Continuação
25
— O novo Saulo Sobreira, de
presente para o mundo. — disse Thomás, alinhando a gola do blazer, como o irmão
fazia, de frente para o próprio reflexo no espelho. Ensaiou um olhar mais
insinuador, como o dele, procurando se desvencilhar dos traços de dor e
amargura configurados em seu rosto.
A nova fase de seu plano de
justiça começava a ser posta em prática, com o apoio de algumas pessoas
compradas dentro da comunidade. O que lhe permitiria livre acesso a todos os
lugares, com ou sem a presença do sósia. Os R$ 20.000.000,00 desviados da obra
por Saulo para comprar seu distanciamento, seriam devidamente empregados no caminho
a ser trilhado para fazer com que todos eles pagassem pelo que fizeram.
Thomás saiu do banheiro em um
dos corredores que davam para o pátio da comunidade e quase esbarrou em Lucas,
e se o jovem conseguisse perceber, com seu dom, quem realmente estava por trás
daquelas roupas finas? O que faria? Como neutralizá-lo?
Por exatos doze anos não
estivera tão perto de Lucas. Ele havia se transformado num bonito rapaz, com a
mesma estatura que a sua. Além muitos traços que lembravam seu próprio rosto.
Alimentara a ideia de que era seu filho, durante todo o tempo em que estivera
preso, o que talvez tenha multiplicado o afeto por ele. Sempre imaginava que
não saberia como se comportar em sua frente. Agora sabia que Lucas não era
mesmo seu filho.
— Lucas? — Não sabia o que
dizer ao rapaz.
— Oi, tio. É... — parecia sem
jeito. — O senhor acha que... — como se quisesse dizer algo e não tivesse
coragem. — O Salomão me chamou para dar uma volta com ele amanhã à noite. — completou
rápido, quase sem respirar.
Os dois irmãos juntos. Seus
filhos! Não, definitivamente precisava lembrar que Lucas era seu sobrinho. Esse
amor que alimentara por anos não fazia sentido. Tratava-se da peça mais
importante do Chiamare naquele momento. Precisava se ater a isso. O sobrinho
teria um papel importante em seu plano, só!
— E pensam em ir para onde?
— Ele quer que eu conheça um
lugar. Nunca saímos, então pensei que...
— Claro. — interrompeu-o. — Será
ótimo para vocês nesse momento.
— O senhor permite que eu vá
então?
Sabia que Lucas fora criado
preso aos muros daquela comunidade, sem amigos, longe da vida normal de um
jovem e da presença do próprio irmão, exceto em alguns finais de semana,
liberado para visitar a casa do avô e estar perto da família. Deste modo, sua
primeira providência como Saulo Sobreira, seria inverter a ordem estabelecida.
Afastar Lucas da redoma construída para protegê-lo das influências mundanas
seria de fundamental importância ao enfraquecimento do poder do irmão.
— Acredito que já seja o
momento de você e Salomão se aproximarem.
O rapaz o observou de modo
assustado, sem o reconhecer certamente.
— Como assim me aproximar do
meu irmão? O senhor sempre disse que ele era uma péssima influência.
— Só sabemos se somos fortes
de verdade quando enfrentamos as provações, meu filho. — justificou Thomás.
Lucas sorriu aliviado.
— Posso dormir na casa dos
meus pais então?
— Claro que sim. Esteja de
volta no dia seguinte.
— Obrigado, tio Saulo. — agradeceu
quase saindo.
— Lucas? — chamou-o,
aproximando-se. Desejou tanto abraçá-lo. Errado, Lucas não era apenas parte
importante em seu plano, era seu afilhado, vira-o crescer. Recordou-se de
quando era um garotinho especial, necessitando de cuidados especiais para
crescer como uma criança normal, e do quanto o amava como filho de seus
melhores amigos. Depois, lembrou também da felicidade sentida ao descobrir sua
paternidade, há doze anos. Enquanto Salomão parecia não gostar da ideia de ter
um outro pai que não Edgar, Lucas e Thomás estabeleciam uma relação que ia para
além do apadrinhamento.
Se o abraçasse, talvez o rapaz
desconfiasse da energia presente. Melhor não.
— Vá encontrar seu irmão. — disse,
vendo-o desaparecer pelo corredor em passos apressados, como se fugisse da
possibilidade de uma mudança de ideia.
Sua primeira atuação como
Saulo Sobreira fora perfeita. Melhor ainda seriam as consequências daquela
saída de Lucas.
~
Lucas entrou na caminhonete do
irmão cheio de expectativas por aquela noite. Nunca saíram assim. Além de Saulo
Sobreira não permitir um contato de maior proximidade com Salomão,
considerando-o uma péssima influência à sua formação espiritual, o próprio
rapaz sempre o desprezou, e aquilo o machucava enormemente. Desde crianças, a
relação dos dois era complicada, recheada de brigas, reclamações e agressões
por parte do mais velho, que sofria por ser filho de Thomás e não de Edgar,
acusando a todos de protecionismo e mimos ao caçula, bem como insistindo num
tratamento quase sempre hostil ao mesmo. Exceto quando desejava se beneficiar
de seu dom, chantageando-o em troca de uma aproximação. Por outro lado, Lucas
cresceu alimentando grande admiração pela força, coragem e autonomia do outro —
Salomão era tudo o que ele queria ser, uma pessoa normal, não uma aberração,
como o próprio irmão o chamava muitas vezes. Desejando mais que qualquer coisa
sua amizade.
Salomão falou da noite, do que
rolava nos lugares para onde o levaria, das mulheres, que Lucas precisava se
soltar mais, sair mais vezes com ele. Tudo o que queria ouvir! Olhou para o
irmão, muito bem vestido, na moda, como um jovem de sua idade devia se vestir,
não como ele, trajando roupas de um velho.
Quero
aprender a ser assim!
Estava tão feliz em sua
companhia. Nem acreditava que Saulo o havia liberado e se não permitisse outras
vezes? Talvez fosse chegado o momento de ser como o irmão, corajoso e
enfrentá-lo.
— Tu precisa se libertar do
tio Saulo, cara! — afirmou Salomão, como se adivinhasse o que pensava. — Ele se
aproveita de ti, mah, te explora. A
droga dessa comunidade não é nada sem os teus poderes.
Droga de comunidade? Poderes?
Só não gostava quando falava assim.
— Podemos ganhar o mundo,
conquistar muitas coisas, juntos. O que acha, hein? — completou Salomão, dando
um tapinha no peito do irmão.
Juntos!
O
que mais desejava, estar junto dele.
— Tenho medo. — respondeu, com
receio do que Salomão pensaria.
— Medo? Besteira, mah! Eu te ajudo.
Sim, precisaria mesmo de sua
ajuda para enfrentar seu líder espiritual, seus pais.
Foi quando Salomão falou de
uma mulher, na qual estava interessado. Disse que ela também estava, mas temia
levar a relação adiante por conta do noivo. Afirmou ser a mulher de sua vida.
Em seguida, pediu que Lucas o ajudasse. Necessitava que usasse seu dom para
fazê-la mudar de ideia e ficarem juntos de uma vez.
Quantas vezes Salomão se
aproximou para conseguir seus objetivos através do dom de Lucas? Incontáveis.
Na verdade, parecia que só o fazia nestas circunstâncias.
— Não posso manipular os
sentimentos das pessoas, suas decisões, — Lucas tentou explicar. — meu dom deve
ser usado para curar os ferimentos da alma.
A expressão de Salomão ao
volante se transformou em impaciência.
— Que mané ferimentos da alma,
o quê? Parece frase besta de livro de autoajuda. Isso é o que o tio Saulo quer
que tu pense, mah. Tu mesmo não diz
que só pode usar esse dom quando as pessoas estão abertas?
— Isso.
— Então. A Liza gosta de mim,
me quer. Ela só não tem coragem. E covardia não é uma doença da alma? Preciso
que a cure desta doença, faça ela ter coragem.
Preferia não ter aquele dom.
Nunca agiu ou “curou” qualquer pessoa livre da sensação de manipular seu
destino, interferir no que era natural. Tirar pessoas das ruas, trazê-las para
o Chiamare e fazê-las servir na obra não seria o mesmo que negar seu livre
arbítrio? Segundo Pe. Giuseppe e outros teólogos, não. Visto que este dom da
cura da alma, só é possível quando a pessoa tem dentro de si um desejo
incontido, mas que o ego, o vício ou o mal distorce em repressão. Deus não
permitiria um dom que negasse seu princípio maior. A não ser que esse dom não
fosse algo divino.
Dar coragem a alguém trair seu
companheiro seria algo divino? O amor, como fica diante do exposto? Dúvidas que
o corroíam naquele momento. Definitivamente não sabia o que fazer, que decisão
tomar. Se não o fizesse, decepcionaria mais uma vez o irmão e decerto não teria
sua amizade. Da infância à adolescência aquilo aconteceu diversas vezes. Não
seria também uma forma de Salomão se aproveitar, como seu tio Saulo sentenciou
a vida inteira? O que faria?
Salomão estacionou o carro e disse
para acompanhá-lo, abraçando-o logo que desceram do veículo.
— Irmãozão, bom te ter aqui
comigo.
A colegagem que sempre sonhou.
Mas e o preço disso, estaria disposto a pagar?
Lucas entrou no ambiente com o
irmão, lotado de outros jovens. Gente bonita, bem vestida, como Salomão.
Algumas moças até olharam para ele. O outro, brincou com seu “dom de sedução”.
Sentia-se assustado, com medo. Nunca havia estado num ambiente como aquele.
Música alta, uma banda no palco tocava um ritmo chamado sertanejo universitário,
segundo Salomão.
Pareço
realmente de outro planeta!
O irmão parecia conhecido,
cumprimentava muitas pessoas pelas quais passavam. Eles atravessaram todo o
salão, até uma mesa perto do palco, onde estavam quatro rapazes. Conhecia dois
deles, os melhores amigos do irmão, estavam juntos quase sempre. Salomão o
apresentou e disse alguma coisa, que não conseguiu ouvir do que se tratava,
fazendo com eles o recebessem muito bem. Em seguida, um deles serviu uísque nos
copos e completou a bebida com gelo e energético, entregando-os a Salomão e
Lucas. Incialmente, negou-se a aceitar, mas o irmão insistiu. Nunca havia
provado algo tão forte, desceu queimando a garganta e bateu no estômago como
ácido.
Em pouco tempo, Salomão
pareceu avistar a moça de quem havia lhe falado e mostrou-lhe imediatamente.
— É agora que preciso de ti,
irmãozão.
O outro saiu em direção à
moça, que estava com algumas amigas e lá conversou por certo tempo, até que fez
sinal para que Lucas cumprisse o “combinado”. Não entendia por que teria que
ajudá-lo com aquilo, visto que exercia fascínio sobre as mulheres. Salomão fora
disputado pelas garotas desde cedo e nunca se acertava com nenhuma delas.
Adorava a fama de garanhão e se portava naquele ambiente como um pavão,
ostentando o charme e os músculos.
De longe, conseguiu ler os
lábios do irmão, dizendo-lhe, já de modo impaciente, para que fizesse sua
parte. Mas não sabia. Pensou em desistir e ir embora. Talvez ali não fosse seu
ambiente.
Meu
Deus, isso é certo?
No entanto, se não o fizesse,
o irmão certamente o odiaria. Apoiou-se numa cadeira, baixou um pouco a cabeça
e começou a se concentrar, visualizando a moça do lado de Salomão. Uma dor fina
foi se formando em sua nuca e se alastrando pelo restante do crânio. Seus
músculos começaram a tremer como se fossem esmagados por um choque. Alguns
segundos depois, a moça tomou Salomão num longo beijo.
Os amigos do irmão vibraram ao
lado de Lucas. Porém a comemoração foi interrompida por uma surpresa. O noivo
da moça apareceu do meio da multidão, acertando o rival com um soco. A confusão
se formou num piscar de olhos. Pessoas gritaram, outras correram e um espaço
foi aberto ao redor dos dois. O rapaz traído parecia bom de briga,
escanchando-se por sobre Salomão e o atingindo com vários outros socos em
sequência. Os amigos de seu irmão nada fizeram para impedir.
— LUCAS! — gritou Salomão,
meio sem forças, no intervalo entre um soco e outro. — LUCAS! ME AJUDA! — outro
soco — ME AJUDA! — e mais um — LUCAS!
Precisava fazer alguma coisa.
Serrou os punhos e novamente foi tomado pela mesma dor de outrora. De repente,
o rapaz em cima de Salomão pôs as mãos no próprio pescoço, como se tentasse se
livrar de algo que o sufocava, e caiu de lado, de modo que todos perceberam sua
falta de ar. Estava sendo estrangulado por uma força estranha, enquanto Salomão
teve tempo de se erguer e fugir.
De repente, Lucas ouviu alguém
falar “aberração”. Pessoas olhavam assustadas em sua direção, como se tivessem
se dado conta que havia sido ele. Os próprios amigos de Salomão o acusaram. A
música cessara e todos pareciam condená-lo.
— SAI DAQUI, MONSTRO! — alguém
gritou no meio da multidão.
— MONSTRO! — outra pessoa.
— ABERRAÇÃO! — e mais outra.
De repente, muitas pessoas
gritaram ao mesmo tempo. Então, ele correu, exausto, com medo, sofrendo por ser
um anormal.
26
O garçom serviu uma água com
gás para Thomás, enquanto aguardava a chegada de Laura Ponte, num refinado
restaurante, na Av. Pessoa Anta. Fora ele que, passando-se por Saulo Sobreira,
exigiu do editor da Revista Notícia o nome da jornalista como profissional a
assinar a matéria comprada pelo Chiamare — mais uma etapa de seu plano
concretizada. Ela era perfeita para o que ele almejava. Além de ser
extremamente competente para ajudá-lo a desmascarar o irmão, causaria uma
verdadeira catástrofe quando algumas das pessoas que o traíram soubessem de seu
retorno para Fortaleza.
A despeito do desconforto
naquelas roupas de grife, acreditava estar impecável com seu disfarce. Qualquer
um o confundiria com o atual moderador do Chiamare. Laura não foi diferente,
entrou deslumbrante no restaurante e foi conduzida pela hostess até sua mesa, acreditando piamente estar se encontrando com
Saulo, não com seu gêmeo injustiçado. Ela havia resistido em aceitar o estranho
convite pela manhã, mas acabara por ceder à insistência do Pescador de Vidas,
foco de sua matéria.
Fizeram o pedido ao garçom e
em seguida, Laura confessou sua curiosidade pelo encontro. O que afinal o líder
de uma comunidade religiosa poderia querer com ela fora de seu espaço de
trabalho?
Thomás estava se divertindo
com aquilo. Melhor seria quando o irmão soubesse do que “ele mesmo andara
fazendo, sem se dar conta, talvez um efeito colateral dos inúmeros remédios
tomados para controlar seu transtorno obsessivo compulsivo”. Saulo começaria a
duvidar da própria sanidade. Perfeito o plano!
Com todo o charme que lhe era
possível, começou a falar da suposta solidão que o acompanhava na liderança da
comunidade, de uma vida voltada exclusivamente a doar-se para o outro. Laura
parecia atenta e ao mesmo tempo desconfiada de suas intenções, sem compreender
na certa porque um homem de sua posição de repente resolvera revelar questões
tão íntimas.
— O senhor quer que eu aborde
um pouco de sua vida pessoal, de seus sentimentos nesta reportagem, é isso? — lançou
ela sem rodeios.
— É importante que me conheça
melhor, Laura. — explicou, tocando-lhe a mão. Ela puxou a sua imediatamente,
como se acometida por certo incômodo. — Poderá realizar um trabalho mais
próximo do real. Uma característica de tudo aquilo que faz. Ou me equivoquei?
— Entendo. — soltou ela, com
um leve sorriso, parecendo compreender e compactuar com algum tipo de jogo que
julgava, talvez, estar existindo. E estava!
Só não contava com tamanha
perspicácia de Laura. Aquilo o atraía e o motivava cada vez mais.
— Está escrevendo sobre mim e
minha comunidade. Alguma coisa me fez acreditar que poderia falar mais para
você, coisas que estão aqui dentro e me sufocam. — elucidou Thomás, tocando no
peito, com uma expressão de pesar. — Vivo um papel permanentemente que me
impede de sucumbir às fraquezas, ao cansaço. Tem ideia do que significa isso,
Laura?
— Grandes cargos, grandes
responsabilidades. São nossas escolhas que definem.
— Acha que se não abdicasse da
minha vida pessoal, essa comunidade existiria nos moldes de hoje?
O garçom chegou com o pedido e
eles aguardaram até que os servisse e deixasse-os novamente a sós.
— Imagino que administrar uma
comunidade desse porte requeira alguns sacrifícios. — Laura retomou o assunto.
Finalmente
ela caiu!
— Sacrifícios que valem a
pena, por acreditar tratar-se de um desígnio, mas que nos trazem muitas vezes
sofrimentos. A manutenção de uma obra como o Chiamare, exige atitudes que nem
sempre concordamos, e nos submetemos por uma causa maior.
Ela o observava de modo
interrogativo, perscrutando-o.
— E o senso de justiça,
pregado por comunidades como a sua, como fica diante disso?
— Procuramos ser o mais justos
possível. E quando não somos, sofremos essa dor, mas focamos naquilo que
fazemos de melhor.
— Os fins justificam os meios?
— interpelou ela.
— Trata-se do preço para
salvarmos uma quantidade maior de almas. No entanto, minha cara, não há peso na
palavra de um homem só, quando o que está em jogo é a ação de uma instituição
dessa envergadura. A administração é coletiva, vale a palavra da maioria. Por
mais que possamos ferir a nós mesmos, o importante é o todo, nunca a parte.
Necessitava ganhar sua
confiança, nem que para isso se apoderasse dos mesmos discursos que destruíram
sua vida. A ideia naquele primeiro momento era conquistá-la, para mais tarde
ganhá-la como aliada e acabar com os desmandos do irmão. Teria de ser cauteloso
e ao mesmo tempo convincente.
— Sofro com tudo isso, com
minha solidão, — continuou. — sinto falta de ouvir outras ideias, ter acesso a
outros olhares que ajudem-me a enxergar o que é verdade, os equívocos que me
afastam do que é essencial.
— O líder do Chiamare
precisando de conselhos?
— Deus se faz presente através
das pessoas ao nosso entorno.
Laura o olhava fixamente, como
se remontasse uma cena em sua mente. Já não trazia em seu cenho a mesma
desconfiança de outrora.
— Não acredito no acaso. — disparou
Thomás. — Sinto que sua presença nesta comunidade e até em Fortaleza, vai além
de uma simples reportagem.
Ela provou na comida e desviou
o olhar, como se finalmente Thomás tivesse tocado num ponto que a
desestabilizou. Certamente tinha feito.
— Ajude-me, Laura! — pediu,
estendendo a mão por sobre a mesa para que ele lhe tocasse. A jornalista por sua
vez pareceu hesitar, dançou o olhar entre a mão e o rosto dele.
— Não imagino como. — desabafou
ela.
— Com a sua verdade. — a mão
permanecia estendida.
Laura, por fim, tocou-lhe,
meio sem jeito.
Finalmente
mordeu a isca!
A sorte estava lançada. Laura
Ponte seria seu grande trunfo.
27
MONSTRO!
ABERRAÇÃO! Aquelas palavras se repetiram incansavelmente na cabeça de
Lucas, como vozes implacáveis, condenando-o em sua culpa por possuir o que a
família lhe ensinou a chamar de dom. Mas para o mundo, não passava de uma
anormalidade, bruxaria ou espiritismo, como ouviu tantas vezes desde criança.
Você
tem o dom da profecia — recordou-lhe a voz da mãe.
...da
telecinesia — foi a voz do avô.
...e
o mais importante de todos, a cura da alma — desta vez foi Diogo.
Esta
é sua missão no Chiamare, salvar vidas! — lembrou-se de Saulo,
dizendo aquilo.
MONSTRO!
ABERRAÇÃO!
Gritou, ponto as mãos na
cabeça, perdido pelas ruas da cidade. Fortaleza nunca tinha sido tão estanha
quanto naquela noite. Não sabia onde estava e o nome de nenhuma rua nas placas
lhe era familiar. Podia sentir o calor das próprias lágrimas banhando seu
rosto, sem compreender porque Deus lhe fizera daquela forma — doente do
espírito. Sentia-se castigado por algo que não sabia explicar.
— Por que, Pai? Por que não me
fizeste normal, como meu irmão? — questionou, olhando para todos os lados, como
se procurasse por alguém. — Por que este castigo? Por quê? POR QUÊ? — gritou
novamente mirando um céu sem estrelas. Jogou-se de joelhos numa calçada, em
prantos reveladores de uma dor latente a vida inteira.
Pediu tantas vezes a Deus que
não visse nada além do que seus olhos podiam dimensionar, ou ainda que não
pudesse mover aquilo que suas mãos não tocassem e também potencializar nenhum
desejo contido ou mudar o direcionamento do destino de qualquer pessoa que
fosse! Tudo em vão! Nunca fora ouvido em suas súplicas. Permanecia uma
aberração!
— Ei, maluco... passa tudo,
vagabundo! — ordenou uma voz atrás dele. Logo sentiu uma ponta afiada em suas
costas.
Lucas girou o corpo, sem
compreender o que estava acontecendo.
— Ó o cara, meu... tá doidão!
— comentou o rapaz para um amigo ao seu lado.
Os dois tinham aparência suja,
usavam roupas velhas e fediam. Um deles, apontava uma faca de cortar pão contra
Lucas.
— Bora, bora, vagabundo, passa
tudo que tu tem! — ordenou o outro.
Um
assalto?! Finalmente a ficha caiu.
— Desculpem, amigos, não tenho
nada. — respondeu, pondo as mãos para o alto.
— Tá achando que a gente é
trouxa, playba? — arrematou o portador da arma, pressionando-a contra o pescoço
de Lucas, enquanto o comparsa arrancou do rapaz o relógio e de seu peito o Cristo
ressuscitado de prata. — símbolo do Chiamare. — Tu merece é morrer, fila da
puta!
— SOLTEM ELE AGORA! — gritou
um outro cara, de cima de uma moto, ainda com capacete, acabando de estacionar.
— Sujou! — concluiu o
assaltante. — Bora!
Os dois correram. O motoqueiro
deixou o capacete no retrovisor da moto e ensaiou uma perseguição, mas
desistiu.
— Está bem, rapaz? — perguntou
ele, procurando ajudá-lo.
— Acho que estou. — Lucas
respondeu no automático, esfregando o local onde a faca se fizera ameaça.
— Ele te machucou?
— Não, não, acho que não.
— Vem, vou te levar para casa.
— afirmou o motoqueiro, impulsionando-o a ficar de pé.
— Quem é você?
Um rapaz moreno, com um leve
traço de estrabismo, pouco mais baixo que ele, cabelos curtos e barba rala,
pequenas argolas nas orelhas, jeans rasgado, camiseta com a língua dos Rolling
Stones, bracelete de couro e botas de cadarço. Estilo despojado, em consonância
com a moto preta dessas grandes. Embora não compreendesse, sabia que era de
umas mil cilindradas, como uma que Salomão já tivera.
— Delano, seu amigo. — respondeu,
com a mão estendida.
Amigo?!
Quem é esse cara?
Lucas fitou-o de um modo
interrogativo, desconfiado. Depois de tudo o que passara naquela noite não
sabia no que acreditar. Apertou-lhe a mão, embora sem nenhuma convicção.
— Lucas. — apresentou-se
também.
— Vi o que aconteceu lá no bar
com você. Posso te deixar em casa. — reafirmou Delano.
Se fosse outro bandido?
Aprendera com Saulo que não confiasse em ninguém fora da comunidade, pois as
pessoas podiam se aproveitar de seu dom. Ouvia tantas histórias de sequestros e
até tráfico de órgãos. Por mais que o tivesse salvado, o que garantia que se
tratava de uma pessoa de bem, que realmente não lhe faria nenhum mal? Estava
com medo e por um instante não sabia o que fazer. Se não aceitasse a carona, de
que modo chegaria em casa? Fora abandonado pelo irmão sem dinheiro ou meio de
se comunicar com alguém da família, já que, por decisão de Saulo, nunca tivera
celular. O fato é que não tinha para onde ir se não fosse a carona de Delano.
Esse
dom há de me servir de alguma forma!
Concentrou-se no rosto do
rapaz à sua frente e experimentou uma pontada na nuca, com os músculos se
retesarem numa fração de segundos, acessando diversas imagens que se confundiam
com o ambiente em seu entorno. Visualizou Delano tomando banho de mangueira no
jardim do Chiamare, com a roupa molhada, rindo feito um menino; também em sua
casa, apertando a mão de Edgar; em seguida, tocando o rosto de Cândida.
— Lucas? Lucas, o que houve? —
chamou-o Delano, demonstrando-se assustado.
As imagens cessaram. Pronto,
já sabia o necessário.
— Me tira daqui! — pediu
Lucas.
Delano fez que sim com a
cabeça, direcionou-se para a moto, tomando o capacete pendurado no retrovisor.
Em seguida, pegou o outro preso na garupa e o entregou a Lucas. Fazendo sinal
para que o colocasse. Este por sua vez, atendeu ao comando e montou na garupa
do rapaz.
Sentiu-se tão seguro e
protegido, como se o conhecesse a vida inteira. Ao mesmo tempo, alguma coisa
lhe dizia que Delano mudaria a sua vida para sempre!
~
A mulher magra de meia idade e
uniforme azul e branco abriu a porta do apartamento de Juca Rebelo para Saulo e
Guilhermina, pedindo para que entrassem. Ele estava aflito com o sumiço de
Lucas e ligara no início da noite para Cândida, buscando notícias do rapaz.
Todos na sala pareciam apreensivos. O presidente do conselho administrativo do
Chiamare segurava a mão da esposa, dona Augusta, sentada ao seu lado, como se
procurasse acalmá-la — uma mulher que sofria de depressão há mais de vinte anos
e quase ninguém nunca a via. Edgar, numa poltrona de frente aos pais, balançava
a perna cruzada freneticamente. Cândida, sem sombra de dúvida, demonstrava
maior tensão, abraçada consigo mesma, ao lado da janela. A sala ampla do
luxuoso apartamento parecia ter se tornado pequena para acolher a preocupação
ali estabelecida.
— Alguma novidade? — foi
Guilhermina quem perguntou.
Saulo alinhou a gola do blazer
e o Cristo Ressuscitado no bolso mais uma vez, depois de repetir o mesmo ritual
centenas de vezes, desde que dera conta da falta de Lucas dentro da comunidade,
há algumas horas.
— Tentamos de todas as formas
com Salomão, mas ele jura que não sabe de nada. — respondeu Edgar.
— É mentira, com certeza! — afirmou
Saulo de pronto.
Nunca perdera o controle
daquela forma. Orgulhava-se de ter sido um ótimo preceptor espiritual, mais do
que isso, um pai. Lucas fora entregue por Edgar para ser criado na comunidade,
com 6 anos de idade, logo após descobrir a traição de Cândida e Thomás. Na
época, justificando a necessidade do garoto ser trabalhado em seu dom e assumir
o lugar que havia sido de Diogo, embora todos soubessem que, na verdade, queria
estar longe daquele que o lembrava permanentemente de sua dor, além de punir a
esposa. Deste modo, Saulo assumiu inteiramente a responsabilidade pela educação
do menino, afastando-o de tudo o que pudesse desvirtuá-lo de sua missão como irmão
consagrado do Chiamare.
— Tem certeza que foi com
Salomão que o Lucas saiu da comunidade? — a rouquidão natural de Juca Rebelo
nunca lhe soou sadia em todos aqueles anos de convivência e amizade. O que
atribuía ao médico calvo, de cabelos e barba branca certa altivez.
— O pessoal da portaria
assegurou que sim. — confirmou Guilhermina.
— E por que o deixaram sair? —
questionou Cândida.
— Incompetentes! — Saulo
desabafou. — Disseram que eu tinha autorizado mais cedo.
— Mas eles iam inventar isso?
— indagou Edgar, incrédulo.
— Acha o quê? Que eu liberei o
Lucas para sair com o Salomão? — Saulo indignou-se.
— E o que tem sair comigo? — interpelou
o próprio Salomão, do alto da escada, que vinha do andar superior do
apartamento.
Saulo partiu para ele.
— O que fez com seu irmão,
irresponsável? — Saulo desejou agredi-lo, ensinar-lhe uma boa lição, aquilo que
Cândida e Edgar não fizeram.
— Ele não sabe de nada! — Cândida
se pôs diante dos dois, uma verdadeira mãe defendendo a cria.
— É por isso que ele é do
jeito que é. — arrematou Saulo, com toda a sua indignação. — Vocês não tem o
menor controle sobre esse delinquente.
— Saulo, contenha-se! — ordenou
o velho Juca, erguendo-se de onde estava.
Quando o Dr. Juca Rebelo
falava, todos obedeciam.
Sonhava com o dia em que o
enfrentaria, reduzindo-o a nada, liquidando todo o seu poder, sua autoridade e
respeito.
A atmosfera de tensão foi
dissolvida pelo som da campainha. Todos ficaram apreensivos. Quando a empregada
magra atendeu, a imagem de Saulo com cabelo desarrumado, vestido de jeans,
camisa solta e tênis surgiu pela porta.
— Diogo? — Cândida foi ao seu
encontro, acolhendo-o num abraço.
— Vim logo que soube. — disse
ele.
— E como soube? — Guilhermina
se antecipou.
Diogo saiu dos braços de
Cândida e veio direto na direção de Saulo.
— Eu o vi. — respondeu
simplesmente.
— Como assim, o viu? — Edgar
levantou-se, curioso.
Saulo permaneceu onde estava,
sem mexer um músculo. Nenhum encontro com Diogo terminava de forma tranquila,
sempre com acusações e mágoas. Certamente aquele não seria diferente.
— Lucas foi agredido por dois
rapazes. — disparou Diogo.
— Meu Deus, meu filho! — lamentou
Cândida, com as mãos no peito.
— Não se preocupem, ele está
bem. — Diogo tentou acalmá-los.
— O que houve? Como sabe? — Edgar
parecia aflito.
— Esteve com ele ou... — Foi a
vez de Juca perguntar. Com certeza pensava o mesmo que Saulo — uma visão!
— E você, está satisfeito? — Diogo
se voltou ao irmão, interrogando-o.
Pronto,
sobrou para mim!
— Sou eu a pessoa mais
preocupada desta sala. — afirmou, varrendo o ambiente com o olhar.
— Certamente que sim. — disse
Diogo. — Você é o mais interessado aqui. Afinal o Lucas é sua galinha com os
ovos de ouro, não é verdade?
— Vocês só têm olhos para o
Lucas! — reclamou Salomão, como um garotinho ciumento. Nem parecia um homem
daquele tamanho, com tantos músculos à mostra. — Eu nunca existi, NUNCA! — gritou
o rapaz, subindo as escadas de volta.
— Salomão! — Cândida tentou,
sem sucesso, chamá-lo de volta.
O fricote de Salomão foi mal
percebido por Saulo e Diogo, um diante do outro, em mais um confronto.
— Faltavam suas agressões para
completar a noite. — ironizou Saulo.
— Foi você que o autorizou a
sair com o Salomão — revelou Diogo.
— Eu? Você está louco!
— Impossível. — concordou
Guilhermina.
— Assim como liberou a entrada
e saída de Salomão da comunidade, logo em seguida. Pergunte ao próprio Lucas, quando surgir por
aquela porta. — afirmou Diogo categoricamente. — O efeito dos remédios que
toma, também de forma compulsiva, para sua doença, seu transtorno, já está
afetando o juízo!
Saulo permaneceu imóvel, como
se uma faca afiada tivesse lhe atravessado as costas. Queria sumir dali, sem
olhar para o rosto de ninguém. Nenhuma pessoa tinha coragem de tocar naquele
assunto, seu algoz nos últimos dez anos. Os rituais que o levavam a cuidar da
aparência pessoal, aprisionavam-no de forma implacável em exigências e atitudes
repetitivas que o conduziam ao desespero, motivando-o a procurar os melhores
médicos, inclusive fora do país. Nenhuma terapia comportamental foi capaz de
limitá-lo nos rituais ou amenizar a angústia em não ceder, mesmo que por
minutos, ao desejo de se arrumar, para ficar melhor e mais bonito. Sempre fora
um homem vaidoso, queria ser diferente dos irmãos gêmeos, ter algo a mais, que
o destacasse. Só não imaginava que isso fosse se transformar em seu calvário,
impedindo-o de ir a lugares ou falar com as pessoas, aparecer em público,
concentrar-se em qualquer outra coisa que não na aparência, em tempos de
grandes crises.
Mas daí a alguém ter coragem
de tocar naquele assunto, de modo tão desrespeitoso, jamais. Afinal, tratava-se
do líder do Chiamare, o grande Pescador de Vidas. Nunca pensou que Diogo
pudesse ser tão cruel. Todos que o conheciam sabiam que era um assunto velado.
Permaneceu imóvel, quase sem
respirar.
Mais uma vez a campainha soou.
— Agora é ele, podem abrir. — anunciou
Diogo.
A empregada magra novamente
atendeu a porta e deixou que Lucas entrasse. Atrás dele apareceu outro rapaz,
vestido como essa juventude louca que Saulo abominava. Cândida correu para
acolher o filho. Até Edgar demonstrou brandura e celebração. Finalmente algo
que lhe tirou de seu transe.
— O que houve, meu querido? — perguntou
Cândida, enchendo-o de beijos.
— Estávamos todos preocupados,
filho. — contou o velho Juca.
Mesmo a velha Augusta, com sua
eterna depressão e semblante de lamentação, esboçou algum sorriso.
Apesar da alegria, Saulo e a
família Rebelo não disfarçavam a desconfiança acerca do rapaz que o
acompanhava. Lucas apresentou Delano como o amigo que o salvou, mas foi depois de
Diogo confirmar, dizendo ter sido o mesmo rosto que aparecera em suas visões
como um anjo protetor, que todos baixaram a guarda e o agradeceram. Edgar foi
quem mais demonstrou resistência ao rapaz, mesmo após a revelação do amigo.
O dom de Diogo era muito
forte, e se ele dizia, Delano seria muito bem-vindo ao Chiamare, mesmo com
aquelas roupas de roqueiro. Talvez tivesse sido um novo missionário resgatado
das ruas por Lucas. Isso, a pessoa que Saulo precisava para acalmar os ânimos
de seu pupilo.
No entanto, o pior para Saulo
foi a confirmação de Lucas que fora realmente liberado por ele mesmo para sair
da comunidade naquele noite. Talvez Diogo tivesse razão e precisasse procurar
um médico urgente. Sua memória não vinha nada bem e aquilo começava a
preocupá-lo.
~
Diogo abriu a BMW com o
controle do alarme e entrou no veículo. Em seguida, ascendeu a luz da cabine e
alinhou o retrovisor à sua frente. Viu o reflexo de quem exatamente no espelho?
Era Diogo realmente?
Perfeito!
— Passei no teste diante de
todos. Muito bem, Thomás. Está cada vez melhor. — comemorou, afirmando para si
mesmo.
28
Alguns dias haviam se passado
desde o jantar com Saulo Sobreira. Alguma coisa tinha mudado acerca da
percepção de Laura sobre o Pescador de Vidas. Naquela noite ele desvelara outro
lado, diferente do homem vaidoso apresentado pelas capas de revistas. Parecia mais
sensível e estar sofrendo por carregar o peso de uma instituição em suas
costas, obrigando-se a decisões políticas que iam de encontro aos próprios
valores. A última semana foi repleta de dúvidas, uma confusão se instalou em
sua cabeça no que diz respeito ao conceito ou preconceito alimentado por ela
envolvendo o líder espiritual do Chiamare.
Muito de sua visão fora
fomentada pela versão de Diogo nas partilhas sobre o irmão. Duvidar do próprio feeling e das percepções acerca do
caráter de Saulo, não seria também uma forma de pôr em xeque a dor do amigo?
Por isso preferiu não dividir nenhuma de suas atuais interrogações com ele. O
caminho jornalístico a ser percorrido durante as investigações certamente
proporcionaria condições às suas próprias conclusões. O que a deixou ainda mais
atenta a cada aproximação com a comunidade ou qualquer pessoa que pudesse lhe
fornecer pistas da verdade cercando Saulo Sobreira. Como naquela noite, que
fora convidada por Guilhermina a acompanhar o grupo de missionários em seu
trabalho nas ruas de Fortaleza.
A oportunidade de conhecer
como tudo começou.
Laura foi de táxi do
apartamento de Diogo até o Chiamare, de onde as equipes missionárias saíriam em
oito caminhonetes. O trabalho envolvia uma média de quarenta pessoas in loco, dividindo-se em duas equipes
diferentes que atuariam em pelo menos seis pontos do centro de Fortaleza cada
uma. A ação realizada pela comunidade acontecia normalmente todas as noites,
conduzida por diferentes irmãos, levando além do evangelho, uma comida
diferente a cada dia.
Estranhou o próprio nervosismo
por reencontrar o Pescador de Vidas. Este a cumprimentou com uma formalidade
desproporcional à intimidade estabelecida entre os dois no jantar dias antes.
Procurou, contudo, compreender, talvez pela presença de Guilhermina, Lucas e o
motorista no carro que os levou.
Lucas! Uma noite que prometia.
Laura estava ao lado de Lucas, no banco de trás da caminhonete. Tão próxima de
seu passado, daquele rapaz franzino e alto que lembrava-lhe tantas dores.
Tentou reconhecer nos traços bonitos de seu rosto, um pouco da história que por
anos foi sufocada pela mesma violência existencial responsável por afastá-la
daqueles a quem amava. No entanto, nada enxergou nele além pureza,
despertando-lhe um desejo descomunal em abraçá-lo, como que por uma redenção. Não
era Lucas não curava as feridas da alma?
Durante o percurso, do Chiamare
ao centro da cidade, olhou diversas vezes para Saulo, no banco da frente do
passageiro, com a visão de seu perfil. Em alguns momentos também pensou tê-lo
visto a observá-la de soslaio. Talvez a perscrutasse como ela a ele. Um
mistério estabelecera-se entre ambos e aquilo a provocava, incitando a
curiosidade e ansiedade por aquela noite.
Permaneceu apática à mística
espiritual com a qual o grupo conduziu todo o encontro com os moradores de rua,
no primeiro ponto, próximo à Praça José de Alencar. Laura ficou atenta à forma
cuidadosa com que os missionários se aproximavam, procurando não invadir seu
espaço e ao mesmo tempo, sendo acolhidos com alegria por aquelas pessoas. Saulo
propôs formarem um círculo de mãos dadas, onde foi lido um texto da Bíblia e em
seguida, cantaram várias músicas, acompanhados por um violão de um dos membros
da equipe. Por fim, foi servido baião de dois, paçoca e suco para todos.
Lembrava uma festa, um banquete.
Em alguns momentos, Saulo lhe
antecipava ou explicava o que estava sendo feito, como se narrasse um romance.
Uma satisfação à jornalista ou um cuidado pessoal a ela? O líder do Chiamare e
todos os seus missionários pareciam realmente felizes em fazer aquilo. E aquela
gente, tão agradecida! Muitos, certamente já os conheciam e tratavam-nos pelo
nome. Por mais que tivesse suas críticas, precisava reconhecer o bonito
trabalho realizado por eles. Dividia-se numa observação atenta, com olhos de
águia, tanto ao movimento do líder da comunidade quanto a cada passo dado por
Lucas. Queria saber o exato momento em que usaria seu dom, se usaria.
A segunda parada, na Praça da
Lagoinha, causou-lhe muitos incômodos, tanto pela presença dos ratos, que
corriam em disparada de um lado para o outro, quanto pelo odor de urina
propagado por todo o ambiente. Entretanto, a equipe foi novamente recebida com
a mesma alegria e empolgação. O ritual repetiu-se, mas desta vez, os moradores
pareciam mais envolvidos e cantavam com fervor. Ao final, um senhor de barba
longa, aparentando uns 60 anos, fez uma fala emocionada de agradecimento,
afirmando que quando a equipe vinha até eles, era Deus lhes carregando no colo,
mostrando-lhes que não estavam abandonados. Um arrepio subiu-lhe pela espinha.
Laura ouvira a voz de quem sentia mais profundamente o efeito daquela ação. O
que a deixou mais tocada, foi a atitude de Saulo diante do homem, que se
aproximou do mesmo, com os olhos encharcados de lágrimas e o abraçou.
Na terceira parada, ao lado da
Praça da Estação, acompanhou o ritual muito mais pelos sentidos do que pela
mente. Sentiu na Palavra lida por Saulo, no círculo entre os moradores, uma
alegria ao ouvi-la. Sim, uma mística forte envolvia tudo aquilo, cada palavra,
cada nota musical dedilhada nas cordas do violão, a comida entregue com
ternura, o sorriso nos lábios dos missionários e de quem a recebia. Homens,
mulheres e crianças abandonadas à própria sorte, judiados pela realidade cruel
de um sistema que os jogou à margem. Do outro lado, pessoas fazendo o bem,
levando comida e bebida, o alento ao coração de uma gente esquecida pela
sociedade e temida por ela.
Senhor Jesus Cristo que
dissestes aos vossos apóstolos
“Eu vos deixo a paz, eu vos
dou a minha paz
Não olheis os nossos
pecados, mas a fé que anima a vossa Igreja.
Dai-lhe, segundo o vosso
desejo, a paz e a unidade.
Vós que sois Deus, com o Pai
e o Espírito Santo.”
Recordou-se daquela passagem nos tempos de catecismo. Por mais
que não concordasse com determinadas decisões políticas envolvendo a estrutura
do Chiamare, não podia negar seu carisma. Ali eles eram sim pescadores de
vidas! E Saulo Sobreira, sem dúvida nenhuma um grande líder espiritual. As
reflexões trazidas por ele após a leitura dos textos, tocavam até mesmo a ela
em seu ceticismo. Pensar em sua vaidade estampadas nas capas de revistas e
roupas caras, bem como expôs uma fragilidade escondida quando jantaram juntos,
e agora o dom da palavra e de tocar o coração das pessoas. Por isso chamavam-no
“o grande Pescador de Vidas”.
Foi na quarta parada, a alguns quarteirões, na Avenida do Imperador,
que Laura viu pela primeira vez o fenômeno — Saulo com a mão estendida a uma
mendiga deitada no chão, convidando-a para que seguisse seu coração. Momentos
depois, a mão dela vai ao encontro daquela que a aguardava e a mulher é
recebida aos prantos nos braços do líder do Chiamare. Laura procurou
imediatamente por Lucas, e ele estava a alguns metros, apoiado por outro
missionário, tremendo, como Diogo no aeroporto e no dia em que fez a louça do
café levitar.
— Teu caminho agora, filha, é o caminho de Deus. — sentenciou
Saulo à mulher.
Como eles escolhiam? Como sabiam quem poderiam pescar? Por que
aquela mulher e não outra pessoa? Era justo? Aquilo não seria mexer com o
destino das pessoas? Se ela realmente quisesse ir com ele, por que usar o dom
de Lucas? Que poder era aquele de mudar o desejo das pessoas? Em nome do bem,
podia-se fazer uma lavagem cerebral? Não seria um efeito parecido com o da
lobotomia?
Laura ficou inquieta, desejando perguntar a alguém. Precisava de
respostas.
Após entregar a mulher nas mãos de outros missionários, Saulo se
aproximou.
— Como está sendo para você esta experiência? — inquiriu ele,
com um tom diferente do que conversaram vezes anteriores. Parecia outra pessoa,
tomado por uma força estranha, mas nobre. Algo que parecia maior que ele. Seria
a presença de Deus, como eles falavam?
— Estou confusa com o que vi. — não tinha como encobrir o que
sentia naquele momento. — E o livre arbítrio que os católicos falam tanto, onde
fica?
— Do que está falando?
— Sei o que o Lucas pode fazer.
Saulo pensou um pouco e sorriu.
— Diogo... ele lhe contou, não foi?
Ela fez que sim com a cabeça.
— Confesso que estou confusa.
— O que o Lucas faz é desvelar uma cortina no coração das
pessoas. — explicou Saulo. — O que viu aqui não foi voltado exclusivamente para
esta mulher. Mas para todos. Ela se sentiu tocada e se deixou curar. Nisto
reside seu livre arbítrio.
— Poderia ter acontecido com outras pessoas ao mesmo tempo,
então?
Saulo balançou a cabeça positivamente.
— Inclusive com você, se assim permitisse. — disse ele e saiu.
O que a deixou ainda mais confusa ao mesmo tempo. Compreendia
plenamente as angústias que afastaram Diogo de todo aquele mundo. Não sabia
como se dava aquele dom ao certo e se realmente existia. Se era verdade, até que
ponto não se tratava de um meio para manipular os desejos das pessoas? Em nome
do bem, da fé podia-se transformar de tal modo a vida das pessoas? Eram mesmo
pescadores de vidas ou aprisionadores de almas? E aquele rapaz, usado em sua
fragilidade à manutenção de uma estrutura colossal. Ao mesmo tempo, quanto bem
realizado, quantas alegrias promovidas, quanta emoção despertada. Ela mesma
estava tão tocada que se perdia de seus questionamentos em admiração e
encantamento.
Foi na quinta parada, na Praça do Carmo, quando se encontraram
com a outra equipe, que visitava outros lugares, que se deparou
inadvertidamente com seu passado. Ao saltar da caminhonete se pôs diante
daquele que jurou nunca mais encontrar — Juca Rebelo. Ele estava impávido e a
olhou da mesma forma de vinte anos atrás, sem a menor misericórdia.
...juntar esses pedaços apartados pelo
ego.
Impossível!
Tanta dor envolvida. Não tinha forças para enfrentá-lo novamente.
Onde você está, Diogo? Preciso de você! Me
ajuda!
Estou aqui do seu lado. Ouviu-o
soprar-lhe ao ouvido.
Um
ímpeto vital, uma coragem descomunal a preencheu completamente, como se Diogo
estivesse presente.
Laura
estendeu a mão para cumprimentar aquele homem.
— Laura
Ponte, como vai? — disse ela, sorrindo.
29
Lucas calculou uns dez metros
de distância para alcançar Delano na corrida disputada pelos dois nos jardins
do Chiamare. Haviam iniciado há pouco mais de vinte minutos e já não conseguia
mais manter um fluxo equilibrado na respiração. Sem falar na dor causada pela
câimbra que tentava conter no tornozelo direito. Totalmente fora de forma.
Faltava muito para atingir o preparo físico do novo amigo. Desde que se
conheceram há uma semana, na noite em que fora salvo por ele, encontraram-se
quase todos os dias. Delano era educador físico e se comprometera a ser seu personal, pelo menos até o final de sua
estadia em Fortaleza.
Nem mesmo as provocações de
Delano para acompanhá-lo, impediram-no de parar e jogar-se no chão,
pressionando o local da câimbra e uivando pela dor sentida. Mais rápido que
pudesse imaginar, seu treinador pôs-se ao seu lado.
— Uma dorzinha de nada dessa,
rapaz? — disse Delano, sorrindo, como se estivesse feliz por vencê-lo. Em
seguida estendeu-lhe a perna devagar, orientando-o a respirar.
— Dorzinha? Parecia que minha
perna seria quebrada ao meio!
— Bobagem. Falta de treino.
— É para isso que está aqui.
Delano deu a mão e ajudou-o a
levantar. Depois sentaram-se num banco ali perto para tomar água. Errado! Não
somente para cuidar de seu preparo físico que Delano vinha à comunidade todas
as manhãs cedinho. Os dois conversaram bastante durante o treino e Lucas
enxergava no misterioso rapaz o único amigo que tivera em toda a sua vida. Tão
pouco tempo e já se sentia tão próximo. Não sabia muito sobre ele, apenas que
viera de Belo Horizonte e passara os últimos dois anos viajando por diversas
cidades em cima daquela moto, após receber uma pequena herança com a morte da
mãe. Um andarilho, de hábitos simples e mochila nas costas, autorizado a fazer
parte de sua vida por causa das palavras de Diogo. Mas um cara com uma
maturidade que ultrapassava seus 24 anos. Às vezes falava como seus pais ou o
irmão mais velho, amigo, que sempre desejou ter.
A confiança construída a cada
encontro foi permitindo-lhe partilhar os segredos nunca revelados a um
estranho, fora da família de consagrados do Chiamare. O dom e sua missão na
obra, a difícil relação com o pai, a distância de Salomão e as restrições
impostas por Saulo foram alguns temas travados em longos diálogos com o amigo.
Delano limitou-se a ouvi-lo e fazer algumas perguntas de como se sentia diante
do exposto, bem como o queria fazer com aquilo. Ora, o que queria fazer?
Sinceramente, não compreendia. Não tinha escolhas. No entanto, ele o tratava
como se as tivesse.
— Todas as respostas estão
dentro de você, meu amigo. — declarou Delano, numa das partilha.s — É você o
senhor do seu destino!
Isso porque ele não convivia
diariamente com Saulo Sobreira, dizendo o que pode e o que não pode fazer.
O fato é que Delano foi a
melhor coisa que lhe aconteceu nos últimos tempos. O primeiro e único amigo.
— Estou indo embora de
Fortaleza este fim de semana, Lucas. — Delano aproveitou para anunciar, após um
gole d’água naquele momento de descanso.
Embora?!
Sim, já era de se esperar. Há
alguns dias o amigo dissera que o dinheiro estava acabando e que precisava
voltar para casa. A aventura chegava ao fim. Entretanto, Lucas preferiu não
pensar no assunto e aproveitar sua presença até o último momento. Talvez por
isso mesmo Saulo tenha permitido tão facilmente aquela aproximação. Porém o
grande dia havia chegado e tinha que encarar a realidade. Breve estaria só
novamente!
É
você o senhor do seu destino!
Podia fazer alguma coisa.
Tinha que fazer algo para impedir! Mas o quê? Se usasse o dom para convencê-lo
a ficar? Bom, Delano alegara questões financeiras. Isto é, não era o caso de
fazê-lo mudar de ideia e sim de propiciar condições para sua permanência. O que
exatamente? Nunca precisou resolver nenhum problema, propor qualquer solução
diante de uma adversidade vivida. Sempre teve pessoas pensando por ele. O que o
impedia de criar estratégias. Teve raiva por se sentir tão criança. Se fosse
Salomão, certamente saberia o que e como fazer.
A
droga dessa comunidade não é nada sem os teus poderes. Recordou-se
das palavras do irmão.
Pronto, tomaria sua primeira
atitude de homem na vida. No que dependesse dele, Delano não iria embora.
30
Laura pagou a corrida ao
taxista e saltou do veículo apressada em frente ao restaurante na Rua Dias da
Rocha, no qual marcara um jantar com uma ex-missionária consagrada do Chiamare.
A mulher que deixou a comunidade para casar com um empresário há alguns anos
poderia dar uma grande contribuição à sua matéria.
Ao entrar no local, dirigiu-se
a um garçom para saber se a pessoa já estava aguardando e avistou por cima do
ombro do rapaz a figura de Saulo Sobreira numa mesa, no canto do restaurante,
acompanhado de uma mulher, de costas. Ela seguiu os passos de um cumim,
procurando se esconder por trás de uma escultura de metal que separava o
ambiente da entrada dos toaletes. De onde pôde observar o casal. Ele parecia
que já estava pagando a conta e quando o garçom que o atendia os deixou, tocou
na mão da mulher por sobre a mesa, como fez com ela, quando jantaram juntos.
Parecia um gesto de sedução,
pela forma como a olhava.
Será
que é o que estou pensando?
Em seguida o casal levantou e
ele a conduziu até a saída. Laura procurou disfarçar para que ninguém a
percebesse, e os seguiu. Por pouco não esbarrou num cumim e sua bandeja repleta
de louças, na porta do restaurante. A alguns metros à sua frente, Saulo tomou a
mão da mulher, como um casal de verdade e caminharam até a próxima esquina.
Laura precisou se esconder entre alguns carros estacionados para que não fosse
descoberta.
— Precisa de ajuda, dona? — a
voz atrás dela a assustou. Um guardador de carros. — Desculpa, moça. Assustei
você?
Ela estava com a mão no peito,
sentindo a própria taquicardia.
— Nada. Vim tomar um ar. — disfarçou.
— Obrigada. — O rapaz seguiu seu caminho
e ela pôde retomar o foco.
Saulo fez um giro com a
cabeça, como se procurasse se certificar de que não havia ninguém observando.
Depois, os dois se beijaram. A mulher parecia bonita, trinta e poucos anos, bem
vestida e uma larga aliança na mão esquerda, que mesmo de longe, chamou a
atenção de Laura. Em seguida, o casal despediu-se, ela entrou no carro e Saulo
acompanhou de fora sua partida.
Que
canalha!
Estava certa de que o Pescador
de Vidas não passava de uma farsa. Pregava o evangelho, falava de uma moral
firme, fizera votos de castidade e mantinha casos com mulheres casadas. Talvez
até fiéis da própria comunidade. A conversa que tiveram na noite em que saíram
certamente tinha sido uma tentativa de seduzi-la, como as outras, como aquela
mulher que ele acabara de beijar.
Bom, o fato é que Saulo
Sobreira dava uma de bom moço, quando na verdade não passava de um Don Juan. O
que mudaria completamente o direcionamento da matéria sobre ele e sobre o
Chiamare. Para isso precisaria de provas. Ela mesma poderia ser a testemunha,
caso se apresentasse ali naquele momento para ele. Flagrante! A ideia era
desmascará-lo logo de uma vez, acabando com qualquer jogo que o líder do
Chiamare pudesse estar arquitetando em relação a ela.
Era mesmo o momento?
Se não o fizesse, teria a
possibilidade de vê-lo até onde seria capaz de ir com suas mentiras. O que
enriqueceria a matéria.
O
Pescador de Vidas — uma grande farsa!
Precisava de uma explicação.
— Saulo Sobreira? Que surpresa
vê-lo aqui, e com aquela mulher! — Laura se aproximou, com sorriso vitorioso.
Ninguém engava seu faro jornalístico por muito tempo.
~
— Essa mulher me persegue. — justificou
Thomás a Laura, com tom de seriedade, procurando disfarçar a felicidade por
enganá-la tão bem mais uma vez. Qualquer pessoa que o visse ali, não teria a
menor dúvida tratar-se de Saulo Sobreira.
Ele a havia convidado para
retornar ao restaurante, a fim de que pudesse lhe explicar o fato. Por sorte, a
pessoa com quem Laura se encontraria mandou-lhe uma mensagem pelo WhatsApp avisando que atrasaria um pouco
mais.
— Como assim lhe persegue? — questionou
Laura. — Eu os vi bem íntimos, tanto aqui no restaurante, quanto lá fora no
carro.
— Não tem ideia do que é estar
à frente de uma entidade como esta, Laura. Acabamos por nos tornar o foco de
muita gente. Sou uma referência e as pessoas, às vezes, confundem os papéis,
compreende?
Laura o observou, parecendo
incrédula. Exatamente o que ele esperava, causar uma confusão em sua cabeça.
— Não tenho certeza se são as
pessoas que confundem os papéis. — comentou ela. — Você a beijou, eu vi. — ganhou
um pouco mais de tempo, como se tomasse coragem e perguntou. — De quem se
trata?
— Uma fiel da comunidade.
— Uma mulher casada... — arriscou
Laura.
— Sim. Ela está obcecada.
Estávamos em um retiro e ela ameaçou gritar que havia sido assediada por mim,
caso eu não a encontrasse.
— E isso faz com que você a
beije num lugar público?
Ela
está com ciúmes. Perfeito.
— Sei que ceder a chantagens é
uma bola de neve, mas...
— Não acredito em uma só
palavra! — anunciou ela.
Saulo tocou em sua mão por
sobre a mesa, como na vez anterior, e também com a mulher momentos antes,
fitando seus lábios, provocando-lhe certa hesitação, só depois ela se afastou.
A prova que precisava para
saber que Laura mordera a isca.
— Impressionante como fica
linda com esse ar de curiosidade.
Laura arregalou os olhos com o
elogio.
— Não, acredito! Está tentando
me seduzir? — parecia pasma.
— Seduzir? Que péssima ideia
tem de mim. Sou o líder de uma comunidade religiosa, Laura. Não ando por aí
seduzindo as pessoas. Mas sou verdadeiro.
— Por isso algumas mulheres
confundem os papéis.
— Por eu ser verdadeiro?
— Não. Usa do poder de sedução
para conquistar todas as pessoas.
— Você é bem direta.
— A vida me ensinou a ser assim.
— Não diria que isto seja uma
ótima característica de um jornalista. Mas que faz de você uma pessoa
incrivelmente interessante, não tenho dúvidas.
— Uau! — Laura apoiou o queixo
por sobre as mãos cruzadas e os cotovelos na mesa. — Imagino o quanto as
mulheres do Chiamare devem se deslumbrar com suas verdades.
— Outra característica sua, a
ironia?
— Olha aqui, Saulo. — trouxe
um tom mais sério. — Não tenho nada a ver com sua vida particular. Vim a
Fortaleza para fazer meu trabalho.
— Mas eu sou seu trabalho. E
me preocupa o que pensa a meu respeito.
— Ah, entendi... sua
preocupação é que eu exponha o que vi lá fora, na matéria?
— Não somente. Estou tentando
compreender o que sinto neste momento.
— Pois vou lhe dizer o que
penso sobre você. Para mim não passa de um charlatão, que se aproxima das
pessoas usando de sua fé, sua confiança, para manter-se no poder. Você as
engana, mente. E tudo para alimentar a própria vaidade.
Thomás teve vontade de rir,
celebrar o quanto fora perfeito. Finalmente alguém enxergava a verdade acerca
daquele crápula, mesmo que diante de uma mentira. Dando sequência a seu plano,
Laura seria mais que uma aliada, a peça fundamental para desmascarar o irmão.
Para tanto, bastava fomentar seu ódio tocando naqueles pontos que tinha de mais
nevrálgicos.
— Veste-se de religiosidade
para conseguir tudo aquilo que quer. — continuou ela.
— Não sabe o que está dizendo,
Laura. — interrompeu-a.
— Foi o que vi hoje aqui.
— Estou apaixonado por você!
Pronto, o que faltava para
aquela noite. Laura parecia ter visto um fantasma.
— Apesar dos votos, sou homem,
tenho meus desejos, e por mais que os reprima, muitas vezes vêm como um
furacão. Embora não ceda. — parou um pouco, para tomar fôlego e parecer mais
real. — O fato é que desde que te vi pela primeira vez, despertou algo que
estava adormecido há muitos anos. O que pensei não mais existir, que é
inadmissível para um homem em minha posição. — Thomás deixou que as lágrimas
transbordassem. — A possibilidade de me apaixonar.
Ela permanecia imóvel, sem dar
uma palavra, assustada.
— Desculpe-me. — disse ele,
deixando-a sozinha. A mulher com quem Laura marcara o encontro logo chegaria.
Momento de partir, deixá-la com o turbilhão que certamente a movia naquele
momento.
A noite estava completa.
31
Lucas abraçou a avó,
agradecendo sua compreensão. Dona Augusta, que quase nunca saía de casa, por
conta de crises depressivas, havia acompanhado o marido ao Chiamare, a fim de
que após a breve reunião do conselho administrativo marcada para aquela tarde,
ele a levasse a uma consulta médica. Por sorte, Lucas a viu aguardando na sala
de estar ao lado da sala de reuniões e, embora a avó não se envolvesse em
nenhum assunto muito sério ou participasse de qualquer decisão familiar, por
conta de seus problemas de saúde, ele resolveu partilhar a preocupação acerca
da partida de Delano, buscando uma aliada para convencer o avô a deixá-lo ficar
na comunidade. Se o dr. Juca Rebelo fosse a favor, ninguém seria contra. Sabia
o quanto dona Augusta o amava e gostava de realizar suas vontades, desde
menino. O marido jamais a contrariaria.
Estava com sorte. Dona Augusta
achou ótimo que o neto tivesse um amigo.
Que feliz estratégia! Agora
sim, sentia-se um homem de verdade, lutando por seus objetivos. Maravilhosa a
sensação. Sentia-se como se realizasse uma grande missão, feito os heróis dos
filmes que lhe era permitido assistir.
Isso,
Lucas. Tu não é mais menino, mah! Salomão talvez lhe dissesse
isso.
Deste modo, logo que a reunião
teve fim, todo o conselho saiu e veio ao encontro dos dois na sala de estar.
Zica foi providenciar um café fresquinho em homenagem à presença ilustre e rara
de dona Augusta na comunidade. Lucas aproveitou o momento, chamou o avô de
forma reservada e falou sobre Delano e a possibilidade dele ser acolhido no
Chiamare e trabalhar como personal trainer para a obra.
— Filho, não sabemos nada
sobre esse rapaz. — contemporizou Dr. Juca.
— É um menino de bem. O Diogo
não disse? — interviu dona Augusta, aproximando-se dos dois.
O presidente do Chiamare
parecia surpreso com a intervenção da esposa. Ela procurava omitir-se de
qualquer problema familiar há vinte anos, desde que fora diagnosticada
depressiva. Como agora, do nada, revolveu emitir opinião, e justo sobre um
assunto que mal conhecia?
— Querida, não temos certeza
de nada. Foram algumas visões do Diogo acerca desse rapaz.
— Não confia mais no Diogo? — insistiu
ela. — Ora, Juca. Se o Diogo falou, está falado. No mais, eu mesma o vi naquele
dia em que ele salvou nosso neto. — complementou, segurando a mão de Lucas. — Trata-se
de um homem de bem, acredite. Além do mais, estava mesmo precisando de um
educador físico para me auxiliar. Acho que pode me fazer bem.
Que apoio da avó! Por aquilo
não esperava e certamente nem o Dr. Juca. Dona Augusta mal falava com as
pessoas, sempre triste, cabisbaixa, calada e de repente transformara-se em sua
grande cúmplice.
— Do que estão falando? — Cândida
procurou saber, chegando mais perto.
— Teremos um educador físico
trabalhando conosco aqui na comunidade. — foi dona Augusta quem anunciou.
— Não compreendi?
— Lucas está sugerindo que
contratemos os serviços desse rapaz que o salvou. — explicou Dr. Juca.
— É, e ele poderia morar aqui
na comunidade. — completou Lucas, animado.
— Mas nem sabemos quem é ele direito.
— Cândida questionou de pronto. — Sei que está grato pelo que ele fez, filho, mas
não tem cabimento.
— É outra assembleia? — brincou
Edgar, saindo de onde estava, ao lado de Saulo, Guilhermina e Pe. Giuseppe.
— Podemos aproveitar e falar
já com todos. — sugeriu dona Augusta, sorridente. A mulher parecia outra pessoa
naquele momento. Há muitos anos ninguém a via daquela forma. Normalmente ela se
retiraria logo após o término da reunião. Lucas estava certo de que os anjos
haviam-na trazido ali para ajudá-lo.
Os demais se aproximaram.
— Vamos, Juca. Fale! — foi
quase uma ordem de dona Augusta ao marido. O homem temido por todos estava
claramente assustado com a atitude da mulher, de quem escondia todos os
problemas, há muitos anos, para poupá-la.
Os mimos e o cuidado excessivo do Dr. Juca Rebelo à esposa era do
conhecimento de todos, por temer que aborrecimentos cotidianos pudessem piorar
seus problemas de saúde.
— Estávamos aqui falando da
possibilidade de contratarmos esse amigo do Lucas, o... — esqueceu o nome.
— Delano. — Lucas completou.
— Isso. Delano — afirmou Dr. Juca,
reticente, olhando para a mulher. — Parece ser um bom profissional como
educador físico.
— É, eu o vi com o Lucas no
jardim algumas vezes. Acho que é bom mesmo. — concordou Pe. Giuseppe, para a
alegria de Lucas.
— Não concordo! — Cândida foi
categórica. — Que ele esteja frequentando a comunidade tudo bem, mas daí
trazê-lo para cá, aí já é um pouco demais. Nós não sabemos quem é esse rapaz.
— Mãe, ele é meu amigo! — disse
Lucas.
Lamentou que logo sua mãe
fosse contra. Justo ela, que sempre lhe apoiou e fazia de tudo para vê-lo
feliz. Até a avó, ausente do mundo real, tivera um surto de sobriedade e
cumplicidade, dispondo-se a ajudá-lo. Por que Cândida se opunha? Poderia estragar
tudo. O que queria ela afinal, vê-lo sozinho como sempre fora? Talvez Salomão
tivesse razão e todos só quisessem explorá-lo. Até sua mãe? Teve vontade de
dizer umas verdades. Se falasse alguma coisa naquele sentido era possível que
ela pensasse que alguém fizera-lhe a cabeça. A culpa certamente cairia sobre
Delano, seu novo amigo. Melhor seria calar e deixar por conta de sua aliada.
— Bom, confesso só tê-lo
deixado estar com o Lucas porque o Diogo disse que seriam grandes amigos e
muito importante para a vida dele. — explicou Saulo.
— Pois gostei desse rapaz. — assegurou
dona Augusta.
Isso,
vó!
— A senhora, dona Augusta? — surpreendeu-se
Guilhermina.
— Pois se minha mãe está de
acordo, nós o contrataremos. — foi Edgar quem deu o veredito, fitando a esposa.
Nunca pensou ser beneficiado
com as provocações de Edgar a sua mãe. De certo ele havia concordado para
contrariá-la. Sentia muito, mas achou bem-feito para ela.
— Então, está decidido. Ele
virá morar aqui no Chiamare. — concluiu dr. Juca, com toda a sua altivez.
— Claro, claro, não vejo
problema algum. — concordou Saulo com um tom reprovador. A última palavra tinha
que ser dele, mesmo que para acatar, contra a sua vontade, a decisão do
presidente do conselho, como de costume.
Dona Augusta apertou a mão do
neto em cumplicidade. Seu posicionamento fora de fundamental importância.
O primeiro objetivo de sua
vida finalmente alcançado por mérito próprio. Delano sem dúvida nenhuma tinha
vindo para fazê-lo mudar. A partir de agora, muita coisa seria diferente.
32
A imagem de Saulo Sobreira
beijando aquela mulher na rua insistia em povoar a mente de Laura,
provocando-lhe muitas interrogações e uma inquietação para ela pouco conhecida.
Estou
apaixonado por você! Uma declaração que se seguia à recordação da
cena flagrada por ela.
Quem era este homem afinal? O
que pretendia com tudo isso, arriscando-se num jogo de sedução onde transitava livremente
entre uma verdade comprovada pela experiência da fé e o limiar de uma
personalidade duvidosa, tendo como testemunha justo ela, uma jornalista
incumbida de escrever sobre o Chiamare, capaz de revelar ao mundo segredos que
talvez fosse melhor ficarem escondidos?
Primeiramente precisava
compreender o que estava acontecendo consigo mesma. O que havia mudado em relação
à sua percepção acerca do líder do Chiamare? A certeza de ser ele um charlatão
de repente era substituída em alguns momentos por algo forte experimentado por
ela há alguns dias quando o acompanhou na missão às ruas da cidade. Ali pôde
sentir de perto o que eles chamavam de carisma da obra. Aquilo era real,
verdadeiro, quase palpável. Para Laura, inacreditável, como Diogo ter feito a
louça levitar, mas que contorcera completamente suas antigas crenças e forma de
enxergar o fenômeno da fé.
Não tinha como negar, o dom de
liderar e tocar com a palavra fazia de Saulo Sobreira um homem especial. No
entanto, a forma de administrar estruturalmente a comunidade, aproveitando-se
do trabalho ingênuo de milhares de pessoas arrebanhadas pela fé, a fim de
manter o conforto e requinte de meia dúzia de superiores, faziam-na duvidar de
seu propósito.
Laura entrou no apartamento de
Diogo, trancou a porta e colocou as chaves no console ao lado. A penumbra
estabelecida pela luz de um abajur, aliada ao cheiro forte de incenso e à
melodia delicada de uma música instrumental vinda provavelmente do escritório
do amigo, criava uma atmosfera totalmente introspectiva e de paz no ambiente.
Ela foi até a cozinha americana e serviu-se de um copo d’água, em seguida
voltou à sala e largou-se no sofá, na companhia de diversas interrogações
acerca do Pescador de Vidas.
O
que está acontecendo com seu faro jornalístico, Laura Ponte?
— Interferências do coração. —
respondeu-lhe uma voz serena. Diogo, escorado na quina do corredor, segundando
uma caneca de chá.
— Ainda está acordado?
— Terminei uns trabalhos,
resolvi esperá-la chegar. — Diogo aproximou-se e sentou na poltrona ao lado. — Como
foi a entrevista?
— Ah, foi ótima. Visões
diferentes possibilitam uma maior aproximação da verdade.
Ele tomou um gole do chá, sem
tirar o olho dela, depois colocou. — Laura, tome cuidado com Saulo.
Será
que ele viu o que houve?
— Não, não vi. — respondeu
Diogo, calmamente.
— Está lendo a minha mente? — perguntou,
com ar questionador, erguendo a cabeça. Ele não tinha o direito!
Diogo sorriu, pousando a
caneca na mesinha ao lado.
— Desculpe-me. Ando preocupado
com você.
— Isso não te dá o direito de
invadir a minha mente.
O que antes era um charme,
agora Laura enxergava como antiético.
— Vejo que as coisas mudaram.
Ela se levantou e foi até a
porta da varanda, de onde se tinha uma visão ampla da Av. Padre Antônio Tomás,
da qual podia-se observar os carros lá embaixo, em miniatura. Estavam no 14°
andar. Tentou não pensar em nada ou direcionar o raciocínio ao movimento da
rua, para que Diogo não tivesse acesso às suas dúvidas.
Diogo se aproximou, colocando
a mão em seu ombro. — Não quero vê-la sofrer.
Laura também não queria
magoá-lo, por isso evitava falar de Saulo. Encontrava-se confusa com seus
sentimentos. Tinham alimentado grande afeto um pelo outro, desde que haviam se
conhecido em São Paulo, há mais de um mês. Por um momento, ela pensou estar
apaixonada. Agora, tudo mudara. O retorno à Fortaleza provocou-lhe um rebuliço
emocional.
Ela pôs sua mão por sobre a
dele, delicadamente. Sentia tanta ternura. Depois, voltou-se ao amigo, tendo a
visão perfeita de seu rosto. Diogo era lindo. Como duas pessoas podiam ser tão
parecidas? Como se estivesse diante de Saulo.
Estou
apaixonado por você!
— Estou apaixonado por você! —
disse ele com a mesma entonação do irmão, horas antes.
Desejou beijá-lo. Mas quem
afinal?
Diogo tentou uma aproximação e
ela desviou, voltando à sala.
— Estou cansada. Acho que é
hora de dormir. — disfarçou.
— Cuidado com os jogos do meu
irmão. Ele quer iludi-la, como fez comigo e Thomás.
Será que Diogo falava como um
homem ciumento ou alguém que podia enxergar além do aparente?
O som da campainha cortou o
silêncio estabelecido com a advertência.
Ainda
bem!
Diogo foi até a porta, olhou
primeiro pelo olho mágico e anunciou. — É hora de seu encontro com o passado.
Do que estava falando?
Em seguida, abriu a porta,
cumprimentou a pessoa e deu espaço para que ela entrasse.
Foi como se o chão saísse de
baixo de seus pés. Laura não acreditava em quem estava diante dela.
É
hora de seu encontro com o passado. Sim, seu passado, em carne e
osso.
Edgar também parecia
apreensivo, nervoso ou coisa assim. Falou algo em relação ao horário impróprio,
mas que precisava vê-la. A mesma voz de vinte anos atrás. Laura seria capaz de
reconhecê-la onde estivesse. Tantas alegrias, tantas dores vieram à sua mente.
Suas mãos formigavam e um tremor alastrou-se pelas pernas ao ver aquele homem
ali.
— Bom, vou deixá-los a sós. — anunciou
Diogo, trancando a porta atrás de Edgar.
Laura pensou em pedir para que
ficasse e mediasse aquele encontro. Certamente não seria como o dia em que se
viu diante do Dr. Juca Rebelo e os dois fingiram não se conhecer. Com Edgar
seria diferente. Muito seria dito, feridas provavelmente seriam reabertas,
alicerçadas pelo abandono e rejeição de quem amava. Assim como também a
oportunidade que teria de exigir explicações, entender por que tudo havia
acontecido daquela forma tão cruel, sendo ela afastada dos seus. Sim, um acerto
de contas!
Pediu mentalmente que Diogo a
ajudasse.
Não
se preocupe. Estou aqui. É hora de começar a juntar seus pedaços. Ouviu
claramente a voz do amigo, que olhava silenciosamente para ela de forma terna.
Em seguida, Diogo os deixou.
33
Após se desfazer de algumas
folhas secas das mudas no balcão da estufa, Cândida retirou o avental e deixou
o único local no qual experimentava um pouco de paz nos últimos anos. Precisava
dar conta de questões burocráticas da obra e já estava atrasada. No jardim,
avistou o mais novo agregado do Chiamare podando umas roseiras.
Delano fora contratado como
educador físico, o que fazia ali cuidando das plantas? Alguma coisa fomentava
suas desconfianças acerca daquele rapaz. Não sabia ao certo do que se tratava.
Logo após ter sido convidado a trabalhar na comunidade, mudou-se de mala e cuia
no dia seguinte. Todos acharam aquilo normal. Ela não! Necessitava de maiores
explicações. Talvez fosse o momento de buscá-las.
No entanto, preferiu
observá-lo um pouco mais, sem que ele a percebesse. Parecia ter jeito com a
natureza e esboçava um semblante de homem feliz. Depois de algum tempo, Delano
deixou a tesoura de lado e foi em direção ao chuveirão do jardim. Um lugar
lindo, projetado por Cândida, repleto de rosas, as mais variadas, incutidas em
pedras que formavam uma cascata com água corrente. Ali, tirou as botas, a
camisa e se enfiou com o jeans debaixo d’água, feito um menino, brincando na
rua em dia de chuva. Uma alegria de se contagiar.
Rapaz bonito, pele branca e
cabelos negros, com o corpo em forma, esbanjando saúde e juventude. No peito
esquerdo, uma tatuagem definia uma forma em oito, o símbolo do infinito. O
rosto lembrava alguém que ela conhecia, talvez o jeito de sorrir. Não conseguia
saber direito quem.
Quando se deu conta, Cândida
também estava sendo observada por ele. Delano desligou a água da cascata, pegou
a camisa no chão e vestiu-a ainda molhado, vindo em sua direção.
— O tempo está quente e a água
deliciosa. — ensaiou ele uma conversa.
Foi quando Cândida percebeu
que estava quase escondendo-se por trás de uns arbustos, sentindo-se meio
ridícula por ter sido descoberta.
— Pensei que tivesse sido
contratado como personal e não
jardineiro.
Delano sorriu de um jeito em
que ela pôde sentir sua falta de malícia. Apenas um jovem, como seus filhos.
Por que tanta resistência?
— O jardineiro disse que eu
podia dar uma mãozinha. — explicou ele. Com isso foram caminhando até a entrada
da casa. — Gosto muito de plantas, D. Cândida. Minha mãe também adorava. Talvez
seja uma forma de eu me sentir mais próximo dela.
— E onde ela está?
— Morreu há alguns anos.
Cândida parou e olhou para
ele. Não viu nada mais que um garoto, precisando de colo. Lembrou-se de Lucas,
perdido na rua, sendo salvo por Delano. Se não fosse por ele...
— Por favor, me desculpe. Não
sabia. — procurou consertar ela.
Delano desviou o caminho e
direcionou-se a um banco ali perto. Cândida o seguiu.
— Sem problemas, D. Cândida.
— Pode me chamar de Cândida,
por favor.
— Mas a senhora é a mãe do
Lucas.
Pelo
menos é educado.
—
Por
favor, não faça com que eu me sinta uma velha.
— Velha, a senhora? — gargalhou.
— A senhora é linda.
Ele sentou e Cândida ficou
meio perdida com o elogio.
— Mas me conte, Delano. O que
faz aqui em Fortaleza?
Delano contou-lhe de quando ficara
órfão e a opção por percorrer o Brasil em sua moto, do quanto se sentira
perdido nos últimos dois anos e a busca de algo que desse sentido à sua vida.
Cândida desejou perguntar sobre seu pai, mas não teve coragem. Em nenhum
instante mencionou qualquer coisa a respeito. Compreendeu que também devia ser
doloroso para ele.
O que a deixou mais tocada foi
quando o viu derramar uma lágrima, recordando-se de um instante vivido com a
mãe. Não passava de um menino grande e solitário, aventureiro, mas sensível.
Cheio de valores e ensinamentos da pessoa que fora para ele a mais importante
de sua vida. Delano precisava apenas de uma família, pessoas que o amassem como
amou aquela mãe.
Teve a ideia de mostrá-lo seu
refúgio. Convidou que a seguisse. Em pouco mais de um minuto estavam na estufa.
Delano ficou maravilhado com a variedade de mudas, flores as mais belas.
Cândida sentiu-se tão feliz por partilhar aquele mundo de tanta beleza, seu
acalanto com alguém sensível como ele. O rapaz sorria feito um menino e livre
de maldade, com a alma cheia da ternura plantada naquele lugar, como ela que se
deixava transbordar de Deus quando estava ali.
— Esse lugar é lindo, parece
um paraíso. — concluiu Delano, com um sorriso que não cessava.
— Foi essa a ideia quando o
construí. — respondeu, feliz por sua companhia.
— Um ambiente como esse, de
tanta beleza, só poderia ter sido pensado por alguém como a senhora.
Mais uma vez o elogia a fez
perder a graça.
— Bobagem.
Delano olhou a sua volta e
mirou uma roseira, fazendo um gesto como se lhe pedisse autorização para tocar.
Ela consentiu e ele tomou uma linda rosa nas mãos. Em seguida se aproximou,
olhou-a profundamente nos olhos, deixando-a mais uma vez perdida em seus
pudores, e depois colocou-a delicadamente em seu cabelo.
— Ela foi criada para isso...
para se perder em sua beleza. — disse ele, simplesmente.
Delano trazia um charme todo
especial em seu olhar, provocado pelo leve traço de estrabismo quase não
perceptível.
Pronto, aquilo a deixou
completamente envergonhada. Mal conhecia aquele rapaz, fora contra sua vinda
para o Chiamare, e de repente estavam ali, ambos tomados pelo mesmo sentimento.
Fundindo-se com a beleza do lugar.
Mas estar sozinha com um rapaz
que mal conhecia, embora um moço sem maldade alguma, amigo de seu filho, não
pegava bem. Desculpou-se, mencionou um compromisso e saiu.
Ela
foi criada para isso... para se perder em sua beleza.
Como um menino podia ser tão
encantador com uma senhora como ela?
34
Thomás recebeu o saco de
pipoca doce das mãos do vendedor e seguiu tranquilo até o final da Ponte dos
Ingleses. O mar estava razoavelmente calmo naquele final de tarde e o sol
disputava seu lugar com algumas nuvens que insistiam em escondê-lo. Os ventos
dançavam por ali no mesmo ritmo das águas que colidiam timidamente com as
velhas pilastras de concreto sustentadoras da construção, feito uma valsa
eterna que podia ser apreciada por entre as frestas de seu lastro de madeira.
Ele aproximou-se do rapaz que
estava de costas, apreciando uma das vistas mais belas de Fortaleza. Apoiou-se
com os cotovelos no parapeito de madeira e pôs-se a saborear a pipoca uma a
uma, ao lado do rapaz.
— Como andas o mais novo
missionário do Chiamare? — perguntou Thomás, sem tirar o olho de um menino que
nadava a alguns metros, voltando para a praia.
— Só faltam os votos de
pobreza. Obediência e castidade jamais. — respondeu Delano, acompanhando o
mesmo nadador fitado por Thomás.
— Soube que se mudou ontem
para a comunidade.
— Sim. Tudo está correndo
conforme o combinado. Aos poucos todos eles passarão a confiar em mim.
— E Cândida? — esticou o saco
de pipoca na direção do outro, oferecendo-o.
— A única que ainda tinha
resistência. — fez um sinal, sem aceitar a pipoca.
— Tinha?
— Sim. Hoje pela manhã tivemos
um mágico encontro.
Thomás sorriu. Descobrir
Delano tinha sido a melhor coisa. Ele era perfeito para o que pretendia junto à
família Rebelo, como Laura. Machucados pela desumanidade daquele povo, ambos
carregavam consigo conteúdos profundos que o ajudariam em seu plano de justiça.
O rapaz, bem mais, mordido por sede de vingança.
— Vejo que é competente
naquilo que se propõe.
— Essa família vai pagar por
tudo o que fizeram à minha mãe. E logo!
Só o considerava um pouco
impulsivo.
— Cuidado, rapaz, para não pôr
tudo a perder. — advertiu-o, tocando em seu ombro. — Vai seguir as minhas
ordens.
Delano se desviou de um jeito
brusco. — Como disse, não fiz nem faço votos de obediência.
Thomás pôs-se de frente para
ele, encarando-o.
— Olha aqui, menino, lutei
muito para chegar onde estou. Não é um fedelho como você que vai estragar tudo.
— precisava dar logo seu recado. — Deixemos esse trem nos trilhos, do jeitinho
que combinamos. Para mim não há problemas em mudança de planos. Basta um
telefonema e te tiro da jogada. Ninguém vai sentir falta. — Comeu um pipoca e
voltou-se ao mar.
Delano pareceu conter-se.
— Muito bem, seguirei com o
que você me orientou — respondeu claramente a contragosto.
— Assim que gosto de ver,
rapaz. E agora com você lá dentro será muito mais fácil. Terei a minha justiça
e você sua vingança, mas no tempo certo, para que nada dê errado.
— E a secretária, conseguiu
neutralizar? — Delano procurou saber.
— Óbvio. Ela está comendo na
minha mão. A megera vinha desviando dinheiro da obra há anos para uma conta no exterior.
— E o Saulo Sobreira sabe
disso?
— Acredito que sim. Ela faz
tudo a mando dele.
— E o velho padre?
— Parece que o Saulo está
conseguindo mantê-lo em silêncio, por enquanto. Mas o Pe. Giuseppe deu a ele um
prazo para que conte ao conselho sobre o desvio dos vinte milhões. É uma grande
podridão o que está por trás dessa comunidade.
— E o que pretende fazer,
destruir o Chiamare? Nunca mais será o líder dessa comunidade. Embora consiga
provar que eles não prestam, digamos que seus métodos não são nem um pouco
ortodoxos. Isto faz de você igual a eles.
Delano falava com um prazer,
que às vezes não sabia se realmente estava do seu lado e podia confiar nele.
— Há pessoas de bem lá dentro,
sempre teve, — explicou Thomás. — minha ideia é limpar a obra para elas.
— Um justiceiro? — Delano
ironizou.
Chega
de jogar conversa fora com esse fedelho!
— Faça o que tem que ser
feito, rapaz. Iremos nos encontrar novamente, em breve.
Amassou o pacote vazio em suas
mãos e em seguida o enfiou no bolso de trás da calça do rapaz. Este, por sua
vez, retirou-o num rompante de fúria e jogou-o no mar, impulsionando-se
adiante, como se fosse agredi-lo. Entretanto, Thomás aprendera na prisão a não
temer nenhum homem. Pôs-se firme diante daquele moleque e segurou-o pela jaqueta.
— Vai fazer o quê, hein? — questionou
Thomás, quase o engolindo. Depois o empurrou contra o parapeito. — Acha que
tenho medo de um fedelho mijão como você? É?
Delano permaneceu em silêncio,
mas sabia que não podia confiar totalmente nele.
— Se algo sair diferente do
que combinamos, eu te acho. — sentenciou Thomás calmamente. — Aí vai ver quem é
o justiceiro, capiche?
Thomás alinhou o blazer, como
o irmão, e saiu. O recado estava dado.
Tinha coisa mais importante
para se preocupar. Faltava pouco para Laura aliar-se a ele. Precisaria dar ela
o que mudaria completamente sua visão acerca de Saulo Sobreira.
35
Cândida entrou no
estacionamento do Chiamare, observou o relógio digital no painel do carro
marcando seis horas e cinco minutos, desligou o motor e quando desceu, deu uma
olhada disfarçada pelo jardim, à procura de seu mais novo amigo, companheiro de
corrida matinal. Procurava chegar cedo todas as manhãs, antes de Delano se
ocupar com os exercícios de Lucas. Geralmente o personal já estava a sua espera quando apontava no portão da
comunidade.
O que teria acontecido? Por
algum motivo ele não apareceu naquela manhã. O encontro havia se tornado uma
constante, desde que conversaram pela primeira vez, há uma semana. Por mais que
nunca marcassem, estavam sempre ali, no mesmo horário. Delano a ajudava a
alongar e depois corriam por quase uma hora, até que Lucas descia para
iniciarem sua série de exercícios e ela os observava por um tempo. Achava
encantador o cuidado, paciência e dedicação do rapaz no desenvolvimento de seu
filho. Vez por outra, ele devolvia o olhar em cumplicidade, sorria e até
acenava.
Delano tinha trazido mais vida
àquele lugar, com sua presença de espírito, vitalidade e alegria contagiante.
O
que houve que ele não apareceu?
Procurou alongar, sem nenhuma
concentração e começou a correr.
E
se ele estiver doente?
Poderia ligar, mas havia
deixado o celular no carro. Ficaria bem ir no quarto dele? Não, se tivesse
acontecido algo sério, avisaria a alguém e se não aconteceu, por que não estava
esperando por ela, como fazia todas as manhãs? Definitivamente não conseguiria
prosseguir sem saber o houve. Delano era um rapaz sozinho e estava preocupada.
Desviou o caminho e entrou na casa. Nos primeiros corredores, escondeu-se atrás
de uma coluna para que duas funcionárias não a vissem.
Por
que estou me escondendo? Não há nada de mais em verificar se um funcionário da
obra está bem. Bobagem, Cândida.
Tomou o elevador até o
terceiro andar e seguiu pelo corredor de modo a não se aproximar do parapeito
lateral que dava para o jardim interno do centro, a fim de que ninguém a visse.
Por fim se pôs diante da porta do quarto dele. Antes de bater, pensou em
desistir. O que ele pensaria? Tolice, apenas que seu trabalho como personal era importante. Então bateu.
Certificou-se mais uma vez que ninguém a estava vendo e mais uma série de
toques.
Sentiu o coração acelerar até
a porta ser aberta e a figura de Delano surgir em sua frente, vestindo uma
calça de moletom cinza. O rosto do rapaz trazia uma tristeza e os olhos
afogados em lágrimas. Nada falou.
— O que houve? Aconteceu
alguma coisa? — Cândida procurou saber, preocupada com o que vira.
Ele chorou um pouco e com
dificuldade, respondeu. — Tive um sonho terrível com a minha mãe. Acordei com
muita saudade!
— Oh, meu Deus!
Cândida não pensou duas vezes
em se antecipar àquele menino e abraçá-lo. Devia ser horrível a dor, a saudade
por ele sentida, sozinho no mundo. Em seguida, ela mesma fechou a porta e
sentou na cama, puxando-o pela mão para que fizesse o mesmo. Ele deitou com a
cabeça em seu colo e ali chorou por um tempo. Balbuciou algumas palavras em
meio ao choro sobre o tal sonho, falou da saudade e que estava só.
— Não, você tem a mim, ao
Lucas. O Chiamare é sua casa. — procurou acalmá-lo, acariciando sua cabeça. Em
tão pouco tempo, sentiu tanto afeto e carinho por aquele rapaz, como que por um
filho.
Percebeu que ele estava ali,
em posição fetal, chorando em seu colo, feito uma criança desamparada. Estendeu
a mão pelas costas dele e aos poucos, Delano foi cessando o choro. De repente,
percebeu-se tremer. Bom tê-lo consigo, acariciá-lo e em alguns momentos
senti-lo se arrepiar.
Meu
Deus, o que estou fazendo? Não, não era o mesmo que sentia ao cuidar
de Lucas ou Salomão. Ao tocá-lo, o próprio corpo respondia como há muitos anos
não acontecia. Desde a descoberta da paternidade de Lucas, Edgar e ela dormiam
em quartos separados. Cândida não sabia mais o que era ser mulher. O tremor nas
mãos suadas, as batidas descompassadas do coração e o calor. Precisava parar
com aquilo, mas não conseguia. Desejou abraçá-lo, sentir seu cheiro mais de
perto.
Ele
é apenas um menino!
Delano segurou-lhe a mão,
fazendo-a parar por um instante, em seguida conduziu-a até seu sexo. Cândida
fechou os olhos e sentiu a dureza masculina por sobre o moletom. Ambos,
trêmulos em plena sintonia. Ele se pôs de pé e despiu-se diante dela. No olhar,
o desejo, a entrega. Depois a trouxe para junto dele e a abraçou com tanta
ternura. Aos poucos foi lhe beijando o pescoço, num caminho lento e prazeroso
até os lábios. Há muito não experimentava aquilo, ser desejada, possuída por
alguém.
Um
menino!
Não, um homem que a queria,
tanto quanto ela a ele! Como numa dança, Delano foi lhe desnudando, retirando
as couraças que velava seu coração e a alma. No beijo, o calor, a partilha do
desejo no compasso das línguas. Os corpos nus entrelaçados pelo mesmo
sentimento.
No momento o sentiu dentro
dela, novamente se experimentou inteira, mulher!
36
Thomás observou de forma
atenta a imensa imagem de Cristo Ressuscitado suspensa na parede de uma das
salas de estar da comunidade. Reconheceu os mesmos detalhes no broche de prata
fixado no bolso do próprio blazer. Irônico como havia acreditado no chamado que
aquela figura lhe fizera, por isso a escolhera para simbolizar o carisma de sua
obra. Agora, o mesmo Cristo que o inspirou, ali de braços abertos sobre mais
uma mentira, um falso Saulo Sobreira, feito a que destruiu sua vida,
afastando-o de tudo aquilo por doze anos. O que Deus pensaria acerca de seu
plano? Estaria Ele do lado da justiça ou continuava a proteger os mesmos
bandidos que o enganaram?
Não tinha mais a menor
importância! Aprendera que a mentira seria sua maior aliada e que nada podia
ser conquistado à revelia daquele princípio maior, chave e manutenção de uma
instituição do porte do Chiamare.
O fato é que após a chegada de
Delano naquele lugar, o acesso ficara mais fácil para ele e podia estar
presente quase que diariamente na comunidade, propagando diversas orientações
aos missionários consagrados, funcionários e fiéis contrárias às do verdadeiro
Saulo Sobreira. O que vinha enlouquecendo o líder moderador da obra, fazendo-o
acreditar numa perda de memória recente, talvez pelo uso exagerado dos remédios
contra o transtorno obsessivo compulsivo. A própria Guilhermina cogitou a
possibilidade de um Alzheimer precoce, apavorando-o. Thomás soubera através de
Delano que até consulta nos Estados Unidos o irmão já havia marcado frente ao
desespero.
Sucesso total de seu plano de
justiça! Recordou-se que quando fora preso, achou ter enlouquecido e ele mesmo
tentou convencer-se por algum tempo que havia cometido o crime. Efeito da
perversão criada pela teia de mentiras daquele canalha. Deste modo, Saulo
começava a pagar na mesma moeda.
— Você aqui?! Como pode?!
Laura estava na sacada que
dava para o jardim interno do centro religioso. Pela primeira vez Thomás temeu
que seu plano fosse descoberto. Bastava que ela desse meia volta e
reencontrasse o líder do Chiamare a alguns metros, na ala dos auditórios, onde
o havia deixado e ele sabia. Por isso se encontrava pasma.
— Acabei de falar com você na
palestra, no outro bloco! — argumentou ela. — Não me diga ter o dom de se
teletransportar. — encarava-o de perto.
— Sabia que a encontraria aqui.
— inventou ele.
— Mas como? Estava cercado há
pouco de vários fiéis, não pode ter chegado aqui tão rápido. — insistiu.
— São muitos os mistérios que
envolvem o Chiamare, Laura. — olhou-a tão profundamente que a deixou sem graça.
Depois deu as costas e seguiu pelo corredor na direção contrária a que ela
tinha vindo. Precisava atraí-la, tirá-la dali, a fim de não correr o risco de
ser descoberto.
Ela o seguiu.
— Ei, não gostaria de me
contar? — abordou Laura.
Ufa!
Thomás
sorriu.
— Acredito que brevemente
muitas coisas mudarão no Chiamare. — comentou ele.
Foram caminhando pelo corredor
de encontro ao vento vindo da sacada que dava para o jardim interno do centro.
— Do que está falando
exatamente?
Thomás parou e focou um
anfiteatro no andar inferior, no jardim.
— Estou pensando em deixar
esta comunidade.
— O quê?!
— Não suporto mais, Laura! São
muitas exigências. E os votos...
— O Chiamare é sua vida.
— Os votos me impedem de viver
o que está aqui dentro. — bateu com força no peito, voltando-se inteiramente a
ela.
— Olha, Saulo, não compreendo
muitas coisas, nem concordo com outras tantas, mas não tenho a menor dúvida do
seu chamado como líder desta comunidade. O Lucas tem o dom e carrega consigo a
mística. Você direciona com a palavra. Isso também é forte e lhe atribui a responsabilidade
de ser esse grande Pescador de Vidas propagado pela mídia. Seu papel aqui é
fundamental.
Embora sob uma mentira, doía
vê-la falar daquele modo, visto que Laura se referia ao criminoso de seu irmão
e não a ele, Thomás realmente. Ora, o que exatamente a deixava com tanta
credibilidade num crápula como Saulo? Mau-caratismo sempre fora sua maior
“virtude”. Hora de fazê-la enxergar aquilo, ainda que utilizando os mesmos
artifícios que aquele bandido.
— Vou deixar a liderança do
Chiamare sim, Laura. E por sua causa! — anunciou. Em seguida aproximou-se e
mirou seus lábios. Ela parecia totalmente perdida e nervosa com a revelação.
Ele a tomou nos braços, sem nenhuma resistência e a beijou. Laura retribuiu na
mesma intensidade, numa entrega cega.
Aos beijos, Thomás a conduziu
ao ambiente preparado para aquele momento, um charmoso escritório, ao lado de
onde estavam, utilizado eventualmente por hóspedes da comunidade. Delano o
havia deixado conforme o combinado.
— Você é louco! — disse ela,
em meio aos beijos.
— Por você sou capaz de tudo!
— respondeu na mesma voluptuosidade.
— Nós não podemos!
— Sim, podemos!
— E a comunidade?
— Eu te amo, Laura!
— Mas...
— Eu te amo! Eu te amo! Eu te
amo!
Na verdade, há muitos anos não
beijava uma mulher. Cândida fora sua última namorada, antes de fundar o
Chiamare e entregar-se aos votos de pobreza, obediência e castidade. Seduzi-la
não tinha sido nenhum sacrifício, pelo contrário. Laura era uma mulher linda e
envolvente, capaz sim de despertá-lo em seus desejos mais profundos. Ao lado
dela experimentava a virilidade reprimida, uma força descomunal e prazerosa,
tornando-o grande e frágil ao mesmo tempo. Sim, mexia com ele, um lado
adormecido pelo tempo e as escolhas.
Cogitou parar! Por mais que
não mentisse sobre o desejo de ali estar e possuí-la de verdade, mentia acerca
de quem era e a enganava na inocência e fragilidade de mulher seduzida, vítima
de um jogo sórdido.
Não
tenho o direito de machucar pessoas inocentes!
Tarde demais! A intensidade do
momento lhes fez um antes que tivesse forças de desistir. Por um instante,
esqueceu de tudo o que o motivou a chegar até ali. Foi maravilhoso!
37
Cândida fez um corte no caule
de uma orquídea no balcão da estufa, quando foi surpreendida pelos braços de
Delano, prendendo-a como garras. Ele a beijou e mordeu-lhe a orelha com a mesma
intensidade em que se apossou de seus seios. Uma força com a qual rendia-lhe
por completo. Aqueles últimos três dias desde a primeira vez em que estiveram
juntos como homem e mulher foram avassaladores, com inúmeros encontros nos
quais ela esquecia a culpa e a missão na comunidade, entregando-se sem reservas
a um sentimento nunca experimentado.
Meu
Deus, um menino!
Um homem quinze anos mais
jovem, devolvendo-lhe a alegria de viver.
— Para, para, meu menino! Aqui
não! — implorou, sucumbindo ao desejo de tê-lo mais uma vez, no calor macio de
sua língua, no cheiro quente de seus músculos em contração ao possuí-la.
Nunca esteve tão feliz! Nem
mesmo Thomás, quando namoravam ou Edgar com todo o seu amor conseguiram lhe
proporcionar tamanha inteireza. Por ele seria capaz de jogar tudo para o alto e
percorrer os caminhos mais sombrios e cheios de espinhos que aquele amor
poderia resultar.
— Minha rainha! — dizia ele de
modo tão apaixonado ao tomá-la em seus braços.
Fizeram amor ali mesmo. Um
amor que parecia abarcar todo o mundo!
Depois, seguiram para o quarto
de Delano. Primeiro ele abriu caminho, para que ninguém os percebesse. Lá,
despiram-se um de frente para o outro, como num ritual em que contemplavam a
sutileza das curvas de seus corpos nus. Para então, beijarem-se mutuamente.
Quando de repente, alguém
invadiu aquele amor.
— DESGRAÇADOS! — gritou Edgar,
com olhos arregalados, apoiado na maçaneta da porta.
Cândida não entendeu direito o
que havia acontecido, como ele chegara lá.
— Edgar?! — afastou-se de
Delano, procurando pegar as roupas no chão para se cobrir.
O rapaz fez o mesmo.
— Posso explicar! — tentou
Delano.
— EXPLICAR O QUÊ? — Edgar
continuou gritando — QUE VOCÊS ESTÃO ME TRAINDO?
— Calma, Edgar! — pediu
Cândida, muito nervosa.
— Olha, sei que parece
loucura... — Delano procurou mais uma vez se colocar — Mas...
— CALA A BOCA, DESGRAÇADO! — Edgar
o interrompeu com um soco.
— NÃO! — desta vez foi Cândida
quem gritou, partindo para cima do marido.
— VAGABUNDA! — Edgar a
empurrou contra uma cômoda.
— NÃO TOCA NELA! — Delano veio
também para cima de Edgar, acertando-o com um soco. Em seguida, montou-se em
cima dele, agredindo-o mais vezes.
— Parem com isso! — implorou
Cândida, tentando segurar o amante.
— Ele não vai te machucar, ele
não vai te machucar, nem a mais ninguém! — afirmou o rapaz tomado de ódio.
— A gente não pode resolver
assim! — disse ela aos prantos.
Edgar ergueu-se e tomou
distância dos dois.
— E como querem resolver, sua
vagabunda? — perguntou ele, transtornado. — Pensava que ia me trair até quando,
sem que eu soubesse?
— Não quis te trair! — declarou
Cândida.
— E o que é isso? — interrogou,
apontando para os corpos nus de ambos, escondidos, sem muito êxito, pelas peças
que conseguiram catar pelo chão. — O que faziam pelas minhas costas, se não me
trair? HEIN? RESPONDE, VAGABUNDA!
Desejou sumir dali com Delano,
para sempre! Quis tanto pedir o divórcio, acabar de uma vez por todas com a
farsa daquele casamento falido. Por que não tivera coragem de enfrentar a
todos? Se não fosse por Lucas já o teria feito há muito tempo.
— O mundo vai saber quem é
você, sua vagabunda! — declarou Edgar, deixando-os sozinhos no quarto.
O que ele faria?
— Vamos, Delano, vamos sair
daqui! — propôs ela, enquanto se vestiam apressadamente.
— Olha tua mãe! — ordenou
Edgar, entrando quarto a dentro, conduzindo Lucas pelo braço. O jovem estava
assustado, certamente sem nada compreender.
— O que está acontecendo aqui?
— procurou saber o rapaz, alternando a vista entre a mãe e o amigo sem camisa.
— Edgar, você não tem esse direito! — questionou
ela.
— De mostrar pro seu filho
queridinho que você é uma vagabunda? Ah tenho sim! E como tenho!
— Você é um fraco! — Delano
foi categórico, enfrentando-o. — Por que não resolvemos isso só a gente?
— Quem é você para dizer o que
tenho ou não que fazer, seu moleque? — Edgar foi para cima dele. Os dois
ficaram cara a cara.
— O que há com vocês?! Pelo
amor de Deus, o que está acontecendo, mãe? — insistiu Lucas em saber.
— Sai daqui, filho, por favor!
— implorou Cândida.
— Não, fica! Fica e testemunha
o quanto tua mãe é uma vagabunda! — exigiu Edgar, sem tirar o olho de Delano.
— Você é um corno covarde! — afirmou
Delano.
O semblante de ambos revelava
um ódio incontido. Edgar segurou-o pelo colarinho, no impulso e o sacudiu.
— Veio destruir a minha
família, seu desgraçado! Por quê? Por quê?
Desta vez Delano começou a
rir. Deu uma gargalhada.
Cândida não compreendia nada.
— Sou teu filho. — disse
Delano, de um modo despretensioso.
— O quê?! — perguntou Edgar.
— O que ouviu: teu filho. — repetiu.
— O que está falando, Delano?
— Cândida perguntou.
— Sou o filho da Lurdinha,
lembra? — Delano foi mais convincente. Edgar foi baixando a guarda, soltando-o.
— Quem é Lurdinha? — insistiu
Cândida.
Edgar parecia ter entrado num
surto silencioso. Lucas permanecia atônito, vendo tudo aquilo.
— Lurdinha era minha mãe, — explicou
Delano, sem tirar o olho do pai. — filha da empregada da casa do Dr. Juca
Rebelo. Seu primeiro grande amor, não foi, papai? — ironizou.
— Meu Deus, que história é
essa? — desabafou Cândida.
— Ele, um filhinho de papai,
viciado em drogas, como todo mundo já sabe, antes dele entrar no Chiamare.
Seduziu e viciou também a minha mãe, praticamente uma menina. Depois quando ela
apareceu grávida, eles exigiram que fosse feito um aborto. Ele e o paizinho
dele, o Dr. Juca Rebelo.
— Isso não é verdade, — contestou
Edgar. — nós éramos apaixonados. Meu pai não queria o namoro, só isso.
— E isso dava a vocês o
direito de me matar? — interpelou Delano.
— Ele me disse que ela havia
perdido o bebê! — rebateu Edgar.
— Minha mãe foi perseguida,
juntamente com minha avó. Passaram anos se escondendo com uma criança no colo.
Até que numa emboscada, ela foi atingida por uma bala na perna, que a deixou
aleijada. Foi essa bala que começou a matá-la, devagar!
— Não pode ter sido meu pai. —
negou Edgar.
— FORAM VOCÊS QUE MATARAM
MINHA MÃE! — gritou Delano.
Meu
Deus, o que está acontecendo? Cândida sentia-se perdida. Uma
outra história atravessara a sua de forma violenta. Não mais sabia quem era o
homem por quem estava apaixonada.
— Então é meu irmão? — concluiu
Lucas.
— NÃO! — respondeu Edgar num
grito único — Ele não é teu irmão! — Agora voltou-se para Lucas.
— Sou sim! Sou o filho que não
quis ter! — insistiu Delano.
— ACONTECE QUE O LUCAS NÃO É
MEU FILHO! — revelou Edgar finalmente.
— Edgar, por favor, não é
hora! — Cândida implorou.
— Não sou seu filho?! — Lucas
procurou saber, deixando cair uma lágrima.
— Você é filho do Thomás. — respondeu
Edgar — ou melhor, do Saulo. Quer dizer, sei lá de quem você é filho! A tua mãe
é uma vagabunda e transou com todo mundo na festa do nosso casamento!
— NÃO! — interviu Cândida. — Isso
não é verdade, filho! — agarrou-se com Lucas. — Posso te explicar melhor.
O rapaz sentou na cama,
inconformado.
Edgar caminhou de um lado para
o outro do quarto, depois olhou para Delano e perguntou. — E por que veio atrás
de mim?
— Para acabar com você! — respondeu
o outro de pronto. — Botar um chifre no meio das tuas fuças e provar que você é
um merda! Pôr um fim a esse casamentinho feliz que vendiam para o mundo! Isso
mesmo, pai. Vingança!
Vingança?
E nosso amor?
Finalmente caíra sua ficha.
Cândida se deu conta que fora uma peça num jogo de Delano para se vingar de
Edgar.
Não
pode ser verdade!
Mas era! Ele mesmo confessara
tudo diante de seus olhos, sem o menor cuidado ou temor em magoá-la. Sentiu-se
uma desgraçada, com a moral destruída na frente do próprio filho e um vazio
pelo amor imenso que experimentara outrora e que não mais existia. Desejou
morrer ou matar aquele infeliz, mau-caráter que havia lhe roubado a alma.
Cândida partiu para ele, para
transformá-lo em pó.
— Seu desgraçado, mentiroso,
mau-caráter! — tentou agredi-lo, mas Delano segurou-lhe os braços.
— Vocês dois se merecem! — concluiu
Edgar, com o rosto banhado em lágrimas e os deixou.
— PAI! — Lucas correu atrás.
— Você acabou com a minha
vida, seu monstro! — esbravejou ela.
— Não posso conversar com você
agora. Tenho muitas contas a acertar com ele. — Delano procurou explicar. Em
seguida, foi atrás do pai.
Como Edgar havia descoberto?
Talvez o próprio Delano teria arquitetado o flagra.
Cândida largou-se no chão, num
choro contundente.
— Por que, meu Deus?! Por que
fui tão infeliz?!
A imagem de Delano, na
primeira vez em que se viram, na sala de casa; bem como tomando banho no jardim
da comunidade; como colocando a rosa em seu cabelo; auxiliando-a nos
alongamentos; depois quando se beijaram e se possuíram, todas se materializaram
em lembranças doloridas, como num filme que havia assistido há muito tempo.
Tudo parecia tão distante e ao mesmo tempo, perto demais, de tal modo que a
deixava sem ar, abandonada em sua dor solitária.
Enganada, exposta, renegada.
Uma ferida que lhe sangrou a alma.
38
Após quase quatro horas para
se aprontar, Saulo ajeitou o blazer, deu uma última olhada no cabelo, através
de sua imagem refletida no vidro da caminhonete do Chiamare e entrou no
veículo, acompanhado de Guilhermina. O motorista avisou que desviaria o
caminho, a fim de evitarem o rush na
saída de Fortaleza. Ele havia tentado adiar aquela viagem a Canindé, por
sentir-se cansado e também por conta da tensão causada por seus esquecimentos
frequentes, nas últimas semanas, frente a decisões importantes na obra. A
bateria recente de exames a qual vinha se submetendo recentemente, bem como o
fantasma de estar com início de Alzheimer precoce o apavorava. Entretanto, a
secretária acabara por convencê-lo a viajar e acertarem os últimos detalhes
para a abertura de mais um centro.
Enquanto Guilhermina foi lhe
adiantando a pauta da reunião em Canindé, ele acessou a galeria de fotos do
celular até a imagem de Laura Ponte, uma fotografia baixada da internet, na
qual a jornalista aparecia com um lindo sorriso, segurando uma placa de
acrílico, prêmio como melhor reportagem em 2014, cabelo castanho em cascatas e
um vestido vermelho delineando as curvas acentuadas de seu corpo. Beleza e
inteligência, ingrediente perfeitos para uma mulher. Desde que assumira a
liderança da obra e fizera seus votos, não se sentia tão atraído por alguém. As
tentações do caminho! Um sentimento que guardaria somente consigo e o
entregaria no altar de seu coração. Ninguém jamais saberia!
— Estamos sendo seguidos. — comentou
o motorista, atento ao retrovisor.
Seguidos?
Assustado, Saulo deixou a
parelho cair no assoalho do automóvel, permitindo que Guilhermina visse a
imagem na tela.
Deus!
O mais apressado que pôde,
soltou o cinto e tentou reaver o celular, que escorregou para baixo do banco da
frente.
— Sim, eles estão atrás de
nós! — confirmou Guilhermina, amedrontada.
Foi quando Saulo se deu conta
que haviam acabado de sair de Fortaleza. Acompanhou a estrada e os carros que
vinham na direção contrária, vez por outra olhava para trás e o assoalho do
banco da frente, onde o aparelho fora parar.
— Vamos ligar para a polícia!
— sugeriu o motorista, acelerando.
Saulo percebeu que rapidamente
os ponteiros do velocímetro marcou cento de sessenta quilômetros por hora.
— Isso, liga para a polícia. —
disse Saulo a Guilhermina.
A secretária procurou o
celular na bolsa.
— Anda! — Saulo a apressou.
— Calma! — pediu ela,
aperreada.
Quando a mulher pegou o
celular disse com tom de lamentação que estava sem sinal.
A caminhonete preta que os
seguia começou a aproximar-se.
— Acelera! — Saulo mandou.
— Não posso! — disse o homem,
apontando para um caminhão logo à frente.
— Tenta ultrapassar. — sugeriu
Guilhermina.
— Não dá! — rebateu novamente
o motorista. Estavam numa curva.
Meu
Deus o que está acontecendo?!
A caminhonete preta os
acompanhou, avançando a contramão. Em segundos, estavam lado a lado, exatamente
na curva.
— ELES SÃO LOUCOS! — gritou
Saulo, apavorado.
— O que eles querem com a
gente? — disse Guilhermina.
O outro carro foi se
aproximando da lateral de veículo do Chiamare, forçando o motorista a entrar
para o acostamento.
— ELE VAI BATER! — concluiu
Guilhermina.
— Vou parar! — anunciou o
motorista.
— NÃO! — ordenou Saulo.
— Continua, continua. — colocou
Guilhermina.
— Não, dá, eles vão jogar a
gente para fora da estrada — explicou o motorista.
Nos
ajude, Pai!
O motorista diminuiu a
velocidade, enquanto o outro veículo avançou um pouco à frente e os forçou a
parar.
— Meus Deus, o que eles vão
fazer com a gente?! — apavorou-se Guilhermina.
— Deve ser assalto! — cogitou
o motorista.
— Vamos manter a calma, tudo
vai acabar bem! — Saulo procurou acalmá-los.
Quatro homens encapuçados
desceram do carro, com armas em punho. Os veículos passavam por eles em
velocidade.
—
Acredito em vós, Senhor! Acredito em vós, Senhor!
— FICA QUIETO! — gritou um dos
bandidos, apontando a arma para o motorista.
Um outro abriu a porta de
Saulo e o puxou para fora.
— VEM COMIGO! — ordenou o
homem.
Por pouco não caiu na pista.
— Por favor, não faz nada com
ele, não faz nada, por favor, por favor, por favor! — pediu Guilhermina, em
choque.
— CALA A BOCA, SUA VACA! — gritou
outro bandido com a arma na cabeça dela.
— Não precisa de violência,
por favor! — pediu Saulo.
— Ah não, bonitão? — ironizou
o homem ao seu lado, acertando-lhe um soco.
Uma dor quente no nariz e
depois, sangue.
Qualquer coisa que falasse
seria pior!
O bandido que rendia o
motorista retirou a chave da ignição e ordenou que permanecessem quietinhos.
Guilhermina parecia estar em choque, tremendo e chorando. Saulo foi arrastado
para o veículo da frente e empurrado com força para dentro. Faria tudo o que
eles mandassem para que não o machucassem. Um deles retirou um capuz preto de
uma bolsa e o colocou em Saulo. Ficou tudo escuro e ouviu os comandos trocados
entre eles, em tons de tensão, a caminhonete sendo acelerada e o cantar dos
pneus.
— Vamos levá-lo ao local
combinado. — foi a voz de um deles.
Que local? O que eles queriam
afinal? Poderia tentar descobrir, oferecer dinheiro, achar um meio de se livrar
daquele inferno. Certamente, mercenários e o estavam sequestrando em troca de
um resgate. Ele mesmo poderia lhes oferecer o valor e acabar logo com aquilo. E
se o machucassem novamente? Pior, se deixassem marcas? Melhor seria permanecer
em silêncio e aguardar. Nada valeria a pena para pôr em risco sua integridade
física. Imagem é tudo!
Olha
por mim, Pai! Olha por mim!
Em breve saberia o que eles
queriam.
39
Edgar saiu do Chiamare
cantando pneu. As lembranças de quando havia se separado de Lurdinha o
atormentavam e se confundiam com a imagem de Delano e Cândida sem roupas.
Encontrava-se transtornado, sem conseguir organizar nenhum pensamento ou
qualquer uma de suas mágoas. As lágrimas deixavam sua visão distorcida e a dor
presente naquele momento o fazia uivar dentro do veículo, como um animal
machucado, acuado por um predador, a infelicidade de uma vida inteira.
Fraco, não fora capaz de
enfrentar o pai e lutar pelo amor de Lurdinha. Anos depois, descobriu que o
filho, o maior presente de sua vida, tinha sido fruto de uma traição de seu
novo amor, condenando-o a um casamento mentiroso, atormentado pelo fantasma
constante da infidelidade, sacramentado pelo próprio filho que voltou do
passado para destruí-lo.
Ouviu os gritos do filho sonhado
e ao mesmo tempo rejeitado a vazar o sofrimento de um homem infeliz.
Para
acabar com você! Botar um chifre no meio das tuas fuças e provar que você é um
merda! Pôr um fim a esse casamentinho feliz que vendiam para o mundo! Isso
mesmo, pai. Vingança! As palavras de Delano reverberavam em seu
coração.
A única coisa que plantou
dentre aqueles que amava: ódio!
Vingança!
E mais gritos.
Precisava, contudo tirar
aquela história a limpo com o pai. Isso mesmo, o Dr. Juca Rebelo tinha muito a
explicar. Passara uma vida inteira deixando-se manipular, acatando todas as
suas vontades e negando a si mesmo e os próprios sentimentos.
Basta!
Estava disposto a jogar tudo
para o alto e tomar as rédeas de sua vida, se é que elas existiam.
Percebeu que uma moto o estava
seguindo, desde a saída da comunidade. Delano! Mas não era o momento de
enfrentá-lo novamente. Este acerto de contas deixaria para depois. Antes, o Dr.
Juca lhe explicaria muitas coisas. Acelerou e procurou fazer algumas manobras,
a fim de despistar o motoqueiro. Este, por sua vez, manteve-se firme em sua
cola. Mais à frente, o sinal amarelo anunciou a possibilidade de escapar do
rapaz, ultrapassando-o exatamente no instante em que a luz ficou vermelha. Em
seguida, uma buzina e som de freios. Uma forte pancada e viu-se cercado pelos airbags, tomado por uma dormência.
Silêncio total e tudo escureceu.
40
O homem de roupas finas e
sapatos italianos caminhou pela sujeira do velho depósito abandonado de um
sítio em Maranguape. Aproximando-se mais do fundo do extenso ambiente ele
pressionou o botão do interruptor em pera e acendeu a única lâmpada existente
ali. Tudo estava coberto de poeira e teia de aranha. Ele bateu as mãos uma na
outra para se limpar e prosseguiu. Segundos depois, estava diante de alguém
sentado no chão, vestido igual a ele, mas encapuçado, com punhos e tornozelos
amarrados. Aproximou-se e retirou o capuz do outro, revelando o rosto de Saulo
Sobreira, suado, cabelo desgrenhado e um olhar de pavor. Thomás, à sua frente,
imprimindo uma expressão de vitória e celebração pelo feito.
Saulo o observou da cabeça aos
pés, de um modo como se o radiografasse. Estava completamente assustado.
— Oi, — disse Thomás sorrindo.
— não me reconhece? — certamente Saulo não acreditava. — Sou o reflexo do seu espelho.
— Diogo?! — chutou, sem muita
convicção.
— Errou. — dando uma
gargalhada. — Sou o fantasminha camarada. — brincou.
Saulo fez uma expressão de
pavor.
— Thomás?!
— Bingo! Estou de volta.
— Mas... como? Você está
morto... eu mesmo...
— Viu-me morrer? — outra
gargalhada. — Foi perfeito, não foi, meu irmão?
— Armou para que nós
pensássemos que estava morto?
— Olha aí o Tico e o Teco
funcionando. — bateu de leve com as curvas dos dedos na testa dele.
Saulo se desviou.
— O que quer? Mais dinheiro? É
isso? Quer se vingar?
— Não. Quero justiça. — Thomás
imprimiu um tom mais sério.
— Sequestrando uma pessoa? É
assim que busca por justiça?
— E vocês foram justos comigo
quando me acusaram de um crime que não cometi e me trancaram por doze anos numa
prisão?
— Acredita mesmo nessa mentira
que você criou?
Thomás o segurou pelo
colarinho.
— Escuta aqui, você está numa
situação muito delicada para continuar insistindo com essa mentira. Não tenho
comigo nenhum gravador, quero que seja honesto pelo menos uma vez e diga a
verdade, que foram vocês que mataram aquela mulher a puseram na minha cama.
FALA! — gritou.
— Você é um psicopata!
Thomás o acertou com um soco.
— Canalha, desgraçado! — outro.
— Fala, diz a verdade! — mais um soco. — DIZ!
— Você... é perigoso — Saulo
falou com dificuldade.
— ESTAMOS SÓ NÓS AQUI! FALA A
VERDADE! ASSUME!
— Você é louco!
Mais outro soco, fazendo-o
cair. Em seguida, Thomás ergueu-se e passou a mão pela cabeça. Segurou o desejo
de chorar. Não podia ser fraco, não agora!
— Você sim é um psicopata! — concluiu
ele — É capaz de morrer segurando essa história absurda. Por que tanto ódio de
mim, hein? Por quê? — novamente o pegou pelo colarinho, colocando-o sentado. — Fala
para mim, Saulo. Por que tanto ódio? Não acredito que a ganância foi o
suficiente para destruir a minha vida dessa forma!
Saulo o olhava de um modo
temeroso.
— Tenho medo de você, Thomás!
Está ficando mais louco!
Thomás sorriu, desistindo. Ele
nunca seria capaz de confessar.
— Muito bem, o plano é o
seguinte: Você vai ficar um tempo aqui.
— Espera aí... O que pretende?
— Fazer com que experimente um
pouco o que passei durante doze anos na cadeia. É simples.
— As pessoas vão sentir falta
de mim, vão me procurar...
— Errou mais uma vez. — alinhou
o blazer, ajeitou o cabelo e limpou uma poeira na calça. — Gostou do meu novo
visual? — usavam a mesma roupa, os dois estavam idênticos.
— O que significa isso?
— Ninguém vai sentir sua
falta, simplesmente porque continuará no Chiamare. Entendeu agora?
— Ei, era você se passando por
mim? As coisas que eu vinha fazendo e não lembrava, era você o tempo todo! — finalmente
tinha caído sua ficha.
Thomás sorriu.
— Uma brincadeira, assustar
você um pouco. Agora sim vai começar a justiça.
— As pessoas vão descobrir.
Não conseguirá enganá-las a vida inteira.
— Mas não vai ser a vida
inteira. — começou a caminhar em círculo, em torno de Saulo. — Apenas o tempo
suficiente para a verdade ser descoberta pela Laura Ponte.
— A Laura? O que ela tem a ver
com isso?
— Tudo.
— Estão juntos nessa?
— O que é isso? Além de bela,
é uma mulher virtuosa. — agachou-se de modo a ficar cara a cara com o irmão. — Ela
está apaixonada por você, sabe? E depois de vocês irem para a cama e ela ser
abandonada, Laura Ponte será a pessoa perfeita para descobrir toda a verdade e
acabar com você.
— Cama? Que história é essa?
— Isso, cama. Vocês já foram
para a cama. Isto é, nós.
— DESGRAÇADO! — Saulo surtou,
tentando levantar.
— O que foi? Também gosta
dela?
— Não tem o direito! Não
encosta a mão nela!
Thomás deu outra gargalhada.
— Olha só, o líder do Chiamare
apaixonado, — ironizou — mas não pode. E os votos?
— DEIXA A LAURA EM PAZ!
— Já aconteceu. O resto será
com ela.
Saulo parecia transtornado.
— A Guilhermina sabe que fui
sequestrado. Qualquer história que contar, ela vai desconfiar.
— Claro que sabe. Por isso
insistiu tanto para que viajasse hoje.
— Como assim?
— A Guilhermina é minha
aliada.
— Não pode ser!
— Não foi bem uma traição a
você. Descobri que ela vinha roubando a comunidade há anos. Então não foi
difícil convencê-la a participar do plano.
O rosto de Saulo estava
aterrorizado.
— Você é pior do que eu
pensava!
— Não mais do que você, meu
irmão. Quero apenas fazer justiça, mas não se preocupe, quando eu tiver
destruído aquilo que tem de mais precioso, sairá daqui para testemunhar a
própria desgraça.
— LOUCO PSICOPATA!
— Disso entende bem, não é?
Vou reaver o que é meu.
Thomás deu as costas e o
deixou.
— VOLTA AQUI, DESGRAÇADO!
VOLTA AQUI!
— Curta um pouco da sua prisão.
— falou sorrindo, sem perder o foco da saída do local.
— EI? O QUE TENHO DE MAIS
PRECIOSO? — o grito de Saulo já veio de longe.
— A imagem. — respondeu num
tom que deu para o outro ouvir.
Justiça será feita!
41
Lucas se pôs de joelhos no
segundo banco, diante do ícone gigante da Santíssima Trindade, no altar da
capela principal do Chiamare. Agora tudo fazia sentido, a hostilidade do pai
destilada em todos aqueles anos, bem como suas brigas intermináveis com
Cândida, o isolamento da família, o desamor inexplicável figurado em cada
gesto, em cada olhar. O abandono discreto à responsabilidade de Saulo Sobreira,
efeito da traição. Edgar fora um homem amargurado, carregando consigo a dor e o
fantasma de ter sido traído pela mulher que amava e o melhor amigo. E Lucas? Ele
era a lembrança de tudo aquilo permanentemente debaixo de seus olhos.
Recordou-se de uma infância
feliz ao lado do pai, antes do mesmo descobrir a verdade. A afetividade e
ternura, o cuidado primoroso e a alegria afastavam a imagem de Edgar daquela
conhecida nos últimos doze anos. Contudo, nesse momento nem sabia mais de quem
era filho. Restava-lhe chorar diante da figura de Deus, talvez conseguisse
amenizar a dor pela rejeição de uma das pessoas que mais amou.
Sentiu um toque leve em suas
costas. Quando ergueu os olhos, teve a imagem da mãe, em prantos.
— Filho... — Cândida mal
conseguia falar. — Me perdoa!
Lucas recolheu o olhar.
— Ele me odiou todos esses
anos... — disse o rapaz, chorando.
Cândida sentou-se ao seu lado
e o trouxe para seu colo.
— Não, não! Ele sempre te
amou, filho! Sempre!
— Nenhuma palavra de afeto,
nenhum um gesto de carinho. Às vezes me perguntava por que haviam me entregado
ao tio Saulo, se não sentiam falta de mim. Agora sei que não.
— Isso não é verdade, meu
querido. Sofri tanto quando você foi para a comunidade. Como se estivessem
tirando um pedaço de mim. A minha parte mais valiosa.
— Mas a senhora não podia
fazer nada, não é verdade? Meu pai a obrigou.
— Todos acharam ser o melhor.
— Para quem? Para a
comunidade? Ou para a vida egoísta de vocês?
Lucas finalmente saiu daquele
ninho e tomou distância.
— Por que não lutou por mim,
mãe?
Houve um instante de silêncio.
— Responde! — insistiu.
— Pela culpa. Por tê-lo
traído.
— Só pensaram em vocês. Em
nenhum instante pensaram em mim, no quanto eu sofreria?
Cândida baixou a cabeça.
Lucas deu-se conta do quanto
todos haviam sido egoístas. Salomão tinha razão, ele não passava de um objeto
para a comunidade. Ninguém se preocupava se estava bem ou feliz, desde que
cumprisse suas obrigações com suas aberrações. Um boneco nas mãos de todos
eles. Desejou sumir dali, da vida de quem o via como um peso, uma lembrança
ruim. Talvez se o fizesse, finalmente alguém pudesse sentir sua falta e amá-lo.
Como fariam sem ele, sem o dom de que tanto precisavam para fazer do Chiamare a
comunidade que era então? Chegava a hora de saber.
Lucas arrancou o broche,
símbolo da obra do peito, mirou para ele na palma da mão e sentiu que ali
residia sua liberdade.
Perdão,
Senhor!
Em seguida, com um uivo,
jogou-o fortemente diante do altar.
Cândida o acompanhou chocada,
como se compreendesse o sentido daquele feito.
Uma dor fina dominou-o pelo
crânio. De repente, imagens de ambulâncias, médicos e Edgar banhado em sangue e
uma rosa caindo se confundiam com o real em sua frente.
— Pai!
— O que foi? O que houve,
filho? — Cândida se antecipou.
— O papai...
Mais imagens: um hospital, a
família chorando, novamente a rosa caindo.
— O que está vendo, Lucas?!
Caiu por sobre os bancos e
Cândida tentou ajudá-lo.
— Filho!
— O papai...
A rosa caindo.
— Pelo amor de Deus, Lucas! O
que está vendo? — Cândida já estava desesperada.
— O papai está morto! — jogou-se
no chão em posição fetal. — Por que, meu Deus? Por quê?
42
As portas do elevador abriram-se
e possibilitaram a visão da sala de estar do hospital para o qual Edgar fora
encaminhado. Desde que havia recebido a notícia do acidente, Thomás entrou numa
espécie de transe, vagando entre o mundo real e as lembranças vivas de quando
jovens e cúmplices num encontro de almas. Justiça não significava tirar a vida
dele, por isso sofreu ao receber a ligação de Delano em desespero, contando
sobre o ocorrido. E justo quando dirigia, ouvindo a música “Bad” do U2, canção
que embalou muitos momentos entre Edgar e ele, antes do Chiamare.
This
desperation / Esse desespero
Deslocation
/ Deslocamento
Separation
/ Separação
Condenation
/ Condenação
In
temptation / Na tentação
Isolation
/ Isolamento
Desolation
/ Desolação
Let
it go / Deixar isso passar
Aquele trecho da letra da
música o acompanhou por todos aqueles anos, reverberando em seu coração a dor
pelo que Edgar lhe havia feito. Mas nunca fora tão vivo diante de perdê-lo, e
por sua culpa!
Logo mais à frente, Pe.
Giuseppe ao lado de Guilhermina e Zica, dona Augusta sentada numa poltrona,
consolando Salomão. Cândida, mais adiante, perto de uma janela, ao lado de
Lucas. Todos, visivelmente abalados.
— Meu filho, ainda bem que
chegou. — Zica se antecipou a ele.
— Saulo, onde esteve? — Foi
Pe. Giuseppe quem perguntou.
Saulo? Por um momento Thomás
havia esquecido completamente que estava vestido de Saulo Sobreira, e que o
havia deixado preso horas antes no cativeiro.
— Vim assim que soube. — respondeu
meio perdido. Não queria continuar com aquela farsa. Precisava sentir sua dor
em paz.
— Ele está muito machucado,
perdeu muito sangue. — Guilhermina parecia fazer questão de maltratá-lo com
aquelas palavras, ditas de forma ríspida, de um modo que só eles dois
compreendiam. Ela sabia!
Zica e Pe. Giuseppe procuraram
resumir as poucas informações de que tinham conhecimento até então, pelo menos
o que Cândida e Lucas lhes haviam contado. Que Delano revelara que era filho de
Edgar e este pegou o carro transtornado, resultando naquela desgraça.
A
história não é tão simples!
Thomás ouviu aquilo sem
conseguir prestar atenção direito nas palavras dos dois, enquanto focava
Salomão e Lucas, mais adiante. Sintonizou principalmente com a dor do sobrinho.
Sem sombra de dúvidas, era ele quem mais estava sofrendo ali, calado, com olhar
perdido. Por mais que soubesse que não era seu filho, experimentava um carinho
tão forte por ele que desejava colocá-lo no colo e tirar dele qualquer tipo de
sofrimento.
Meu
Deus, o que eu causei?
Podia parar com tudo ali,
contar para eles quem era de verdade, acabar definitivamente com aquela farsa.
Tudo fugira de seu controle. Pôr um fim à vida justo de Edgar, não fazia parte
dos planos! Queria fazê-los sentir na pele o que ele sentira quando fora traído
por todos. Porém os meninos não tinham culpa e não poderiam ser alvos de nenhum
respingo de suas dores ou amarguras. Não pensara numa forma de blindá-los.
Falha de um plano torpe!
Thomás,
já tem como refazer sua vida. Por que insistir com essa vingança? — a
colocação de Juscelino se fez viva em sua memória.
Mas
não era vingança, e sim justiça!
Atentar contra a vida de uma
das pessoas a quem mais amou era justo realmente? E se Juscelino estivesse
certo? Por isso, talvez fosse hora de parar.
É
hora de todos saberem que sou Thomás Sobreira!
— Finalmente! — disse
Guilhermina ao ver o Dr. Juca Rebelo entrar na sala, ainda vestido com aparatos
cirúrgicos.
O velho trazia um semblante de
tristeza. Todos se aproximaram, ansiosos por notícias. Thomás não conseguiu dar
um passo sequer.
— É muito grave... — Dr. Juca
embargou a fala. — Houve uma perfuração no pulmão.
Viu Cândida e Lucas se
abraçarem fortemente e depois, silêncio. Não conseguiu ouvir mais nada, e saiu.
Não tinha o direito de estar ali junto daqueles que sofriam pelo estado de
Edgar. Tudo fora sua culpa!
Caminhou desnorteado pelos corredores,
até chegar numa sacada que dava para um jardim no centro do hospital. Nunca
pensou que fosse se arrepender.
— Como ele está? — aquela voz
veio em ecos. — Já sabem notícias dele? — Delano insistiu.
Desgraçado!
Thomás pegou-o pelo colarinho.
— O que fez com ele?
— Nada, nada! Também não
queria que tivesse sido assim! — explicou o rapaz, visivelmente abalado.
Thomás se deu conta do
ambiente o soltou.
— Ele é meu pai! — completou
Delano.
— Colocá-lo na vida dele foi o
pior erro da minha vida! — sentenciou Thomás, saindo daquele lugar.
Precisava respirar e decidir
como seria dali para frente.
43
Laura sentou no banco do
passageiro do carro de Diogo e colocou o cinto, aguardou alguns instantes e deu-se
conta de que o amigo não dera partida no motor, ele estava atento, porém
silencioso, como se quisesse lhe dizer algo.
— O que houve? — sua
curiosidade não lhe permitiu muito mais tempo de silêncio.
Diogo voltou-se inteiramente
para ela, pousando a mão em sua perna, numa atitude de cuidado. Laura identificou
a tensão na face do amigo.
— Está me deixando preocupada,
Diogo.
Ele parecia tomar coragem,
mordeu o lábio, olhou para os lados e finalmente falou:
— Aconteceu um acidente e...
Edgar está no hospital.
Houve uma grande pausa em sua
respiração e a voz travou. Por isso Diogo esteve tão misterioso ao pedir que
lhe acompanhasse a um lugar. Ela não havia compreendido, mas pegou a bolsa e
seguiu-o.
— Onde ele está? — foi a única
coisa que conseguiu articular.
— Esse hospital não fica longe
daqui. — disse ele.
— Vamos!
Não tinha tempo a perder.
— Foi o que pensei. Está
preparada?
Preparada? Para finalmente
enfrentar seu passado de cara e assumir a verdadeira identidade? Estar com
todos que destruíram sua vida? Inúmeras muralhas foram construídas ao longo dos
últimos vinte anos, a fim de que pudesse sobreviver em meio ao pouco que
restou. Precisou abandonar cedo a ingenuidade de uma adolescente cheia de
sonhos e conhecer a dureza de um novo mundo arquitetado especialmente para que
pudesse permanecer viva, desconsiderando as feridas na gestação prematura de
uma nova mulher. Chegava o momento de implodir estas muralhas que a separara do
universo que fora obrigada a esquecer. Sabia que seria certamente mais difícil
do que seu último encontro, há duas semanas, com o próprio Edgar. As lembranças
daquele momento fizeram-se vivas em sua memória.
—
Como você está? — Edgar procurou saber, meio sem jeito.
Como
você está? Depois de vinte anos era isso que tinha para lhe perguntar? Ela
sonhara com aquele momento uma vida inteira, esperava que fosse diferente.
—
Como vê, muito bem. — respondeu, abrindo os braços, como se se apresentasse.
Edgar
baixou a cabeça, mirou as chaves na mão, fez um bico com os lábios e disse.
—
Quando soube que era você a jornalista responsável pela matéria do Chiamare,
eu...
—
Pensou que todos iam descobrir a verdade? — interrompeu-o.
Ele
fez que não com a cabeça e sorriu.
—
Pensei que nós pudéssemos nos reaproximar.
Foi
quando Laura o percebeu lacrimejando.
—
Simples assim? — ironizou ela.
—
Sei lá, pensei que pudéssemos passar uma borracha em tudo...
—
Borracha? — novamente o interrompeu. — Vocês acabaram com a minha vida! E agora
vem me falar de apagar tudo, como se nada tivesse acontecido?
Não
compreendia como podiam ser tão frios!
—
Pera aí, Laura, quem te expulsou não fui eu. — argumentou.
—
Sim, claro, foi seu paizinho querido! — sua fala trazia o tom de indignação,
travado em na garganta por todos aqueles anos. — E você, o que fez para
impedi-lo?
—
Você conhece o Dr. Luca Rebelo.
—
Muito! Melhor que qualquer pessoa. — fazia um esforço para não chorar, mas
sucumbiu ao instinto. — Um homem desprovido de amor! Seco! Duro! Incapaz de um
gesto de afeto!
—
Ele mudou muito nesses últimos vinte anos.
—
Mudou? — Laura bateu palmas. — Que bom para vocês que precisam conviver debaixo
da asa imunda dele.
—
No fundo ele é um homem bom.
—
Bom? Ele é um Hitler!
—
Também não é assim, Laura.
Ódio
em vê-lo defender aquele homem.
—
Não sei se você é burro, covarde ou não sabe mesmo do que ele é capaz. Eu sei.
Por isso ele me expulsou daqui. Mas antes, fui espancada, trancada como um
bicho! — abraçou a si mesma, em prantos. — Passei anos para me livrar dos
pesadelos que ele me deixou!
—
Eu não tinha noção! — Edgar chorou.
—
Ele nos separou e de todos a quem eu amava. E não fez nada!
A
covardia de Edgar era o que mais doía. Eles se amavam tanto, eram tão cúmplices
e não fora capaz de mover um músculo para defendê-la, impedi-lo de machucá-la e
expulsá-la de suas vidas.
—
Eu não podia! — argumentou ele.
—
Por pura covardia! — replicou Laura. — Por isso vive até hoje debaixo da asa
dele, mantendo esse casamento de mentira.
—
Você não sabe nada da minha vida — justificou, enxugando as lágrimas.
—
Não, não sei mesmo porque fui expulsa dela, há vinte anos, como um cão
sarnento. Fui expulsa da sua casa como uma prostituta. Foi disso que ele chamou
e vocês nada fizeram.
—
Você só traz amargura dentro de si.
Amargura?
O olhar tosco de um covarde!
—
Vai embora daqui, Edgar! Essa história tem dois lados. E você sempre definiu
qual era o seu.
—
Acho que pode mudar de ideia e ver tudo isso com outros olhos.
—
SAI DAQUI! — Laura se surpreendeu com o próprio grito. Doía muito vê-lo
desconsiderar todas as suas dores. Amava-o e não queria romper com a
sacralidade daquele sentimento.
Houve
um longo momento de silêncio. Edgar a observava com pesar. Em seguida, deu as
costas e abriu a porta.
Laura
desejou tanto que ele voltasse e a abraçasse. Pensou em pedir aquilo e sentir
mesmo que por um instante o calor do seu afeto, o colo que lhe rasgou a alma de
saudades em todos aqueles anos distante. Mas se o fizesse, estaria, como ele,
desprezando as próprias marcas violentas de seu passado, compactuando com sua
covardia. Era ele quem tinha que tomar a iniciativa. Isso, se Edgar decidisse
abraçá-la, ela o acolheria com todo o seu amor.
Ele
disse, de costas. — Senti muita saudade. — mais um instante de silêncio e
depois. — Quero que seja muito feliz. — deu mais um passo e bateu a porta, sem
voltar-se a ela.
Laura
abraçou novamente a si mesma e despencou no sofá, num choro dolorido. Não era
isso que queria ouvir após tantos anos. Pensou que aquele reencontro poderia
ser diferente e até o imaginou algumas vezes, ensaiou falas e gestos. Porém a
covardia de Edgar não permitira que eles se reencontrassem de verdade.
Por isso, preparada? Não! Mas
era preciso seguir.
— Como você mesmo disse,
necessito juntar meus pedaços. — justificou, com o coração apertado.
Diogo apertou sua mão com
força e sorriu.
— Vou estar com você.
A coragem transmitida por ele
era tamanha que poderia ali enfrentar o mundo inteiro.
O amigo finalmente ligou o
carro, engatou a marcha e seguiu rumo à batalha que Laura travaria, vinte anos
depois, mas fortalecida na identidade de uma nova mulher, refeita nas próprias
feridas.
44
Thomás recebeu uma xícara de
café de uma atendente no balcão da lanchonete, no hospital. Depois se sentou
solitário a uma mesa, com todo o peso da culpa pelo que havia acontecido a
Edgar. Despejou um sachê de açúcar no líquido e usou uma palheta para mexê-lo,
no sentido anti-horário, devagar, como se com aquele gesto pudesse voltar no
tempo e preservar a vida do melhor amigo. Em seguida tomou um gole e pronunciou
o que vinha sendo reverberado em seu coração desde que chegara ali.
— Um milagre.
Isso, precisava de um milagre!
O que lhe restava fazer para ver o amigo sair daquela situação com vida? Rezar? Há doze anos não conversava com Deus,
exceto esbravejar ou xingá-Lo, indignado por tudo o que tinha acontecido no
passado. Nunca mais havia lhe pedido nada, vivendo independentemente de
qualquer força superior. Aquilo era tudo, o próprio desejo passou a ser seu
guia. Isso era justiça!
Novamente se via pequeno,
incapaz, carente desse aconchego, do colo de Deus. Podia pedir simplesmente,
mas não se via no direito. Ou tinha direito mais que qualquer pessoa. Talvez se
pedisse, Ele o ouvisse, por devê-lo. Entretanto, pedir significava uma
remissão.
Não! Foram doze anos de
sofrimento. Não era tão simples.
— Satisfeito com o resultado
de seu plano? — a voz de Guilhermina o resgatou de seu dilema.
— Do que está falando? — procurou
ele centrar-se de volta em seu foco.
— De sua vingança. — Guilhermina
foi categórica, apoiando-se na cadeira.
— Não se trata de uma
vingança, mas de fazer justiça. — argumentou fingindo uma calma não real, após
mais um gole do café.
— Primeiro o sequestro do
Saulo, agora esse acidente, pondo em risco a vida do Edgar. Qual será o próximo
passo, hein? Você vai destruir a todos?
Thomás olhou para o ambiente,
assegurando-se de que ninguém a estava ouvindo.
— Cuidado para não pôr nosso
plano a perder. — repreendeu-a com a mesma tranquilidade aparente.
— Nosso plano?! — ela aumentou
o tom.
— Cala a boca! — ordenou. — Enlouqueceu?
— Você é um louco psicopata!
— E você uma vagabunda,
estelionatária, mentirosa. Vamos ver quem tem mais características?
— Vou lá em cima agora e conto
toda a verdade. Vamos ver se continuará com essa empáfia depois que todos
souberem quem é de verdade. Inclusive a polícia vai adorar saber que Thomás Sobreira
está bem vivo e sequestrou o próprio irmão. — Guilhermina deu as costas.
— Ah, também que você é minha
cúmplice.
A mulher parou onde estava.
— E mais, que desviou dez
milhões de reais da obra nesses últimos anos. — Thomás completou. Ela voltou-se
a ele.
— Não pode continuar com essa
chantagem.
— Tenho provas, minha querida.
— deu o último gole e pousou a xícara no pires. — Você está em minhas mãos. —
Guilhermina engoliu em seco. — Entende essa linguagem? É assim que vocês agem,
não é verdade? Você e o crápula do meu irmão. Afinal, como conseguiram manter-me
preso durante os doze anos, sem que eu conseguisse usufruir do direito de
condicional?
— Como ele está? — rendeu-se.
— Melhor do que devia. Vocês
vão pagar por tudo o que fizeram. E por falar nisso, já providenciou a
transferência do dinheiro para a conta da comunidade?
Guilhermina hesitou.
— Isso vai levar um tempo.
— Você vai devolver tudo o que
roubou do Chiamare. Vai ficar sem um tostão. E não tente me enganar, como fez
com o tolo do meu irmão.
Guilhermina se debruçou sobre
a mesa, ficando cara a cara com ele.
— Não sabe nada sobre a minha
vida, seu desgraçado! Eu amo o Saulo!
— E o roubou por quê?
— isso não é da sua conta!
— Motivada pela rejeição.
Thomás viu ódio em seus olhos.
Novamente olhou para os lados e depois para ela. Guilhermina pareceu cair em si
e se recompôs. Ele, no entanto, sentiu vontade de destruí-la ali mesmo. Hoje
bem sabia da ação daquela mulher para que ele fosse mantido na prisão por todos
aqueles anos. Bastava um telefonema e a fiel secretária do Chiamare estaria
perdida, presa por estelionato. Finalmente a justiça para ela!
Contudo, se o fizesse agora,
Guilhermina revelaria sua identidade e acabaria com seu plano. Tudo ao seu
tempo!
— Melhor subir e juntar-se aos
outros, por enquanto. — aconselhou-a.
Ela o mirou como se o quisesse
matar, respirou fundo e saiu.
— Sua hora está chegando,
Guilhermina. — disse para si mesmo, mexendo a palheta na xícara vazia.
45
Lucas observou o movimento dos
carros no entrelaçar de faróis, na Av. Santos Dumont, do terceiro andar, da
vidraça da sala de espera no hospital. Tantas outras vidas desenhando uma
dinâmica distante e ao mesmo tempo tão perto fisicamente dos sentimentos
experimentados naquele ambiente, não somente por sua família, mas pelas outras
também presentes, partilhando medos, dores e esperanças semelhantes. A noite já
havia caído e a mesma angústia que o acompanhara durante o dia se fazia firme
naquele instante.
— Talvez fosse melhor ir em
casa, descansar um pouco. — a voz que lhe dera ordens a vida inteira, agora o
resgatava de seu isolamento.
Lucas olhou para a mão de
Saulo em seu ombro e desejou afastar-se. Nada, nem ninguém o tirariam de perto
de seu pai! Nem mais uma ordem de Saulo seria cumprida dali em diante.
Sentia-se farto do Chiamare, das regras, do autoritarismo de Saulo Sobreira.
— Não! Ficarei aqui até o fim!
— procurou ser ao mais firme que pôde.
Saulo o laçou com o braço e se
pôs diante dele.
— Você está cansado, Lucas.
Fico preocupado.
Pela primeira vez sentiu na
voz de seu líder espiritual um tom de ternura e cuidado. Parecia outra
pessoa.
Você
é filho do Thomás, ou melhor, do Saulo. Quer dizer, sei lá de quem é filho! A
tua mãe é uma vagabunda e transou com todo mundo na festa do nosso casamento! Como
se a revelação de Edgar tivesse acontecido naquele exato momento.
Filho
dele? Por isso o estava tratando assim?
— Sai de perto de mim! — precisava
ser leal ao seu verdadeiro pai.
Saulo sorriu, desconsertado.
— Por que está me tratando
dessa forma?
— Meu pai está lá dentro! — justificou
de forma categórica, para que não houvesse dúvida.
— Sim, está. — concordou
Saulo, surpreso, como se não compreendesse a afirmativa.
Poderia pôr tudo em pratos
limpos, dizer para ele que não retornaria mais ao Chiamare, não cumpriria mais
suas ordens, nem seguiria porcaria de missão nenhuma! Seria um grito de
liberdade. Finalmente tomaria as rédeas de sua vida. Talvez Edgar sentisse
orgulho.
Olhou para a família a alguns
metros. Seria justo com todos naquele mesmo dia? Causaria mais outro
transtorno, enquanto aguardavam notícias da cirurgia de Edgar. Melhor seria
esperar e anunciar em outro momento, mais adequado. Pelo menos por enquanto,
não precisaria seguir nenhum caminho determinado por aquele homem.
Desvencilhou-se do braço dele
e tomou distância.
— Quero estar perto do meu
pai, só isso. — explicou, procurando conter a repugnância.
— Tudo bem, quero apenas
ajudar, te ver bem. — Saulo declarou de um modo tão terno que o confundiu.
Quem
é esse homem afinal?
— Nesse momento, o Edgar
precisa de todos nós, unidos. — complementou Saulo. Depois deu as costas e
saiu.
Precisa
de todos nós! Precisa de mim! Aquilo se repetiu em ecos em
sua cabeça.
Organizou suas forças, cerrou
os punhos, contraindo os músculos, experimentou a forte pontada na nuca e
apoderou-se do próprio dom de curar. Aprendera a usá-lo nas ruas, com os
desabrigados e nas missas do Chiamare. Hora de salvar o próprio pai.
Em segundos, as luzes do
ambiente começaram a piscar vertiginosamente, um vento forte invadiu a sala
assustando a todos, as portas móveis que separavam aquele cômodo da UTI foram
jogadas de um lado para o outro. De repente, o vidro da máquina de
refrigerantes explodiu.
— LUCAS! — Foi Cândida quem
gritou, partindo em sua direção.
As outras pessoas na sala,
além da família, pareciam aterrorizadas.
— Meu filho, o que houve? — Cândida
procurou saber, nervosa.
Saulo e Pe. Giuseppe também já
estavam ao seu lado, procurando ajudá-lo.
Ninguém compreendia? Precisava
fazer alguma coisa por seu pai!
As imagens de Edgar na sala de
cirurgia e do monitor cardíaco se confundiam com o que via em sua frente. O som
dos bipes pareciam que estourariam seus tímpanos.
Três vidraças também
explodiram diante de todos.
— Filho, o que está
acontecendo?! — Cândida insistiu.
— Lucas! — Pe. Giuseppe
interviu.
— ASSASSINO! — gritou Salomão.
A ventania e as imagens
cessaram, o alívio físico foi imediato. Porém aquele grito o machucou
profundamente.
— Você matou nosso pai! — afirmou
o irmão.
— Salomão, pare com isso! — Cândida
exigiu.
— Vocês passaram a vida
inteira protegendo esse monstro. Olha no que deu!
— Pare com isso, meu filho. — pediu
D. Augusta a Salomão.
— O papai morreu por causa
dele, de desgosto! — complementou.
— SALOMÃO! — Gritou Saulo.
— Vocês todos o protegem! — desabafou
o rapaz — Ele é um louco desequilibrado! Olha o que ele fez aqui! — Apontou
para o ambiente, apresentando o estrago.
As pessoas que não pertenciam
à família acompanhavam tudo chocadas.
— Está piorando as coisas, meu
filho! Por favor! — implorou Cândida.
Assassino!
Você matou nosso pai! O papai morreu por causa dele, de desgosto! Ele é um
louco desequilibrado!
Lucas olhou para cada um ali
presente e enxergou pena em seus olhos. Não mais ouvia os argumentos com
Salomão, nem as acusações do irmão. Por mais que tentassem defendê-lo, o outro
tinha razão. Uma tristeza profunda o abraçou. Por mais que se sentisse exausto
fisicamente, necessitava ir embora, livrá-los de sua presença demoníaca.
Tomou coragem e correu para
longe dali.
~
Thomás viu Lucas sair correndo
do hospital e precisou aguardar na roleta para que fosse liberada sua passagem
à recepção. Em seguida, foi atrás do rapaz. Havia começado há pouco uma forte
chuva e teve dificuldade em localizá-lo ao chegar ao estacionamento, até vê-lo
cruzar o portão que dava para a Av. Santos Dumont. A tempestade não seria
empecilho a estar com o filho. Na verdade, nunca acreditou na última história
contada por Saulo sobre a paternidade do jovem. Poderia ele ter mentido, como
tantas outras vezes. Isto é, existia a chance de Lucas ser seu filho. Aquilo o
enchia de alegria.
Seguiu apressado pela calçada,
cruzando a visão com os faróis dos veículos que cortavam a chuva na avenida. Já
começava a sentir a calça molhada grudando na perna e as meias ensopadas dentro
dos sapatos. O blazer o protegia da violência das águas caídas dos céus.
Entretanto, enxergava com dificuldade diante do temporal, procurando
identificar o rapaz entre as poucas pessoas que se aventuravam naquele momento
por algum motivo a estarem na chuva.
Lucas tinha acabado de
atravessar a rua e corria por entre os carros no estacionamento de um
supermercado do outro lado. Por pouco Thomás não fora atropelado ao fazer o
mesmo, assustando-se com o cantar dos pneus, a luz alta dos faróis, impedindo
parcialmente sua visão e o som da buzina, à sua frente. Mas nada o deteria.
Prosseguiu à jornada com mais cautela, conseguindo chegar ao seu destino. Tinha
a desorientação do rapaz a seu favor e antes que o mesmo atravessasse a outra
rua, agarrou-o pelo braço.
— LUCAS!
— ME DEIXA EM PAZ! — gritou
também o jovem, tentando se desvencilhar.
Nada o faria soltá-lo.
— Nós precisamos estar juntos
nesse momento. — argumentou Thomás.
— Não viu o que o Salomão
disse? Sou o responsável pelo meu pai estar naquele centro cirúrgico!
Suas lágrimas se confundiam
com os fortes pingos da chuva. Thomás enxergou desespero no olhar daquele
menino, do seu menino. O tomou nos braços num impulso, inicialmente contra sua
vontade. Queria protegê-lo, diminuir um pouco a dor tão aparente e sem
escrúpulos, inocente frente à verdade. Se existia um culpado, era ele, o
próprio Thomás. Havia descoberto a existência de Delano e o trouxera com seu
desejo ardente de vingança para junto deles, fazendo-o perder o controle do
plano de justiça tão bem arquitetado durante aqueles doze anos. O que acabou
por causar aquela tragédia.
O que mais lhe doía, naquele
momento, era não ter pensado numa forma de proteger seus filhos.
— Eu sou o culpado! Eu sou o
culpado! Eu sou o culpado! — Lucas repetia em prantos em seus braços.
— Não! Você não tem culpa de
nada! — viu-se tomado também de choro, movido pelo arrependimento em provocar
seu sofrimento.
— Foi desgosto, o Salomão
falou! — parecia uma criança chorando.
Thomás o levou até o abrigo da
parada de ônibus, a poucos metros, na tentativa de livrá-lo da chuva. Precisava
fazer algo que pusesse um fim àquela dor. Talvez contar-lhe a verdade, revelar
sua verdadeira identidade e o plano fracassado de justiça para Edgar. De todos,
Lucas poderia ser quem melhor ouviria aquilo e até o ajudaria a encontrar uma
saída para contornar a situação. Um aliado, o próprio filho.
Tomou certa distância do
rapaz, o suficiente para lhe fitar e segurou-lhe o rosto para que ele pudesse
encará-lo.
— Escuta... — respirou fundo,
criando coragem. — Preciso te contar um segredo.
— Por favor... — tinha
dificuldade em falar devido o choro. — Se você vai dizer que é meu pai, não
diz! Por favor, não diz! Me deixa continuar pensando que meu pai é ele!
Thomás sentiu tanta pena, que
simplesmente o abraçou e chorou junto com ele. Estava errado mais uma vez.
Lucas não tinha a menor estrutura para ouvir qualquer outra revelação naquele
instante. Em seguida, percebendo-o trêmulo, tirou o paletó e o cobriu. Desejou
tanto estar com aquele menino e agora tinha a oportunidade de acalentá-lo,
protegê-lo, fazê-lo sentir-se cuidado.
Agora tudo podia acabar. O
plano podia acabar!
Acabou!
46
Laura entrou naquele hospital
segurando forte na mão de Diogo. Nunca pensou que fosse obrigada a se deparar
com seu passado de uma forma tão violenta. Não fosse pela presença amiga e
amorosa daquele homem e seu dom, devastando todos os medos que a impediram de
voltar, jamais estaria ali, com a possibilidade de se reencontrar consigo mesma
e o amor que deixara para trás.
Ao sair do elevador, os dois
se deparam com uma mulher, de costas, conversando com alguém.
— É Cândida. — anunciou Diogo.
— Vamos falar com ela.
Quando a mesma abriu caminho
ao ouvir seu nome, Laura teve a figura do Dr. Luca Rebelo materializada diante
dela. Os dois se encararam como há vinte anos.
Reencontrar
com os seus e juntar esses pedaços apartados pelo ego. Recordou-se
imediatamente do convite de Diogo, em São Paulo, mas ele estava errado. Foram apartados por aquele monstro!
Largou finalmente a mão do
amigo e deu um passo em direção ao passado tão bem guardado. O velho médico fez
o mesmo. De repente estavam um diante do outro. Ela, disposta a enfrentá-lo e a
qualquer pessoa que se atravessasse em seu caminho. Ele, como se a impedisse de
seguir, como feito há vinte anos, quando pôs um fim em seu grande amor e a
expulsou de Fortaleza.
— O que faz aqui? — foi dele a
primeira fala.
Não era o que esperava ouvir
depois de tanto tempo. Aquilo, no entanto, jamais a abalaria.
— O que o senhor acha? O Edgar
estar entre a vida e a morte.
— Isso não lhe diz mais
respeito.
Ele falava com uma frieza que
a chocava.
— O senhor acha mesmo que eu o
risquei da minha vida?
— Pois devia.
— Não é momento para isso, Dr.
Juca. — Diogo interviu. — Seu filho está lá dentro e Laura não tem como ficar
longe nesse instante.
— Não vou te perdoar, Diogo.
Você foi o responsável por trazê-la de volta. — sentenciou o médico.
— O que está acontecendo aqui?
— Cândida procurou se inteirar. — O que Laura tem a ver com nossa família?
— Não se meta, Cândida. — Dr. Juca
advertiu. — Nós já resolveremos esse mal entendido.
— Mal entendido? — Laura se
indignou. — O senhor acha mesmo que pode mandar nas pessoas? Pode controlar a
vida de todos?
— Faço o possível para manter
a ordem e a honra de minha família. — explicou ele.
— O senhor não pode nos
impedir de entrar. — disse Diogo.
— Posso sim. Sou médico, tenho
influências aqui dentro e vou chamar a segurança.
— Por que isso, Dr. Juca? — Cândida
parecia pasma.
— Não queremos a especulação
da imprensa aqui dentro. — justificou ele.
Imprensa?!
Mais
uma de suas artimanhas. Compreendia que o Dr. Juca Rebelo justificaria sua
atitude arbitrária alegando que ela era uma repórter e precisava defender a
família do assédio jornalístico. Uma bela desculpa, como todas as mentiras e
atrocidades cometidas por ele em nome da honra familiar, não fosse pela
determinação de Laura em enfrentar de uma vez por todas o poder aterrorizante
daquele homem. Todos o temiam, exceto ela!
Dr. Juca Rebelo não lhe
impunha mais medo como há vinte anos. O que no passado a fizera largar tudo,
abrindo mão das pessoas que amava, de sua vida, da própria felicidade, agora a
fortalecia e proporcionava-lhe a coragem necessária para enfrentá-lo e permanecer
ali.
Poderia revelar toda a verdade
e destruir definitivamente a empáfia daquele homem que manipulava e determinava
de um modo tão frio a vida daqueles a quem dizia amar. Diogo e Cândida seriam
os primeiros a saberem, depois o restante da família. Se ele insistisse, o
hospital e o mundo conheceriam naquele instante quem era o verdadeiro Dr. Juca
Rebelo. Tinha como acabar com ele, transformá-lo em pó, como o próprio fizera
com sua vida.
Não
é o momento, Laura! Ouviu a voz de Diogo em sua consciência. Quando fitou o amigo, ele a observava
de forma terna.
— Bom, nós vamos ficar aqui
aguardando notícias de Edgar. — decidiu ela.
— Vão embora daqui, antes que
eu chame a segurança. — advertiu Dr. Juca.
Velho
teimoso!
— O senhor não vai chamar
segurança coisa nenhuma, nem muito menos nos mandar embora daqui! — determinou
Laura, firmemente. — Não sou mais aquela menina que o senhor expulsou de
Fortaleza, há vinte anos! — experimentou uma alegria interna ao dizer aquilo.
— Por favor, o que está
acontecendo? Nós estamos num hospital. — insistiu Cândida, parecendo chocada
com tudo aquilo.
— Saia daqui! — ordenou o
velho Juca.
Laura deu mais um passo a
frente, colando o rosto no dele.
— Tome qualquer atitude de me
tirar daqui e todos saberão o que o senhor fez no passado. — anunciou impávida.
— Amanhã mesmo a verdade sobre Juca Rebelo estará estampada em todos os
jornais. O que me diz?
O homem hesitou, com ódio nos
olhos, deu um passo para trás e abriu caminho.
Sentia-se feliz e orgulhosa
por si mesma! Os pedaços de sua alma começaram a ser apanhados.
47
Jamais havia se sentido tão
acolhido por Saulo daquela maneira. Lucas deitou no colo de seu líder
espiritual, na parada de ônibus, quase em frente ao hospital, e experimentou o
cuidado num toque leve em sua cabeça. O paletó do Pescador de Vidas o
resguardava do frio enquanto observava a chuva cair e lavar suas dores. Por
mais que não o reconhecesse, preferiu nada falar, a fim de que aquele momento
pudesse se eternizar. O silêncio os uniu em cumplicidade.
Até que o som do monitor
cardíaco de Edgar voltou a estremecer seus tímpanos, forçando-o a levantar
daquele aconchego num impulso.
— Lucas, o que houve? — Saulo
procurou saber, assustado.
As imagens da máquina o
confundiram com a realidade à sua frente, bem como o atendimento de duas
enfermeiras aflitas a seu pai na UTI. A velha e conhecida dor se alastrou pelo
crânio de Lucas e ele pôs-se de pé, deixando cair o blazer que o cobria no chão
molhado.
— Lucas? O que está havendo? —
insistiu Saulo.
Ele podia ouvir os batimentos
cardíacos de Edgar ficando cada vez mais fracos e um médico chegando à
urgência.
— Meu pai... — não sabia o que
falar. As imagens eram quase palpáveis e ele podia sentir o cheiro de éter.
— O que está vendo? — Saulo
procurou ajudá-lo.
— Meu pai está morrendo!
Sentiu no abdómen a mesma dor
que naquele instante levava consigo a vida de Edgar. Se não fosse por Saulo
segurá-lo, despencaria no chão. Quando o monitor cardíaco emitiu um som
contínuo.
— NÃO! — gritou, nos braços de
Saulo.
— Calma, estou aqui! Calma!
— Meu pai!
Precisava fazer algo,
salvá-lo, redimir-se. Talvez o pai tivesse respondido ao fato dele estar ali
acolhido no colo de seu provável genitor. Isso, uma resposta à sua traição de
filho. Não tinha o direito de macular a memória de Edgar como pai. Por isso,
desprendeu-se dos braços de Saulo e atravessou a rua.
— LUCAS! — gritava Saulo
atrás.
Caminhou de forma apressada,
mas estendo os braços, com as mãos abertas em seu comprimento lateral. Uma
caminhonete brecou quase em cima dele. Em seguida, outros veículos foram
parando de forma brusca. Certamente ninguém compreendia o que estava
acontecendo. Que força era aquela capaz cessar o trânsito nas duas vias ao
mesmo tempo? A força do desespero!
— LUCAS! — insistiu Saulo.
Ele, contudo, entrou no
hospital com a mesma determinação com a qual parara o trânsito lá fora. A
recepcionista tentou impedi-lo ao perceber que passaria sem fazer o
procedimento com o cartão na roleta. Papeis voaram do balcão, quadros saltaram
da parede e as pessoas ficaram assustadas. Lucas atravessou o ambiente sem
nenhuma dificuldade. Sua força, seu dom abriria todo e qualquer caminho até o
pai.
Saulo não tivera a mesma sorte
e ficara preso na recepção, gritando por ele.
Precisava tentar pela última
vez salvar o pai. Se não conseguisse, nunca mais usaria esse dom.
Ao sair do elevador, as
imagens do pai sendo ressuscitado com o desfibrilador invadiram seu campo de
visão, fazendo-o correr até a sala de espera onde todos aguardavam notícias.
Por último a imagem do avô retirando a máscara e balançando a cabeça
negativamente, com uma expressão nítida de dor e lamentação.
— PAI! — gritou em prantos,
sendo impedido de entrar na UTI por Diogo e Pe. Giuseppe.
Todos estavam visivelmente
assustados com seu desespero. Até que o avô saiu da UTI. O velho Dr. Juca
Rebelo vinha com olhos marejantes e uma tristeza reveladora.
— Ele não resistiu. — disse,
sem se alongar.
Tudo estava terminado!
Enquanto todos se anteciparam
ao médico, Lucas foi deixando aquele lugar, num silêncio ensurdecedor. Agora
via o pai com ele em seu colo, ainda menino. Podia sentir a mesma ternura,
presença, cuidado e proteção de anos antes.
Meu
príncipe! A voz de Edgar o chamando reverberava em seus ouvidos. O
pai parecia amá-lo tanto antes de saber da verdade, transformando-se por
completo de uma figura amorosa à irascível.
Jamais esqueceria aquele
sorriso que já não via há doze anos.
Lucas saiu do prédio debaixo
de chuva, deixando para trás a culpa por não ter sido o filho que Edgar
gostaria de ter tido. Como se tivesse morrido junto com o pai. Como ele, nunca
mais ninguém o veria.
48
Thomás caminhou apressadamente
no meio da chuva até o carro, tentou destravar as portas e não conseguiu.
Completamente encharcado e com muito frio, impacientou-se e bateu algumas vezes
no veículo com o próprio controle, até o aparelho desligar o alarme. Em
seguida, entrou na caminhonete, ligou o som e passou alguns arquivos do cartão
USB, até a melodia esperada se propagar no volume máximo dentro do carro.
Depois, recostou-se no banco e estendeu os braços até o volante para se apoiar,
fechou os olhos e procurou sentir cada palavra proferida pelo Bono Vox naquela
música tão conhecida.
If you twist and turn away / Se
você se contorce e se vira
If you tear yourself in two again /
Se você se quebra em dois novamente
If l could, yes l would / Se eu
pudesse, sim eu faria
If
l could, l would / Se eu pudesse, eu faria
Let
it go / Deixaria isso passar
Surrender
/ Rendido
Dislocate
/ Deslocado
If
l could throw this / Se eu pudesse jogar essa
Lifeless
lifeline to the Wind / Linha de vida sem vida ao vento
Leave
this heart of clay / Deixar esse coração de barro
See
you walk, walk away / Ver você passar, ir embora
Into
the night / Na noite
And through the rain / E pela chuva
Into the half-light / Na meia luz
And through the flame / E pela
chama
Soltou um longo grito que mais
parecia um bicho ferido na eminência da própria morte. Soubera há poucos
minutos do falecimento de Edgar e percorreu os corredores do hospital
desnorteado, a fim de sair dali o mais rápido que pudesse. Como se o ar não
conseguisse chegar aos seus pulmões e um choro triste o acorrentou
violentamente na dor pela morte do amigo.
If
l could thren myrelf / Se eu pudesse através de mim mesmo
Set
you spirit free / Libertar seu espírito
I’d
lead your heart away / Eu guiaria seu coração afora
See you break, break away / Ver você quebrar, quebrar afora
Into the light / Na luz
And to the day / E para o dia
To let it go / Deixar isso passar
And
so to fade way / E então desaparecer
A letra da música “Bad” nunca
fora tão fidedigna aos seus sentimentos como naquele momento. Entretanto,
impossível passar ou desaparecer aquela força voraz que o imobilizava,
tornando-o pequeno diante da culpa.
Recordou-se de quando Edgar
chegara ao grupo de jovens da paróquia do Pe. Giuseppe, apesar de forçado pelo
pai, trazia certa esperança de se livrar do vício. Uma sintonia estabelecida no
primeiro encontro. Inteligente, bem-humorado, com um jeito descolado e um
charme que enlouquecia todas as garotas. Conquistou-o de cara, até fazê-lo
findar o noivado com Cândida. Thomás se viu pela primeira vez completamente
apaixonado por um homem. Por mais que relutasse, não tinha como fugir ou se
esconder de tão fortes sentimentos. Tudo parecia recíproco, por mais que não
fosse explicitado, como um segredo só deles, até que o amigo pediu a mão de
Cândida em casamento, após o nascimento de Salomão.
Até hoje acreditava que a mãe
de seu filho tinha aceitado casar-se com Edgar por ter sido preterida na relação,
mesmo que ela negasse veementemente. Afinal, fora honesto e quando romperam,
revelou-lhe por quem estava apaixonado. Inicialmente, Cândida sentiu-se traída
e desejou que ele sofresse tanto quanto ela naquele momento. Meses depois,
casou-se com o próprio rival.
Quanto a Edgar, este negou
qualquer envolvimento naquela mesma perspectiva frente à declaração de Thomás.
Por anos, não compreendia o que de fato havia acontecido entre eles, se fora
seduzido pelo amigo em sua imaturidade de ver todos aos seus pés, se entendera
tudo errado e acabara por construir uma relação mentirosa com base numa ilusão,
ou se de fato viveram um momento de encontro e sintonia de sentimentos, embora
o outro não assumisse e depois tenha se descoberto apaixonado por Cândida.
Sonhos e planos desfeitos e a
decepção eminente, motivando Thomás ao voto de castidade na obra. No entanto,
alimentou por anos a esperança que Edgar um dia reconhecesse o próprio
sentimento por ele e pudessem, juntos, ser felizes.
Por sua culpa e obsessão, perdera
o grande amor de sua vida!
Essa
não foi a justiça que eu busquei!
Nenhum plano fazia mais
sentido. A decisão estava tomada!
49
Tão logo amanheceu Thomás
pegou o carro e dirigiu até o sitio em Maranguape. Afastou o pesado portão de
madeira do galpão o suficiente para passar de lado e já avistou a figura do
irmão, deitado no chão ao fundo, em posição fetal. Caminhou até ele, enquanto o
mesmo ergueu um pouco a cabeça, como que para identificar quem era. Estava
imundo, conseguira se livrar do blazer e da gravata, e tinha a camisa azul
clara suja e amassada com botões entreabertos, algemado e preso a uma corrente.
— Como você está? — Thomás
procurou saber.
Saulo pôs-se sentado e
respondeu.
— O que acha?
Desejou libertá-lo naquele
instante e acabar logo com aquilo. Encontrava-se tão fragilizado pela tristeza
que certamente o irmão já havia percebido. Agachou-se diante dele, apoiado com
o braço em um dos joelhos e o cotovelo na outra coxa.
— Saulo, aconteceu uma coisa
terrível.
O outro arregalou os olhos.
— O que você fez? Qual a
atrocidade dessa vez?
— O Edgar.
O irmão engoliu a saliva e
demorou a perguntar, como que com receio do que ouviria.
— O que aconteceu com ele?
— O Edgar está morto!
Anunciou aquela notícia com
tanto pesar que não segurou o choro. Saulo balançou a cabeça de um lado para o
outro, meio perdido, ficando visivelmente abalado.
— O que houve? Como foi isso?
— Um acidente. — a voz estava
embargada — Ele cruzou um sinal vermelho.
Saulo partiu para ele e o
segurou pelo blazer.
— O que você tem a ver com
isso?! — tremia de um modo incontrolável.
— Ele descobriu que Cândida
estava tendo um caso com o filho dele, da época de adolescência.
— Quem é esse filho, que nunca
ouvi falar?
— O Delano.
O irmão o largou e pareceu
cair nos próprios pensamentos, chocado.
— Então ele veio para se
vingar! Estão juntos nessa?
Thomás permaneceu em silêncio.
— Claro que estão! — Saulo riu
e chorou ao mesmo tempo. — Você trouxe esse rapaz para acabar com a vida do
Edgar, não foi? Fazia parte da sua vingança, é isso?
— Nunca planejei a morte de
ninguém!
— ASSASSINO! — gritou,
tentando agredi-lo.
Thomás tomou distância, o
suficiente para que a corrente não lhe permitisse se aproximar.
— Ele ficou transtornado, por
isso o acidente. — justificou.
— ASSASSINO! Você veio para
destruir todos nós!
— Não! Vim para fazer justiça!
— LOUCO! PSICOPATA! VOCÊ MATOU O EDGAR! — Saulo gritou em surto.
— Doze anos na cadeia foi pouco! Você devia ter morrido de verdade quando
aquele carro explodiu! Você não pode estar entre nós!
Enxergou tanto ódio em seu
olhar. Aquelas palavras atravessaram-no como navalha e o fez recordar de tudo o
que vivera desde o dia em que aquela mulher apareceu morta em sua cama.
Mentira ou não, se não fosse
pela revelação sobre a paternidade de Lucas feita por Saulo, Edgar não teria se
voltado contra ele e participado de nenhum plano para incriminá-lo. Isto é,
fora tão vítima das intrigas e manipulações daquele sujeito quanto o próprio
Thomás.
— A polícia vai me tirar
daqui! Você vai apodrecer na cadeia! — continuou Saulo.
Thomás o observava, e começava
a cair a ficha do quanto o irmão tinha sido nocivo a todas as pessoas.
Estava
errado ao pensar que todos haviam me traído!
— Tudo o que eu fiz foi pouco!
— Saulo complementou.
Uma
confissão! Ele manipulou a todos direitinho para tomar minha vida!
Sentiu-se injusto com Edgar,
Cândida, Dr. Juca e Pe. Giuseppe. Se tinham alguma culpa, era somente por terem
sido fracos, burros em acreditar naquele psicopata. Precisara perder o grande
amor de sua vida para se dar conta do próprio equívoco e do quanto também fora
manipulado por Saulo em todos aqueles anos, tendo o foco despistado do
verdadeiro e único responsável por tudo.
Olhou para aquele homem
acorrentado e sentiu horror a ele. Não reconhecia o irmão com o qual crescera
junto, apenas um louco ambicioso, capaz das maiores barbaridades, de destruir a
vida de quem quer que fosse para conseguir seus objetivos.
— Vou acabar com você, Thomás!
— continuava ele.
— Como fez no passado?
Continua, vai! Mostra quem é realmente!
— Dessa vez você vai para um
manicômio!
— Esse é seu plano?
— Plano? DESGRAÇADO! LOUCO! —
levantou-se, impulsionando-se até ele, mas a corrente não lhe permitiu tocar em
Thomás.
— Minha maior curiosidade é
saber se de fato acredita nisso.
— Quando eu sair daqui, todos
ficarão sabendo quem é de verdade!
— Quando sair daqui, todos já
vão estar sabendo quem “você” é de verdade, — Thomás prometeu. — mas por
enquanto, continue aonde está, no lixo.
Thomás alinhou o colarinho e o
paletó e deu as costas em direção à saída.
— VOLTA AQUI, DESGRAÇADO!
VOLTA AQUI! — gritou Saulo atrás dele. — ASSASSINO! VOCÊ MATOU O EDGAR!
ASSASSINO!
Isso que ele queria que Thomás
pensasse, mas não cairia mais no seu jogo de manipulação. Saulo Sobreira era o
verdadeiro responsável por toda aquela tragédia. Mais do que nunca estava
disposto a fazer com que o mundo descobrisse a verdade.
Ainda precisava fazer justiça!
50
A empregada magrinha, de
cabelo lambido e uniforme azul-escuro acompanhou Laura até o escritório, ao lado
da enorme sala de estar do luxuoso apartamento da família Rebelo. Há vinte anos
eles moravam numa mansão de esquina com a Av. Santos Dumont, dona Augusta não
suportava a ideia de estar num local onde não houvesse uma grande área aberta,
com muitas plantas. Muita coisa mudara desde a sua partida.
Embora não tivesse
conhecimento de como era aquele lugar, percebia claramente uma energia de
tristeza em todo o ambiente naquele instante.
— O que veio fazer aqui? — a
voz inquisidora do Dr. Juca se manifestou atrás dela, logo que entrou no
escritório.
— Uma visita cordial
certamente não foi! — respondeu no mesmo tom.
— Não está satisfeita com o
que houve no hospital? — interpelou-a, indo para o outro lado da mesa.
O médico encontrava-se
visivelmente abalado.
— O Edgar está morto e mesmo
assim o senhor não baixa a guarda?
Como alguém podia ser tão
duro?
— Exatamente por isso. Você
não respeita os sentimentos de ninguém, menina? — apoiou-se na mesa à sua
frente. — Meu filho acabou de morrer. Não vê que não estou disposto a nenhum
acerto de contas?
Filho? E ela?
— Impressionante como o senhor
me riscou da sua vida!
Procurava enxergar naquele
homem implacável a pessoa amorosa com quem conviveu na infância.
— Para mim você está morta há
vinte anos. — explicou de um modo desprezível.
Como se revivesse toda a dor
de quando fora expulsa de casa, deixando escapar uma lágrima denunciadora das
mágoas tão bem guardadas em sua alma.
— Como uma pessoa que prega o
amor numa comunidade religiosa pode ser tão desumana?!
— Você tentou acabar com nossa
família! — justificou ele.
— Apenas amei! — disse ela no
impulso.
— São as artimanhas do
demônio.
— Hipocrisia! O senhor é um
hipócrita! — procurou falar aquilo com toda a sua indignação. — Fala de Deus e
comete as maiores atrocidades! Prega o amor e vive o ódio!
— Muitas vezes somos obrigados
a pagar um preço alto por nossa fé.
— O senhor acha que ainda vive
na época da inquisição?
— Não sou obrigado a ouvir
esses absurdos. Meu filho será enterrado hoje. Saia daqui!
— O senhor não se arrepende de
nada, pai?
Pai! Exatamente isto, seu pai.
Vinte anos depois estava diante dele novamente. Recordou-se de quando o
enfrentou, ainda menina, acusando-o de tirar a vida de seu grande amor.
Apaixonada pelo próprio tio, quinze anos mais velho, viúvo da irmã do Dr. Juca,
Laura se entregou à paixão, escandalizou a família e enfrentou a todos para
viver esse amor proibido. Uma história marcada pela tragédia, interrompida pela
morte de Ricardo como paciente do renomado médico.
Dr. Juca deu as costas e
aproximou-se da janela, afastando as cortinas a fim de ter a visão do mar à sua
frente, quase encoberta pela chuva que caíra sem trégua naquela manhã.
— Não pense que foi fácil para
mim. Perder você foi uma das maiores dores da minha vida, mas eu já havia
perdido, antes mesmo de sua saída daqui de casa. — voltou-se novamente para
ela. — Tudo o que fiz foi por amor à minha família. — completou.
— Por amor é capaz de matar? O
senhor é um médico! O Ricardo era seu paciente!
— Foi por isso que te expulsei
daqui, há vinte anos! — ele se exaltou. — Você tentou jogar todos contra mim!
Poderia acabar com toda a nossa família, com essa história absurda! Seria um
escândalo!
— E para evitar um escândalo,
o senhor matou a própria filha em vida?!
Como doía ouvir aquilo!
— Você enlouqueceu ao se
apaixonar pelo Ricardo! Tentei te salvar de todas as formas.
Salvar?
Laura podia sentir ainda o
peso de sua mão. Foram inúmeras surras, até o dia em que Dr. Juca, num
descontrole, espancou-a. As lembranças de cada uma das incontáveis agressões
ficaram para sempre marcadas em sua alma. Bem como das vezes que fora presa no
quarto a pão e água, para ser livrada das tentações do demônio, segundo o pai.
Um louco, fanático que destruiu sua vida, afastando-a de todos que amava e principalmente
de Ricardo. Agora lutava para colar os pedaços que sobrara.
— O senhor matou o Ricardo! E
agora matou o Edgar por causa de suas loucuras!
Dr. Juca contornou a mesa e
veio para cima dela.
— Vai me bater, como no
passado?!
Ela foi ao seu encontro e
ficaram frente a frente. Não era mais uma menina de quatorze anos e podia se
defender, livre do medo que sentia dele no passado. Dr. Juca Rebelo não representava mais nenhuma
ameaça. Ele acabou recuando, escorou-se na mesa com uma das mãos e procurou se
equilibrar. Caindo devagar diante dela.
— Pai?! — Laura tentou
ajudá-lo. — ALGUÉM ME AJUDE, POR FAVOR! — gritou com o pai nos braços.
O velho Juca estava gelado,
pálido e parecia relutar para não fechar os olhos.
— Pai, por favor! Olha para
mim!
Apesar de tudo, não queria que
nada de mal lhe acontecesse. Uma enfermeira chegou e ajudou-os.
— Vai embora daqui... — balbuciou
ele em seus braços.
Não podia deixá-lo naquele
estado. Sentia-se responsável pelo que havia acontecido. Se ele estava passando
mal era por sua culpa. Ao mesmo tempo, sabia que sua presença ali poderia
piorar as coisas. Melhor mesmo era ir embora, entregá-lo aos cuidados da
enfermeira.
— Ele ficará bem? — procurou
saber da moça.
— Sim, foi uma queda de
pressão. — explicou a enfermeira tranquilamente.
— Saia daqui! — repetiu o
velho Juca.
Momento de recuar!
Laura olhou para ele, depois
para a moça e, constrangida, soltou-o.
— Saia, por favor, ele ficará
bem. — pediu a enfermeira.
Ela pegou a bolsa que tinha
colocado na cadeira e foi embora. Dr. Juca precisava se recuperar para o
sepultamento de Edgar. Mais tarde, voltar a conviverem. Laura estava decidida a
retomar a própria vida roubada.
Ao passar pela sala,
deparou-se com a imagem de dona Augusta Rebelo, sua mãe, no alto da escada. Ela
parou e as duas se olharam, movidas talvez pela mesma saudade que a acompanhou
por vinte anos.
— Mãe!
— Minha filha!
Laura aproximou-se da escada e
a mulher de aparência envelhecida, abatida por anos de depressão, desceu
devagar, degrau por degrau. Sonhou inúmeras vezes sendo consolada em seu colo. Nunca
compreendeu por que a mãe também a tinha abandonado. Pura submissão? E seu
instinto materno?
Desejou abraçá-la, sentir mais
uma vez seu afeto, o cuidado terno encontrado no colo de mãe.
Dona Augusta a tocou no rosto
delicadamente, como a uma pedra rara, e tremeu os lábios, como se contivesse um
choro engasgado há muito. Por fim, abraçou-a fortemente. Pedaços apartados de
seu passado com a vida presente finalmente se reencontravam. Laura procurou
viver a eternidade daquele aconchego, sentindo o cheiro, o calor, a textura da
pele enrugada da mãe. Por ela, nunca mais a largaria!
Tenho
minha mãe de volta!
— Vá, minha filha. — pediu a
mulher.
Laura a olhou, sem
compreender.
— Precisa ir embora. — explicou
dona Augusta. — É necessário.
— Por que, mãe?
— Um dia compreenderá, minha
filha. Vá.
Tanto queria perguntar,
partilhar, ouvir. Não, definitivamente, não compreendia sua omissão. Jamais
compreenderia o abandono, a distância do afeto, a escolha por vê-la longe de
seu seio e cuidados.
Laura enxugou as lágrimas e
tomou distância, sem querer. Fez que sim com a cabeça, cedendo ao seu pedido e
deu as costas ao sonho de estar novamente com os seus.
Entretanto, pela primeira vez
em vinte anos, sentiu-se novamente Laura Rebelo.
51
Thomás acompanhou o cortejo do
funeral de Edgar em meio à multidão. Nem o mal tempo o fez perder a elegância e
desfilar o figurino perfeito de seu personagem. Havia escolhido o melhor paletó
e a cor preta nunca fora tão sugestiva em todas as peças que o compunham para
aquela despedida. Finalmente a chuva dera uma trégua naquele final de tarde e o
corpo do melhor amigo pôde ser levado do Chiamare, onde havia sido velado desde
a noite anterior até aquele momento, ao cemitério Metropolitano. Sentiu-se
bombardeado de muitas emoções confusas, por reencontrar dezenas de pessoas,
missionários da obra, figuras da alta sociedade e meio empresarial,
autoridades, líderes religiosos com quem convivera no passado. Embora todos
pensassem que tratava-se de Saulo Sobreira, era na verdade um homem machucado
profundamente pela injustiça sofrida, rejeição e por sido preterido pelo
canalha do irmão.
Fácil enganá-los! Cada
cumprimento recebido daquelas pessoas idiotas o fazia compreender melhor a farsa
de Saulo e o caminho por ele utilizado para assumir seu lugar, sua vida, sem
que ninguém questionasse por um segundo a veracidade dos fatos.
Imbecis,
estão novamente diante de Thomás Sobreira!
Todos estavam voltados demais
às aparências, ao superficial para perceberem o essencial, o óbvio. Exceto
Diogo. Este o encarava a todo instante durante o velório e ali no cemitério,
como se o perscrutasse ou tivesse sentido algo estranho em sua presença. Temeu
ser descoberto por ele, por isso procurou fugir do irmão a todo momento, sem
trocar uma só palavra com o mesmo.
Diogo. Sem dúvida a maior
emoção experimentada nos inúmeros reencontros daquele dia fatídico. A primeira
vez que estivera na presença do irmão em doze anos. Foram tão amigos, tão
cúmplices da infância até a tragédia que o baniu da sociedade. De todas as
pessoas que o traíram ou não acreditaram nele, foi Diogo a maior decepção. Depois,
o abandono. Até hoje não compreendia por que fora esquecido por ele. Mesmo que
todas as acusações fossem reais, ainda assim não compreendia. E o amor que
existia entre eles?
Melhor mesmo seria ficar
distante, para não se machucar ainda mais e também não ser descoberto. Pior,
correr o risco de ter sua identidade exposta por ele. Aquilo seria terrível. Aí
sim, jamais o perdoaria.
Outra preocupação daquele dia
fora o sumiço de Lucas. Desde a noite anterior, o jovem havia desaparecido do
hospital, logo após saber da notícia da morte do pai. O que estava o matando!
Há dois meses fora da prisão,
não imaginava viver tamanho desespero e a tristeza pela morte de Edgar. Agora
tinha certeza que nunca o havia esquecido e guardava dentro si a esperança de
um dia viver aquele amor. Tolice! Edgar nunca o desejou. Se um dia o seduziu
foi para afastá-lo de Cândida, por quem o amigo fora verdadeiramente
apaixonado. Isto é, Edgar soube como jogar e conseguir o que queria. Depois o
fez de louco, afirmando ter sido fantasia sua.
Todos estavam emocionados e as
últimas palavras proferidas por Pe. Giuseppe pouco antes do caixão desaparecer
de sua vista, fizeram-no chorar.
Edgar
tinha muito amor guardado dentro si, por isso era também tão amado. Agora,
certamente partilha desse amor com Deus.
Recordou-se do sorriso que o
encantou, da alegria que o despertou, da presença amorosa que fez explodir o
próprio coração de amor. Sim, Edgar, era tudo isso, a única pessoa que ensinou
a ele, Thomás, o sentido do amor diferenciado. Por ele teria deixado a missão,
a comunidade, o chamado.
Parecia que o Bono Vox veio
lhe falar em seu ouvido:
If
I could, I Would let it go / Se eu pudesse eu o deixaria ir
Mas não podia! O amor por
Edgar se faria presente eternamente em seu coração.
Thomás lançou uma rosa branca
em cima do caixão, junto a tantas outras também arremessadas. Mas a dele,
falava de algo nunca imaginado por ninguém ali, de um amor sofrido, não
correspondido, de uma dor que levaria para sempre consigo, pelo não vivido.
De repente, caiu um leve
sereno, como se os céus chorassem de alegria pela chegada de um filho tão
amoroso.
Ele
é Teu novamente! Falou com Deus, constrangido, sem muita
intimidade ou sentir-se no direito. Com isso, procurou se afastar aos poucos,
sem que ninguém percebesse.
Em seguida, cruzou o olhar com
o de Laura, do outro lado. Teve vontade de acolhê-la, cuidar um pouco dela em sua
dor silenciosa pela morte do irmão. Mas sabia que se o fizesse, poderia chamar
atenção e pôr em risco sua identidade. Além do mais, Diogo estava sempre por
perto dela e poderia abordá-lo. Melhor seria permanecer distante e procurá-la
em outro momento mais adequado. Talvez aquela suposta indiferença já o ajudasse
em seu plano de fazê-la questionar a índole de Saulo Sobreira.
Deu as costas longe de todos e
caminhou em sua solidão.
— Thomás?
A voz atrás dele o fez se
arrepiar e parar num impulso. A mão em seu ombro o provocou a se virar,
devagar, pelo medo de quem encontraria diante dele. Teve a visão do reflexo de
si mesmo, atônito, com olhos arregalados e uma ansiedade aparente.
Diogo!
Pronto, fora descoberto!
~
Após o sepultamento, Thomás
preferiu ir direto para o Chiamare e tomar um bom banho. O dia tinha sido muito
cansativo e o encontro cara a cara com Diogo também havia rendido-lhe uma boa
tensão e uma dose extra de emoção. Desconversou, no momento em que foi abordado
pelo irmão, sendo chamado pelo próprio nome, como se ele o tivesse descoberto.
Nada que um “você está louco” não resolvesse. Diogo tentou explicar que por um
instante pensou estar diante do irmão morto. Assunto encerrado!
Pôs uma roupa leve e desceu
para o escritório. Quando estava no banho, Zica tinha avisado que Laura o
aguardava. Na hora, pensou em pedir que voltasse outro dia, mas preferiu
resolver logo aquela história de uma vez por todas. Não tinha mais tempo a
perder.
Ao entrar no ambiente, viu
Laura folhear umas revistas em cima da mesa. Ela parecia ter vindo direto do
cemitério.
— Desculpa vir sem avisar, mas
precisava conversar com você. — justificou ela de antemão.
— Estou muito cansado, Laura.
Acho que não é o melhor dia. — procurou imprimir certa hostilidade no tom,
aproximando-se dela.
— Mal nos cumprimentamos ontem
e hoje.
— O que esperava? Não tinha
como ser diferente diante de todos.
Ele passou por ela e sentou do
outro lado da mesa. Laura o observou, como se já o estivesse perscrutando.
— Compreendo. Não sabe nada sobre
mim, sobre meu passado e como eu estava em relação à morte do Edgar.
— Claro que sei. — disse da
forma mais fria que podia. — Vocês eram irmãos.
Ela arregalou os olhos,
certamente surpresa.
— Como sabe?
— Mandei investigar.
— E por que mandou investigar
a minha vida?
— Precisava saber onde estava
pisando. — tirou uma pasta de dentro da gaveta e pôs diante dela.
Primeiramente Laura fitou a
pasta, desconfiada.
— Fique à vontade. — autorizou-a,
sorrindo.
Ela pegou a pasta e abriu-a,
deparando-se com fotos suas, informações diversas numa espécie de relatório.
Folheou tudo rapidamente, depois devolveu os papéis para o mesmo local onde
estavam e os colocou de volta na mesa.
— O que significa isso, Saulo?
— Tudo ao seu respeito.
— Sim, isso eu sei. Quero
saber por que mandou fazer isso? Qual seu intuito?
— Laura... um homem da minha
posição não pode se dar ao luxo de se envolver com qualquer pessoa. Preciso me
resguardar.
— Muito bem. — Laura sentou-se.
— E qual o impacto dessa investigação sobre a nossa relação? Desde quando você
sabe de tudo?
— Algum tempo depois que
chegou em Fortaleza.
— E qual o impacto? — insistiu
ela.
Thomás levantou e deu as
costas, focando um móvel que estava atrás dele com alguns livros.
— É a filha do presidente do
conselho administrativo desta comunidade.
— A filha renegada, você quer
dizer. — corrigiu ela.
— Ainda assim, a filha do Dr. Juca
Rebelo.
— Não sou mulher de rodeios,
Saulo. — anunciou, levantando-se. — Qual a importância disso para nós? O que
muda na nossa relação?
— Nada. — voltou-se a ela
novamente, enfiando um das mãos no bolso da calça. — Simplesmente nada.
Continua tudo da mesma forma.
Houve um silêncio
constrangedor, que foi quebrado por Laura.
— Como assim da mesma forma? O
que quer dizer com isso?
— Laura, não há uma relação
entre nós, a não ser de foro profissional.
Ela pareceu engolir aquilo a
seco.
— Não sei onde está querendo
chegar.
Pareceu desconsertada. Thomás
poderia não fazer aquilo e poupá-la. Tinha acabado de perder o irmão. Seria
terrível para ela mais aquela decepção, justo naquele dia. Na verdade, desejou
abraçá-la, cuidar dela. Estava diante de uma mulher despedaçada por causa de
seu passado, como ele. Tinham muito em comum, por isso se identificara tanto
com Laura, ao ponto de não saber ao certo o que sentia estando ao seu lado. Experimentava
um afeto inexplicável, além do que lhe provocava sexualmente. Poderia possuí-la
ali mesmo e diversas outras vezes. Encontrava-se extremamente atraído, com uma
vontade louca de permanecer em seus braços. O que não sentia há muitos anos por
ninguém, nem muito menos por uma mulher. Excitava-se só em pensar.
O
que posso fazer com isso? E se tudo der errado como foi com Edgar?
Se fosse desistir aquele era o
momento. Talvez se assumissem o que sentiam um pelo outro, pudesse trazê-la
como aliada para junto dele. Assim, não estaria sozinho.
— O que quer dizer com isso,
Saulo? — Laura insistiu.
Saulo? Depois, quando ela
descobrisse a verdade sobre sua identidade, seria pior. Sentir-se-ia, na certa,
mais do que traída. O melhor mesmo era seguir com o plano original. Deste modo,
não alimentaria sua paixão, para findar numa decepção maior. Ela não merecia.
Thomás respirou fundo e tomou
coragem, aproximando-se um pouco mais.
— O que houve entre nós há
alguns dias atrás não voltará a acontecer.
— Como assim?
— Foi uma loucura de momento.
Sou o líder espiritual desta comunidade, Laura. Não posso pôr em risco minha
imagem religiosa. — procurou representar com toda a verdade que o momento
exigia, embora violentasse a si mesmo. Era preciso, por Edgar, por ela, pela
justiça.
Laura forçou um sorriso, de
certo muito constrangida.
— Disse que largaria tudo para
ficar comigo.
Sim,
largaria!
—
Acreditou
nisso?
— Espera, você me confundiu. —
pediu, apoiando-se na mesa, como se perdesse um pouco o equilíbrio. — Como
assim acreditou? Tudo bem que as coisas podem ter mudado. O fato de ter
descoberto que sou filha do Dr. Juca. De repente...
— Nada mudou, Laura. — interrompeu-a.
— Sei de seu passado há muito tempo. Não tem nada a ver com isso.
— Não mudou? Disse que estava
disposto a deixar o Chiamare.
— Eu menti! — foi categórico.
— Precisava te convencer.
— Convencer de quê?
— A ficar comigo naquele
momento. Ora, Laura. Onde está seu faro jornalístico? Não passou de uma aventura,
como as outras.
— Outras?!
— Acha realmente que foi a
primeira mulher com quem me envolvi nesta comunidade? — foi novamente para o
outro lado da mesa e sentou-se, girando a poltrona de um lado para o outro. — Chove
de mulheres atrás de mim, minha querida. — procurava sorrir de um modo que
parecesse celebrar. — Casadas, solteiras, virgens. E como você, carentes.
Ela o olhou de uma forma, como
se finalmente a ficha tivesse caído.
Um caminho sem volta! Laura
certamente já o estava odiando. Aquilo doeu-lhe profundamente, mas precisava
prosseguir.
— Então fui mais uma de suas
conquistas?
— Exatamente. Vejo que não é
tão burra.
Laura deu as costas, caminhou
um pouco pela sala, como se organizasse as ideias.
— Desgraçado!
— Ora, vai me dizer que não foi
bom para você?
Ela caminhou firme em sua
direção, parando quase em cima da mesa. Tinha respiração ofegante, como uma
fera provocada.
— No início eu desconfiava que
você não prestava, mas realmente não tinha noção do tamanho do seu
mau-caratismo. Você é um cretino!
Tem
toda razão!
— Não, errado. Sou o Pescador
de Vidas.
— Eu... vou... acabar... com
você! — decretou pausadamente. — Vou destruir essa imagem de Pescador de Vidas!
Viu tanto ódio em sua
expressão. Lamentou profundamente, pois desejava abraçá-la e acabar com aquela
farsa.
— Impossível, minha querida.
Meu irmão tentou e está morto. — A cartada final. — Thomás foi a única pessoa
que se meteu no meu caminho até hoje. Acabou preso por doze anos. E logo que
saiu da cadeia... — fez um som de explosão, contraindo e descontraindo a mão. —
Morreu. — mentiu com a mesma tranquilidade adquirida e necessária nos doze anos
em que foi injustiçado. Em seguida, sorriu.
— Você é um monstro!
— Sou o Pescador de Vidas.
— Não por muito tempo. — sentenciou
ela. — Nem que seja a última coisa que faça na minha vida, vou provar para
todas as pessoas quem é Saulo Sobreira. Mexeu com a pessoa errada. Se até hoje
não tinha encontrado ninguém que o enfrentasse, agora está diante dessa pessoa.
Acredite, Saulo, vou acabar com essa imagem sagrada de Pescador de Vidas!
Não,
mexi com a pessoa certa.
Laura deu as costas, pegou a
bolsa numa poltrona e saiu com pisadas firmes, batendo a porta com força.
Thomás recostou-se na cadeira e começou a chorar. Sentiu-se tão cretino quanto
o próprio irmão.
Porém finalmente colocava seu
plano nos trilhos novamente. Laura descobriria para ele toda a verdade. Justiça
seria feita!
~
Logo que saiu do elevador,
Laura sentiu o cheiro de incenso no corredor do prédio. Quando entrou em casa,
viu Diogo refestelado numa poltrona na sala, vestindo um moletom e camiseta,
com os pés cruzados um por sobre o outro em cima da mesinha de centro, uma
caneca de chá numa mão e o tablet na
outra. Sua vontade foi de correr e se jogar em seus braços, sentir-se um pouco
cuidada e amada.
Acha
realmente que foi a primeira mulher com quem me envolvi nesta comunidade? Chove
de mulheres atrás de mim, minha querida. Casadas, solteiras, virgens. E como
você, carentes.
Aquela declaração de Saulo
vinha reverberando por todo o percurso feito pelo táxi da sede do Chiamare até
ali. Como alguém podia ser tão sórdido? Canalha! No entanto, por mais que
soubesse que ele era um cretino, não conseguia deixar de se sentir um lixo.
Sempre tivera dificuldades em relacionamentos. Apesar de ter uma beleza
frequentemente reconhecida por todos, não acreditava que fosse uma mulher
verdadeiramente bonita e, fundamentalmente, interessante. Por isso, achava mais
cômodo, manter-se isolada e longe dos homens de qualquer possibilidade de um
relacionamento.
— Como você está? — perguntou
Diogo, com um jeito terno, que a fez desabar num choro compulsivo. — Ei, calma!
— precipitou-se ao seu encontro, envolvendo-a num abraço. — Estou aqui. — ele a
conduziu até o sofá e permaneceram no abraço. — Sei que está sendo difícil, mas
vou te ajudar a superar esta dor.
Chorou a perda do irmão, a
distância do pai e toda a família, a solidão que a acompanhou por todos aqueles
anos e a decepção de Saulo.
— Ele não merece esse choro. —
disse Diogo, procurando consolá-la.
Será
que ele sabe do Saulo?
— Sim, sei sim. — respondeu
ele ao seu pensamento.
Laura parou um pouco, tomou
distância e focou o rosto do amigo. Eles eram idênticos. Poderia ter levado a
história com Diogo adiante, mas não, escolheu o gêmeo errado, como sempre.
— Você sabe de tudo? — indagou
Laura, curiosa.
Diogo fez que sim com a cabeça
e desviou o olhar, como se estivesse envergonhado.
— Diogo, estava usando seu dom
para me espionar?
Ele hesitou antes de
responder.
— Não foi proposital. Sinto
uma ligação muito forte com você. Preocupo-me com sua segurança, sua
felicidade. As imagens vêm de forma involuntária. Não tenho como controlá-las.
Levantou, pensou nos momentos
com Saulo e no que exatamente ele teria visto através de suas visões. Laura se
sentiu estranhamente exposta, como se fosse monitorada. O que a incomodou
profundamente.
— Não tem o direito. — sentenciou
ela.
— Desculpe-me! — respondeu
Diogo, indo novamente ao seu encontro. — O que sinto por você é muito forte e
impede-me de controlar as visões. É como se fosse um meio de estar perto,
protegê-la. — tocou delicadamente em seu rosto. — Foi tão doloroso quando a vi
com ele.
Laura se desviou e afastou-se.
Ele não tinha o direito de vigiá-la. O que poderia fazer para impor um limite a
uma pessoa com a capacidade de ler a mente, ver o futuro ou transcender as
barreiras do tempo e do espaço? Precisava deixar claro sua insatisfação e
estabelecer regras àquela relação. O silêncio talvez fosse uma alternativa, até
que Diogo visse uma forma de controlar o próprio dom e pudessem conviver de uma
forma mais justa, sem invadir os espaços um do outro. Ele, contudo, era seu
único amigo. Temia afastá-lo.
— Eu te amo, Laura.
Embora estivesse indignada,
era tudo que precisava ouvir naquele momento. Alguém que se importava
verdadeiramente com ela. Laura reaproximou-se e o abraçou por um longo tempo.
Estar com Diogo lhe recarregava as energias.
Em seguida, ele foi para a
cozinha e lhe preparou um chá. Laura contou o que havia acontecido realmente
entre ela e Saulo, falou dos detalhes do último encontro, há algumas horas e de
como estava se sentindo. Diogo acompanhou tudo atentamente, demonstrando
indignação em alguns momentos, mas manteve-se na escuta quieta e cuidadosa. Por
fim, ele tomou o banco no balcão ao seu lado e segurou forte em suas mãos.
— E o que exatamente sente por
ele?
Uma pergunta difícil de
responder. Sentia-se, sim, atraída por Saulo, isso era óbvio. Até fantasiou
ficarem juntos, quando ele cogitou deixar a comunidade, mas não sabia ao certo
classificar o sentimento. Na verdade, nunca soube, com nenhuma relação. Seria
paixão? Talvez.
— Não sei.
— E o que pretende fazer?
— Desmascarar seu irmão.
Impossível,
minha querida. Meu irmão tentou e está morto. Thomás foi a única pessoa que se
meteu no meu caminho até hoje. Acabou preso por doze anos. E logo que saiu da
cadeia... Morreu.
Para Laura a própria
declaração de Saulo representava uma pista de por onde começar.
— Hoje percebo que posso ter
cometido o maior erro da minha vida em não acreditar no Thomás naquela época. E
se ele estivesse certo, se realmente não cometeu aquele crime? Se foi o Saulo
que arquitetou tudo? — Diogo conjecturou.
— Isso nós podemos descobrir
juntos.
— Acho que é hora de enfrentar
o passado e buscar a verdade.
— Então...
— Pode contar comigo, Laura.
Estaremos juntos nessa a partir de agora.
Os dois deram um aperto de
mãos e sorriram. Diogo era o parceiro
que ela precisava naquela investigação.
— Tem uma coisa que preciso te
contar. — anunciou ele, com certo cuidado.
— O que é?
— Nosso sobrinho, o Lucas.
— O que tem ele?
— Todo mundo está preocupado,
Laura. Ele desapareceu desde ontem.
52
— Thomás, que bom te ver! — disse
Juscelino sorridente, do outro lado da grade na sala de visitas do
presídio.
— Desculpa não ter vindo
antes, mas sabe que estive ocupado. — justificou-se Thomás.
— Como andam as coisas lá
fora?
Hesitou um pouco para
responder. Temia o que o companheiro pudesse julgar.
— O Edgar está morto. — contou
logo de uma vez.
Juscelino fechou os olhos e
passou a mão pela testa, como se sentisse profundamente por aquilo.
— Foi um acidente, logo após
descobrir que o Delano era seu filho e o estava traindo com Cândida. — adiantou-se,
já que Juscelino perguntaria de qualquer modo.
— Meu Deus! E como você está?
Juscelino sabia de tudo,
sempre soube.
— É como se tivesse morrido um
pedaço de mim. Só queria ter me entendido com ele. Mas nossos poucos encontros
foram um desastre. Edgar pensava que eu o havia traído e acabou alimentando um
ódio mortal por mim.
— Curioso como são as pessoas.
É provável que no passado ele tenha te seduzido com a intenção de te afastar da
Cândida e se casar com ela. Isso também é uma forma de deslealdade, mas diante
da própria dor a pessoa não consegue enxergar o outro.
— Talvez ele não tivesse
consciência. — cogitou Thomás.
— Isso não o torna menos
desleal do que você. Além do mais, tudo não passava de uma mentira do teu
irmão.
— Mas ele não sabia, ninguém
sabia.
— Opa... alguma coisa mudou aí
dentro. O que foi?
— A morte do Edgar serviu para
me mostrar que todos nós fomos vítimas das mentiras do meu irmão.
— Então desistiu do plano? — percebeu
um toque de esperança no sorriso de Juscelino. Por mais que ele o tivesse
ajudado em cumplicidade por todos aqueles anos em que dividiram a mesma cela, o
amigo nunca concordou com o plano e questionava-o incansavelmente.
— Desistir? Isso não. Mudei o
foco. Não quero mais atingir ninguém, a não ser o grande responsável por toda
essa tragédia na minha vida.
Juscelino cruzou as mãos e apoiou
os cotovelos na mesa.
— Olhe o que está fazendo da
sua vida. Acabou de perder a pessoa que mais amou. Se não fosse por esse plano
infeliz, Edgar estaria aqui.
Admirava-o por compreender tão
profundamente o que sentia por Edgar e nunca ter esboçado qualquer demonstração
de ciúme.
— Thomás, não há como se
vingar do Saulo sem respingar nas pessoas à sua volta. — continuou Juscelino. —
É uma rede, da qual faz parte. Veja como você mesmo está, carregando uma
tristeza violenta no coração. Tudo por causa desse plano de vingança.
— Não é vingança! — esbravejou.
— É justiça! A justiça que não foi feita.
— Não se faz justiça mentindo,
enganando, machucando as pessoas, desconsiderando seus sentimentos, suas vidas.
A morte do Edgar é exemplo disso. Thomás, para tudo há consequências. Eu temo
pelo que possa te acontecer, se continuar com esse plano absurdo.
— Não há mais retorno.
— Há sim. Sabe que há.
— O Saulo está preso, a Laura
o odeia e provavelmente vai começar a investigar o passado. Se eu desistir
nesse momento, ele pode acabar comigo, contar a ela sobre mim e convencê-la a
desistir de procurar a verdade. Não entende, Juscelino. Estou chegando muito
perto de tudo o que planejei nesses doze anos em que estive aqui dentro desse
inferno. Não posso simplesmente desistir de tudo. Seria como passar uma
borracha em tudo o que aquele monstro me fez. Pior, estaria compactuando com
ele. Não, preciso livrar a sociedade desse psicopata, mostrar a todos quem ele
é. Mais do que isso, limpar minha honra.
— A morte do Edgar foi um
aviso do que poderá acontecer. — contra-argumentou Juscelino. — Deus está
querendo te mostrar o caminho.
Deus?!
O que Deus tinha a ver com
isso? O que Ele fez para impedi-lo de pagar por um crime que não cometeu? Por
que não teria também apresentado consequências às atrocidades cometidas por
Saulo? Só o mal prevalecia? Ora, Deus se mantivera longe de tudo aquilo. Na
verdade, abandonara-o quando mais precisou. Não temia nenhuma consequência, se
elas realmente existiam.
— Deus estava ocupado demais
quando tudo me aconteceu e certamente continua assim.
Juscelino balançou a cabeça
negativa, olhou para um lado e outro.
— Finalmente entendi o porquê
desse plano. — comentou ele. — Essa história não se resume ao Saulo, mas a
Deus.
— Como assim?
— Isso mesmo. Na verdade nunca
quis se vingar do Saulo ou de qualquer pessoa que o tenha acompanhado em suas
mentiras. Você quer se vingar de Deus! — concluiu Juscelino.
Viagem
de Juscelino!
Não tinha nada a ver com Deus.
Sua relação com Ele nem mais existia. Queria só fazer justiça, só!
— Não sabe o que está dizendo,
Juscelino. — desdenhou.
— Está brincando de ser Deus,
Thomás. Esse é seu verdadeiro plano. Vingar-se Daquele que te abandonou,
assumindo seu lugar. Na verdade, a relação com seu irmão, nada mais é que uma
metáfora daquilo que realmente te motiva no fundo da tua alma. A tua maior dor
não foi o abandono daqueles que te amavam ou as mentiras do Saulo, mas o
suposto silêncio de Deus diante de tudo isso. Cuidado, meu amigo. Esta
rivalidade é uma fantasia, quando é Ele que te dá forças para continuar vivo e
lutar por aquilo que acredita. Mesmo que esta luta seja contra Ele ou contra
você mesmo.
Sentiu vontade de chorar, mas
não o fez.
Não tinha mais nada para fazer
ali. Despediu-se e deixou o companheiro antes que ele o fizesse. Já sabia dos
devaneios de Juscelino, mas conjecturar absurdos como naquele dia, já passava
dos limites.
Vingar-me
de Deus... Desdenhou.
Nunca nenhuma conversa com o
companheiro o deixou tão chafurdado como aquela.
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