outro. — LUCAS! ME AJUDA! — outro soco — ME AJUDA! — e mais um — LUCAS!
Precisava fazer alguma coisa. Serrou os punhos e novamente foi tomado pela mesma dor de outrora. De repente, o rapaz em cima de Salomão pôs as mãos no próprio pescoço, como se tentasse se livrar de algo que o sufocava, e caiu de lado, de modo que todos perceberam sua falta de ar. Estava sendo estrangulado por uma força estranha, enquanto Salomão teve tempo de se erguer e fugir.
De repente, Lucas ouviu alguém falar “aberração”. Pessoas olhavam assustadas em sua direção, como se tivessem se dado conta que havia sido ele. Os próprios amigos de Salomão o acusaram. A música cessara e todos pareciam condená-lo.
— SAI DAQUI, MONSTRO! — alguém gritou no meio da multidão.
— MONSTRO! — outra pessoa.
— ABERRAÇÃO! — e mais outra.
De repente, muitas pessoas gritaram ao mesmo tempo. Então, ele correu, exausto, com medo, sofrendo por ser um anormal.




26


O garçom serviu uma água com gás para Thomás, enquanto aguardava a chegada de Laura Ponte, num refinado restaurante, na Av. Pessoa Anta. Fora ele que, passando-se por Saulo Sobreira, exigiu do editor da Revista Notícia o nome da jornalista como profissional a assinar a matéria comprada pelo Chiamare — mais uma etapa de seu plano concretizada. Ela era perfeita para o que ele almejava. Além de ser extremamente competente para ajudá-lo a desmascarar o irmão, causaria uma verdadeira catástrofe quando algumas das pessoas que o traíram soubessem de seu retorno para Fortaleza.
A despeito do desconforto naquelas roupas de grife, acreditava estar impecável com seu disfarce. Qualquer um o confundiria com o atual moderador do Chiamare. Laura não foi diferente, entrou deslumbrante no restaurante e foi conduzida pela hostess até sua mesa, acreditando piamente estar se encontrando com Saulo, não com seu gêmeo injustiçado. Ela havia resistido em aceitar o estranho convite pela manhã, mas acabara por ceder à insistência do Pescador de Vidas, foco de sua matéria.
Fizeram o pedido ao garçom e em seguida, Laura confessou sua curiosidade pelo encontro. O que afinal o líder de uma comunidade religiosa poderia querer com ela fora de seu espaço de trabalho?
Thomás estava se divertindo com aquilo. Melhor seria quando o irmão soubesse do que “ele mesmo andara fazendo, sem se dar conta, talvez um efeito colateral dos inúmeros remédios tomados para controlar seu transtorno obsessivo compulsivo”. Saulo começaria a duvidar da própria sanidade. Perfeito o plano!
Com todo o charme que lhe era possível, começou a falar da suposta solidão que o acompanhava na liderança da comunidade, de uma vida voltada exclusivamente a doar-se para o outro. Laura parecia atenta e ao mesmo tempo desconfiada de suas intenções, sem compreender na certa porque um homem de sua posição de repente resolvera revelar questões tão íntimas.
— O senhor quer que eu aborde um pouco de sua vida pessoal, de seus sentimentos nesta reportagem, é isso? — lançou ela sem rodeios.
— É importante que me conheça melhor, Laura. — explicou, tocando-lhe a mão. Ela puxou a sua imediatamente, como se acometida por certo incômodo. — Poderá realizar um trabalho mais próximo do real. Uma característica de tudo aquilo que faz. Ou me equivoquei?
— Entendo. — soltou ela, com um leve sorriso, parecendo compreender e compactuar com algum tipo de jogo que julgava, talvez, estar existindo. E estava!
Só não contava com tamanha perspicácia de Laura. Aquilo o atraía e o motivava cada vez mais.
— Está escrevendo sobre mim e minha comunidade. Alguma coisa me fez acreditar que poderia falar mais para você, coisas que estão aqui dentro e me sufocam. — elucidou Thomás, tocando no peito, com uma expressão de pesar. — Vivo um papel permanentemente que me impede de sucumbir às fraquezas, ao cansaço. Tem ideia do que significa isso, Laura?
— Grandes cargos, grandes responsabilidades. São nossas escolhas que definem.
— Acha que se não abdicasse da minha vida pessoal, essa comunidade existiria nos moldes de hoje?
O garçom chegou com o pedido e eles aguardaram até que os servisse e deixasse-os novamente a sós.
— Imagino que administrar uma comunidade desse porte requeira alguns sacrifícios. — Laura retomou o assunto.
Finalmente ela caiu!
— Sacrifícios que valem a pena, por acreditar tratar-se de um desígnio, mas que nos trazem muitas vezes sofrimentos. A manutenção de uma obra como o Chiamare, exige atitudes que nem sempre concordamos, e nos submetemos por uma causa maior.
Ela o observava de modo interrogativo, perscrutando-o.
— E o senso de justiça, pregado por comunidades como a sua, como fica diante disso?
— Procuramos ser o mais justos possível. E quando não somos, sofremos essa dor, mas focamos naquilo que fazemos de melhor.
— Os fins justificam os meios? — interpelou ela.
— Trata-se do preço para salvarmos uma quantidade maior de almas. No entanto, minha cara, não há peso na palavra de um homem só, quando o que está em jogo é a ação de uma instituição dessa envergadura. A administração é coletiva, vale a palavra da maioria. Por mais que possamos ferir a nós mesmos, o importante é o todo, nunca a parte.
Necessitava ganhar sua confiança, nem que para isso se apoderasse dos mesmos discursos que destruíram sua vida. A ideia naquele primeiro momento era conquistá-la, para mais tarde ganhá-la como aliada e acabar com os desmandos do irmão. Teria de ser cauteloso e ao mesmo tempo convincente.
— Sofro com tudo isso, com minha solidão, — continuou. — sinto falta de ouvir outras ideias, ter acesso a outros olhares que ajudem-me a enxergar o que é verdade, os equívocos que me afastam do que é essencial.
— O líder do Chiamare precisando de conselhos?
— Deus se faz presente através das pessoas ao nosso entorno.
Laura o olhava fixamente, como se remontasse uma cena em sua mente. Já não trazia em seu cenho a mesma desconfiança de outrora.
— Não acredito no acaso. — disparou Thomás. — Sinto que sua presença nesta comunidade e até em Fortaleza, vai além de uma simples reportagem.
Ela provou na comida e desviou o olhar, como se finalmente Thomás tivesse tocado num ponto que a desestabilizou. Certamente tinha feito.
— Ajude-me, Laura! — pediu, estendendo a mão por sobre a mesa para que ele lhe tocasse. A jornalista por sua vez pareceu hesitar, dançou o olhar entre a mão e o rosto dele.
— Não imagino como. — desabafou ela.
— Com a sua verdade. — a mão permanecia estendida.
Laura, por fim, tocou-lhe, meio sem jeito. 
Finalmente mordeu a isca!
A sorte estava lançada. Laura Ponte seria seu grande trunfo.



27


MONSTRO! ABERRAÇÃO! Aquelas palavras se repetiram incansavelmente na cabeça de Lucas, como vozes implacáveis, condenando-o em sua culpa por possuir o que a família lhe ensinou a chamar de dom. Mas para o mundo, não passava de uma anormalidade, bruxaria ou espiritismo, como ouviu tantas vezes desde criança.
Você tem o dom da profecia — recordou-lhe a voz da mãe.
...da telecinesia — foi a voz do avô.
...e o mais importante de todos, a cura da alma — desta vez foi Diogo.
Esta é sua missão no Chiamare, salvar vidas! — lembrou-se de Saulo, dizendo aquilo.
MONSTRO! ABERRAÇÃO!
Gritou, ponto as mãos na cabeça, perdido pelas ruas da cidade. Fortaleza nunca tinha sido tão estanha quanto naquela noite. Não sabia onde estava e o nome de nenhuma rua nas placas lhe era familiar. Podia sentir o calor das próprias lágrimas banhando seu rosto, sem compreender porque Deus lhe fizera daquela forma — doente do espírito. Sentia-se castigado por algo que não sabia explicar.
— Por que, Pai? Por que não me fizeste normal, como meu irmão? — questionou, olhando para todos os lados, como se procurasse por alguém. — Por que este castigo? Por quê? POR QUÊ? — gritou novamente mirando um céu sem estrelas. Jogou-se de joelhos numa calçada, em prantos reveladores de uma dor latente a vida inteira.
Pediu tantas vezes a Deus que não visse nada além do que seus olhos podiam dimensionar, ou ainda que não pudesse mover aquilo que suas mãos não tocassem e também potencializar nenhum desejo contido ou mudar o direcionamento do destino de qualquer pessoa que fosse! Tudo em vão! Nunca fora ouvido em suas súplicas. Permanecia uma aberração!
— Ei, maluco... passa tudo, vagabundo! — ordenou uma voz atrás dele. Logo sentiu uma ponta afiada em suas costas.
Lucas girou o corpo, sem compreender o que estava acontecendo.
— Ó o cara, meu... tá doidão! — comentou o rapaz para um amigo ao seu lado.
Os dois tinham aparência suja, usavam roupas velhas e fediam. Um deles, apontava uma faca de cortar pão contra Lucas.
— Bora, bora, vagabundo, passa tudo que tu tem! — ordenou o outro.
Um assalto?! Finalmente a ficha caiu.
— Desculpem, amigos, não tenho nada. — respondeu, pondo as mãos para o alto.
— Tá achando que a gente é trouxa, playba? — arrematou o portador da arma, pressionando-a contra o pescoço de Lucas, enquanto o comparsa arrancou do rapaz o relógio e de seu peito o Cristo ressuscitado de prata. — símbolo do Chiamare. — Tu merece é morrer, fila da puta!
— SOLTEM ELE AGORA! — gritou um outro cara, de cima de uma moto, ainda com capacete, acabando de estacionar.
— Sujou! — concluiu o assaltante. — Bora!
Os dois correram. O motoqueiro deixou o capacete no retrovisor da moto e ensaiou uma perseguição, mas desistiu.
— Está bem, rapaz? — perguntou ele, procurando ajudá-lo.
— Acho que estou. — Lucas respondeu no automático, esfregando o local onde a faca se fizera ameaça.
— Ele te machucou?
— Não, não, acho que não.
— Vem, vou te levar para casa. — afirmou o motoqueiro, impulsionando-o a ficar de pé.
— Quem é você?
Um rapaz moreno, com um leve traço de estrabismo, pouco mais baixo que ele, cabelos curtos e barba rala, pequenas argolas nas orelhas, jeans rasgado, camiseta com a língua dos Rolling Stones, bracelete de couro e botas de cadarço. Estilo despojado, em consonância com a moto preta dessas grandes. Embora não compreendesse, sabia que era de umas mil cilindradas, como uma que Salomão já tivera.
— Delano, seu amigo. — respondeu, com a mão estendida.
Amigo?! Quem é esse cara?
Lucas fitou-o de um modo interrogativo, desconfiado. Depois de tudo o que passara naquela noite não sabia no que acreditar. Apertou-lhe a mão, embora sem nenhuma convicção.
— Lucas. — apresentou-se também.
— Vi o que aconteceu lá no bar com você. Posso te deixar em casa. — reafirmou Delano.
Se fosse outro bandido? Aprendera com Saulo que não confiasse em ninguém fora da comunidade, pois as pessoas podiam se aproveitar de seu dom. Ouvia tantas histórias de sequestros e até tráfico de órgãos. Por mais que o tivesse salvado, o que garantia que se tratava de uma pessoa de bem, que realmente não lhe faria nenhum mal? Estava com medo e por um instante não sabia o que fazer. Se não aceitasse a carona, de que modo chegaria em casa? Fora abandonado pelo irmão sem dinheiro ou meio de se comunicar com alguém da família, já que, por decisão de Saulo, nunca tivera celular. O fato é que não tinha para onde ir se não fosse a carona de Delano.
Esse dom há de me servir de alguma forma!
Concentrou-se no rosto do rapaz à sua frente e experimentou uma pontada na nuca, com os músculos se retesarem numa fração de segundos, acessando diversas imagens que se confundiam com o ambiente em seu entorno. Visualizou Delano tomando banho de mangueira no jardim do Chiamare, com a roupa molhada, rindo feito um menino; também em sua casa, apertando a mão de Edgar; em seguida, tocando o rosto de Cândida.
— Lucas? Lucas, o que houve? — chamou-o Delano, demonstrando-se assustado.
As imagens cessaram. Pronto, já sabia o necessário.
— Me tira daqui! — pediu Lucas.
Delano fez que sim com a cabeça, direcionou-se para a moto, tomando o capacete pendurado no retrovisor. Em seguida, pegou o outro preso na garupa e o entregou a Lucas. Fazendo sinal para que o colocasse. Este por sua vez, atendeu ao comando e montou na garupa do rapaz.
Sentiu-se tão seguro e protegido, como se o conhecesse a vida inteira. Ao mesmo tempo, alguma coisa lhe dizia que Delano mudaria a sua vida para sempre!

~
A mulher magra de meia idade e uniforme azul e branco abriu a porta do apartamento de Juca Rebelo para Saulo e Guilhermina, pedindo para que entrassem. Ele estava aflito com o sumiço de Lucas e ligara no início da noite para Cândida, buscando notícias do rapaz. Todos na sala pareciam apreensivos. O presidente do conselho administrativo do Chiamare segurava a mão da esposa, dona Augusta, sentada ao seu lado, como se procurasse acalmá-la — uma mulher que sofria de depressão há mais de vinte anos e quase ninguém nunca a via. Edgar, numa poltrona de frente aos pais, balançava a perna cruzada freneticamente. Cândida, sem sombra de dúvida, demonstrava maior tensão, abraçada consigo mesma, ao lado da janela. A sala ampla do luxuoso apartamento parecia ter se tornado pequena para acolher a preocupação ali estabelecida.
— Alguma novidade? — foi Guilhermina quem perguntou.
Saulo alinhou a gola do blazer e o Cristo Ressuscitado no bolso mais uma vez, depois de repetir o mesmo ritual centenas de vezes, desde que dera conta da falta de Lucas dentro da comunidade, há algumas horas.
— Tentamos de todas as formas com Salomão, mas ele jura que não sabe de nada. — respondeu Edgar.
— É mentira, com certeza! — afirmou Saulo de pronto.
Nunca perdera o controle daquela forma. Orgulhava-se de ter sido um ótimo preceptor espiritual, mais do que isso, um pai. Lucas fora entregue por Edgar para ser criado na comunidade, com 6 anos de idade, logo após descobrir a traição de Cândida e Thomás. Na época, justificando a necessidade do garoto ser trabalhado em seu dom e assumir o lugar que havia sido de Diogo, embora todos soubessem que, na verdade, queria estar longe daquele que o lembrava permanentemente de sua dor, além de punir a esposa. Deste modo, Saulo assumiu inteiramente a responsabilidade pela educação do menino, afastando-o de tudo o que pudesse desvirtuá-lo de sua missão como irmão consagrado do Chiamare.
— Tem certeza que foi com Salomão que o Lucas saiu da comunidade? — a rouquidão natural de Juca Rebelo nunca lhe soou sadia em todos aqueles anos de convivência e amizade. O que atribuía ao médico calvo, de cabelos e barba branca certa altivez.
— O pessoal da portaria assegurou que sim. — confirmou Guilhermina.
— E por que o deixaram sair? — questionou Cândida.
— Incompetentes! — Saulo desabafou. — Disseram que eu tinha autorizado mais cedo.
— Mas eles iam inventar isso? — indagou Edgar, incrédulo.
— Acha o quê? Que eu liberei o Lucas para sair com o Salomão? — Saulo indignou-se.
— E o que tem sair comigo? — interpelou o próprio Salomão, do alto da escada, que vinha do andar superior do apartamento.
Saulo partiu para ele.
— O que fez com seu irmão, irresponsável? — Saulo desejou agredi-lo, ensinar-lhe uma boa lição, aquilo que Cândida e Edgar não fizeram.
— Ele não sabe de nada! — Cândida se pôs diante dos dois, uma verdadeira mãe defendendo a cria.
— É por isso que ele é do jeito que é. — arrematou Saulo, com toda a sua indignação. — Vocês não tem o menor controle sobre esse delinquente.
— Saulo, contenha-se! — ordenou o velho Juca, erguendo-se de onde estava.
Quando o Dr. Juca Rebelo falava, todos obedeciam.
Sonhava com o dia em que o enfrentaria, reduzindo-o a nada, liquidando todo o seu poder, sua autoridade e respeito.
A atmosfera de tensão foi dissolvida pelo som da campainha. Todos ficaram apreensivos. Quando a empregada magra atendeu, a imagem de Saulo com cabelo desarrumado, vestido de jeans, camisa solta e tênis surgiu pela porta.
— Diogo? — Cândida foi ao seu encontro, acolhendo-o num abraço.
— Vim logo que soube. — disse ele.
— E como soube? — Guilhermina se antecipou.
Diogo saiu dos braços de Cândida e veio direto na direção de Saulo.
— Eu o vi. — respondeu simplesmente.
— Como assim, o viu? — Edgar levantou-se, curioso.
Saulo permaneceu onde estava, sem mexer um músculo. Nenhum encontro com Diogo terminava de forma tranquila, sempre com acusações e mágoas. Certamente aquele não seria diferente.
— Lucas foi agredido por dois rapazes. — disparou Diogo.
— Meu Deus, meu filho! — lamentou Cândida, com as mãos no peito.
— Não se preocupem, ele está bem. — Diogo tentou acalmá-los.
— O que houve? Como sabe? — Edgar parecia aflito.
— Esteve com ele ou... — Foi a vez de Juca perguntar. Com certeza pensava o mesmo que Saulo — uma visão!
— E você, está satisfeito? — Diogo se voltou ao irmão, interrogando-o.
Pronto, sobrou para mim!
— Sou eu a pessoa mais preocupada desta sala. — afirmou, varrendo o ambiente com o olhar.
— Certamente que sim. — disse Diogo. — Você é o mais interessado aqui. Afinal o Lucas é sua galinha com os ovos de ouro, não é verdade?
— Vocês só têm olhos para o Lucas! — reclamou Salomão, como um garotinho ciumento. Nem parecia um homem daquele tamanho, com tantos músculos à mostra. — Eu nunca existi, NUNCA! — gritou o rapaz, subindo as escadas de volta.
— Salomão! — Cândida tentou, sem sucesso, chamá-lo de volta.
O fricote de Salomão foi mal percebido por Saulo e Diogo, um diante do outro, em mais um confronto.
— Faltavam suas agressões para completar a noite. — ironizou Saulo.
— Foi você que o autorizou a sair com o Salomão — revelou Diogo.
— Eu? Você está louco!
— Impossível. — concordou Guilhermina.
— Assim como liberou a entrada e saída de Salomão da comunidade, logo em seguida.  Pergunte ao próprio Lucas, quando surgir por aquela porta. — afirmou Diogo categoricamente. — O efeito dos remédios que toma, também de forma compulsiva, para sua doença, seu transtorno, já está afetando o juízo!
Saulo permaneceu imóvel, como se uma faca afiada tivesse lhe atravessado as costas. Queria sumir dali, sem olhar para o rosto de ninguém. Nenhuma pessoa tinha coragem de tocar naquele assunto, seu algoz nos últimos dez anos. Os rituais que o levavam a cuidar da aparência pessoal, aprisionavam-no de forma implacável em exigências e atitudes repetitivas que o conduziam ao desespero, motivando-o a procurar os melhores médicos, inclusive fora do país. Nenhuma terapia comportamental foi capaz de limitá-lo nos rituais ou amenizar a angústia em não ceder, mesmo que por minutos, ao desejo de se arrumar, para ficar melhor e mais bonito. Sempre fora um homem vaidoso, queria ser diferente dos irmãos gêmeos, ter algo a mais, que o destacasse. Só não imaginava que isso fosse se transformar em seu calvário, impedindo-o de ir a lugares ou falar com as pessoas, aparecer em público, concentrar-se em qualquer outra coisa que não na aparência, em tempos de grandes crises.
Mas daí a alguém ter coragem de tocar naquele assunto, de modo tão desrespeitoso, jamais. Afinal, tratava-se do líder do Chiamare, o grande Pescador de Vidas. Nunca pensou que Diogo pudesse ser tão cruel. Todos que o conheciam sabiam que era um assunto velado.
Permaneceu imóvel, quase sem respirar.
Mais uma vez a campainha soou.
— Agora é ele, podem abrir. — anunciou Diogo.
A empregada magra novamente atendeu a porta e deixou que Lucas entrasse. Atrás dele apareceu outro rapaz, vestido como essa juventude louca que Saulo abominava. Cândida correu para acolher o filho. Até Edgar demonstrou brandura e celebração. Finalmente algo que lhe tirou de seu transe.
— O que houve, meu querido? — perguntou Cândida, enchendo-o de beijos.
— Estávamos todos preocupados, filho. — contou o velho Juca.
Mesmo a velha Augusta, com sua eterna depressão e semblante de lamentação, esboçou algum sorriso.
Apesar da alegria, Saulo e a família Rebelo não disfarçavam a desconfiança acerca do rapaz que o acompanhava. Lucas apresentou Delano como o amigo que o salvou, mas foi depois de Diogo confirmar, dizendo ter sido o mesmo rosto que aparecera em suas visões como um anjo protetor, que todos baixaram a guarda e o agradeceram. Edgar foi quem mais demonstrou resistência ao rapaz, mesmo após a revelação do amigo.
O dom de Diogo era muito forte, e se ele dizia, Delano seria muito bem-vindo ao Chiamare, mesmo com aquelas roupas de roqueiro. Talvez tivesse sido um novo missionário resgatado das ruas por Lucas. Isso, a pessoa que Saulo precisava para acalmar os ânimos de seu pupilo.
No entanto, o pior para Saulo foi a confirmação de Lucas que fora realmente liberado por ele mesmo para sair da comunidade naquele noite. Talvez Diogo tivesse razão e precisasse procurar um médico urgente. Sua memória não vinha nada bem e aquilo começava a preocupá-lo. 

~
Diogo abriu a BMW com o controle do alarme e entrou no veículo. Em seguida, ascendeu a luz da cabine e alinhou o retrovisor à sua frente. Viu o reflexo de quem exatamente no espelho? Era Diogo realmente?
Perfeito!
— Passei no teste diante de todos. Muito bem, Thomás. Está cada vez melhor. — comemorou, afirmando para si mesmo.




28


Alguns dias haviam se passado desde o jantar com Saulo Sobreira. Alguma coisa tinha mudado acerca da percepção de Laura sobre o Pescador de Vidas. Naquela noite ele desvelara outro lado, diferente do homem vaidoso apresentado pelas capas de revistas. Parecia mais sensível e estar sofrendo por carregar o peso de uma instituição em suas costas, obrigando-se a decisões políticas que iam de encontro aos próprios valores. A última semana foi repleta de dúvidas, uma confusão se instalou em sua cabeça no que diz respeito ao conceito ou preconceito alimentado por ela envolvendo o líder espiritual do Chiamare.
Muito de sua visão fora fomentada pela versão de Diogo nas partilhas sobre o irmão. Duvidar do próprio feeling e das percepções acerca do caráter de Saulo, não seria também uma forma de pôr em xeque a dor do amigo? Por isso preferiu não dividir nenhuma de suas atuais interrogações com ele. O caminho jornalístico a ser percorrido durante as investigações certamente proporcionaria condições às suas próprias conclusões. O que a deixou ainda mais atenta a cada aproximação com a comunidade ou qualquer pessoa que pudesse lhe fornecer pistas da verdade cercando Saulo Sobreira. Como naquela noite, que fora convidada por Guilhermina a acompanhar o grupo de missionários em seu trabalho nas ruas de Fortaleza.
A oportunidade de conhecer como tudo começou.
Laura foi de táxi do apartamento de Diogo até o Chiamare, de onde as equipes missionárias saíriam em oito caminhonetes. O trabalho envolvia uma média de quarenta pessoas in loco, dividindo-se em duas equipes diferentes que atuariam em pelo menos seis pontos do centro de Fortaleza cada uma. A ação realizada pela comunidade acontecia normalmente todas as noites, conduzida por diferentes irmãos, levando além do evangelho, uma comida diferente a cada dia.
Estranhou o próprio nervosismo por reencontrar o Pescador de Vidas. Este a cumprimentou com uma formalidade desproporcional à intimidade estabelecida entre os dois no jantar dias antes. Procurou, contudo, compreender, talvez pela presença de Guilhermina, Lucas e o motorista no carro que os levou.
Lucas! Uma noite que prometia. Laura estava ao lado de Lucas, no banco de trás da caminhonete. Tão próxima de seu passado, daquele rapaz franzino e alto que lembrava-lhe tantas dores. Tentou reconhecer nos traços bonitos de seu rosto, um pouco da história que por anos foi sufocada pela mesma violência existencial responsável por afastá-la daqueles a quem amava. No entanto, nada enxergou nele além pureza, despertando-lhe um desejo descomunal em abraçá-lo, como que por uma redenção. Não era Lucas não curava as feridas da alma?
Durante o percurso, do Chiamare ao centro da cidade, olhou diversas vezes para Saulo, no banco da frente do passageiro, com a visão de seu perfil. Em alguns momentos também pensou tê-lo visto a observá-la de soslaio. Talvez a perscrutasse como ela a ele. Um mistério estabelecera-se entre ambos e aquilo a provocava, incitando a curiosidade e ansiedade por aquela noite.
Permaneceu apática à mística espiritual com a qual o grupo conduziu todo o encontro com os moradores de rua, no primeiro ponto, próximo à Praça José de Alencar. Laura ficou atenta à forma cuidadosa com que os missionários se aproximavam, procurando não invadir seu espaço e ao mesmo tempo, sendo acolhidos com alegria por aquelas pessoas. Saulo propôs formarem um círculo de mãos dadas, onde foi lido um texto da Bíblia e em seguida, cantaram várias músicas, acompanhados por um violão de um dos membros da equipe. Por fim, foi servido baião de dois, paçoca e suco para todos. Lembrava uma festa, um banquete.
Em alguns momentos, Saulo lhe antecipava ou explicava o que estava sendo feito, como se narrasse um romance. Uma satisfação à jornalista ou um cuidado pessoal a ela? O líder do Chiamare e todos os seus missionários pareciam realmente felizes em fazer aquilo. E aquela gente, tão agradecida! Muitos, certamente já os conheciam e tratavam-nos pelo nome. Por mais que tivesse suas críticas, precisava reconhecer o bonito trabalho realizado por eles. Dividia-se numa observação atenta, com olhos de águia, tanto ao movimento do líder da comunidade quanto a cada passo dado por Lucas. Queria saber o exato momento em que usaria seu dom, se usaria.
A segunda parada, na Praça da Lagoinha, causou-lhe muitos incômodos, tanto pela presença dos ratos, que corriam em disparada de um lado para o outro, quanto pelo odor de urina propagado por todo o ambiente. Entretanto, a equipe foi novamente recebida com a mesma alegria e empolgação. O ritual repetiu-se, mas desta vez, os moradores pareciam mais envolvidos e cantavam com fervor. Ao final, um senhor de barba longa, aparentando uns 60 anos, fez uma fala emocionada de agradecimento, afirmando que quando a equipe vinha até eles, era Deus lhes carregando no colo, mostrando-lhes que não estavam abandonados. Um arrepio subiu-lhe pela espinha. Laura ouvira a voz de quem sentia mais profundamente o efeito daquela ação. O que a deixou mais tocada, foi a atitude de Saulo diante do homem, que se aproximou do mesmo, com os olhos encharcados de lágrimas e o abraçou.
Na terceira parada, ao lado da Praça da Estação, acompanhou o ritual muito mais pelos sentidos do que pela mente. Sentiu na Palavra lida por Saulo, no círculo entre os moradores, uma alegria ao ouvi-la. Sim, uma mística forte envolvia tudo aquilo, cada palavra, cada nota musical dedilhada nas cordas do violão, a comida entregue com ternura, o sorriso nos lábios dos missionários e de quem a recebia. Homens, mulheres e crianças abandonadas à própria sorte, judiados pela realidade cruel de um sistema que os jogou à margem. Do outro lado, pessoas fazendo o bem, levando comida e bebida, o alento ao coração de uma gente esquecida pela sociedade e temida por ela.
Senhor Jesus Cristo que dissestes aos vossos apóstolos
“Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz
Não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima a vossa Igreja.
Dai-lhe, segundo o vosso desejo, a paz e a unidade.
Vós que sois Deus, com o Pai e o Espírito Santo.”
Recordou-se daquela passagem nos tempos de catecismo. Por mais que não concordasse com determinadas decisões políticas envolvendo a estrutura do Chiamare, não podia negar seu carisma. Ali eles eram sim pescadores de vidas! E Saulo Sobreira, sem dúvida nenhuma um grande líder espiritual. As reflexões trazidas por ele após a leitura dos textos, tocavam até mesmo a ela em seu ceticismo. Pensar em sua vaidade estampadas nas capas de revistas e roupas caras, bem como expôs uma fragilidade escondida quando jantaram juntos, e agora o dom da palavra e de tocar o coração das pessoas. Por isso chamavam-no “o grande Pescador de Vidas”.
Foi na quarta parada, a alguns quarteirões, na Avenida do Imperador, que Laura viu pela primeira vez o fenômeno — Saulo com a mão estendida a uma mendiga deitada no chão, convidando-a para que seguisse seu coração. Momentos depois, a mão dela vai ao encontro daquela que a aguardava e a mulher é recebida aos prantos nos braços do líder do Chiamare. Laura procurou imediatamente por Lucas, e ele estava a alguns metros, apoiado por outro missionário, tremendo, como Diogo no aeroporto e no dia em que fez a louça do café levitar.
— Teu caminho agora, filha, é o caminho de Deus. — sentenciou Saulo à mulher.
Como eles escolhiam? Como sabiam quem poderiam pescar? Por que aquela mulher e não outra pessoa? Era justo? Aquilo não seria mexer com o destino das pessoas? Se ela realmente quisesse ir com ele, por que usar o dom de Lucas? Que poder era aquele de mudar o desejo das pessoas? Em nome do bem, podia-se fazer uma lavagem cerebral? Não seria um efeito parecido com o da lobotomia?
Laura ficou inquieta, desejando perguntar a alguém. Precisava de respostas.
Após entregar a mulher nas mãos de outros missionários, Saulo se aproximou.
— Como está sendo para você esta experiência? — inquiriu ele, com um tom diferente do que conversaram vezes anteriores. Parecia outra pessoa, tomado por uma força estranha, mas nobre. Algo que parecia maior que ele. Seria a presença de Deus, como eles falavam?
— Estou confusa com o que vi. — não tinha como encobrir o que sentia naquele momento. — E o livre arbítrio que os católicos falam tanto, onde fica?
— Do que está falando?
— Sei o que o Lucas pode fazer.
Saulo pensou um pouco e sorriu.
— Diogo... ele lhe contou, não foi?
Ela fez que sim com a cabeça.
— Confesso que estou confusa.
— O que o Lucas faz é desvelar uma cortina no coração das pessoas. — explicou Saulo. — O que viu aqui não foi voltado exclusivamente para esta mulher. Mas para todos. Ela se sentiu tocada e se deixou curar. Nisto reside seu livre arbítrio.
— Poderia ter acontecido com outras pessoas ao mesmo tempo, então?
Saulo balançou a cabeça positivamente.
— Inclusive com você, se assim permitisse. — disse ele e saiu.
O que a deixou ainda mais confusa ao mesmo tempo. Compreendia plenamente as angústias que afastaram Diogo de todo aquele mundo. Não sabia como se dava aquele dom ao certo e se realmente existia. Se era verdade, até que ponto não se tratava de um meio para manipular os desejos das pessoas? Em nome do bem, da fé podia-se transformar de tal modo a vida das pessoas? Eram mesmo pescadores de vidas ou aprisionadores de almas? E aquele rapaz, usado em sua fragilidade à manutenção de uma estrutura colossal. Ao mesmo tempo, quanto bem realizado, quantas alegrias promovidas, quanta emoção despertada. Ela mesma estava tão tocada que se perdia de seus questionamentos em admiração e encantamento.
Foi na quinta parada, na Praça do Carmo, quando se encontraram com a outra equipe, que visitava outros lugares, que se deparou inadvertidamente com seu passado. Ao saltar da caminhonete se pôs diante daquele que jurou nunca mais encontrar — Juca Rebelo. Ele estava impávido e a olhou da mesma forma de vinte anos atrás, sem a menor misericórdia.
...juntar esses pedaços apartados pelo ego.
Impossível! Tanta dor envolvida. Não tinha forças para enfrentá-lo novamente.
Onde você está, Diogo? Preciso de você! Me ajuda!
Estou aqui do seu lado. Ouviu-o soprar-lhe ao ouvido.
Um ímpeto vital, uma coragem descomunal a preencheu completamente, como se Diogo estivesse presente.
Laura estendeu a mão para cumprimentar aquele homem.
— Laura Ponte, como vai? — disse ela, sorrindo.




29


Lucas calculou uns dez metros de distância para alcançar Delano na corrida disputada pelos dois nos jardins do Chiamare. Haviam iniciado há pouco mais de vinte minutos e já não conseguia mais manter um fluxo equilibrado na respiração. Sem falar na dor causada pela câimbra que tentava conter no tornozelo direito. Totalmente fora de forma. Faltava muito para atingir o preparo físico do novo amigo. Desde que se conheceram há uma semana, na noite em que fora salvo por ele, encontraram-se quase todos os dias. Delano era educador físico e se comprometera a ser seu personal, pelo menos até o final de sua estadia em Fortaleza.
Nem mesmo as provocações de Delano para acompanhá-lo, impediram-no de parar e jogar-se no chão, pressionando o local da câimbra e uivando pela dor sentida. Mais rápido que pudesse imaginar, seu treinador pôs-se ao seu lado.
— Uma dorzinha de nada dessa, rapaz? — disse Delano, sorrindo, como se estivesse feliz por vencê-lo. Em seguida estendeu-lhe a perna devagar, orientando-o a respirar.
— Dorzinha? Parecia que minha perna seria quebrada ao meio!
— Bobagem. Falta de treino.
— É para isso que está aqui.
Delano deu a mão e ajudou-o a levantar. Depois sentaram-se num banco ali perto para tomar água. Errado! Não somente para cuidar de seu preparo físico que Delano vinha à comunidade todas as manhãs cedinho. Os dois conversaram bastante durante o treino e Lucas enxergava no misterioso rapaz o único amigo que tivera em toda a sua vida. Tão pouco tempo e já se sentia tão próximo. Não sabia muito sobre ele, apenas que viera de Belo Horizonte e passara os últimos dois anos viajando por diversas cidades em cima daquela moto, após receber uma pequena herança com a morte da mãe. Um andarilho, de hábitos simples e mochila nas costas, autorizado a fazer parte de sua vida por causa das palavras de Diogo. Mas um cara com uma maturidade que ultrapassava seus 24 anos. Às vezes falava como seus pais ou o irmão mais velho, amigo, que sempre desejou ter.
A confiança construída a cada encontro foi permitindo-lhe partilhar os segredos nunca revelados a um estranho, fora da família de consagrados do Chiamare. O dom e sua missão na obra, a difícil relação com o pai, a distância de Salomão e as restrições impostas por Saulo foram alguns temas travados em longos diálogos com o amigo. Delano limitou-se a ouvi-lo e fazer algumas perguntas de como se sentia diante do exposto, bem como o queria fazer com aquilo. Ora, o que queria fazer? Sinceramente, não compreendia. Não tinha escolhas. No entanto, ele o tratava como se as tivesse.
— Todas as respostas estão dentro de você, meu amigo. — declarou Delano, numa das partilha.s — É você o senhor do seu destino!
Isso porque ele não convivia diariamente com Saulo Sobreira, dizendo o que pode e o que não pode fazer.
O fato é que Delano foi a melhor coisa que lhe aconteceu nos últimos tempos. O primeiro e único amigo.
— Estou indo embora de Fortaleza este fim de semana, Lucas. — Delano aproveitou para anunciar, após um gole d’água naquele momento de descanso.
Embora?!
Sim, já era de se esperar. Há alguns dias o amigo dissera que o dinheiro estava acabando e que precisava voltar para casa. A aventura chegava ao fim. Entretanto, Lucas preferiu não pensar no assunto e aproveitar sua presença até o último momento. Talvez por isso mesmo Saulo tenha permitido tão facilmente aquela aproximação. Porém o grande dia havia chegado e tinha que encarar a realidade. Breve estaria só novamente!
É você o senhor do seu destino!
Podia fazer alguma coisa. Tinha que fazer algo para impedir! Mas o quê? Se usasse o dom para convencê-lo a ficar? Bom, Delano alegara questões financeiras. Isto é, não era o caso de fazê-lo mudar de ideia e sim de propiciar condições para sua permanência. O que exatamente? Nunca precisou resolver nenhum problema, propor qualquer solução diante de uma adversidade vivida. Sempre teve pessoas pensando por ele. O que o impedia de criar estratégias. Teve raiva por se sentir tão criança. Se fosse Salomão, certamente saberia o que e como fazer.
A droga dessa comunidade não é nada sem os teus poderes. Recordou-se das palavras do irmão.
Pronto, tomaria sua primeira atitude de homem na vida. No que dependesse dele, Delano não iria embora.




30


Laura pagou a corrida ao taxista e saltou do veículo apressada em frente ao restaurante na Rua Dias da Rocha, no qual marcara um jantar com uma ex-missionária consagrada do Chiamare. A mulher que deixou a comunidade para casar com um empresário há alguns anos poderia dar uma grande contribuição à sua matéria.
Ao entrar no local, dirigiu-se a um garçom para saber se a pessoa já estava aguardando e avistou por cima do ombro do rapaz a figura de Saulo Sobreira numa mesa, no canto do restaurante, acompanhado de uma mulher, de costas. Ela seguiu os passos de um cumim, procurando se esconder por trás de uma escultura de metal que separava o ambiente da entrada dos toaletes. De onde pôde observar o casal. Ele parecia que já estava pagando a conta e quando o garçom que o atendia os deixou, tocou na mão da mulher por sobre a mesa, como fez com ela, quando jantaram juntos.
Parecia um gesto de sedução, pela forma como a olhava.
Será que é o que estou pensando?
Em seguida o casal levantou e ele a conduziu até a saída. Laura procurou disfarçar para que ninguém a percebesse, e os seguiu. Por pouco não esbarrou num cumim e sua bandeja repleta de louças, na porta do restaurante. A alguns metros à sua frente, Saulo tomou a mão da mulher, como um casal de verdade e caminharam até a próxima esquina. Laura precisou se esconder entre alguns carros estacionados para que não fosse descoberta.
— Precisa de ajuda, dona? — a voz atrás dela a assustou. Um guardador de carros. — Desculpa, moça. Assustei você?
Ela estava com a mão no peito, sentindo a própria taquicardia.
— Nada. Vim tomar um ar. — disfarçou. — Obrigada.  — O rapaz seguiu seu caminho e ela pôde retomar o foco.
Saulo fez um giro com a cabeça, como se procurasse se certificar de que não havia ninguém observando. Depois, os dois se beijaram. A mulher parecia bonita, trinta e poucos anos, bem vestida e uma larga aliança na mão esquerda, que mesmo de longe, chamou a atenção de Laura. Em seguida, o casal despediu-se, ela entrou no carro e Saulo acompanhou de fora sua partida.
Que canalha!
Estava certa de que o Pescador de Vidas não passava de uma farsa. Pregava o evangelho, falava de uma moral firme, fizera votos de castidade e mantinha casos com mulheres casadas. Talvez até fiéis da própria comunidade. A conversa que tiveram na noite em que saíram certamente tinha sido uma tentativa de seduzi-la, como as outras, como aquela mulher que ele acabara de beijar.
Bom, o fato é que Saulo Sobreira dava uma de bom moço, quando na verdade não passava de um Don Juan. O que mudaria completamente o direcionamento da matéria sobre ele e sobre o Chiamare. Para isso precisaria de provas. Ela mesma poderia ser a testemunha, caso se apresentasse ali naquele momento para ele. Flagrante! A ideia era desmascará-lo logo de uma vez, acabando com qualquer jogo que o líder do Chiamare pudesse estar arquitetando em relação a ela.
Era mesmo o momento?
Se não o fizesse, teria a possibilidade de vê-lo até onde seria capaz de ir com suas mentiras. O que enriqueceria a matéria.
O Pescador de Vidas — uma grande farsa!
Precisava de uma explicação.
— Saulo Sobreira? Que surpresa vê-lo aqui, e com aquela mulher! — Laura se aproximou, com sorriso vitorioso. Ninguém engava seu faro jornalístico por muito tempo.

~
— Essa mulher me persegue. — justificou Thomás a Laura, com tom de seriedade, procurando disfarçar a felicidade por enganá-la tão bem mais uma vez. Qualquer pessoa que o visse ali, não teria a menor dúvida tratar-se de Saulo Sobreira.
Ele a havia convidado para retornar ao restaurante, a fim de que pudesse lhe explicar o fato. Por sorte, a pessoa com quem Laura se encontraria mandou-lhe uma mensagem pelo WhatsApp avisando que atrasaria um pouco mais.
— Como assim lhe persegue? — questionou Laura. — Eu os vi bem íntimos, tanto aqui no restaurante, quanto lá fora no carro.
— Não tem ideia do que é estar à frente de uma entidade como esta, Laura. Acabamos por nos tornar o foco de muita gente. Sou uma referência e as pessoas, às vezes, confundem os papéis, compreende?
Laura o observou, parecendo incrédula. Exatamente o que ele esperava, causar uma confusão em sua cabeça.
— Não tenho certeza se são as pessoas que confundem os papéis. — comentou ela. — Você a beijou, eu vi. — ganhou um pouco mais de tempo, como se tomasse coragem e perguntou. — De quem se trata?
— Uma fiel da comunidade.
— Uma mulher casada... — arriscou Laura.
— Sim. Ela está obcecada. Estávamos em um retiro e ela ameaçou gritar que havia sido assediada por mim, caso eu não a encontrasse.
— E isso faz com que você a beije num lugar público?
Ela está com ciúmes. Perfeito.
— Sei que ceder a chantagens é uma bola de neve, mas...
— Não acredito em uma só palavra! — anunciou ela.
Saulo tocou em sua mão por sobre a mesa, como na vez anterior, e também com a mulher momentos antes, fitando seus lábios, provocando-lhe certa hesitação, só depois ela se afastou.
A prova que precisava para saber que Laura mordera a isca.
— Impressionante como fica linda com esse ar de curiosidade.
Laura arregalou os olhos com o elogio.
— Não, acredito! Está tentando me seduzir? — parecia pasma.
— Seduzir? Que péssima ideia tem de mim. Sou o líder de uma comunidade religiosa, Laura. Não ando por aí seduzindo as pessoas. Mas sou verdadeiro.
— Por isso algumas mulheres confundem os papéis.
— Por eu ser verdadeiro?
— Não. Usa do poder de sedução para conquistar todas as pessoas.
— Você é bem direta.
— A vida me ensinou a ser assim.
— Não diria que isto seja uma ótima característica de um jornalista. Mas que faz de você uma pessoa incrivelmente interessante, não tenho dúvidas.
— Uau! — Laura apoiou o queixo por sobre as mãos cruzadas e os cotovelos na mesa. — Imagino o quanto as mulheres do Chiamare devem se deslumbrar com suas verdades.
— Outra característica sua, a ironia?
— Olha aqui, Saulo. — trouxe um tom mais sério. — Não tenho nada a ver com sua vida particular. Vim a Fortaleza para fazer meu trabalho.
— Mas eu sou seu trabalho. E me preocupa o que pensa a meu respeito.
— Ah, entendi... sua preocupação é que eu exponha o que vi lá fora, na matéria?
— Não somente. Estou tentando compreender o que sinto neste momento.
— Pois vou lhe dizer o que penso sobre você. Para mim não passa de um charlatão, que se aproxima das pessoas usando de sua fé, sua confiança, para manter-se no poder. Você as engana, mente. E tudo para alimentar a própria vaidade.
Thomás teve vontade de rir, celebrar o quanto fora perfeito. Finalmente alguém enxergava a verdade acerca daquele crápula, mesmo que diante de uma mentira. Dando sequência a seu plano, Laura seria mais que uma aliada, a peça fundamental para desmascarar o irmão. Para tanto, bastava fomentar seu ódio tocando naqueles pontos que tinha de mais nevrálgicos.
— Veste-se de religiosidade para conseguir tudo aquilo que quer. — continuou ela.
— Não sabe o que está dizendo, Laura. — interrompeu-a.
— Foi o que vi hoje aqui.
— Estou apaixonado por você!
Pronto, o que faltava para aquela noite. Laura parecia ter visto um fantasma.
— Apesar dos votos, sou homem, tenho meus desejos, e por mais que os reprima, muitas vezes vêm como um furacão. Embora não ceda. — parou um pouco, para tomar fôlego e parecer mais real. — O fato é que desde que te vi pela primeira vez, despertou algo que estava adormecido há muitos anos. O que pensei não mais existir, que é inadmissível para um homem em minha posição. — Thomás deixou que as lágrimas transbordassem. — A possibilidade de me apaixonar.
Ela permanecia imóvel, sem dar uma palavra, assustada.
— Desculpe-me. — disse ele, deixando-a sozinha. A mulher com quem Laura marcara o encontro logo chegaria. Momento de partir, deixá-la com o turbilhão que certamente a movia naquele momento.
A noite estava completa.




31


Lucas abraçou a avó, agradecendo sua compreensão. Dona Augusta, que quase nunca saía de casa, por conta de crises depressivas, havia acompanhado o marido ao Chiamare, a fim de que após a breve reunião do conselho administrativo marcada para aquela tarde, ele a levasse a uma consulta médica. Por sorte, Lucas a viu aguardando na sala de estar ao lado da sala de reuniões e, embora a avó não se envolvesse em nenhum assunto muito sério ou participasse de qualquer decisão familiar, por conta de seus problemas de saúde, ele resolveu partilhar a preocupação acerca da partida de Delano, buscando uma aliada para convencer o avô a deixá-lo ficar na comunidade. Se o dr. Juca Rebelo fosse a favor, ninguém seria contra. Sabia o quanto dona Augusta o amava e gostava de realizar suas vontades, desde menino. O marido jamais a contrariaria.
Estava com sorte. Dona Augusta achou ótimo que o neto tivesse um amigo.
Que feliz estratégia! Agora sim, sentia-se um homem de verdade, lutando por seus objetivos. Maravilhosa a sensação. Sentia-se como se realizasse uma grande missão, feito os heróis dos filmes que lhe era permitido assistir. 
Isso, Lucas. Tu não é mais menino, mah! Salomão talvez lhe dissesse isso.
Deste modo, logo que a reunião teve fim, todo o conselho saiu e veio ao encontro dos dois na sala de estar. Zica foi providenciar um café fresquinho em homenagem à presença ilustre e rara de dona Augusta na comunidade. Lucas aproveitou o momento, chamou o avô de forma reservada e falou sobre Delano e a possibilidade dele ser acolhido no Chiamare e trabalhar como personal trainer para a obra. 
— Filho, não sabemos nada sobre esse rapaz. — contemporizou Dr. Juca.
— É um menino de bem. O Diogo não disse? — interviu dona Augusta, aproximando-se dos dois.
O presidente do Chiamare parecia surpreso com a intervenção da esposa. Ela procurava omitir-se de qualquer problema familiar há vinte anos, desde que fora diagnosticada depressiva. Como agora, do nada, revolveu emitir opinião, e justo sobre um assunto que mal conhecia?
— Querida, não temos certeza de nada. Foram algumas visões do Diogo acerca desse rapaz.
— Não confia mais no Diogo? — insistiu ela. — Ora, Juca. Se o Diogo falou, está falado. No mais, eu mesma o vi naquele dia em que ele salvou nosso neto. — complementou, segurando a mão de Lucas. — Trata-se de um homem de bem, acredite. Além do mais, estava mesmo precisando de um educador físico para me auxiliar. Acho que pode me fazer bem.
Que apoio da avó! Por aquilo não esperava e certamente nem o Dr. Juca. Dona Augusta mal falava com as pessoas, sempre triste, cabisbaixa, calada e de repente transformara-se em sua grande cúmplice.
— Do que estão falando? — Cândida procurou saber, chegando mais perto.
— Teremos um educador físico trabalhando conosco aqui na comunidade. — foi dona Augusta quem anunciou.
— Não compreendi?
— Lucas está sugerindo que contratemos os serviços desse rapaz que o salvou. — explicou Dr. Juca.
— É, e ele poderia morar aqui na comunidade. — completou Lucas, animado.
— Mas nem sabemos quem é ele direito. — Cândida questionou de pronto. — Sei que está grato pelo que ele fez, filho, mas não tem cabimento.
— É outra assembleia? — brincou Edgar, saindo de onde estava, ao lado de Saulo, Guilhermina e Pe. Giuseppe.
— Podemos aproveitar e falar já com todos. — sugeriu dona Augusta, sorridente. A mulher parecia outra pessoa naquele momento. Há muitos anos ninguém a via daquela forma. Normalmente ela se retiraria logo após o término da reunião. Lucas estava certo de que os anjos haviam-na trazido ali para ajudá-lo.
Os demais se aproximaram.
— Vamos, Juca. Fale! — foi quase uma ordem de dona Augusta ao marido. O homem temido por todos estava claramente assustado com a atitude da mulher, de quem escondia todos os problemas, há muitos anos, para poupá-la.  Os mimos e o cuidado excessivo do Dr. Juca Rebelo à esposa era do conhecimento de todos, por temer que aborrecimentos cotidianos pudessem piorar seus problemas de saúde.
— Estávamos aqui falando da possibilidade de contratarmos esse amigo do Lucas, o... — esqueceu o nome.
— Delano. — Lucas completou.
— Isso. Delano — afirmou Dr. Juca, reticente, olhando para a mulher. — Parece ser um bom profissional como educador físico.
— É, eu o vi com o Lucas no jardim algumas vezes. Acho que é bom mesmo. — concordou Pe. Giuseppe, para a alegria de Lucas.
— Não concordo! — Cândida foi categórica. — Que ele esteja frequentando a comunidade tudo bem, mas daí trazê-lo para cá, aí já é um pouco demais. Nós não sabemos quem é esse rapaz.
— Mãe, ele é meu amigo! — disse Lucas.
Lamentou que logo sua mãe fosse contra. Justo ela, que sempre lhe apoiou e fazia de tudo para vê-lo feliz. Até a avó, ausente do mundo real, tivera um surto de sobriedade e cumplicidade, dispondo-se a ajudá-lo. Por que Cândida se opunha? Poderia estragar tudo. O que queria ela afinal, vê-lo sozinho como sempre fora? Talvez Salomão tivesse razão e todos só quisessem explorá-lo. Até sua mãe? Teve vontade de dizer umas verdades. Se falasse alguma coisa naquele sentido era possível que ela pensasse que alguém fizera-lhe a cabeça. A culpa certamente cairia sobre Delano, seu novo amigo. Melhor seria calar e deixar por conta de sua aliada.
— Bom, confesso só tê-lo deixado estar com o Lucas porque o Diogo disse que seriam grandes amigos e muito importante para a vida dele. — explicou Saulo.
— Pois gostei desse rapaz. — assegurou dona Augusta.
Isso, vó!
— A senhora, dona Augusta? — surpreendeu-se Guilhermina.
— Pois se minha mãe está de acordo, nós o contrataremos. — foi Edgar quem deu o veredito, fitando a esposa.
Nunca pensou ser beneficiado com as provocações de Edgar a sua mãe. De certo ele havia concordado para contrariá-la. Sentia muito, mas achou bem-feito para ela.
— Então, está decidido. Ele virá morar aqui no Chiamare. — concluiu dr. Juca, com toda a sua altivez.
— Claro, claro, não vejo problema algum. — concordou Saulo com um tom reprovador. A última palavra tinha que ser dele, mesmo que para acatar, contra a sua vontade, a decisão do presidente do conselho, como de costume.
Dona Augusta apertou a mão do neto em cumplicidade. Seu posicionamento fora de fundamental importância.
O primeiro objetivo de sua vida finalmente alcançado por mérito próprio. Delano sem dúvida nenhuma tinha vindo para fazê-lo mudar. A partir de agora, muita coisa seria diferente.




32


A imagem de Saulo Sobreira beijando aquela mulher na rua insistia em povoar a mente de Laura, provocando-lhe muitas interrogações e uma inquietação para ela pouco conhecida.
Estou apaixonado por você! Uma declaração que se seguia à recordação da cena flagrada por ela.
Quem era este homem afinal? O que pretendia com tudo isso, arriscando-se num jogo de sedução onde transitava livremente entre uma verdade comprovada pela experiência da fé e o limiar de uma personalidade duvidosa, tendo como testemunha justo ela, uma jornalista incumbida de escrever sobre o Chiamare, capaz de revelar ao mundo segredos que talvez fosse melhor ficarem escondidos?
Primeiramente precisava compreender o que estava acontecendo consigo mesma. O que havia mudado em relação à sua percepção acerca do líder do Chiamare? A certeza de ser ele um charlatão de repente era substituída em alguns momentos por algo forte experimentado por ela há alguns dias quando o acompanhou na missão às ruas da cidade. Ali pôde sentir de perto o que eles chamavam de carisma da obra. Aquilo era real, verdadeiro, quase palpável. Para Laura, inacreditável, como Diogo ter feito a louça levitar, mas que contorcera completamente suas antigas crenças e forma de enxergar o fenômeno da fé.
Não tinha como negar, o dom de liderar e tocar com a palavra fazia de Saulo Sobreira um homem especial. No entanto, a forma de administrar estruturalmente a comunidade, aproveitando-se do trabalho ingênuo de milhares de pessoas arrebanhadas pela fé, a fim de manter o conforto e requinte de meia dúzia de superiores, faziam-na duvidar de seu propósito.
Laura entrou no apartamento de Diogo, trancou a porta e colocou as chaves no console ao lado. A penumbra estabelecida pela luz de um abajur, aliada ao cheiro forte de incenso e à melodia delicada de uma música instrumental vinda provavelmente do escritório do amigo, criava uma atmosfera totalmente introspectiva e de paz no ambiente. Ela foi até a cozinha americana e serviu-se de um copo d’água, em seguida voltou à sala e largou-se no sofá, na companhia de diversas interrogações acerca do Pescador de Vidas.
O que está acontecendo com seu faro jornalístico, Laura Ponte?
— Interferências do coração. — respondeu-lhe uma voz serena. Diogo, escorado na quina do corredor, segundando uma caneca de chá.
— Ainda está acordado?
— Terminei uns trabalhos, resolvi esperá-la chegar. — Diogo aproximou-se e sentou na poltrona ao lado. — Como foi a entrevista?
— Ah, foi ótima. Visões diferentes possibilitam uma maior aproximação da verdade.
Ele tomou um gole do chá, sem tirar o olho dela, depois colocou. — Laura, tome cuidado com Saulo.
Será que ele viu o que houve?
— Não, não vi. — respondeu Diogo, calmamente.
— Está lendo a minha mente? — perguntou, com ar questionador, erguendo a cabeça. Ele não tinha o direito!
Diogo sorriu, pousando a caneca na mesinha ao lado. 
— Desculpe-me. Ando preocupado com você.
— Isso não te dá o direito de invadir a minha mente.
O que antes era um charme, agora Laura enxergava como antiético.
— Vejo que as coisas mudaram.
Ela se levantou e foi até a porta da varanda, de onde se tinha uma visão ampla da Av. Padre Antônio Tomás, da qual podia-se observar os carros lá embaixo, em miniatura. Estavam no 14° andar. Tentou não pensar em nada ou direcionar o raciocínio ao movimento da rua, para que Diogo não tivesse acesso às suas dúvidas.
Diogo se aproximou, colocando a mão em seu ombro. — Não quero vê-la sofrer.
Laura também não queria magoá-lo, por isso evitava falar de Saulo. Encontrava-se confusa com seus sentimentos. Tinham alimentado grande afeto um pelo outro, desde que haviam se conhecido em São Paulo, há mais de um mês. Por um momento, ela pensou estar apaixonada. Agora, tudo mudara. O retorno à Fortaleza provocou-lhe um rebuliço emocional.
Ela pôs sua mão por sobre a dele, delicadamente. Sentia tanta ternura. Depois, voltou-se ao amigo, tendo a visão perfeita de seu rosto. Diogo era lindo. Como duas pessoas podiam ser tão parecidas? Como se estivesse diante de Saulo.
Estou apaixonado por você!
— Estou apaixonado por você! — disse ele com a mesma entonação do irmão, horas antes.
Desejou beijá-lo. Mas quem afinal?
Diogo tentou uma aproximação e ela desviou, voltando à sala.
— Estou cansada. Acho que é hora de dormir. — disfarçou.
— Cuidado com os jogos do meu irmão. Ele quer iludi-la, como fez comigo e Thomás.
Será que Diogo falava como um homem ciumento ou alguém que podia enxergar além do aparente?
O som da campainha cortou o silêncio estabelecido com a advertência.
Ainda bem!
Diogo foi até a porta, olhou primeiro pelo olho mágico e anunciou. — É hora de seu encontro com o passado.
Do que estava falando?
Em seguida, abriu a porta, cumprimentou a pessoa e deu espaço para que ela entrasse.
Foi como se o chão saísse de baixo de seus pés. Laura não acreditava em quem estava diante dela.
É hora de seu encontro com o passado. Sim, seu passado, em carne e osso.
Edgar também parecia apreensivo, nervoso ou coisa assim. Falou algo em relação ao horário impróprio, mas que precisava vê-la. A mesma voz de vinte anos atrás. Laura seria capaz de reconhecê-la onde estivesse. Tantas alegrias, tantas dores vieram à sua mente. Suas mãos formigavam e um tremor alastrou-se pelas pernas ao ver aquele homem ali.
— Bom, vou deixá-los a sós. — anunciou Diogo, trancando a porta atrás de Edgar.
Laura pensou em pedir para que ficasse e mediasse aquele encontro. Certamente não seria como o dia em que se viu diante do Dr. Juca Rebelo e os dois fingiram não se conhecer. Com Edgar seria diferente. Muito seria dito, feridas provavelmente seriam reabertas, alicerçadas pelo abandono e rejeição de quem amava. Assim como também a oportunidade que teria de exigir explicações, entender por que tudo havia acontecido daquela forma tão cruel, sendo ela afastada dos seus. Sim, um acerto de contas!
Pediu mentalmente que Diogo a ajudasse.
Não se preocupe. Estou aqui. É hora de começar a juntar seus pedaços. Ouviu claramente a voz do amigo, que olhava silenciosamente para ela de forma terna. Em seguida, Diogo os deixou.




33


Após se desfazer de algumas folhas secas das mudas no balcão da estufa, Cândida retirou o avental e deixou o único local no qual experimentava um pouco de paz nos últimos anos. Precisava dar conta de questões burocráticas da obra e já estava atrasada. No jardim, avistou o mais novo agregado do Chiamare podando umas roseiras.
Delano fora contratado como educador físico, o que fazia ali cuidando das plantas? Alguma coisa fomentava suas desconfianças acerca daquele rapaz. Não sabia ao certo do que se tratava. Logo após ter sido convidado a trabalhar na comunidade, mudou-se de mala e cuia no dia seguinte. Todos acharam aquilo normal. Ela não! Necessitava de maiores explicações. Talvez fosse o momento de buscá-las.
No entanto, preferiu observá-lo um pouco mais, sem que ele a percebesse. Parecia ter jeito com a natureza e esboçava um semblante de homem feliz. Depois de algum tempo, Delano deixou a tesoura de lado e foi em direção ao chuveirão do jardim. Um lugar lindo, projetado por Cândida, repleto de rosas, as mais variadas, incutidas em pedras que formavam uma cascata com água corrente. Ali, tirou as botas, a camisa e se enfiou com o jeans debaixo d’água, feito um menino, brincando na rua em dia de chuva. Uma alegria de se contagiar.
Rapaz bonito, pele branca e cabelos negros, com o corpo em forma, esbanjando saúde e juventude. No peito esquerdo, uma tatuagem definia uma forma em oito, o símbolo do infinito. O rosto lembrava alguém que ela conhecia, talvez o jeito de sorrir. Não conseguia saber direito quem.
Quando se deu conta, Cândida também estava sendo observada por ele. Delano desligou a água da cascata, pegou a camisa no chão e vestiu-a ainda molhado, vindo em sua direção.
— O tempo está quente e a água deliciosa. — ensaiou ele uma conversa.
Foi quando Cândida percebeu que estava quase escondendo-se por trás de uns arbustos, sentindo-se meio ridícula por ter sido descoberta.
— Pensei que tivesse sido contratado como personal e não jardineiro.
Delano sorriu de um jeito em que ela pôde sentir sua falta de malícia. Apenas um jovem, como seus filhos. Por que tanta resistência?
— O jardineiro disse que eu podia dar uma mãozinha. — explicou ele. Com isso foram caminhando até a entrada da casa. — Gosto muito de plantas, D. Cândida. Minha mãe também adorava. Talvez seja uma forma de eu me sentir mais próximo dela.
— E onde ela está?
— Morreu há alguns anos.
Cândida parou e olhou para ele. Não viu nada mais que um garoto, precisando de colo. Lembrou-se de Lucas, perdido na rua, sendo salvo por Delano. Se não fosse por ele...
— Por favor, me desculpe. Não sabia. — procurou consertar ela.
Delano desviou o caminho e direcionou-se a um banco ali perto. Cândida o seguiu.
— Sem problemas, D. Cândida.
— Pode me chamar de Cândida, por favor.
— Mas a senhora é a mãe do Lucas.
Pelo menos é educado.
Por favor, não faça com que eu me sinta uma velha.
— Velha, a senhora? — gargalhou. — A senhora é linda.
Ele sentou e Cândida ficou meio perdida com o elogio.
— Mas me conte, Delano. O que faz aqui em Fortaleza?
Delano contou-lhe de quando ficara órfão e a opção por percorrer o Brasil em sua moto, do quanto se sentira perdido nos últimos dois anos e a busca de algo que desse sentido à sua vida. Cândida desejou perguntar sobre seu pai, mas não teve coragem. Em nenhum instante mencionou qualquer coisa a respeito. Compreendeu que também devia ser doloroso para ele.
O que a deixou mais tocada foi quando o viu derramar uma lágrima, recordando-se de um instante vivido com a mãe. Não passava de um menino grande e solitário, aventureiro, mas sensível. Cheio de valores e ensinamentos da pessoa que fora para ele a mais importante de sua vida. Delano precisava apenas de uma família, pessoas que o amassem como amou aquela mãe.
Teve a ideia de mostrá-lo seu refúgio. Convidou que a seguisse. Em pouco mais de um minuto estavam na estufa. Delano ficou maravilhado com a variedade de mudas, flores as mais belas. Cândida sentiu-se tão feliz por partilhar aquele mundo de tanta beleza, seu acalanto com alguém sensível como ele. O rapaz sorria feito um menino e livre de maldade, com a alma cheia da ternura plantada naquele lugar, como ela que se deixava transbordar de Deus quando estava ali.
— Esse lugar é lindo, parece um paraíso. — concluiu Delano, com um sorriso que não cessava.
— Foi essa a ideia quando o construí. — respondeu, feliz por sua companhia.
— Um ambiente como esse, de tanta beleza, só poderia ter sido pensado por alguém como a senhora.
Mais uma vez o elogia a fez perder a graça.
— Bobagem.
Delano olhou a sua volta e mirou uma roseira, fazendo um gesto como se lhe pedisse autorização para tocar. Ela consentiu e ele tomou uma linda rosa nas mãos. Em seguida se aproximou, olhou-a profundamente nos olhos, deixando-a mais uma vez perdida em seus pudores, e depois colocou-a delicadamente em seu cabelo.
— Ela foi criada para isso... para se perder em sua beleza. — disse ele, simplesmente.
Delano trazia um charme todo especial em seu olhar, provocado pelo leve traço de estrabismo quase não perceptível.
Pronto, aquilo a deixou completamente envergonhada. Mal conhecia aquele rapaz, fora contra sua vinda para o Chiamare, e de repente estavam ali, ambos tomados pelo mesmo sentimento. Fundindo-se com a beleza do lugar.
Mas estar sozinha com um rapaz que mal conhecia, embora um moço sem maldade alguma, amigo de seu filho, não pegava bem. Desculpou-se, mencionou um compromisso e saiu.
Ela foi criada para isso... para se perder em sua beleza.
Como um menino podia ser tão encantador com uma senhora como ela?



34


Thomás recebeu o saco de pipoca doce das mãos do vendedor e seguiu tranquilo até o final da Ponte dos Ingleses. O mar estava razoavelmente calmo naquele final de tarde e o sol disputava seu lugar com algumas nuvens que insistiam em escondê-lo. Os ventos dançavam por ali no mesmo ritmo das águas que colidiam timidamente com as velhas pilastras de concreto sustentadoras da construção, feito uma valsa eterna que podia ser apreciada por entre as frestas de seu lastro de madeira.
Ele aproximou-se do rapaz que estava de costas, apreciando uma das vistas mais belas de Fortaleza. Apoiou-se com os cotovelos no parapeito de madeira e pôs-se a saborear a pipoca uma a uma, ao lado do rapaz.
— Como andas o mais novo missionário do Chiamare? — perguntou Thomás, sem tirar o olho de um menino que nadava a alguns metros, voltando para a praia.
— Só faltam os votos de pobreza. Obediência e castidade jamais. — respondeu Delano, acompanhando o mesmo nadador fitado por Thomás.
— Soube que se mudou ontem para a comunidade.
— Sim. Tudo está correndo conforme o combinado. Aos poucos todos eles passarão a confiar em mim.
— E Cândida? — esticou o saco de pipoca na direção do outro, oferecendo-o.
— A única que ainda tinha resistência. — fez um sinal, sem aceitar a pipoca.
— Tinha?
— Sim. Hoje pela manhã tivemos um mágico encontro.
Thomás sorriu. Descobrir Delano tinha sido a melhor coisa. Ele era perfeito para o que pretendia junto à família Rebelo, como Laura. Machucados pela desumanidade daquele povo, ambos carregavam consigo conteúdos profundos que o ajudariam em seu plano de justiça. O rapaz, bem mais, mordido por sede de vingança.
— Vejo que é competente naquilo que se propõe.
— Essa família vai pagar por tudo o que fizeram à minha mãe. E logo!
Só o considerava um pouco impulsivo.
— Cuidado, rapaz, para não pôr tudo a perder. — advertiu-o, tocando em seu ombro. — Vai seguir as minhas ordens.
Delano se desviou de um jeito brusco. — Como disse, não fiz nem faço votos de obediência.
Thomás pôs-se de frente para ele, encarando-o.
— Olha aqui, menino, lutei muito para chegar onde estou. Não é um fedelho como você que vai estragar tudo. — precisava dar logo seu recado. — Deixemos esse trem nos trilhos, do jeitinho que combinamos. Para mim não há problemas em mudança de planos. Basta um telefonema e te tiro da jogada. Ninguém vai sentir falta. — Comeu um pipoca e voltou-se ao mar.
Delano pareceu conter-se.
— Muito bem, seguirei com o que você me orientou — respondeu claramente a contragosto.
— Assim que gosto de ver, rapaz. E agora com você lá dentro será muito mais fácil. Terei a minha justiça e você sua vingança, mas no tempo certo, para que nada dê errado.
— E a secretária, conseguiu neutralizar? — Delano procurou saber.
— Óbvio. Ela está comendo na minha mão. A megera vinha desviando dinheiro da obra há anos para uma conta no exterior.
— E o Saulo Sobreira sabe disso?
— Acredito que sim. Ela faz tudo a mando dele.
— E o velho padre?
— Parece que o Saulo está conseguindo mantê-lo em silêncio, por enquanto. Mas o Pe. Giuseppe deu a ele um prazo para que conte ao conselho sobre o desvio dos vinte milhões. É uma grande podridão o que está por trás dessa comunidade.
— E o que pretende fazer, destruir o Chiamare? Nunca mais será o líder dessa comunidade. Embora consiga provar que eles não prestam, digamos que seus métodos não são nem um pouco ortodoxos. Isto faz de você igual a eles.
Delano falava com um prazer, que às vezes não sabia se realmente estava do seu lado e podia confiar nele.
— Há pessoas de bem lá dentro, sempre teve, — explicou Thomás. — minha ideia é limpar a obra para elas.
— Um justiceiro? — Delano ironizou.
Chega de jogar conversa fora com esse fedelho!
— Faça o que tem que ser feito, rapaz. Iremos nos encontrar novamente, em breve.
Amassou o pacote vazio em suas mãos e em seguida o enfiou no bolso de trás da calça do rapaz. Este, por sua vez, retirou-o num rompante de fúria e jogou-o no mar, impulsionando-se adiante, como se fosse agredi-lo. Entretanto, Thomás aprendera na prisão a não temer nenhum homem. Pôs-se firme diante daquele moleque e segurou-o pela jaqueta.
— Vai fazer o quê, hein? — questionou Thomás, quase o engolindo. Depois o empurrou contra o parapeito. — Acha que tenho medo de um fedelho mijão como você? É?
Delano permaneceu em silêncio, mas sabia que não podia confiar totalmente nele.
— Se algo sair diferente do que combinamos, eu te acho. — sentenciou Thomás calmamente. — Aí vai ver quem é o justiceiro, capiche?
Thomás alinhou o blazer, como o irmão, e saiu. O recado estava dado.
Tinha coisa mais importante para se preocupar. Faltava pouco para Laura aliar-se a ele. Precisaria dar ela o que mudaria completamente sua visão acerca de Saulo Sobreira.




35


Cândida entrou no estacionamento do Chiamare, observou o relógio digital no painel do carro marcando seis horas e cinco minutos, desligou o motor e quando desceu, deu uma olhada disfarçada pelo jardim, à procura de seu mais novo amigo, companheiro de corrida matinal. Procurava chegar cedo todas as manhãs, antes de Delano se ocupar com os exercícios de Lucas. Geralmente o personal já estava a sua espera quando apontava no portão da comunidade.
O que teria acontecido? Por algum motivo ele não apareceu naquela manhã. O encontro havia se tornado uma constante, desde que conversaram pela primeira vez, há uma semana. Por mais que nunca marcassem, estavam sempre ali, no mesmo horário. Delano a ajudava a alongar e depois corriam por quase uma hora, até que Lucas descia para iniciarem sua série de exercícios e ela os observava por um tempo. Achava encantador o cuidado, paciência e dedicação do rapaz no desenvolvimento de seu filho. Vez por outra, ele devolvia o olhar em cumplicidade, sorria e até acenava.
Delano tinha trazido mais vida àquele lugar, com sua presença de espírito, vitalidade e alegria contagiante.
O que houve que ele não apareceu?
Procurou alongar, sem nenhuma concentração e começou a correr.
E se ele estiver doente?
Poderia ligar, mas havia deixado o celular no carro. Ficaria bem ir no quarto dele? Não, se tivesse acontecido algo sério, avisaria a alguém e se não aconteceu, por que não estava esperando por ela, como fazia todas as manhãs? Definitivamente não conseguiria prosseguir sem saber o houve. Delano era um rapaz sozinho e estava preocupada. Desviou o caminho e entrou na casa. Nos primeiros corredores, escondeu-se atrás de uma coluna para que duas funcionárias não a vissem.
Por que estou me escondendo? Não há nada de mais em verificar se um funcionário da obra está bem. Bobagem, Cândida.
Tomou o elevador até o terceiro andar e seguiu pelo corredor de modo a não se aproximar do parapeito lateral que dava para o jardim interno do centro, a fim de que ninguém a visse. Por fim se pôs diante da porta do quarto dele. Antes de bater, pensou em desistir. O que ele pensaria? Tolice, apenas que seu trabalho como personal era importante. Então bateu. Certificou-se mais uma vez que ninguém a estava vendo e mais uma série de toques.
Sentiu o coração acelerar até a porta ser aberta e a figura de Delano surgir em sua frente, vestindo uma calça de moletom cinza. O rosto do rapaz trazia uma tristeza e os olhos afogados em lágrimas. Nada falou.
— O que houve? Aconteceu alguma coisa? — Cândida procurou saber, preocupada com o que vira.
Ele chorou um pouco e com dificuldade, respondeu. — Tive um sonho terrível com a minha mãe. Acordei com muita saudade!
— Oh, meu Deus!
Cândida não pensou duas vezes em se antecipar àquele menino e abraçá-lo. Devia ser horrível a dor, a saudade por ele sentida, sozinho no mundo. Em seguida, ela mesma fechou a porta e sentou na cama, puxando-o pela mão para que fizesse o mesmo. Ele deitou com a cabeça em seu colo e ali chorou por um tempo. Balbuciou algumas palavras em meio ao choro sobre o tal sonho, falou da saudade e que estava só.
— Não, você tem a mim, ao Lucas. O Chiamare é sua casa. — procurou acalmá-lo, acariciando sua cabeça. Em tão pouco tempo, sentiu tanto afeto e carinho por aquele rapaz, como que por um filho.
Percebeu que ele estava ali, em posição fetal, chorando em seu colo, feito uma criança desamparada. Estendeu a mão pelas costas dele e aos poucos, Delano foi cessando o choro. De repente, percebeu-se tremer. Bom tê-lo consigo, acariciá-lo e em alguns momentos senti-lo se arrepiar.
Meu Deus, o que estou fazendo? Não, não era o mesmo que sentia ao cuidar de Lucas ou Salomão. Ao tocá-lo, o próprio corpo respondia como há muitos anos não acontecia. Desde a descoberta da paternidade de Lucas, Edgar e ela dormiam em quartos separados. Cândida não sabia mais o que era ser mulher. O tremor nas mãos suadas, as batidas descompassadas do coração e o calor. Precisava parar com aquilo, mas não conseguia. Desejou abraçá-lo, sentir seu cheiro mais de perto.
Ele é apenas um menino!
Delano segurou-lhe a mão, fazendo-a parar por um instante, em seguida conduziu-a até seu sexo. Cândida fechou os olhos e sentiu a dureza masculina por sobre o moletom. Ambos, trêmulos em plena sintonia. Ele se pôs de pé e despiu-se diante dela. No olhar, o desejo, a entrega. Depois a trouxe para junto dele e a abraçou com tanta ternura. Aos poucos foi lhe beijando o pescoço, num caminho lento e prazeroso até os lábios. Há muito não experimentava aquilo, ser desejada, possuída por alguém.
Um menino!
Não, um homem que a queria, tanto quanto ela a ele! Como numa dança, Delano foi lhe desnudando, retirando as couraças que velava seu coração e a alma. No beijo, o calor, a partilha do desejo no compasso das línguas. Os corpos nus entrelaçados pelo mesmo sentimento.
No momento o sentiu dentro dela, novamente se experimentou inteira, mulher!




36


Thomás observou de forma atenta a imensa imagem de Cristo Ressuscitado suspensa na parede de uma das salas de estar da comunidade. Reconheceu os mesmos detalhes no broche de prata fixado no bolso do próprio blazer. Irônico como havia acreditado no chamado que aquela figura lhe fizera, por isso a escolhera para simbolizar o carisma de sua obra. Agora, o mesmo Cristo que o inspirou, ali de braços abertos sobre mais uma mentira, um falso Saulo Sobreira, feito a que destruiu sua vida, afastando-o de tudo aquilo por doze anos. O que Deus pensaria acerca de seu plano? Estaria Ele do lado da justiça ou continuava a proteger os mesmos bandidos que o enganaram?
Não tinha mais a menor importância! Aprendera que a mentira seria sua maior aliada e que nada podia ser conquistado à revelia daquele princípio maior, chave e manutenção de uma instituição do porte do Chiamare.
O fato é que após a chegada de Delano naquele lugar, o acesso ficara mais fácil para ele e podia estar presente quase que diariamente na comunidade, propagando diversas orientações aos missionários consagrados, funcionários e fiéis contrárias às do verdadeiro Saulo Sobreira. O que vinha enlouquecendo o líder moderador da obra, fazendo-o acreditar numa perda de memória recente, talvez pelo uso exagerado dos remédios contra o transtorno obsessivo compulsivo. A própria Guilhermina cogitou a possibilidade de um Alzheimer precoce, apavorando-o. Thomás soubera através de Delano que até consulta nos Estados Unidos o irmão já havia marcado frente ao desespero.
Sucesso total de seu plano de justiça! Recordou-se que quando fora preso, achou ter enlouquecido e ele mesmo tentou convencer-se por algum tempo que havia cometido o crime. Efeito da perversão criada pela teia de mentiras daquele canalha. Deste modo, Saulo começava a pagar na mesma moeda.
— Você aqui?! Como pode?!
Laura estava na sacada que dava para o jardim interno do centro religioso. Pela primeira vez Thomás temeu que seu plano fosse descoberto. Bastava que ela desse meia volta e reencontrasse o líder do Chiamare a alguns metros, na ala dos auditórios, onde o havia deixado e ele sabia. Por isso se encontrava pasma.
— Acabei de falar com você na palestra, no outro bloco! — argumentou ela. — Não me diga ter o dom de se teletransportar. — encarava-o de perto.
— Sabia que a encontraria aqui. — inventou ele.
— Mas como? Estava cercado há pouco de vários fiéis, não pode ter chegado aqui tão rápido. — insistiu.
— São muitos os mistérios que envolvem o Chiamare, Laura. — olhou-a tão profundamente que a deixou sem graça. Depois deu as costas e seguiu pelo corredor na direção contrária a que ela tinha vindo. Precisava atraí-la, tirá-la dali, a fim de não correr o risco de ser descoberto.
Ela o seguiu.
— Ei, não gostaria de me contar? — abordou Laura.
Ufa! Thomás sorriu.
— Acredito que brevemente muitas coisas mudarão no Chiamare. — comentou ele.
Foram caminhando pelo corredor de encontro ao vento vindo da sacada que dava para o jardim interno do centro.
— Do que está falando exatamente?
Thomás parou e focou um anfiteatro no andar inferior, no jardim.
— Estou pensando em deixar esta comunidade.
— O quê?!
— Não suporto mais, Laura! São muitas exigências. E os votos...
— O Chiamare é sua vida.
— Os votos me impedem de viver o que está aqui dentro. — bateu com força no peito, voltando-se inteiramente a ela.
— Olha, Saulo, não compreendo muitas coisas, nem concordo com outras tantas, mas não tenho a menor dúvida do seu chamado como líder desta comunidade. O Lucas tem o dom e carrega consigo a mística. Você direciona com a palavra. Isso também é forte e lhe atribui a responsabilidade de ser esse grande Pescador de Vidas propagado pela mídia. Seu papel aqui é fundamental.
Embora sob uma mentira, doía vê-la falar daquele modo, visto que Laura se referia ao criminoso de seu irmão e não a ele, Thomás realmente. Ora, o que exatamente a deixava com tanta credibilidade num crápula como Saulo? Mau-caratismo sempre fora sua maior “virtude”. Hora de fazê-la enxergar aquilo, ainda que utilizando os mesmos artifícios que aquele bandido.
— Vou deixar a liderança do Chiamare sim, Laura. E por sua causa! — anunciou. Em seguida aproximou-se e mirou seus lábios. Ela parecia totalmente perdida e nervosa com a revelação. Ele a tomou nos braços, sem nenhuma resistência e a beijou. Laura retribuiu na mesma intensidade, numa entrega cega.
Aos beijos, Thomás a conduziu ao ambiente preparado para aquele momento, um charmoso escritório, ao lado de onde estavam, utilizado eventualmente por hóspedes da comunidade. Delano o havia deixado conforme o combinado.
— Você é louco! — disse ela, em meio aos beijos.
— Por você sou capaz de tudo! — respondeu na mesma voluptuosidade.
— Nós não podemos!
— Sim, podemos!
— E a comunidade?
— Eu te amo, Laura!
— Mas...
— Eu te amo! Eu te amo! Eu te amo!
Na verdade, há muitos anos não beijava uma mulher. Cândida fora sua última namorada, antes de fundar o Chiamare e entregar-se aos votos de pobreza, obediência e castidade. Seduzi-la não tinha sido nenhum sacrifício, pelo contrário. Laura era uma mulher linda e envolvente, capaz sim de despertá-lo em seus desejos mais profundos. Ao lado dela experimentava a virilidade reprimida, uma força descomunal e prazerosa, tornando-o grande e frágil ao mesmo tempo. Sim, mexia com ele, um lado adormecido pelo tempo e as escolhas.
Cogitou parar! Por mais que não mentisse sobre o desejo de ali estar e possuí-la de verdade, mentia acerca de quem era e a enganava na inocência e fragilidade de mulher seduzida, vítima de um jogo sórdido.
Não tenho o direito de machucar pessoas inocentes!
Tarde demais! A intensidade do momento lhes fez um antes que tivesse forças de desistir. Por um instante, esqueceu de tudo o que o motivou a chegar até ali. Foi maravilhoso!




37


Cândida fez um corte no caule de uma orquídea no balcão da estufa, quando foi surpreendida pelos braços de Delano, prendendo-a como garras. Ele a beijou e mordeu-lhe a orelha com a mesma intensidade em que se apossou de seus seios. Uma força com a qual rendia-lhe por completo. Aqueles últimos três dias desde a primeira vez em que estiveram juntos como homem e mulher foram avassaladores, com inúmeros encontros nos quais ela esquecia a culpa e a missão na comunidade, entregando-se sem reservas a um sentimento nunca experimentado.
Meu Deus, um menino!
Um homem quinze anos mais jovem, devolvendo-lhe a alegria de viver.
— Para, para, meu menino! Aqui não! — implorou, sucumbindo ao desejo de tê-lo mais uma vez, no calor macio de sua língua, no cheiro quente de seus músculos em contração ao possuí-la.
Nunca esteve tão feliz! Nem mesmo Thomás, quando namoravam ou Edgar com todo o seu amor conseguiram lhe proporcionar tamanha inteireza. Por ele seria capaz de jogar tudo para o alto e percorrer os caminhos mais sombrios e cheios de espinhos que aquele amor poderia resultar.
— Minha rainha! — dizia ele de modo tão apaixonado ao tomá-la em seus braços.
Fizeram amor ali mesmo. Um amor que parecia abarcar todo o mundo!
Depois, seguiram para o quarto de Delano. Primeiro ele abriu caminho, para que ninguém os percebesse. Lá, despiram-se um de frente para o outro, como num ritual em que contemplavam a sutileza das curvas de seus corpos nus. Para então, beijarem-se mutuamente.
Quando de repente, alguém invadiu aquele amor.
— DESGRAÇADOS! — gritou Edgar, com olhos arregalados, apoiado na maçaneta da porta.
Cândida não entendeu direito o que havia acontecido, como ele chegara lá.
— Edgar?! — afastou-se de Delano, procurando pegar as roupas no chão para se cobrir.
O rapaz fez o mesmo.
— Posso explicar! — tentou Delano.
— EXPLICAR O QUÊ? — Edgar continuou gritando — QUE VOCÊS ESTÃO ME TRAINDO?
— Calma, Edgar! — pediu Cândida, muito nervosa.
— Olha, sei que parece loucura... — Delano procurou mais uma vez se colocar — Mas...
— CALA A BOCA, DESGRAÇADO! — Edgar o interrompeu com um soco.
— NÃO! — desta vez foi Cândida quem gritou, partindo para cima do marido.
— VAGABUNDA! — Edgar a empurrou contra uma cômoda.
— NÃO TOCA NELA! — Delano veio também para cima de Edgar, acertando-o com um soco. Em seguida, montou-se em cima dele, agredindo-o mais vezes.
— Parem com isso! — implorou Cândida, tentando segurar o amante.
— Ele não vai te machucar, ele não vai te machucar, nem a mais ninguém! — afirmou o rapaz tomado de ódio.
— A gente não pode resolver assim! — disse ela aos prantos.
Edgar ergueu-se e tomou distância dos dois.
— E como querem resolver, sua vagabunda? — perguntou ele, transtornado. — Pensava que ia me trair até quando, sem que eu soubesse?
— Não quis te trair! — declarou Cândida.
— E o que é isso? — interrogou, apontando para os corpos nus de ambos, escondidos, sem muito êxito, pelas peças que conseguiram catar pelo chão. — O que faziam pelas minhas costas, se não me trair? HEIN? RESPONDE, VAGABUNDA!
Desejou sumir dali com Delano, para sempre! Quis tanto pedir o divórcio, acabar de uma vez por todas com a farsa daquele casamento falido. Por que não tivera coragem de enfrentar a todos? Se não fosse por Lucas já o teria feito há muito tempo.
— O mundo vai saber quem é você, sua vagabunda! — declarou Edgar, deixando-os sozinhos no quarto.
O que ele faria?
— Vamos, Delano, vamos sair daqui! — propôs ela, enquanto se vestiam apressadamente.
— Olha tua mãe! — ordenou Edgar, entrando quarto a dentro, conduzindo Lucas pelo braço. O jovem estava assustado, certamente sem nada compreender.
— O que está acontecendo aqui? — procurou saber o rapaz, alternando a vista entre a mãe e o amigo sem camisa.
  — Edgar, você não tem esse direito! — questionou ela.
— De mostrar pro seu filho queridinho que você é uma vagabunda? Ah tenho sim! E como tenho!
— Você é um fraco! — Delano foi categórico, enfrentando-o. — Por que não resolvemos isso só a gente?
— Quem é você para dizer o que tenho ou não que fazer, seu moleque? — Edgar foi para cima dele. Os dois ficaram cara a cara.
— O que há com vocês?! Pelo amor de Deus, o que está acontecendo, mãe? — insistiu Lucas em saber.
— Sai daqui, filho, por favor! — implorou Cândida.
— Não, fica! Fica e testemunha o quanto tua mãe é uma vagabunda! — exigiu Edgar, sem tirar o olho de Delano.
— Você é um corno covarde! — afirmou Delano.
O semblante de ambos revelava um ódio incontido. Edgar segurou-o pelo colarinho, no impulso e o sacudiu.
— Veio destruir a minha família, seu desgraçado! Por quê? Por quê?
Desta vez Delano começou a rir. Deu uma gargalhada.
Cândida não compreendia nada.
— Sou teu filho. — disse Delano, de um modo despretensioso.
— O quê?! — perguntou Edgar.
— O que ouviu: teu filho. — repetiu.
— O que está falando, Delano? — Cândida perguntou.
— Sou o filho da Lurdinha, lembra? — Delano foi mais convincente. Edgar foi baixando a guarda, soltando-o.
— Quem é Lurdinha? — insistiu Cândida.
Edgar parecia ter entrado num surto silencioso. Lucas permanecia atônito, vendo tudo aquilo.
— Lurdinha era minha mãe, — explicou Delano, sem tirar o olho do pai. — filha da empregada da casa do Dr. Juca Rebelo. Seu primeiro grande amor, não foi, papai? — ironizou.
— Meu Deus, que história é essa? — desabafou Cândida.
— Ele, um filhinho de papai, viciado em drogas, como todo mundo já sabe, antes dele entrar no Chiamare. Seduziu e viciou também a minha mãe, praticamente uma menina. Depois quando ela apareceu grávida, eles exigiram que fosse feito um aborto. Ele e o paizinho dele, o Dr. Juca Rebelo.
— Isso não é verdade, — contestou Edgar. — nós éramos apaixonados. Meu pai não queria o namoro, só isso.
— E isso dava a vocês o direito de me matar? — interpelou Delano.
— Ele me disse que ela havia perdido o bebê! — rebateu Edgar.
— Minha mãe foi perseguida, juntamente com minha avó. Passaram anos se escondendo com uma criança no colo. Até que numa emboscada, ela foi atingida por uma bala na perna, que a deixou aleijada. Foi essa bala que começou a matá-la, devagar!
— Não pode ter sido meu pai. — negou Edgar.
— FORAM VOCÊS QUE MATARAM MINHA MÃE! — gritou Delano.
Meu Deus, o que está acontecendo? Cândida sentia-se perdida. Uma outra história atravessara a sua de forma violenta. Não mais sabia quem era o homem por quem estava apaixonada.
— Então é meu irmão? — concluiu Lucas.
— NÃO! — respondeu Edgar num grito único — Ele não é teu irmão! — Agora voltou-se para Lucas.
— Sou sim! Sou o filho que não quis ter! — insistiu Delano.
— ACONTECE QUE O LUCAS NÃO É MEU FILHO! — revelou Edgar finalmente.
— Edgar, por favor, não é hora! — Cândida implorou.
— Não sou seu filho?! — Lucas procurou saber, deixando cair uma lágrima.
— Você é filho do Thomás. — respondeu Edgar — ou melhor, do Saulo. Quer dizer, sei lá de quem você é filho! A tua mãe é uma vagabunda e transou com todo mundo na festa do nosso casamento!
— NÃO! — interviu Cândida. — Isso não é verdade, filho! — agarrou-se com Lucas. — Posso te explicar melhor.
O rapaz sentou na cama, inconformado.
Edgar caminhou de um lado para o outro do quarto, depois olhou para Delano e perguntou. — E por que veio atrás de mim?
— Para acabar com você! — respondeu o outro de pronto. — Botar um chifre no meio das tuas fuças e provar que você é um merda! Pôr um fim a esse casamentinho feliz que vendiam para o mundo! Isso mesmo, pai. Vingança!
Vingança? E nosso amor?
Finalmente caíra sua ficha. Cândida se deu conta que fora uma peça num jogo de Delano para se vingar de Edgar.
Não pode ser verdade!
Mas era! Ele mesmo confessara tudo diante de seus olhos, sem o menor cuidado ou temor em magoá-la. Sentiu-se uma desgraçada, com a moral destruída na frente do próprio filho e um vazio pelo amor imenso que experimentara outrora e que não mais existia. Desejou morrer ou matar aquele infeliz, mau-caráter que havia lhe roubado a alma.
Cândida partiu para ele, para transformá-lo em pó.
— Seu desgraçado, mentiroso, mau-caráter! — tentou agredi-lo, mas Delano segurou-lhe os braços.
— Vocês dois se merecem! — concluiu Edgar, com o rosto banhado em lágrimas e os deixou.
— PAI! — Lucas correu atrás.
— Você acabou com a minha vida, seu monstro! — esbravejou ela.
— Não posso conversar com você agora. Tenho muitas contas a acertar com ele. — Delano procurou explicar. Em seguida, foi atrás do pai.
Como Edgar havia descoberto? Talvez o próprio Delano teria arquitetado o flagra.
Cândida largou-se no chão, num choro contundente.
— Por que, meu Deus?! Por que fui tão infeliz?!
A imagem de Delano, na primeira vez em que se viram, na sala de casa; bem como tomando banho no jardim da comunidade; como colocando a rosa em seu cabelo; auxiliando-a nos alongamentos; depois quando se beijaram e se possuíram, todas se materializaram em lembranças doloridas, como num filme que havia assistido há muito tempo. Tudo parecia tão distante e ao mesmo tempo, perto demais, de tal modo que a deixava sem ar, abandonada em sua dor solitária.
Enganada, exposta, renegada. Uma ferida que lhe sangrou a alma.




38


Após quase quatro horas para se aprontar, Saulo ajeitou o blazer, deu uma última olhada no cabelo, através de sua imagem refletida no vidro da caminhonete do Chiamare e entrou no veículo, acompanhado de Guilhermina. O motorista avisou que desviaria o caminho, a fim de evitarem o rush na saída de Fortaleza. Ele havia tentado adiar aquela viagem a Canindé, por sentir-se cansado e também por conta da tensão causada por seus esquecimentos frequentes, nas últimas semanas, frente a decisões importantes na obra. A bateria recente de exames a qual vinha se submetendo recentemente, bem como o fantasma de estar com início de Alzheimer precoce o apavorava. Entretanto, a secretária acabara por convencê-lo a viajar e acertarem os últimos detalhes para a abertura de mais um centro.
Enquanto Guilhermina foi lhe adiantando a pauta da reunião em Canindé, ele acessou a galeria de fotos do celular até a imagem de Laura Ponte, uma fotografia baixada da internet, na qual a jornalista aparecia com um lindo sorriso, segurando uma placa de acrílico, prêmio como melhor reportagem em 2014, cabelo castanho em cascatas e um vestido vermelho delineando as curvas acentuadas de seu corpo. Beleza e inteligência, ingrediente perfeitos para uma mulher. Desde que assumira a liderança da obra e fizera seus votos, não se sentia tão atraído por alguém. As tentações do caminho! Um sentimento que guardaria somente consigo e o entregaria no altar de seu coração. Ninguém jamais saberia!
— Estamos sendo seguidos. — comentou o motorista, atento ao retrovisor.
Seguidos?
Assustado, Saulo deixou a parelho cair no assoalho do automóvel, permitindo que Guilhermina visse a imagem na tela.
Deus!
O mais apressado que pôde, soltou o cinto e tentou reaver o celular, que escorregou para baixo do banco da frente.
— Sim, eles estão atrás de nós! — confirmou Guilhermina, amedrontada.
Foi quando Saulo se deu conta que haviam acabado de sair de Fortaleza. Acompanhou a estrada e os carros que vinham na direção contrária, vez por outra olhava para trás e o assoalho do banco da frente, onde o aparelho fora parar.
— Vamos ligar para a polícia! — sugeriu o motorista, acelerando.
Saulo percebeu que rapidamente os ponteiros do velocímetro marcou cento de sessenta quilômetros por hora.
— Isso, liga para a polícia. — disse Saulo a Guilhermina.
A secretária procurou o celular na bolsa.
— Anda! — Saulo a apressou.
— Calma! — pediu ela, aperreada.
Quando a mulher pegou o celular disse com tom de lamentação que estava sem sinal.
A caminhonete preta que os seguia começou a aproximar-se.
— Acelera! — Saulo mandou.
— Não posso! — disse o homem, apontando para um caminhão logo à frente.
— Tenta ultrapassar. — sugeriu Guilhermina.
— Não dá! — rebateu novamente o motorista. Estavam numa curva.
Meu Deus o que está acontecendo?!
A caminhonete preta os acompanhou, avançando a contramão. Em segundos, estavam lado a lado, exatamente na curva.
— ELES SÃO LOUCOS! — gritou Saulo, apavorado.
— O que eles querem com a gente? — disse Guilhermina.
O outro carro foi se aproximando da lateral de veículo do Chiamare, forçando o motorista a entrar para o acostamento.
— ELE VAI BATER! — concluiu Guilhermina.
— Vou parar! — anunciou o motorista.
— NÃO! — ordenou Saulo.
— Continua, continua. — colocou Guilhermina.
— Não, dá, eles vão jogar a gente para fora da estrada — explicou o motorista.
Nos ajude, Pai!
O motorista diminuiu a velocidade, enquanto o outro veículo avançou um pouco à frente e os forçou a parar.
— Meus Deus, o que eles vão fazer com a gente?! — apavorou-se Guilhermina.
— Deve ser assalto! — cogitou o motorista.
— Vamos manter a calma, tudo vai acabar bem! — Saulo procurou acalmá-los.
Quatro homens encapuçados desceram do carro, com armas em punho. Os veículos passavam por eles em velocidade.
— Acredito em vós, Senhor! Acredito em vós, Senhor!
— FICA QUIETO! — gritou um dos bandidos, apontando a arma para o motorista.
Um outro abriu a porta de Saulo e o puxou para fora.
— VEM COMIGO! — ordenou o homem.
Por pouco não caiu na pista.
— Por favor, não faz nada com ele, não faz nada, por favor, por favor, por favor! — pediu Guilhermina, em choque.
— CALA A BOCA, SUA VACA! — gritou outro bandido com a arma na cabeça dela.
— Não precisa de violência, por favor! — pediu Saulo.
— Ah não, bonitão? — ironizou o homem ao seu lado, acertando-lhe um soco.
Uma dor quente no nariz e depois, sangue.
Qualquer coisa que falasse seria pior!
O bandido que rendia o motorista retirou a chave da ignição e ordenou que permanecessem quietinhos. Guilhermina parecia estar em choque, tremendo e chorando. Saulo foi arrastado para o veículo da frente e empurrado com força para dentro. Faria tudo o que eles mandassem para que não o machucassem. Um deles retirou um capuz preto de uma bolsa e o colocou em Saulo. Ficou tudo escuro e ouviu os comandos trocados entre eles, em tons de tensão, a caminhonete sendo acelerada e o cantar dos pneus.
— Vamos levá-lo ao local combinado. — foi a voz de um deles.
Que local? O que eles queriam afinal? Poderia tentar descobrir, oferecer dinheiro, achar um meio de se livrar daquele inferno. Certamente, mercenários e o estavam sequestrando em troca de um resgate. Ele mesmo poderia lhes oferecer o valor e acabar logo com aquilo. E se o machucassem novamente? Pior, se deixassem marcas? Melhor seria permanecer em silêncio e aguardar. Nada valeria a pena para pôr em risco sua integridade física. Imagem é tudo!
Olha por mim, Pai! Olha por mim!
Em breve saberia o que eles queriam.




39


Edgar saiu do Chiamare cantando pneu. As lembranças de quando havia se separado de Lurdinha o atormentavam e se confundiam com a imagem de Delano e Cândida sem roupas. Encontrava-se transtornado, sem conseguir organizar nenhum pensamento ou qualquer uma de suas mágoas. As lágrimas deixavam sua visão distorcida e a dor presente naquele momento o fazia uivar dentro do veículo, como um animal machucado, acuado por um predador, a infelicidade de uma vida inteira.
Fraco, não fora capaz de enfrentar o pai e lutar pelo amor de Lurdinha. Anos depois, descobriu que o filho, o maior presente de sua vida, tinha sido fruto de uma traição de seu novo amor, condenando-o a um casamento mentiroso, atormentado pelo fantasma constante da infidelidade, sacramentado pelo próprio filho que voltou do passado para destruí-lo.
Ouviu os gritos do filho sonhado e ao mesmo tempo rejeitado a vazar o sofrimento de um homem infeliz.
Para acabar com você! Botar um chifre no meio das tuas fuças e provar que você é um merda! Pôr um fim a esse casamentinho feliz que vendiam para o mundo! Isso mesmo, pai. Vingança! As palavras de Delano reverberavam em seu coração.
A única coisa que plantou dentre aqueles que amava: ódio!
Vingança!
E mais gritos.
Precisava, contudo tirar aquela história a limpo com o pai. Isso mesmo, o Dr. Juca Rebelo tinha muito a explicar. Passara uma vida inteira deixando-se manipular, acatando todas as suas vontades e negando a si mesmo e os próprios sentimentos.
Basta!
Estava disposto a jogar tudo para o alto e tomar as rédeas de sua vida, se é que elas existiam.
Percebeu que uma moto o estava seguindo, desde a saída da comunidade. Delano! Mas não era o momento de enfrentá-lo novamente. Este acerto de contas deixaria para depois. Antes, o Dr. Juca lhe explicaria muitas coisas. Acelerou e procurou fazer algumas manobras, a fim de despistar o motoqueiro. Este, por sua vez, manteve-se firme em sua cola. Mais à frente, o sinal amarelo anunciou a possibilidade de escapar do rapaz, ultrapassando-o exatamente no instante em que a luz ficou vermelha. Em seguida, uma buzina e som de freios. Uma forte pancada e viu-se cercado pelos airbags, tomado por uma dormência. Silêncio total e tudo escureceu.




40


O homem de roupas finas e sapatos italianos caminhou pela sujeira do velho depósito abandonado de um sítio em Maranguape. Aproximando-se mais do fundo do extenso ambiente ele pressionou o botão do interruptor em pera e acendeu a única lâmpada existente ali. Tudo estava coberto de poeira e teia de aranha. Ele bateu as mãos uma na outra para se limpar e prosseguiu. Segundos depois, estava diante de alguém sentado no chão, vestido igual a ele, mas encapuçado, com punhos e tornozelos amarrados. Aproximou-se e retirou o capuz do outro, revelando o rosto de Saulo Sobreira, suado, cabelo desgrenhado e um olhar de pavor. Thomás, à sua frente, imprimindo uma expressão de vitória e celebração pelo feito.
Saulo o observou da cabeça aos pés, de um modo como se o radiografasse. Estava completamente assustado.
— Oi, — disse Thomás sorrindo. — não me reconhece? — certamente Saulo não acreditava. — Sou o reflexo do seu espelho.
— Diogo?! — chutou, sem muita convicção.
— Errou. — dando uma gargalhada. — Sou o fantasminha camarada. — brincou.
Saulo fez uma expressão de pavor.
— Thomás?!
— Bingo! Estou de volta.
— Mas... como? Você está morto... eu mesmo...
— Viu-me morrer? — outra gargalhada. — Foi perfeito, não foi, meu irmão?
— Armou para que nós pensássemos que estava morto?
— Olha aí o Tico e o Teco funcionando. — bateu de leve com as curvas dos dedos na testa dele.
Saulo se desviou.
— O que quer? Mais dinheiro? É isso? Quer se vingar?
— Não. Quero justiça. — Thomás imprimiu um tom mais sério.
— Sequestrando uma pessoa? É assim que busca por justiça?
— E vocês foram justos comigo quando me acusaram de um crime que não cometi e me trancaram por doze anos numa prisão?
— Acredita mesmo nessa mentira que você criou?
Thomás o segurou pelo colarinho.
— Escuta aqui, você está numa situação muito delicada para continuar insistindo com essa mentira. Não tenho comigo nenhum gravador, quero que seja honesto pelo menos uma vez e diga a verdade, que foram vocês que mataram aquela mulher a puseram na minha cama. FALA! — gritou.
— Você é um psicopata!
Thomás o acertou com um soco.
— Canalha, desgraçado! — outro. — Fala, diz a verdade! — mais um soco. — DIZ!
— Você... é perigoso — Saulo falou com dificuldade.
— ESTAMOS SÓ NÓS AQUI! FALA A VERDADE! ASSUME!
— Você é louco!
Mais outro soco, fazendo-o cair. Em seguida, Thomás ergueu-se e passou a mão pela cabeça. Segurou o desejo de chorar. Não podia ser fraco, não agora!
— Você sim é um psicopata! — concluiu ele — É capaz de morrer segurando essa história absurda. Por que tanto ódio de mim, hein? Por quê? — novamente o pegou pelo colarinho, colocando-o sentado. — Fala para mim, Saulo. Por que tanto ódio? Não acredito que a ganância foi o suficiente para destruir a minha vida dessa forma!
Saulo o olhava de um modo temeroso.
— Tenho medo de você, Thomás! Está ficando mais louco!
Thomás sorriu, desistindo. Ele nunca seria capaz de confessar.
— Muito bem, o plano é o seguinte: Você vai ficar um tempo aqui.
— Espera aí... O que pretende?
— Fazer com que experimente um pouco o que passei durante doze anos na cadeia. É simples.
— As pessoas vão sentir falta de mim, vão me procurar...
— Errou mais uma vez. — alinhou o blazer, ajeitou o cabelo e limpou uma poeira na calça. — Gostou do meu novo visual? — usavam a mesma roupa, os dois estavam idênticos.
— O que significa isso?
— Ninguém vai sentir sua falta, simplesmente porque continuará no Chiamare. Entendeu agora?
— Ei, era você se passando por mim? As coisas que eu vinha fazendo e não lembrava, era você o tempo todo! — finalmente tinha caído sua ficha.
Thomás sorriu.
— Uma brincadeira, assustar você um pouco. Agora sim vai começar a justiça.
— As pessoas vão descobrir. Não conseguirá enganá-las a vida inteira.
— Mas não vai ser a vida inteira. — começou a caminhar em círculo, em torno de Saulo. — Apenas o tempo suficiente para a verdade ser descoberta pela Laura Ponte.
— A Laura? O que ela tem a ver com isso?
— Tudo.
— Estão juntos nessa?
— O que é isso? Além de bela, é uma mulher virtuosa. — agachou-se de modo a ficar cara a cara com o irmão. — Ela está apaixonada por você, sabe? E depois de vocês irem para a cama e ela ser abandonada, Laura Ponte será a pessoa perfeita para descobrir toda a verdade e acabar com você.
— Cama? Que história é essa?
— Isso, cama. Vocês já foram para a cama. Isto é, nós.
— DESGRAÇADO! — Saulo surtou, tentando levantar.
— O que foi? Também gosta dela?
— Não tem o direito! Não encosta a mão nela!
Thomás deu outra gargalhada.
— Olha só, o líder do Chiamare apaixonado, — ironizou — mas não pode. E os votos?
— DEIXA A LAURA EM PAZ!
— Já aconteceu. O resto será com ela.
Saulo parecia transtornado.
— A Guilhermina sabe que fui sequestrado. Qualquer história que contar, ela vai desconfiar.
— Claro que sabe. Por isso insistiu tanto para que viajasse hoje.
— Como assim?
— A Guilhermina é minha aliada.
— Não pode ser!
— Não foi bem uma traição a você. Descobri que ela vinha roubando a comunidade há anos. Então não foi difícil convencê-la a participar do plano.
O rosto de Saulo estava aterrorizado.
— Você é pior do que eu pensava!
— Não mais do que você, meu irmão. Quero apenas fazer justiça, mas não se preocupe, quando eu tiver destruído aquilo que tem de mais precioso, sairá daqui para testemunhar a própria desgraça.
— LOUCO PSICOPATA!
— Disso entende bem, não é? Vou reaver o que é meu.
Thomás deu as costas e o deixou.
— VOLTA AQUI, DESGRAÇADO! VOLTA AQUI!
— Curta um pouco da sua prisão. — falou sorrindo, sem perder o foco da saída do local.
— EI? O QUE TENHO DE MAIS PRECIOSO? — o grito de Saulo já veio de longe.
— A imagem. — respondeu num tom que deu para o outro ouvir.
Justiça será feita!




41


Lucas se pôs de joelhos no segundo banco, diante do ícone gigante da Santíssima Trindade, no altar da capela principal do Chiamare. Agora tudo fazia sentido, a hostilidade do pai destilada em todos aqueles anos, bem como suas brigas intermináveis com Cândida, o isolamento da família, o desamor inexplicável figurado em cada gesto, em cada olhar. O abandono discreto à responsabilidade de Saulo Sobreira, efeito da traição. Edgar fora um homem amargurado, carregando consigo a dor e o fantasma de ter sido traído pela mulher que amava e o melhor amigo. E Lucas? Ele era a lembrança de tudo aquilo permanentemente debaixo de seus olhos.
Recordou-se de uma infância feliz ao lado do pai, antes do mesmo descobrir a verdade. A afetividade e ternura, o cuidado primoroso e a alegria afastavam a imagem de Edgar daquela conhecida nos últimos doze anos. Contudo, nesse momento nem sabia mais de quem era filho. Restava-lhe chorar diante da figura de Deus, talvez conseguisse amenizar a dor pela rejeição de uma das pessoas que mais amou.
Sentiu um toque leve em suas costas. Quando ergueu os olhos, teve a imagem da mãe, em prantos.
— Filho... — Cândida mal conseguia falar. — Me perdoa!
Lucas recolheu o olhar.
— Ele me odiou todos esses anos... — disse o rapaz, chorando.
Cândida sentou-se ao seu lado e o trouxe para seu colo.
— Não, não! Ele sempre te amou, filho! Sempre!
— Nenhuma palavra de afeto, nenhum um gesto de carinho. Às vezes me perguntava por que haviam me entregado ao tio Saulo, se não sentiam falta de mim. Agora sei que não.
— Isso não é verdade, meu querido. Sofri tanto quando você foi para a comunidade. Como se estivessem tirando um pedaço de mim. A minha parte mais valiosa.
— Mas a senhora não podia fazer nada, não é verdade? Meu pai a obrigou.
— Todos acharam ser o melhor.
— Para quem? Para a comunidade? Ou para a vida egoísta de vocês?
Lucas finalmente saiu daquele ninho e tomou distância.
— Por que não lutou por mim, mãe?
Houve um instante de silêncio.
— Responde! — insistiu.
— Pela culpa. Por tê-lo traído.
— Só pensaram em vocês. Em nenhum instante pensaram em mim, no quanto eu sofreria?
Cândida baixou a cabeça.
Lucas deu-se conta do quanto todos haviam sido egoístas. Salomão tinha razão, ele não passava de um objeto para a comunidade. Ninguém se preocupava se estava bem ou feliz, desde que cumprisse suas obrigações com suas aberrações. Um boneco nas mãos de todos eles. Desejou sumir dali, da vida de quem o via como um peso, uma lembrança ruim. Talvez se o fizesse, finalmente alguém pudesse sentir sua falta e amá-lo. Como fariam sem ele, sem o dom de que tanto precisavam para fazer do Chiamare a comunidade que era então? Chegava a hora de saber.
Lucas arrancou o broche, símbolo da obra do peito, mirou para ele na palma da mão e sentiu que ali residia sua liberdade.
Perdão, Senhor!
Em seguida, com um uivo, jogou-o fortemente diante do altar.
Cândida o acompanhou chocada, como se compreendesse o sentido daquele feito.
Uma dor fina dominou-o pelo crânio. De repente, imagens de ambulâncias, médicos e Edgar banhado em sangue e uma rosa caindo se confundiam com o real em sua frente.
— Pai!
— O que foi? O que houve, filho? — Cândida se antecipou.
— O papai...
Mais imagens: um hospital, a família chorando, novamente a rosa caindo.
— O que está vendo, Lucas?!
Caiu por sobre os bancos e Cândida tentou ajudá-lo.
— Filho!
— O papai...
A rosa caindo.
— Pelo amor de Deus, Lucas! O que está vendo? — Cândida já estava desesperada.
— O papai está morto! — jogou-se no chão em posição fetal. — Por que, meu Deus? Por quê?




42


As portas do elevador abriram-se e possibilitaram a visão da sala de estar do hospital para o qual Edgar fora encaminhado. Desde que havia recebido a notícia do acidente, Thomás entrou numa espécie de transe, vagando entre o mundo real e as lembranças vivas de quando jovens e cúmplices num encontro de almas. Justiça não significava tirar a vida dele, por isso sofreu ao receber a ligação de Delano em desespero, contando sobre o ocorrido. E justo quando dirigia, ouvindo a música “Bad” do U2, canção que embalou muitos momentos entre Edgar e ele, antes do Chiamare.
This desperation / Esse desespero
Deslocation / Deslocamento
Separation / Separação
Condenation / Condenação
In temptation / Na tentação
Isolation / Isolamento
Desolation / Desolação
Let it go / Deixar isso passar
Aquele trecho da letra da música o acompanhou por todos aqueles anos, reverberando em seu coração a dor pelo que Edgar lhe havia feito. Mas nunca fora tão vivo diante de perdê-lo, e por sua culpa!
Logo mais à frente, Pe. Giuseppe ao lado de Guilhermina e Zica, dona Augusta sentada numa poltrona, consolando Salomão. Cândida, mais adiante, perto de uma janela, ao lado de Lucas. Todos, visivelmente abalados.
— Meu filho, ainda bem que chegou. — Zica se antecipou a ele.
— Saulo, onde esteve? — Foi Pe. Giuseppe quem perguntou.
Saulo? Por um momento Thomás havia esquecido completamente que estava vestido de Saulo Sobreira, e que o havia deixado preso horas antes no cativeiro.
— Vim assim que soube. — respondeu meio perdido. Não queria continuar com aquela farsa. Precisava sentir sua dor em paz.
— Ele está muito machucado, perdeu muito sangue. — Guilhermina parecia fazer questão de maltratá-lo com aquelas palavras, ditas de forma ríspida, de um modo que só eles dois compreendiam. Ela sabia!
Zica e Pe. Giuseppe procuraram resumir as poucas informações de que tinham conhecimento até então, pelo menos o que Cândida e Lucas lhes haviam contado. Que Delano revelara que era filho de Edgar e este pegou o carro transtornado, resultando naquela desgraça.
A história não é tão simples!
Thomás ouviu aquilo sem conseguir prestar atenção direito nas palavras dos dois, enquanto focava Salomão e Lucas, mais adiante. Sintonizou principalmente com a dor do sobrinho. Sem sombra de dúvidas, era ele quem mais estava sofrendo ali, calado, com olhar perdido. Por mais que soubesse que não era seu filho, experimentava um carinho tão forte por ele que desejava colocá-lo no colo e tirar dele qualquer tipo de sofrimento.
Meu Deus, o que eu causei?
Podia parar com tudo ali, contar para eles quem era de verdade, acabar definitivamente com aquela farsa. Tudo fugira de seu controle. Pôr um fim à vida justo de Edgar, não fazia parte dos planos! Queria fazê-los sentir na pele o que ele sentira quando fora traído por todos. Porém os meninos não tinham culpa e não poderiam ser alvos de nenhum respingo de suas dores ou amarguras. Não pensara numa forma de blindá-los. Falha de um plano torpe!
Thomás, já tem como refazer sua vida. Por que insistir com essa vingança? — a colocação de Juscelino se fez viva em sua memória.
Mas não era vingança, e sim justiça!
Atentar contra a vida de uma das pessoas a quem mais amou era justo realmente? E se Juscelino estivesse certo? Por isso, talvez fosse hora de parar.
É hora de todos saberem que sou Thomás Sobreira!
— Finalmente! — disse Guilhermina ao ver o Dr. Juca Rebelo entrar na sala, ainda vestido com aparatos cirúrgicos.
O velho trazia um semblante de tristeza. Todos se aproximaram, ansiosos por notícias. Thomás não conseguiu dar um passo sequer.
— É muito grave... — Dr. Juca embargou a fala. — Houve uma perfuração no pulmão.
Viu Cândida e Lucas se abraçarem fortemente e depois, silêncio. Não conseguiu ouvir mais nada, e saiu. Não tinha o direito de estar ali junto daqueles que sofriam pelo estado de Edgar. Tudo fora sua culpa!
Caminhou desnorteado pelos corredores, até chegar numa sacada que dava para um jardim no centro do hospital. Nunca pensou que fosse se arrepender.
— Como ele está? — aquela voz veio em ecos. — Já sabem notícias dele? — Delano insistiu.
Desgraçado!
Thomás pegou-o pelo colarinho.
— O que fez com ele?
— Nada, nada! Também não queria que tivesse sido assim! — explicou o rapaz, visivelmente abalado.
Thomás se deu conta do ambiente o soltou.
— Ele é meu pai! — completou Delano.
— Colocá-lo na vida dele foi o pior erro da minha vida! — sentenciou Thomás, saindo daquele lugar.
Precisava respirar e decidir como seria dali para frente.




43


Laura sentou no banco do passageiro do carro de Diogo e colocou o cinto, aguardou alguns instantes e deu-se conta de que o amigo não dera partida no motor, ele estava atento, porém silencioso, como se quisesse lhe dizer algo.
— O que houve? — sua curiosidade não lhe permitiu muito mais tempo de silêncio.
Diogo voltou-se inteiramente para ela, pousando a mão em sua perna, numa atitude de cuidado. Laura identificou a tensão na face do amigo.
— Está me deixando preocupada, Diogo.
Ele parecia tomar coragem, mordeu o lábio, olhou para os lados e finalmente falou:
— Aconteceu um acidente e... Edgar está no hospital.
Houve uma grande pausa em sua respiração e a voz travou. Por isso Diogo esteve tão misterioso ao pedir que lhe acompanhasse a um lugar. Ela não havia compreendido, mas pegou a bolsa e seguiu-o.
— Onde ele está? — foi a única coisa que conseguiu articular.
— Esse hospital não fica longe daqui. — disse ele.
— Vamos!
Não tinha tempo a perder.
— Foi o que pensei. Está preparada?
Preparada? Para finalmente enfrentar seu passado de cara e assumir a verdadeira identidade? Estar com todos que destruíram sua vida? Inúmeras muralhas foram construídas ao longo dos últimos vinte anos, a fim de que pudesse sobreviver em meio ao pouco que restou. Precisou abandonar cedo a ingenuidade de uma adolescente cheia de sonhos e conhecer a dureza de um novo mundo arquitetado especialmente para que pudesse permanecer viva, desconsiderando as feridas na gestação prematura de uma nova mulher. Chegava o momento de implodir estas muralhas que a separara do universo que fora obrigada a esquecer. Sabia que seria certamente mais difícil do que seu último encontro, há duas semanas, com o próprio Edgar. As lembranças daquele momento fizeram-se vivas em sua memória.
— Como você está? — Edgar procurou saber, meio sem jeito.
Como você está? Depois de vinte anos era isso que tinha para lhe perguntar? Ela sonhara com aquele momento uma vida inteira, esperava que fosse diferente.
— Como vê, muito bem. — respondeu, abrindo os braços, como se se apresentasse.
Edgar baixou a cabeça, mirou as chaves na mão, fez um bico com os lábios e disse.
— Quando soube que era você a jornalista responsável pela matéria do Chiamare, eu...
— Pensou que todos iam descobrir a verdade? — interrompeu-o.
Ele fez que não com a cabeça e sorriu.
— Pensei que nós pudéssemos nos reaproximar.
Foi quando Laura o percebeu lacrimejando.
— Simples assim? — ironizou ela.
— Sei lá, pensei que pudéssemos passar uma borracha em tudo...
— Borracha? — novamente o interrompeu. — Vocês acabaram com a minha vida! E agora vem me falar de apagar tudo, como se nada tivesse acontecido?
Não compreendia como podiam ser tão frios!
— Pera aí, Laura, quem te expulsou não fui eu. — argumentou.
— Sim, claro, foi seu paizinho querido! — sua fala trazia o tom de indignação, travado em na garganta por todos aqueles anos. — E você, o que fez para impedi-lo?
— Você conhece o Dr. Luca Rebelo.
— Muito! Melhor que qualquer pessoa. — fazia um esforço para não chorar, mas sucumbiu ao instinto. — Um homem desprovido de amor! Seco! Duro! Incapaz de um gesto de afeto!
— Ele mudou muito nesses últimos vinte anos.
— Mudou? — Laura bateu palmas. — Que bom para vocês que precisam conviver debaixo da asa imunda dele.
— No fundo ele é um homem bom.
— Bom? Ele é um Hitler!
— Também não é assim, Laura.
Ódio em vê-lo defender aquele homem.
— Não sei se você é burro, covarde ou não sabe mesmo do que ele é capaz. Eu sei. Por isso ele me expulsou daqui. Mas antes, fui espancada, trancada como um bicho! — abraçou a si mesma, em prantos. — Passei anos para me livrar dos pesadelos que ele me deixou!
— Eu não tinha noção! — Edgar chorou.
— Ele nos separou e de todos a quem eu amava. E não fez nada!
A covardia de Edgar era o que mais doía. Eles se amavam tanto, eram tão cúmplices e não fora capaz de mover um músculo para defendê-la, impedi-lo de machucá-la e expulsá-la de suas vidas.
— Eu não podia! — argumentou ele.
— Por pura covardia! — replicou Laura. — Por isso vive até hoje debaixo da asa dele, mantendo esse casamento de mentira.
— Você não sabe nada da minha vida — justificou, enxugando as lágrimas.
— Não, não sei mesmo porque fui expulsa dela, há vinte anos, como um cão sarnento. Fui expulsa da sua casa como uma prostituta. Foi disso que ele chamou e vocês nada fizeram.
— Você só traz amargura dentro de si.
Amargura? O olhar tosco de um covarde!
— Vai embora daqui, Edgar! Essa história tem dois lados. E você sempre definiu qual era o seu.
— Acho que pode mudar de ideia e ver tudo isso com outros olhos.
— SAI DAQUI! — Laura se surpreendeu com o próprio grito. Doía muito vê-lo desconsiderar todas as suas dores. Amava-o e não queria romper com a sacralidade daquele sentimento.
Houve um longo momento de silêncio. Edgar a observava com pesar. Em seguida, deu as costas e abriu a porta.
Laura desejou tanto que ele voltasse e a abraçasse. Pensou em pedir aquilo e sentir mesmo que por um instante o calor do seu afeto, o colo que lhe rasgou a alma de saudades em todos aqueles anos distante. Mas se o fizesse, estaria, como ele, desprezando as próprias marcas violentas de seu passado, compactuando com sua covardia. Era ele quem tinha que tomar a iniciativa. Isso, se Edgar decidisse abraçá-la, ela o acolheria com todo o seu amor.
Ele disse, de costas. — Senti muita saudade. — mais um instante de silêncio e depois. — Quero que seja muito feliz. — deu mais um passo e bateu a porta, sem voltar-se a ela.
Laura abraçou novamente a si mesma e despencou no sofá, num choro dolorido. Não era isso que queria ouvir após tantos anos. Pensou que aquele reencontro poderia ser diferente e até o imaginou algumas vezes, ensaiou falas e gestos. Porém a covardia de Edgar não permitira que eles se reencontrassem de verdade.
Por isso, preparada? Não! Mas era preciso seguir.
— Como você mesmo disse, necessito juntar meus pedaços. — justificou, com o coração apertado.
Diogo apertou sua mão com força e sorriu.
— Vou estar com você.
A coragem transmitida por ele era tamanha que poderia ali enfrentar o mundo inteiro.
O amigo finalmente ligou o carro, engatou a marcha e seguiu rumo à batalha que Laura travaria, vinte anos depois, mas fortalecida na identidade de uma nova mulher, refeita nas próprias feridas. 




44


Thomás recebeu uma xícara de café de uma atendente no balcão da lanchonete, no hospital. Depois se sentou solitário a uma mesa, com todo o peso da culpa pelo que havia acontecido a Edgar. Despejou um sachê de açúcar no líquido e usou uma palheta para mexê-lo, no sentido anti-horário, devagar, como se com aquele gesto pudesse voltar no tempo e preservar a vida do melhor amigo. Em seguida tomou um gole e pronunciou o que vinha sendo reverberado em seu coração desde que chegara ali.
— Um milagre.
Isso, precisava de um milagre! O que lhe restava fazer para ver o amigo sair daquela situação com vida?  Rezar? Há doze anos não conversava com Deus, exceto esbravejar ou xingá-Lo, indignado por tudo o que tinha acontecido no passado. Nunca mais havia lhe pedido nada, vivendo independentemente de qualquer força superior. Aquilo era tudo, o próprio desejo passou a ser seu guia. Isso era justiça!
Novamente se via pequeno, incapaz, carente desse aconchego, do colo de Deus. Podia pedir simplesmente, mas não se via no direito. Ou tinha direito mais que qualquer pessoa. Talvez se pedisse, Ele o ouvisse, por devê-lo. Entretanto, pedir significava uma remissão.
Não! Foram doze anos de sofrimento. Não era tão simples.
— Satisfeito com o resultado de seu plano? — a voz de Guilhermina o resgatou de seu dilema.
— Do que está falando? — procurou ele centrar-se de volta em seu foco.
— De sua vingança. — Guilhermina foi categórica, apoiando-se na cadeira.
— Não se trata de uma vingança, mas de fazer justiça. — argumentou fingindo uma calma não real, após mais um gole do café.
— Primeiro o sequestro do Saulo, agora esse acidente, pondo em risco a vida do Edgar. Qual será o próximo passo, hein? Você vai destruir a todos?
Thomás olhou para o ambiente, assegurando-se de que ninguém a estava ouvindo.
— Cuidado para não pôr nosso plano a perder. — repreendeu-a com a mesma tranquilidade aparente.
— Nosso plano?! — ela aumentou o tom.
— Cala a boca! — ordenou. — Enlouqueceu?
— Você é um louco psicopata!
— E você uma vagabunda, estelionatária, mentirosa. Vamos ver quem tem mais características?
— Vou lá em cima agora e conto toda a verdade. Vamos ver se continuará com essa empáfia depois que todos souberem quem é de verdade. Inclusive a polícia vai adorar saber que Thomás Sobreira está bem vivo e sequestrou o próprio irmão. — Guilhermina deu as costas.
— Ah, também que você é minha cúmplice.
A mulher parou onde estava.
— E mais, que desviou dez milhões de reais da obra nesses últimos anos. — Thomás completou. Ela voltou-se a ele.
— Não pode continuar com essa chantagem.
— Tenho provas, minha querida. — deu o último gole e pousou a xícara no pires. — Você está em minhas mãos. — Guilhermina engoliu em seco. — Entende essa linguagem? É assim que vocês agem, não é verdade? Você e o crápula do meu irmão. Afinal, como conseguiram manter-me preso durante os doze anos, sem que eu conseguisse usufruir do direito de condicional?
— Como ele está? — rendeu-se.
— Melhor do que devia. Vocês vão pagar por tudo o que fizeram. E por falar nisso, já providenciou a transferência do dinheiro para a conta da comunidade?
Guilhermina hesitou.
— Isso vai levar um tempo.
— Você vai devolver tudo o que roubou do Chiamare. Vai ficar sem um tostão. E não tente me enganar, como fez com o tolo do meu irmão.
Guilhermina se debruçou sobre a mesa, ficando cara a cara com ele.
— Não sabe nada sobre a minha vida, seu desgraçado! Eu amo o Saulo!
— E o roubou por quê?
— isso não é da sua conta!
— Motivada pela rejeição.
Thomás viu ódio em seus olhos. Novamente olhou para os lados e depois para ela. Guilhermina pareceu cair em si e se recompôs. Ele, no entanto, sentiu vontade de destruí-la ali mesmo. Hoje bem sabia da ação daquela mulher para que ele fosse mantido na prisão por todos aqueles anos. Bastava um telefonema e a fiel secretária do Chiamare estaria perdida, presa por estelionato. Finalmente a justiça para ela!
Contudo, se o fizesse agora, Guilhermina revelaria sua identidade e acabaria com seu plano. Tudo ao seu tempo!
— Melhor subir e juntar-se aos outros, por enquanto. — aconselhou-a.
Ela o mirou como se o quisesse matar, respirou fundo e saiu.
— Sua hora está chegando, Guilhermina. — disse para si mesmo, mexendo a palheta na xícara vazia.



45


Lucas observou o movimento dos carros no entrelaçar de faróis, na Av. Santos Dumont, do terceiro andar, da vidraça da sala de espera no hospital. Tantas outras vidas desenhando uma dinâmica distante e ao mesmo tempo tão perto fisicamente dos sentimentos experimentados naquele ambiente, não somente por sua família, mas pelas outras também presentes, partilhando medos, dores e esperanças semelhantes. A noite já havia caído e a mesma angústia que o acompanhara durante o dia se fazia firme naquele instante.
— Talvez fosse melhor ir em casa, descansar um pouco. — a voz que lhe dera ordens a vida inteira, agora o resgatava de seu isolamento.
Lucas olhou para a mão de Saulo em seu ombro e desejou afastar-se. Nada, nem ninguém o tirariam de perto de seu pai! Nem mais uma ordem de Saulo seria cumprida dali em diante. Sentia-se farto do Chiamare, das regras, do autoritarismo de Saulo Sobreira.
— Não! Ficarei aqui até o fim! — procurou ser ao mais firme que pôde.
Saulo o laçou com o braço e se pôs diante dele.
— Você está cansado, Lucas. Fico preocupado.
Pela primeira vez sentiu na voz de seu líder espiritual um tom de ternura e cuidado. Parecia outra pessoa.  
Você é filho do Thomás, ou melhor, do Saulo. Quer dizer, sei lá de quem é filho! A tua mãe é uma vagabunda e transou com todo mundo na festa do nosso casamento! Como se a revelação de Edgar tivesse acontecido naquele exato momento.
Filho dele? Por isso o estava tratando assim?
— Sai de perto de mim! — precisava ser leal ao seu verdadeiro pai.
Saulo sorriu, desconsertado.
— Por que está me tratando dessa forma?
— Meu pai está lá dentro! — justificou de forma categórica, para que não houvesse dúvida.
— Sim, está. — concordou Saulo, surpreso, como se não compreendesse a afirmativa.
Poderia pôr tudo em pratos limpos, dizer para ele que não retornaria mais ao Chiamare, não cumpriria mais suas ordens, nem seguiria porcaria de missão nenhuma! Seria um grito de liberdade. Finalmente tomaria as rédeas de sua vida. Talvez Edgar sentisse orgulho.
Olhou para a família a alguns metros. Seria justo com todos naquele mesmo dia? Causaria mais outro transtorno, enquanto aguardavam notícias da cirurgia de Edgar. Melhor seria esperar e anunciar em outro momento, mais adequado. Pelo menos por enquanto, não precisaria seguir nenhum caminho determinado por aquele homem.
Desvencilhou-se do braço dele e tomou distância.
— Quero estar perto do meu pai, só isso. — explicou, procurando conter a repugnância.
— Tudo bem, quero apenas ajudar, te ver bem. — Saulo declarou de um modo tão terno que o confundiu.
Quem é esse homem afinal?
— Nesse momento, o Edgar precisa de todos nós, unidos. — complementou Saulo. Depois deu as costas e saiu.
Precisa de todos nós! Precisa de mim! Aquilo se repetiu em ecos em sua cabeça.
Organizou suas forças, cerrou os punhos, contraindo os músculos, experimentou a forte pontada na nuca e apoderou-se do próprio dom de curar. Aprendera a usá-lo nas ruas, com os desabrigados e nas missas do Chiamare. Hora de salvar o próprio pai.
Em segundos, as luzes do ambiente começaram a piscar vertiginosamente, um vento forte invadiu a sala assustando a todos, as portas móveis que separavam aquele cômodo da UTI foram jogadas de um lado para o outro. De repente, o vidro da máquina de refrigerantes explodiu.
— LUCAS! — Foi Cândida quem gritou, partindo em sua direção.
As outras pessoas na sala, além da família, pareciam aterrorizadas.
— Meu filho, o que houve? — Cândida procurou saber, nervosa.
Saulo e Pe. Giuseppe também já estavam ao seu lado, procurando ajudá-lo.
Ninguém compreendia? Precisava fazer alguma coisa por seu pai!
As imagens de Edgar na sala de cirurgia e do monitor cardíaco se confundiam com o que via em sua frente. O som dos bipes pareciam que estourariam seus tímpanos.
Três vidraças também explodiram diante de todos.
— Filho, o que está acontecendo?! — Cândida insistiu.
— Lucas! — Pe. Giuseppe interviu.
— ASSASSINO! — gritou Salomão.
A ventania e as imagens cessaram, o alívio físico foi imediato. Porém aquele grito o machucou profundamente.
— Você matou nosso pai! — afirmou o irmão.
— Salomão, pare com isso! — Cândida exigiu.
— Vocês passaram a vida inteira protegendo esse monstro. Olha no que deu!
— Pare com isso, meu filho. — pediu D. Augusta a Salomão.
— O papai morreu por causa dele, de desgosto! — complementou.
— SALOMÃO! — Gritou Saulo.
— Vocês todos o protegem! — desabafou o rapaz — Ele é um louco desequilibrado! Olha o que ele fez aqui! — Apontou para o ambiente, apresentando o estrago.
As pessoas que não pertenciam à família acompanhavam tudo chocadas.
— Está piorando as coisas, meu filho! Por favor! — implorou Cândida.
Assassino! Você matou nosso pai! O papai morreu por causa dele, de desgosto! Ele é um louco desequilibrado!
Lucas olhou para cada um ali presente e enxergou pena em seus olhos. Não mais ouvia os argumentos com Salomão, nem as acusações do irmão. Por mais que tentassem defendê-lo, o outro tinha razão. Uma tristeza profunda o abraçou. Por mais que se sentisse exausto fisicamente, necessitava ir embora, livrá-los de sua presença demoníaca.
Tomou coragem e correu para longe dali.

~
Thomás viu Lucas sair correndo do hospital e precisou aguardar na roleta para que fosse liberada sua passagem à recepção. Em seguida, foi atrás do rapaz. Havia começado há pouco uma forte chuva e teve dificuldade em localizá-lo ao chegar ao estacionamento, até vê-lo cruzar o portão que dava para a Av. Santos Dumont. A tempestade não seria empecilho a estar com o filho. Na verdade, nunca acreditou na última história contada por Saulo sobre a paternidade do jovem. Poderia ele ter mentido, como tantas outras vezes. Isto é, existia a chance de Lucas ser seu filho. Aquilo o enchia de alegria.
Seguiu apressado pela calçada, cruzando a visão com os faróis dos veículos que cortavam a chuva na avenida. Já começava a sentir a calça molhada grudando na perna e as meias ensopadas dentro dos sapatos. O blazer o protegia da violência das águas caídas dos céus. Entretanto, enxergava com dificuldade diante do temporal, procurando identificar o rapaz entre as poucas pessoas que se aventuravam naquele momento por algum motivo a estarem na chuva.
Lucas tinha acabado de atravessar a rua e corria por entre os carros no estacionamento de um supermercado do outro lado. Por pouco Thomás não fora atropelado ao fazer o mesmo, assustando-se com o cantar dos pneus, a luz alta dos faróis, impedindo parcialmente sua visão e o som da buzina, à sua frente. Mas nada o deteria. Prosseguiu à jornada com mais cautela, conseguindo chegar ao seu destino. Tinha a desorientação do rapaz a seu favor e antes que o mesmo atravessasse a outra rua, agarrou-o pelo braço.
— LUCAS!
— ME DEIXA EM PAZ! — gritou também o jovem, tentando se desvencilhar.
Nada o faria soltá-lo.
— Nós precisamos estar juntos nesse momento. — argumentou Thomás.
— Não viu o que o Salomão disse? Sou o responsável pelo meu pai estar naquele centro cirúrgico! 
Suas lágrimas se confundiam com os fortes pingos da chuva. Thomás enxergou desespero no olhar daquele menino, do seu menino. O tomou nos braços num impulso, inicialmente contra sua vontade. Queria protegê-lo, diminuir um pouco a dor tão aparente e sem escrúpulos, inocente frente à verdade. Se existia um culpado, era ele, o próprio Thomás. Havia descoberto a existência de Delano e o trouxera com seu desejo ardente de vingança para junto deles, fazendo-o perder o controle do plano de justiça tão bem arquitetado durante aqueles doze anos. O que acabou por causar aquela tragédia.
O que mais lhe doía, naquele momento, era não ter pensado numa forma de proteger seus filhos.
— Eu sou o culpado! Eu sou o culpado! Eu sou o culpado! — Lucas repetia em prantos em seus braços.
— Não! Você não tem culpa de nada! — viu-se tomado também de choro, movido pelo arrependimento em provocar seu sofrimento.
— Foi desgosto, o Salomão falou! — parecia uma criança chorando.
Thomás o levou até o abrigo da parada de ônibus, a poucos metros, na tentativa de livrá-lo da chuva. Precisava fazer algo que pusesse um fim àquela dor. Talvez contar-lhe a verdade, revelar sua verdadeira identidade e o plano fracassado de justiça para Edgar. De todos, Lucas poderia ser quem melhor ouviria aquilo e até o ajudaria a encontrar uma saída para contornar a situação. Um aliado, o próprio filho.
Tomou certa distância do rapaz, o suficiente para lhe fitar e segurou-lhe o rosto para que ele pudesse encará-lo.
— Escuta... — respirou fundo, criando coragem. — Preciso te contar um segredo.
— Por favor... — tinha dificuldade em falar devido o choro. — Se você vai dizer que é meu pai, não diz! Por favor, não diz! Me deixa continuar pensando que meu pai é ele!
Thomás sentiu tanta pena, que simplesmente o abraçou e chorou junto com ele. Estava errado mais uma vez. Lucas não tinha a menor estrutura para ouvir qualquer outra revelação naquele instante. Em seguida, percebendo-o trêmulo, tirou o paletó e o cobriu. Desejou tanto estar com aquele menino e agora tinha a oportunidade de acalentá-lo, protegê-lo, fazê-lo sentir-se cuidado.
Agora tudo podia acabar. O plano podia acabar!
Acabou!




46


Laura entrou naquele hospital segurando forte na mão de Diogo. Nunca pensou que fosse obrigada a se deparar com seu passado de uma forma tão violenta. Não fosse pela presença amiga e amorosa daquele homem e seu dom, devastando todos os medos que a impediram de voltar, jamais estaria ali, com a possibilidade de se reencontrar consigo mesma e o amor que deixara para trás.
Ao sair do elevador, os dois se deparam com uma mulher, de costas, conversando com alguém.
— É Cândida. — anunciou Diogo. — Vamos falar com ela.
Quando a mesma abriu caminho ao ouvir seu nome, Laura teve a figura do Dr. Luca Rebelo materializada diante dela. Os dois se encararam como há vinte anos.
Reencontrar com os seus e juntar esses pedaços apartados pelo ego. Recordou-se imediatamente do convite de Diogo, em São Paulo, mas ele estava errado. Foram apartados por aquele monstro!
Largou finalmente a mão do amigo e deu um passo em direção ao passado tão bem guardado. O velho médico fez o mesmo. De repente estavam um diante do outro. Ela, disposta a enfrentá-lo e a qualquer pessoa que se atravessasse em seu caminho. Ele, como se a impedisse de seguir, como feito há vinte anos, quando pôs um fim em seu grande amor e a expulsou de Fortaleza.
— O que faz aqui? — foi dele a primeira fala.
Não era o que esperava ouvir depois de tanto tempo. Aquilo, no entanto, jamais a abalaria.
— O que o senhor acha? O Edgar estar entre a vida e a morte.
— Isso não lhe diz mais respeito.
Ele falava com uma frieza que a chocava.
— O senhor acha mesmo que eu o risquei da minha vida?
— Pois devia.
— Não é momento para isso, Dr. Juca. — Diogo interviu. — Seu filho está lá dentro e Laura não tem como ficar longe nesse instante.
— Não vou te perdoar, Diogo. Você foi o responsável por trazê-la de volta. — sentenciou o médico.
— O que está acontecendo aqui? — Cândida procurou se inteirar. — O que Laura tem a ver com nossa família?
— Não se meta, Cândida. — Dr. Juca advertiu. — Nós já resolveremos esse mal entendido.
— Mal entendido? — Laura se indignou. — O senhor acha mesmo que pode mandar nas pessoas? Pode controlar a vida de todos?
— Faço o possível para manter a ordem e a honra de minha família. — explicou ele.
— O senhor não pode nos impedir de entrar. — disse Diogo.
— Posso sim. Sou médico, tenho influências aqui dentro e vou chamar a segurança.
— Por que isso, Dr. Juca? — Cândida parecia pasma.
— Não queremos a especulação da imprensa aqui dentro. — justificou ele.
Imprensa?! Mais uma de suas artimanhas. Compreendia que o Dr. Juca Rebelo justificaria sua atitude arbitrária alegando que ela era uma repórter e precisava defender a família do assédio jornalístico. Uma bela desculpa, como todas as mentiras e atrocidades cometidas por ele em nome da honra familiar, não fosse pela determinação de Laura em enfrentar de uma vez por todas o poder aterrorizante daquele homem. Todos o temiam, exceto ela!
Dr. Juca Rebelo não lhe impunha mais medo como há vinte anos. O que no passado a fizera largar tudo, abrindo mão das pessoas que amava, de sua vida, da própria felicidade, agora a fortalecia e proporcionava-lhe a coragem necessária para enfrentá-lo e permanecer ali.
Poderia revelar toda a verdade e destruir definitivamente a empáfia daquele homem que manipulava e determinava de um modo tão frio a vida daqueles a quem dizia amar. Diogo e Cândida seriam os primeiros a saberem, depois o restante da família. Se ele insistisse, o hospital e o mundo conheceriam naquele instante quem era o verdadeiro Dr. Juca Rebelo. Tinha como acabar com ele, transformá-lo em pó, como o próprio fizera com sua vida.
Não é o momento, Laura! Ouviu a voz de Diogo em sua consciência. Quando fitou o amigo, ele a observava de forma terna.
— Bom, nós vamos ficar aqui aguardando notícias de Edgar. — decidiu ela.
— Vão embora daqui, antes que eu chame a segurança. — advertiu Dr. Juca.
Velho teimoso!
— O senhor não vai chamar segurança coisa nenhuma, nem muito menos nos mandar embora daqui! — determinou Laura, firmemente. — Não sou mais aquela menina que o senhor expulsou de Fortaleza, há vinte anos! — experimentou uma alegria interna ao dizer aquilo.
— Por favor, o que está acontecendo? Nós estamos num hospital. — insistiu Cândida, parecendo chocada com tudo aquilo.
— Saia daqui! — ordenou o velho Juca.
Laura deu mais um passo a frente, colando o rosto no dele.
— Tome qualquer atitude de me tirar daqui e todos saberão o que o senhor fez no passado. — anunciou impávida. — Amanhã mesmo a verdade sobre Juca Rebelo estará estampada em todos os jornais. O que me diz?
O homem hesitou, com ódio nos olhos, deu um passo para trás e abriu caminho.
Sentia-se feliz e orgulhosa por si mesma! Os pedaços de sua alma começaram a ser apanhados.




47


Jamais havia se sentido tão acolhido por Saulo daquela maneira. Lucas deitou no colo de seu líder espiritual, na parada de ônibus, quase em frente ao hospital, e experimentou o cuidado num toque leve em sua cabeça. O paletó do Pescador de Vidas o resguardava do frio enquanto observava a chuva cair e lavar suas dores. Por mais que não o reconhecesse, preferiu nada falar, a fim de que aquele momento pudesse se eternizar. O silêncio os uniu em cumplicidade.
Até que o som do monitor cardíaco de Edgar voltou a estremecer seus tímpanos, forçando-o a levantar daquele aconchego num impulso.
— Lucas, o que houve? — Saulo procurou saber, assustado.
As imagens da máquina o confundiram com a realidade à sua frente, bem como o atendimento de duas enfermeiras aflitas a seu pai na UTI. A velha e conhecida dor se alastrou pelo crânio de Lucas e ele pôs-se de pé, deixando cair o blazer que o cobria no chão molhado.
— Lucas? O que está havendo? — insistiu Saulo.
Ele podia ouvir os batimentos cardíacos de Edgar ficando cada vez mais fracos e um médico chegando à urgência.
— Meu pai... — não sabia o que falar. As imagens eram quase palpáveis e ele podia sentir o cheiro de éter.
— O que está vendo? — Saulo procurou ajudá-lo.
— Meu pai está morrendo!
Sentiu no abdómen a mesma dor que naquele instante levava consigo a vida de Edgar. Se não fosse por Saulo segurá-lo, despencaria no chão. Quando o monitor cardíaco emitiu um som contínuo.
— NÃO! — gritou, nos braços de Saulo.
— Calma, estou aqui! Calma!
— Meu pai!
Precisava fazer algo, salvá-lo, redimir-se. Talvez o pai tivesse respondido ao fato dele estar ali acolhido no colo de seu provável genitor. Isso, uma resposta à sua traição de filho. Não tinha o direito de macular a memória de Edgar como pai. Por isso, desprendeu-se dos braços de Saulo e atravessou a rua.
— LUCAS! — gritava Saulo atrás.
Caminhou de forma apressada, mas estendo os braços, com as mãos abertas em seu comprimento lateral. Uma caminhonete brecou quase em cima dele. Em seguida, outros veículos foram parando de forma brusca. Certamente ninguém compreendia o que estava acontecendo. Que força era aquela capaz cessar o trânsito nas duas vias ao mesmo tempo? A força do desespero!
— LUCAS! — insistiu Saulo.
Ele, contudo, entrou no hospital com a mesma determinação com a qual parara o trânsito lá fora. A recepcionista tentou impedi-lo ao perceber que passaria sem fazer o procedimento com o cartão na roleta. Papeis voaram do balcão, quadros saltaram da parede e as pessoas ficaram assustadas. Lucas atravessou o ambiente sem nenhuma dificuldade. Sua força, seu dom abriria todo e qualquer caminho até o pai.
Saulo não tivera a mesma sorte e ficara preso na recepção, gritando por ele.
Precisava tentar pela última vez salvar o pai. Se não conseguisse, nunca mais usaria esse dom.
Ao sair do elevador, as imagens do pai sendo ressuscitado com o desfibrilador invadiram seu campo de visão, fazendo-o correr até a sala de espera onde todos aguardavam notícias. Por último a imagem do avô retirando a máscara e balançando a cabeça negativamente, com uma expressão nítida de dor e lamentação.
— PAI! — gritou em prantos, sendo impedido de entrar na UTI por Diogo e Pe. Giuseppe.
Todos estavam visivelmente assustados com seu desespero. Até que o avô saiu da UTI. O velho Dr. Juca Rebelo vinha com olhos marejantes e uma tristeza reveladora.
— Ele não resistiu. — disse, sem se alongar.
Tudo estava terminado!
Enquanto todos se anteciparam ao médico, Lucas foi deixando aquele lugar, num silêncio ensurdecedor. Agora via o pai com ele em seu colo, ainda menino. Podia sentir a mesma ternura, presença, cuidado e proteção de anos antes.
Meu príncipe! A voz de Edgar o chamando reverberava em seus ouvidos. O pai parecia amá-lo tanto antes de saber da verdade, transformando-se por completo de uma figura amorosa à irascível.
Jamais esqueceria aquele sorriso que já não via há doze anos.
Lucas saiu do prédio debaixo de chuva, deixando para trás a culpa por não ter sido o filho que Edgar gostaria de ter tido. Como se tivesse morrido junto com o pai. Como ele, nunca mais ninguém o veria.




48


Thomás caminhou apressadamente no meio da chuva até o carro, tentou destravar as portas e não conseguiu. Completamente encharcado e com muito frio, impacientou-se e bateu algumas vezes no veículo com o próprio controle, até o aparelho desligar o alarme. Em seguida, entrou na caminhonete, ligou o som e passou alguns arquivos do cartão USB, até a melodia esperada se propagar no volume máximo dentro do carro. Depois, recostou-se no banco e estendeu os braços até o volante para se apoiar, fechou os olhos e procurou sentir cada palavra proferida pelo Bono Vox naquela música tão conhecida.
If you twist and turn away / Se você se contorce e se vira
If you tear yourself in two again / Se você se quebra em dois novamente
If l could, yes l would / Se eu pudesse, sim eu faria
If l could, l would / Se eu pudesse, eu faria
Let it go / Deixaria isso passar
Surrender / Rendido
Dislocate / Deslocado
If l could throw this / Se eu pudesse jogar essa
Lifeless lifeline to the Wind / Linha de vida sem vida ao vento
Leave this heart of clay / Deixar esse coração de barro
See you walk, walk away / Ver você passar, ir embora
Into the night / Na noite
And through the rain / E pela chuva
Into the half-light / Na meia luz
And through the flame / E pela chama
Soltou um longo grito que mais parecia um bicho ferido na eminência da própria morte. Soubera há poucos minutos do falecimento de Edgar e percorreu os corredores do hospital desnorteado, a fim de sair dali o mais rápido que pudesse. Como se o ar não conseguisse chegar aos seus pulmões e um choro triste o acorrentou violentamente na dor pela morte do amigo.
If l could thren myrelf / Se eu pudesse através de mim mesmo
Set you spirit free / Libertar seu espírito
I’d lead your heart away / Eu guiaria seu coração afora
See you break, break away / Ver você quebrar, quebrar afora
Into the light / Na luz
And to the day / E para o dia
To let it go / Deixar isso passar
And so to fade way / E então desaparecer
A letra da música “Bad” nunca fora tão fidedigna aos seus sentimentos como naquele momento. Entretanto, impossível passar ou desaparecer aquela força voraz que o imobilizava, tornando-o pequeno diante da culpa.
Recordou-se de quando Edgar chegara ao grupo de jovens da paróquia do Pe. Giuseppe, apesar de forçado pelo pai, trazia certa esperança de se livrar do vício. Uma sintonia estabelecida no primeiro encontro. Inteligente, bem-humorado, com um jeito descolado e um charme que enlouquecia todas as garotas. Conquistou-o de cara, até fazê-lo findar o noivado com Cândida. Thomás se viu pela primeira vez completamente apaixonado por um homem. Por mais que relutasse, não tinha como fugir ou se esconder de tão fortes sentimentos. Tudo parecia recíproco, por mais que não fosse explicitado, como um segredo só deles, até que o amigo pediu a mão de Cândida em casamento, após o nascimento de Salomão.
Até hoje acreditava que a mãe de seu filho tinha aceitado casar-se com Edgar por ter sido preterida na relação, mesmo que ela negasse veementemente. Afinal, fora honesto e quando romperam, revelou-lhe por quem estava apaixonado. Inicialmente, Cândida sentiu-se traída e desejou que ele sofresse tanto quanto ela naquele momento. Meses depois, casou-se com o próprio rival.
Quanto a Edgar, este negou qualquer envolvimento naquela mesma perspectiva frente à declaração de Thomás. Por anos, não compreendia o que de fato havia acontecido entre eles, se fora seduzido pelo amigo em sua imaturidade de ver todos aos seus pés, se entendera tudo errado e acabara por construir uma relação mentirosa com base numa ilusão, ou se de fato viveram um momento de encontro e sintonia de sentimentos, embora o outro não assumisse e depois tenha se descoberto apaixonado por Cândida.
Sonhos e planos desfeitos e a decepção eminente, motivando Thomás ao voto de castidade na obra. No entanto, alimentou por anos a esperança que Edgar um dia reconhecesse o próprio sentimento por ele e pudessem, juntos, ser felizes.
Por sua culpa e obsessão, perdera o grande amor de sua vida!
Essa não foi a justiça que eu busquei!
Nenhum plano fazia mais sentido. A decisão estava tomada!




49


Tão logo amanheceu Thomás pegou o carro e dirigiu até o sitio em Maranguape. Afastou o pesado portão de madeira do galpão o suficiente para passar de lado e já avistou a figura do irmão, deitado no chão ao fundo, em posição fetal. Caminhou até ele, enquanto o mesmo ergueu um pouco a cabeça, como que para identificar quem era. Estava imundo, conseguira se livrar do blazer e da gravata, e tinha a camisa azul clara suja e amassada com botões entreabertos, algemado e preso a uma corrente.
— Como você está? — Thomás procurou saber.
Saulo pôs-se sentado e respondeu.
— O que acha?
Desejou libertá-lo naquele instante e acabar logo com aquilo. Encontrava-se tão fragilizado pela tristeza que certamente o irmão já havia percebido. Agachou-se diante dele, apoiado com o braço em um dos joelhos e o cotovelo na outra coxa.
— Saulo, aconteceu uma coisa terrível.
O outro arregalou os olhos.
— O que você fez? Qual a atrocidade dessa vez?
— O Edgar.
O irmão engoliu a saliva e demorou a perguntar, como que com receio do que ouviria.
— O que aconteceu com ele?
— O Edgar está morto!
Anunciou aquela notícia com tanto pesar que não segurou o choro. Saulo balançou a cabeça de um lado para o outro, meio perdido, ficando visivelmente abalado.
— O que houve? Como foi isso?
— Um acidente. — a voz estava embargada — Ele cruzou um sinal vermelho.
Saulo partiu para ele e o segurou pelo blazer.
— O que você tem a ver com isso?! — tremia de um modo incontrolável.
— Ele descobriu que Cândida estava tendo um caso com o filho dele, da época de adolescência.
— Quem é esse filho, que nunca ouvi falar?
— O Delano.
O irmão o largou e pareceu cair nos próprios pensamentos, chocado.
— Então ele veio para se vingar! Estão juntos nessa?
Thomás permaneceu em silêncio.
— Claro que estão! — Saulo riu e chorou ao mesmo tempo. — Você trouxe esse rapaz para acabar com a vida do Edgar, não foi? Fazia parte da sua vingança, é isso?
— Nunca planejei a morte de ninguém!
— ASSASSINO! — gritou, tentando agredi-lo.
Thomás tomou distância, o suficiente para que a corrente não lhe permitisse se aproximar.
— Ele ficou transtornado, por isso o acidente. — justificou.
— ASSASSINO! Você veio para destruir todos nós!
— Não! Vim para fazer justiça!
— LOUCO! PSICOPATA!  VOCÊ MATOU O EDGAR! — Saulo gritou em surto. — Doze anos na cadeia foi pouco! Você devia ter morrido de verdade quando aquele carro explodiu! Você não pode estar entre nós!
Enxergou tanto ódio em seu olhar. Aquelas palavras atravessaram-no como navalha e o fez recordar de tudo o que vivera desde o dia em que aquela mulher apareceu morta em sua cama.
Mentira ou não, se não fosse pela revelação sobre a paternidade de Lucas feita por Saulo, Edgar não teria se voltado contra ele e participado de nenhum plano para incriminá-lo. Isto é, fora tão vítima das intrigas e manipulações daquele sujeito quanto o próprio Thomás.
— A polícia vai me tirar daqui! Você vai apodrecer na cadeia! — continuou Saulo.
Thomás o observava, e começava a cair a ficha do quanto o irmão tinha sido nocivo a todas as pessoas.
Estava errado ao pensar que todos haviam me traído!
— Tudo o que eu fiz foi pouco! — Saulo complementou.
Uma confissão! Ele manipulou a todos direitinho para tomar minha vida!
Sentiu-se injusto com Edgar, Cândida, Dr. Juca e Pe. Giuseppe. Se tinham alguma culpa, era somente por terem sido fracos, burros em acreditar naquele psicopata. Precisara perder o grande amor de sua vida para se dar conta do próprio equívoco e do quanto também fora manipulado por Saulo em todos aqueles anos, tendo o foco despistado do verdadeiro e único responsável por tudo.
Olhou para aquele homem acorrentado e sentiu horror a ele. Não reconhecia o irmão com o qual crescera junto, apenas um louco ambicioso, capaz das maiores barbaridades, de destruir a vida de quem quer que fosse para conseguir seus objetivos.
— Vou acabar com você, Thomás! — continuava ele.
— Como fez no passado? Continua, vai! Mostra quem é realmente!
— Dessa vez você vai para um manicômio!
— Esse é seu plano?
— Plano? DESGRAÇADO! LOUCO! — levantou-se, impulsionando-se até ele, mas a corrente não lhe permitiu tocar em Thomás.
— Minha maior curiosidade é saber se de fato acredita nisso.
— Quando eu sair daqui, todos ficarão sabendo quem é de verdade!
— Quando sair daqui, todos já vão estar sabendo quem “você” é de verdade, — Thomás prometeu. — mas por enquanto, continue aonde está, no lixo.
Thomás alinhou o colarinho e o paletó e deu as costas em direção à saída.
— VOLTA AQUI, DESGRAÇADO! VOLTA AQUI! — gritou Saulo atrás dele. — ASSASSINO! VOCÊ MATOU O EDGAR! ASSASSINO!
Isso que ele queria que Thomás pensasse, mas não cairia mais no seu jogo de manipulação. Saulo Sobreira era o verdadeiro responsável por toda aquela tragédia. Mais do que nunca estava disposto a fazer com que o mundo descobrisse a verdade.
Ainda precisava fazer justiça!




50


A empregada magrinha, de cabelo lambido e uniforme azul-escuro acompanhou Laura até o escritório, ao lado da enorme sala de estar do luxuoso apartamento da família Rebelo. Há vinte anos eles moravam numa mansão de esquina com a Av. Santos Dumont, dona Augusta não suportava a ideia de estar num local onde não houvesse uma grande área aberta, com muitas plantas. Muita coisa mudara desde a sua partida.
Embora não tivesse conhecimento de como era aquele lugar, percebia claramente uma energia de tristeza em todo o ambiente naquele instante.
— O que veio fazer aqui? — a voz inquisidora do Dr. Juca se manifestou atrás dela, logo que entrou no escritório.
— Uma visita cordial certamente não foi! — respondeu no mesmo tom.
— Não está satisfeita com o que houve no hospital? — interpelou-a, indo para o outro lado da mesa.
O médico encontrava-se visivelmente abalado.
— O Edgar está morto e mesmo assim o senhor não baixa a guarda?
Como alguém podia ser tão duro?
— Exatamente por isso. Você não respeita os sentimentos de ninguém, menina? — apoiou-se na mesa à sua frente. — Meu filho acabou de morrer. Não vê que não estou disposto a nenhum acerto de contas?
Filho? E ela?
— Impressionante como o senhor me riscou da sua vida!
Procurava enxergar naquele homem implacável a pessoa amorosa com quem conviveu na infância.
— Para mim você está morta há vinte anos. — explicou de um modo desprezível.
Como se revivesse toda a dor de quando fora expulsa de casa, deixando escapar uma lágrima denunciadora das mágoas tão bem guardadas em sua alma.
— Como uma pessoa que prega o amor numa comunidade religiosa pode ser tão desumana?!
— Você tentou acabar com nossa família! — justificou ele.
— Apenas amei! — disse ela no impulso.
— São as artimanhas do demônio.
— Hipocrisia! O senhor é um hipócrita! — procurou falar aquilo com toda a sua indignação. — Fala de Deus e comete as maiores atrocidades! Prega o amor e vive o ódio!
— Muitas vezes somos obrigados a pagar um preço alto por nossa fé.
— O senhor acha que ainda vive na época da inquisição?
— Não sou obrigado a ouvir esses absurdos. Meu filho será enterrado hoje. Saia daqui!
— O senhor não se arrepende de nada, pai?
Pai! Exatamente isto, seu pai. Vinte anos depois estava diante dele novamente. Recordou-se de quando o enfrentou, ainda menina, acusando-o de tirar a vida de seu grande amor. Apaixonada pelo próprio tio, quinze anos mais velho, viúvo da irmã do Dr. Juca, Laura se entregou à paixão, escandalizou a família e enfrentou a todos para viver esse amor proibido. Uma história marcada pela tragédia, interrompida pela morte de Ricardo como paciente do renomado médico.
Dr. Juca deu as costas e aproximou-se da janela, afastando as cortinas a fim de ter a visão do mar à sua frente, quase encoberta pela chuva que caíra sem trégua naquela manhã.  
— Não pense que foi fácil para mim. Perder você foi uma das maiores dores da minha vida, mas eu já havia perdido, antes mesmo de sua saída daqui de casa. — voltou-se novamente para ela. — Tudo o que fiz foi por amor à minha família. — completou.
— Por amor é capaz de matar? O senhor é um médico! O Ricardo era seu paciente!
— Foi por isso que te expulsei daqui, há vinte anos! — ele se exaltou. — Você tentou jogar todos contra mim! Poderia acabar com toda a nossa família, com essa história absurda! Seria um escândalo!
— E para evitar um escândalo, o senhor matou a própria filha em vida?!
Como doía ouvir aquilo!
— Você enlouqueceu ao se apaixonar pelo Ricardo! Tentei te salvar de todas as formas.
Salvar?
Laura podia sentir ainda o peso de sua mão. Foram inúmeras surras, até o dia em que Dr. Juca, num descontrole, espancou-a. As lembranças de cada uma das incontáveis agressões ficaram para sempre marcadas em sua alma. Bem como das vezes que fora presa no quarto a pão e água, para ser livrada das tentações do demônio, segundo o pai. Um louco, fanático que destruiu sua vida, afastando-a de todos que amava e principalmente de Ricardo. Agora lutava para colar os pedaços que sobrara.
— O senhor matou o Ricardo! E agora matou o Edgar por causa de suas loucuras!
Dr. Juca contornou a mesa e veio para cima dela.
— Vai me bater, como no passado?!
Ela foi ao seu encontro e ficaram frente a frente. Não era mais uma menina de quatorze anos e podia se defender, livre do medo que sentia dele no passado.  Dr. Juca Rebelo não representava mais nenhuma ameaça. Ele acabou recuando, escorou-se na mesa com uma das mãos e procurou se equilibrar. Caindo devagar diante dela.
— Pai?! — Laura tentou ajudá-lo. — ALGUÉM ME AJUDE, POR FAVOR! — gritou com o pai nos braços.
O velho Juca estava gelado, pálido e parecia relutar para não fechar os olhos.
— Pai, por favor! Olha para mim!
Apesar de tudo, não queria que nada de mal lhe acontecesse. Uma enfermeira chegou e ajudou-os.
— Vai embora daqui... — balbuciou ele em seus braços.
Não podia deixá-lo naquele estado. Sentia-se responsável pelo que havia acontecido. Se ele estava passando mal era por sua culpa. Ao mesmo tempo, sabia que sua presença ali poderia piorar as coisas. Melhor mesmo era ir embora, entregá-lo aos cuidados da enfermeira. 
— Ele ficará bem? — procurou saber da moça.
— Sim, foi uma queda de pressão. — explicou a enfermeira tranquilamente.
— Saia daqui! — repetiu o velho Juca.
Momento de recuar!
Laura olhou para ele, depois para a moça e, constrangida, soltou-o.
— Saia, por favor, ele ficará bem. — pediu a enfermeira.
Ela pegou a bolsa que tinha colocado na cadeira e foi embora. Dr. Juca precisava se recuperar para o sepultamento de Edgar. Mais tarde, voltar a conviverem. Laura estava decidida a retomar a própria vida roubada.
Ao passar pela sala, deparou-se com a imagem de dona Augusta Rebelo, sua mãe, no alto da escada. Ela parou e as duas se olharam, movidas talvez pela mesma saudade que a acompanhou por vinte anos.
— Mãe!
— Minha filha!
Laura aproximou-se da escada e a mulher de aparência envelhecida, abatida por anos de depressão, desceu devagar, degrau por degrau. Sonhou inúmeras vezes sendo consolada em seu colo. Nunca compreendeu por que a mãe também a tinha abandonado. Pura submissão? E seu instinto materno?
Desejou abraçá-la, sentir mais uma vez seu afeto, o cuidado terno encontrado no colo de mãe.
Dona Augusta a tocou no rosto delicadamente, como a uma pedra rara, e tremeu os lábios, como se contivesse um choro engasgado há muito. Por fim, abraçou-a fortemente. Pedaços apartados de seu passado com a vida presente finalmente se reencontravam. Laura procurou viver a eternidade daquele aconchego, sentindo o cheiro, o calor, a textura da pele enrugada da mãe. Por ela, nunca mais a largaria!
Tenho minha mãe de volta!
— Vá, minha filha. — pediu a mulher.
Laura a olhou, sem compreender.
— Precisa ir embora. — explicou dona Augusta. — É necessário.
— Por que, mãe?
— Um dia compreenderá, minha filha. Vá.
Tanto queria perguntar, partilhar, ouvir. Não, definitivamente, não compreendia sua omissão. Jamais compreenderia o abandono, a distância do afeto, a escolha por vê-la longe de seu seio e cuidados.
Laura enxugou as lágrimas e tomou distância, sem querer. Fez que sim com a cabeça, cedendo ao seu pedido e deu as costas ao sonho de estar novamente com os seus.
Entretanto, pela primeira vez em vinte anos, sentiu-se novamente Laura Rebelo.




51


Thomás acompanhou o cortejo do funeral de Edgar em meio à multidão. Nem o mal tempo o fez perder a elegância e desfilar o figurino perfeito de seu personagem. Havia escolhido o melhor paletó e a cor preta nunca fora tão sugestiva em todas as peças que o compunham para aquela despedida. Finalmente a chuva dera uma trégua naquele final de tarde e o corpo do melhor amigo pôde ser levado do Chiamare, onde havia sido velado desde a noite anterior até aquele momento, ao cemitério Metropolitano. Sentiu-se bombardeado de muitas emoções confusas, por reencontrar dezenas de pessoas, missionários da obra, figuras da alta sociedade e meio empresarial, autoridades, líderes religiosos com quem convivera no passado. Embora todos pensassem que tratava-se de Saulo Sobreira, era na verdade um homem machucado profundamente pela injustiça sofrida, rejeição e por sido preterido pelo canalha do irmão.
Fácil enganá-los! Cada cumprimento recebido daquelas pessoas idiotas o fazia compreender melhor a farsa de Saulo e o caminho por ele utilizado para assumir seu lugar, sua vida, sem que ninguém questionasse por um segundo a veracidade dos fatos.
Imbecis, estão novamente diante de Thomás Sobreira!
Todos estavam voltados demais às aparências, ao superficial para perceberem o essencial, o óbvio. Exceto Diogo. Este o encarava a todo instante durante o velório e ali no cemitério, como se o perscrutasse ou tivesse sentido algo estranho em sua presença. Temeu ser descoberto por ele, por isso procurou fugir do irmão a todo momento, sem trocar uma só palavra com o mesmo.
Diogo. Sem dúvida a maior emoção experimentada nos inúmeros reencontros daquele dia fatídico. A primeira vez que estivera na presença do irmão em doze anos. Foram tão amigos, tão cúmplices da infância até a tragédia que o baniu da sociedade. De todas as pessoas que o traíram ou não acreditaram nele, foi Diogo a maior decepção. Depois, o abandono. Até hoje não compreendia por que fora esquecido por ele. Mesmo que todas as acusações fossem reais, ainda assim não compreendia. E o amor que existia entre eles?
Melhor mesmo seria ficar distante, para não se machucar ainda mais e também não ser descoberto. Pior, correr o risco de ter sua identidade exposta por ele. Aquilo seria terrível. Aí sim, jamais o perdoaria.
Outra preocupação daquele dia fora o sumiço de Lucas. Desde a noite anterior, o jovem havia desaparecido do hospital, logo após saber da notícia da morte do pai. O que estava o matando!
Há dois meses fora da prisão, não imaginava viver tamanho desespero e a tristeza pela morte de Edgar. Agora tinha certeza que nunca o havia esquecido e guardava dentro si a esperança de um dia viver aquele amor. Tolice! Edgar nunca o desejou. Se um dia o seduziu foi para afastá-lo de Cândida, por quem o amigo fora verdadeiramente apaixonado. Isto é, Edgar soube como jogar e conseguir o que queria. Depois o fez de louco, afirmando ter sido fantasia sua.
Todos estavam emocionados e as últimas palavras proferidas por Pe. Giuseppe pouco antes do caixão desaparecer de sua vista, fizeram-no chorar.
Edgar tinha muito amor guardado dentro si, por isso era também tão amado. Agora, certamente partilha desse amor com Deus.
Recordou-se do sorriso que o encantou, da alegria que o despertou, da presença amorosa que fez explodir o próprio coração de amor. Sim, Edgar, era tudo isso, a única pessoa que ensinou a ele, Thomás, o sentido do amor diferenciado. Por ele teria deixado a missão, a comunidade, o chamado.
Parecia que o Bono Vox veio lhe falar em seu ouvido:
If I could, I Would let it go / Se eu pudesse eu o deixaria ir
Mas não podia! O amor por Edgar se faria presente eternamente em seu coração.
Thomás lançou uma rosa branca em cima do caixão, junto a tantas outras também arremessadas. Mas a dele, falava de algo nunca imaginado por ninguém ali, de um amor sofrido, não correspondido, de uma dor que levaria para sempre consigo, pelo não vivido.
De repente, caiu um leve sereno, como se os céus chorassem de alegria pela chegada de um filho tão amoroso.
Ele é Teu novamente! Falou com Deus, constrangido, sem muita intimidade ou sentir-se no direito. Com isso, procurou se afastar aos poucos, sem que ninguém percebesse.
Em seguida, cruzou o olhar com o de Laura, do outro lado. Teve vontade de acolhê-la, cuidar um pouco dela em sua dor silenciosa pela morte do irmão. Mas sabia que se o fizesse, poderia chamar atenção e pôr em risco sua identidade. Além do mais, Diogo estava sempre por perto dela e poderia abordá-lo. Melhor seria permanecer distante e procurá-la em outro momento mais adequado. Talvez aquela suposta indiferença já o ajudasse em seu plano de fazê-la questionar a índole de Saulo Sobreira.
Deu as costas longe de todos e caminhou em sua solidão.
— Thomás?
A voz atrás dele o fez se arrepiar e parar num impulso. A mão em seu ombro o provocou a se virar, devagar, pelo medo de quem encontraria diante dele. Teve a visão do reflexo de si mesmo, atônito, com olhos arregalados e uma ansiedade aparente.
Diogo!
Pronto, fora descoberto!

~
Após o sepultamento, Thomás preferiu ir direto para o Chiamare e tomar um bom banho. O dia tinha sido muito cansativo e o encontro cara a cara com Diogo também havia rendido-lhe uma boa tensão e uma dose extra de emoção. Desconversou, no momento em que foi abordado pelo irmão, sendo chamado pelo próprio nome, como se ele o tivesse descoberto. Nada que um “você está louco” não resolvesse. Diogo tentou explicar que por um instante pensou estar diante do irmão morto. Assunto encerrado!
Pôs uma roupa leve e desceu para o escritório. Quando estava no banho, Zica tinha avisado que Laura o aguardava. Na hora, pensou em pedir que voltasse outro dia, mas preferiu resolver logo aquela história de uma vez por todas. Não tinha mais tempo a perder.
Ao entrar no ambiente, viu Laura folhear umas revistas em cima da mesa. Ela parecia ter vindo direto do cemitério.
— Desculpa vir sem avisar, mas precisava conversar com você. — justificou ela de antemão.
— Estou muito cansado, Laura. Acho que não é o melhor dia. — procurou imprimir certa hostilidade no tom, aproximando-se dela.
— Mal nos cumprimentamos ontem e hoje.
— O que esperava? Não tinha como ser diferente diante de todos.
Ele passou por ela e sentou do outro lado da mesa. Laura o observou, como se já o estivesse perscrutando.
— Compreendo. Não sabe nada sobre mim, sobre meu passado e como eu estava em relação à morte do Edgar.
— Claro que sei. — disse da forma mais fria que podia. — Vocês eram irmãos.
Ela arregalou os olhos, certamente surpresa.
— Como sabe?
— Mandei investigar.
— E por que mandou investigar a minha vida?
— Precisava saber onde estava pisando. — tirou uma pasta de dentro da gaveta e pôs diante dela.
Primeiramente Laura fitou a pasta, desconfiada.
— Fique à vontade. — autorizou-a, sorrindo.
Ela pegou a pasta e abriu-a, deparando-se com fotos suas, informações diversas numa espécie de relatório. Folheou tudo rapidamente, depois devolveu os papéis para o mesmo local onde estavam e os colocou de volta na mesa.
— O que significa isso, Saulo?
— Tudo ao seu respeito.
— Sim, isso eu sei. Quero saber por que mandou fazer isso? Qual seu intuito?
— Laura... um homem da minha posição não pode se dar ao luxo de se envolver com qualquer pessoa. Preciso me resguardar.
— Muito bem. — Laura sentou-se. — E qual o impacto dessa investigação sobre a nossa relação? Desde quando você sabe de tudo?
— Algum tempo depois que chegou em Fortaleza.
— E qual o impacto? — insistiu ela.
Thomás levantou e deu as costas, focando um móvel que estava atrás dele com alguns livros.
— É a filha do presidente do conselho administrativo desta comunidade.
— A filha renegada, você quer dizer. — corrigiu ela.
— Ainda assim, a filha do Dr. Juca Rebelo.
— Não sou mulher de rodeios, Saulo. — anunciou, levantando-se. — Qual a importância disso para nós? O que muda na nossa relação?
— Nada. — voltou-se a ela novamente, enfiando um das mãos no bolso da calça. — Simplesmente nada. Continua tudo da mesma forma.
Houve um silêncio constrangedor, que foi quebrado por Laura.
— Como assim da mesma forma? O que quer dizer com isso?
— Laura, não há uma relação entre nós, a não ser de foro profissional.
Ela pareceu engolir aquilo a seco.
— Não sei onde está querendo chegar.
Pareceu desconsertada. Thomás poderia não fazer aquilo e poupá-la. Tinha acabado de perder o irmão. Seria terrível para ela mais aquela decepção, justo naquele dia. Na verdade, desejou abraçá-la, cuidar dela. Estava diante de uma mulher despedaçada por causa de seu passado, como ele. Tinham muito em comum, por isso se identificara tanto com Laura, ao ponto de não saber ao certo o que sentia estando ao seu lado. Experimentava um afeto inexplicável, além do que lhe provocava sexualmente. Poderia possuí-la ali mesmo e diversas outras vezes. Encontrava-se extremamente atraído, com uma vontade louca de permanecer em seus braços. O que não sentia há muitos anos por ninguém, nem muito menos por uma mulher. Excitava-se só em pensar.
O que posso fazer com isso? E se tudo der errado como foi com Edgar?
Se fosse desistir aquele era o momento. Talvez se assumissem o que sentiam um pelo outro, pudesse trazê-la como aliada para junto dele. Assim, não estaria sozinho.
— O que quer dizer com isso, Saulo? — Laura insistiu.
Saulo? Depois, quando ela descobrisse a verdade sobre sua identidade, seria pior. Sentir-se-ia, na certa, mais do que traída. O melhor mesmo era seguir com o plano original. Deste modo, não alimentaria sua paixão, para findar numa decepção maior. Ela não merecia.
Thomás respirou fundo e tomou coragem, aproximando-se um pouco mais.
— O que houve entre nós há alguns dias atrás não voltará a acontecer.
— Como assim?
— Foi uma loucura de momento. Sou o líder espiritual desta comunidade, Laura. Não posso pôr em risco minha imagem religiosa. — procurou representar com toda a verdade que o momento exigia, embora violentasse a si mesmo. Era preciso, por Edgar, por ela, pela justiça.
Laura forçou um sorriso, de certo muito constrangida.
— Disse que largaria tudo para ficar comigo.
Sim, largaria!
Acreditou nisso?
— Espera, você me confundiu. — pediu, apoiando-se na mesa, como se perdesse um pouco o equilíbrio. — Como assim acreditou? Tudo bem que as coisas podem ter mudado. O fato de ter descoberto que sou filha do Dr. Juca. De repente...
— Nada mudou, Laura. — interrompeu-a. — Sei de seu passado há muito tempo. Não tem nada a ver com isso.
— Não mudou? Disse que estava disposto a deixar o Chiamare.
— Eu menti! — foi categórico. — Precisava te convencer.
— Convencer de quê?
— A ficar comigo naquele momento. Ora, Laura. Onde está seu faro jornalístico? Não passou de uma aventura, como as outras.
— Outras?!
— Acha realmente que foi a primeira mulher com quem me envolvi nesta comunidade? — foi novamente para o outro lado da mesa e sentou-se, girando a poltrona de um lado para o outro. — Chove de mulheres atrás de mim, minha querida. — procurava sorrir de um modo que parecesse celebrar. — Casadas, solteiras, virgens. E como você, carentes.
Ela o olhou de uma forma, como se finalmente a ficha tivesse caído.
Um caminho sem volta! Laura certamente já o estava odiando. Aquilo doeu-lhe profundamente, mas precisava prosseguir.
— Então fui mais uma de suas conquistas?
— Exatamente. Vejo que não é tão burra.
Laura deu as costas, caminhou um pouco pela sala, como se organizasse as ideias.
— Desgraçado!
— Ora, vai me dizer que não foi bom para você?
Ela caminhou firme em sua direção, parando quase em cima da mesa. Tinha respiração ofegante, como uma fera provocada.
— No início eu desconfiava que você não prestava, mas realmente não tinha noção do tamanho do seu mau-caratismo. Você é um cretino!
Tem toda razão!
— Não, errado. Sou o Pescador de Vidas.
— Eu... vou... acabar... com você! — decretou pausadamente. — Vou destruir essa imagem de Pescador de Vidas!
Viu tanto ódio em sua expressão. Lamentou profundamente, pois desejava abraçá-la e acabar com aquela farsa.
— Impossível, minha querida. Meu irmão tentou e está morto. — A cartada final. — Thomás foi a única pessoa que se meteu no meu caminho até hoje. Acabou preso por doze anos. E logo que saiu da cadeia... — fez um som de explosão, contraindo e descontraindo a mão. — Morreu. — mentiu com a mesma tranquilidade adquirida e necessária nos doze anos em que foi injustiçado. Em seguida, sorriu.
— Você é um monstro!
— Sou o Pescador de Vidas.
— Não por muito tempo. — sentenciou ela. — Nem que seja a última coisa que faça na minha vida, vou provar para todas as pessoas quem é Saulo Sobreira. Mexeu com a pessoa errada. Se até hoje não tinha encontrado ninguém que o enfrentasse, agora está diante dessa pessoa. Acredite, Saulo, vou acabar com essa imagem sagrada de Pescador de Vidas!
Não, mexi com a pessoa certa.
Laura deu as costas, pegou a bolsa numa poltrona e saiu com pisadas firmes, batendo a porta com força. Thomás recostou-se na cadeira e começou a chorar. Sentiu-se tão cretino quanto o próprio irmão.
Porém finalmente colocava seu plano nos trilhos novamente. Laura descobriria para ele toda a verdade. Justiça seria feita!

~
Logo que saiu do elevador, Laura sentiu o cheiro de incenso no corredor do prédio. Quando entrou em casa, viu Diogo refestelado numa poltrona na sala, vestindo um moletom e camiseta, com os pés cruzados um por sobre o outro em cima da mesinha de centro, uma caneca de chá numa mão e o tablet na outra. Sua vontade foi de correr e se jogar em seus braços, sentir-se um pouco cuidada e amada.
Acha realmente que foi a primeira mulher com quem me envolvi nesta comunidade? Chove de mulheres atrás de mim, minha querida. Casadas, solteiras, virgens. E como você, carentes.
Aquela declaração de Saulo vinha reverberando por todo o percurso feito pelo táxi da sede do Chiamare até ali. Como alguém podia ser tão sórdido? Canalha! No entanto, por mais que soubesse que ele era um cretino, não conseguia deixar de se sentir um lixo. Sempre tivera dificuldades em relacionamentos. Apesar de ter uma beleza frequentemente reconhecida por todos, não acreditava que fosse uma mulher verdadeiramente bonita e, fundamentalmente, interessante. Por isso, achava mais cômodo, manter-se isolada e longe dos homens de qualquer possibilidade de um relacionamento.
— Como você está? — perguntou Diogo, com um jeito terno, que a fez desabar num choro compulsivo. — Ei, calma! — precipitou-se ao seu encontro, envolvendo-a num abraço. — Estou aqui. — ele a conduziu até o sofá e permaneceram no abraço. — Sei que está sendo difícil, mas vou te ajudar a superar esta dor.
Chorou a perda do irmão, a distância do pai e toda a família, a solidão que a acompanhou por todos aqueles anos e a decepção de Saulo.
— Ele não merece esse choro. — disse Diogo, procurando consolá-la.
Será que ele sabe do Saulo?
— Sim, sei sim. — respondeu ele ao seu pensamento.
Laura parou um pouco, tomou distância e focou o rosto do amigo. Eles eram idênticos. Poderia ter levado a história com Diogo adiante, mas não, escolheu o gêmeo errado, como sempre.
— Você sabe de tudo? — indagou Laura, curiosa.
Diogo fez que sim com a cabeça e desviou o olhar, como se estivesse envergonhado.
— Diogo, estava usando seu dom para me espionar?
Ele hesitou antes de responder.
— Não foi proposital. Sinto uma ligação muito forte com você. Preocupo-me com sua segurança, sua felicidade. As imagens vêm de forma involuntária. Não tenho como controlá-las.
Levantou, pensou nos momentos com Saulo e no que exatamente ele teria visto através de suas visões. Laura se sentiu estranhamente exposta, como se fosse monitorada. O que a incomodou profundamente.
— Não tem o direito. — sentenciou ela.
— Desculpe-me! — respondeu Diogo, indo novamente ao seu encontro. — O que sinto por você é muito forte e impede-me de controlar as visões. É como se fosse um meio de estar perto, protegê-la. — tocou delicadamente em seu rosto. — Foi tão doloroso quando a vi com ele.
Laura se desviou e afastou-se. Ele não tinha o direito de vigiá-la. O que poderia fazer para impor um limite a uma pessoa com a capacidade de ler a mente, ver o futuro ou transcender as barreiras do tempo e do espaço? Precisava deixar claro sua insatisfação e estabelecer regras àquela relação. O silêncio talvez fosse uma alternativa, até que Diogo visse uma forma de controlar o próprio dom e pudessem conviver de uma forma mais justa, sem invadir os espaços um do outro. Ele, contudo, era seu único amigo. Temia afastá-lo.
— Eu te amo, Laura.
Embora estivesse indignada, era tudo que precisava ouvir naquele momento. Alguém que se importava verdadeiramente com ela. Laura reaproximou-se e o abraçou por um longo tempo. Estar com Diogo lhe recarregava as energias.
Em seguida, ele foi para a cozinha e lhe preparou um chá. Laura contou o que havia acontecido realmente entre ela e Saulo, falou dos detalhes do último encontro, há algumas horas e de como estava se sentindo. Diogo acompanhou tudo atentamente, demonstrando indignação em alguns momentos, mas manteve-se na escuta quieta e cuidadosa. Por fim, ele tomou o banco no balcão ao seu lado e segurou forte em suas mãos.
— E o que exatamente sente por ele?
Uma pergunta difícil de responder. Sentia-se, sim, atraída por Saulo, isso era óbvio. Até fantasiou ficarem juntos, quando ele cogitou deixar a comunidade, mas não sabia ao certo classificar o sentimento. Na verdade, nunca soube, com nenhuma relação. Seria paixão? Talvez.
— Não sei.
— E o que pretende fazer?
— Desmascarar seu irmão.
Impossível, minha querida. Meu irmão tentou e está morto. Thomás foi a única pessoa que se meteu no meu caminho até hoje. Acabou preso por doze anos. E logo que saiu da cadeia... Morreu.
Para Laura a própria declaração de Saulo representava uma pista de por onde começar.
— Hoje percebo que posso ter cometido o maior erro da minha vida em não acreditar no Thomás naquela época. E se ele estivesse certo, se realmente não cometeu aquele crime? Se foi o Saulo que arquitetou tudo? — Diogo conjecturou.
— Isso nós podemos descobrir juntos.
— Acho que é hora de enfrentar o passado e buscar a verdade.
— Então...
— Pode contar comigo, Laura. Estaremos juntos nessa a partir de agora.
Os dois deram um aperto de mãos e sorriram.  Diogo era o parceiro que ela precisava naquela investigação.
— Tem uma coisa que preciso te contar. — anunciou ele, com certo cuidado.
— O que é?
— Nosso sobrinho, o Lucas.
— O que tem ele?
— Todo mundo está preocupado, Laura. Ele desapareceu desde ontem.



52


— Thomás, que bom te ver! — disse Juscelino sorridente, do outro lado da grade na sala de visitas do presídio. 
— Desculpa não ter vindo antes, mas sabe que estive ocupado. — justificou-se Thomás.
— Como andam as coisas lá fora?
Hesitou um pouco para responder. Temia o que o companheiro pudesse julgar.
— O Edgar está morto. — contou logo de uma vez.
Juscelino fechou os olhos e passou a mão pela testa, como se sentisse profundamente por aquilo.
— Foi um acidente, logo após descobrir que o Delano era seu filho e o estava traindo com Cândida. — adiantou-se, já que Juscelino perguntaria de qualquer modo.
— Meu Deus! E como você está?
Juscelino sabia de tudo, sempre soube.
— É como se tivesse morrido um pedaço de mim. Só queria ter me entendido com ele. Mas nossos poucos encontros foram um desastre. Edgar pensava que eu o havia traído e acabou alimentando um ódio mortal por mim.
— Curioso como são as pessoas. É provável que no passado ele tenha te seduzido com a intenção de te afastar da Cândida e se casar com ela. Isso também é uma forma de deslealdade, mas diante da própria dor a pessoa não consegue enxergar o outro.
— Talvez ele não tivesse consciência. — cogitou Thomás.
— Isso não o torna menos desleal do que você. Além do mais, tudo não passava de uma mentira do teu irmão.
— Mas ele não sabia, ninguém sabia.
— Opa... alguma coisa mudou aí dentro. O que foi?
— A morte do Edgar serviu para me mostrar que todos nós fomos vítimas das mentiras do meu irmão.
— Então desistiu do plano? — percebeu um toque de esperança no sorriso de Juscelino. Por mais que ele o tivesse ajudado em cumplicidade por todos aqueles anos em que dividiram a mesma cela, o amigo nunca concordou com o plano e questionava-o incansavelmente. 
— Desistir? Isso não. Mudei o foco. Não quero mais atingir ninguém, a não ser o grande responsável por toda essa tragédia na minha vida.
Juscelino cruzou as mãos e apoiou os cotovelos na mesa.
— Olhe o que está fazendo da sua vida. Acabou de perder a pessoa que mais amou. Se não fosse por esse plano infeliz, Edgar estaria aqui.
Admirava-o por compreender tão profundamente o que sentia por Edgar e nunca ter esboçado qualquer demonstração de ciúme.
— Thomás, não há como se vingar do Saulo sem respingar nas pessoas à sua volta. — continuou Juscelino. — É uma rede, da qual faz parte. Veja como você mesmo está, carregando uma tristeza violenta no coração. Tudo por causa desse plano de vingança.
— Não é vingança! — esbravejou. — É justiça! A justiça que não foi feita.
— Não se faz justiça mentindo, enganando, machucando as pessoas, desconsiderando seus sentimentos, suas vidas. A morte do Edgar é exemplo disso. Thomás, para tudo há consequências. Eu temo pelo que possa te acontecer, se continuar com esse plano absurdo.
— Não há mais retorno.
— Há sim. Sabe que há.
— O Saulo está preso, a Laura o odeia e provavelmente vai começar a investigar o passado. Se eu desistir nesse momento, ele pode acabar comigo, contar a ela sobre mim e convencê-la a desistir de procurar a verdade. Não entende, Juscelino. Estou chegando muito perto de tudo o que planejei nesses doze anos em que estive aqui dentro desse inferno. Não posso simplesmente desistir de tudo. Seria como passar uma borracha em tudo o que aquele monstro me fez. Pior, estaria compactuando com ele. Não, preciso livrar a sociedade desse psicopata, mostrar a todos quem ele é. Mais do que isso, limpar minha honra.
— A morte do Edgar foi um aviso do que poderá acontecer. — contra-argumentou Juscelino. — Deus está querendo te mostrar o caminho.
Deus?!
O que Deus tinha a ver com isso? O que Ele fez para impedi-lo de pagar por um crime que não cometeu? Por que não teria também apresentado consequências às atrocidades cometidas por Saulo? Só o mal prevalecia? Ora, Deus se mantivera longe de tudo aquilo. Na verdade, abandonara-o quando mais precisou. Não temia nenhuma consequência, se elas realmente existiam.
— Deus estava ocupado demais quando tudo me aconteceu e certamente continua assim.
Juscelino balançou a cabeça negativa, olhou para um lado e outro.
— Finalmente entendi o porquê desse plano. — comentou ele. — Essa história não se resume ao Saulo, mas a Deus.
— Como assim?
— Isso mesmo. Na verdade nunca quis se vingar do Saulo ou de qualquer pessoa que o tenha acompanhado em suas mentiras. Você quer se vingar de Deus! — concluiu Juscelino.
Viagem de Juscelino!
Não tinha nada a ver com Deus. Sua relação com Ele nem mais existia. Queria só fazer justiça, só!
— Não sabe o que está dizendo, Juscelino. — desdenhou.
— Está brincando de ser Deus, Thomás. Esse é seu verdadeiro plano. Vingar-se Daquele que te abandonou, assumindo seu lugar. Na verdade, a relação com seu irmão, nada mais é que uma metáfora daquilo que realmente te motiva no fundo da tua alma. A tua maior dor não foi o abandono daqueles que te amavam ou as mentiras do Saulo, mas o suposto silêncio de Deus diante de tudo isso. Cuidado, meu amigo. Esta rivalidade é uma fantasia, quando é Ele que te dá forças para continuar vivo e lutar por aquilo que acredita. Mesmo que esta luta seja contra Ele ou contra você mesmo.
Sentiu vontade de chorar, mas não o fez.
Não tinha mais nada para fazer ali. Despediu-se e deixou o companheiro antes que ele o fizesse. Já sabia dos devaneios de Juscelino, mas conjecturar absurdos como naquele dia, já passava dos limites.
Vingar-me de Deus... Desdenhou.
Nunca nenhuma conversa com o companheiro o deixou tão chafurdado como aquela.



Continua na próxima página...

Resenha por Andréia Regina Nogueira Cruz


Qual é a sua casa dos Anjos?
Essa pergunta aparece quase no fim do livro, mas te faz pensar muito...
O livro conta o drama de quatro mulheres que tem suas vidas, de certa forma, interligadas, apesar de uma e outra não se conhecerem.
Júlia é a personagem "central", que tem a filha de 1 ano desaparecida. Marina é uma mulher apaixonada e submissa. Celina, uma tetraplégica que não aceita sua condição e Clarinda, uma mulher que não se permite viver seu grande amor.
No começo foi meio difícil acompanhar as quatro histórias, porque quando voltava na personagem, eu tinha esquecido onde tinha parado, então voltava um pedacinho para acompanhar (eu tenho esse probleminha, eu esqueço as coisas muito rápido...). mas conforme as histórias vão se entrelaçando e você vai conhecendo-as melhor, você só quer saber mais e mais o que vai "rolar".
Basicamente, uma história de encontros, principalmente o de si mesmo. E vou te falar que fiquei com a maior vontade de conhecer um pouco mais sobre Biodança e praticá-la.
Quanto ao nome do livro, ele se deve a uma "casa" que Celina ganhou ainda na infância, onde guardava seus desejos, mas também...(leia o livro...rsrsrs...).
Eu acabei descobrindo, acho, a minha. Eu queria muito ler esse livro, mas acabei "enrolando", demorando a ler e acredito que acabei lendo-o na hora certa. Sabe quando você lê algo que parece ter sido escrito pra você? Pois é, eu me vi em determinados "sentimentos" e pela primeira vez, depois de muito tempo, resolvi exprimi-los e OMG, foi tão bom, me senti tão mais leve e feliz...
Então só posso dizer que gostei muito do livro...
Fica a dica...
Bjos!!!

Resenha por Jailson Batista


Quando eu comecei a ler o livro “A Casa dos Anjos” eu me deparei com o seguinte: 4 histórias sendo contadas por 4 narradoras diferentes. A princípio eu achei que isso atrapalharia a leitura e até mesmo o desenrolar da história. Porém o que aconteceu foi exatamente o contrario, na verdade ajudou. As historias se cruzam e é isso o que dá o algo mais a trama. A maneira que elas se encaixam é importante para entender melhor o enredo. Quando terminei de ler o livro e vim fazer a resenham relembrando fatos, me senti como se não fosse um livro que eu tivesse lido, mas sim uma novela que eu tivesse assistido. Original, essa é a palavra. Acredito que o Autor Antonio Rondinell quis mostrar os conflitos que temos, conflitos que nos mostra nossa verdadeira face. Lembro que li em algum lugar a frase: “A dor é suportável, exceto para quem a sente” e o livro mostra um pouco disso, um pouco de como lidamos com nossos sofrimentos. No aspecto físico dou destaque à capa, suave e encantadora, assim como a história.

Agradeço ao Autor Antonio Rondinell (Que mora aqui do lado :]) por ter cedido um exemplar do livro para resenha, espero que ele continue escrevendo (já estou sabendo de novos projetos :D) e nos agraciado com suas histórias.

Abraço e boa leitura.

Comentério do Leitor


A leitura de A Casa dos Anjos foi perfeita, o conteudo maravilhoso, me fez resgatar o habito que havia perdido. Estamos esperando ansiosamente pela segunda edição, deixou um gosto de quero mais. São historias que nos envolvem vivenciando as alegrias, tristezas e força de vontade de superar os problemas que surgem no decorrer de nossa caminhada como ser humano. Pra mim foi perfeito, e que venham logo as proximas ediçoes.

Vanessa - Leitora

Comentário do Leitor


"O livro é escrito com uma riqueza de detalhes que em muitos momentos me sentia sugada pelas cenas descritas. Era como se presenciasse aquele momento narrado, sentisse o que era dito pelas personagens. Ele envolve, seduz de uma forma tão sutil que quando você menos espera não consegue se separar querendo saber o desfecho da história. Vale a pena comprar e aceitar este convite a leitura."

Ticiana Otoch Moura - Psicóloga


Comentário do Leitor


Gostaria de parabenizá-lo pelo seu sucesso nacional. Li todo o livro e realmente é muito bom. Para quem tem sensibilidade, ao ler um livro como A Casa dos Anjos, descobre os valores de sua vida e da vida do próximo, avalia sua posição diante das dificuldades e porque não das facilidades, passando a valorizar a vida independente de sermos apreciados pelo outro. Descobri a importancia do ser, independente do ter. Nos convida a fazer uma reflexão dos nossos valores, atitudes e escolhas. Minha nota é 10. Parabens, um forte abraço.

Odília Gondim - Economista Doméstica e Educadora.



Comentário do Leitor


"A leitura de A casa dos anjos foi deveras prazerosa para mim, sobretudo pelas peculiaridades que me levaram ao livro: ter no escritor um amigo querido; a estória ambientada em Fortaleza; a narrativa de cada uma das quatro mulheres que me remetem a situações vividas em algum momento da vida. De fato, nunca levei a termo uma leitura de forma tão determinada como fiz com este livro, e o motivo era muito simples, a cada página que folheava sentia-me convidada, mais que isso, sentia-me instigada a continuar e continuar e continuar, e lia avidamente. No dia que conclui a leitura percebi que jamais havia lido um livro com tamanha empolgação e curiosidade que me acompanharam desde a primeira até a última página, foi uma experiência realmente fascinante e única para mim. Percebi também que, inexplicavelmente, sentia-me ligada aos personagens como se em algum lugar eles me aguardassem para continuarem suas vidas, como se eu fizesse parte da história deles ou quem sabe eles da minha... Já havia ouvido falar em “depressão pós livro”, mas só agora pude compreender do que se trata isso, não só porque chorei na leitura das últimas páginas, mas em especial pela enorme saudade que sinto de Júlia, Marina, Celina e Clarinda."

Norma Sampaio - Economista e Facilitadora de Grupos

Comentário do Leitor


"A Casa dos Anjos é um livro fascinante que nos instiga a mergulhar no universo de quatro mulheres, seus conflitos, sentimentos, numa busca que nos convida a refletir e a dialogar sobre felicidade, ética, valores, esperança, verdade, vida, amor. È um livro fantástico, emocionante que nos convida a ser,a sonhar e a viver quando sentimos a força, a dor, o vôo de liberdade, a doação, o amor de cada uma das personagens. Convido você a ler este livro e dialogar com cada uma destas mulheres."

Luciana Nogueira - Educadora / Licenciada em Letras


Comentário do Leitor


"Nunca tinha lido uma síntese da vida e do seu sentido, do nosso destino e das nossas possiblidades, permeado de cautela em relação aos nossos erros e acertos que podemos cometer nesse emaranhado que a vida e os nossos relacionamentos como A Casa dos Anjos. O livro tem passagens marcantes e tocantes. Júlia Serrado, Marina Pessoa, Celina Gondim e Clarinda de Holanda são mulheres que me habitam. Muitas vezes me sinto "tetraplégica", pelo medo de enfrentar a minha essência. Júlia Serrado me remete à Deusa grega Perséfone, ao ter sua filha sequestrada para o mundo avernal de Hades, o mundo do inconsciente e também da sombra, que muitas vezes me impedem de ver a luz. Perséfone é muito intuitiva e tem muita sabedoria, mas é preciso vigilância... Enfim, este livro é um convite a buscar a nossa essência, e vai além do Ter e Ser. Quem tiver oportunidade de ler, com certeza vai abrigar este espírito, a mente e o coração.
Obrigada, Rond."

Maria do Rozário de Oliveira - Psicóloga e Educadora.

 
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