Abra, entre e faça seu caminho...

Abra, entre e faça seu caminho...
A arte de escrever é para mim uma possibilidade de dar vida ao universo infinito de nossas criações. Precisava de um espaço onde isso fosse possível. Assim, nasceu este blog literário, com a ideia de ser um canal à expressão livre de muitas histórias, personagens, dramas e tramas que estão em minha mente, orientados por valores e crenças existenciais que representam a minha alma. Deste modo, seja muito bem vindo ao meu blog, e que minhas histórias possam lhe tocar o coração e a alma! (Antonio Rondinell)

O Chamado do Arcanjo



O Chamado do Arcanjo foi publicado pela Editora Cadmo em 2015 como e-book. agora está disponível integralmente aqui no blog para você. 

Uma ótima leitura!











Agradecimento

Às minhas irmãs, Germanda e Fernanda, que acreditaram em meu potencial e possibilitaram este trabalho acontecer.

A Norma Sampaio, Suzana Cavalcante e Vânia Camurça, que se debruçaram antecipadamente sobre este livro e deixaram nele, de forma afetiva, suas marcas, com interrogações e sugestões que me motivaram a tentar melhorar meu trabalho. 

E ao Felipe Colbert, meu coaching literário, que de modo paciente, ajudou-me a transformar minha escrita numa arte profissional.   






Prólogo

— Esta criança que está com a senhora não é sua filha.
Júlia Serrado mal havia acabado de abrir a porta. A mulher que acabara de dizer aquelas palavras trazia a tensão no rosto emoldurado por um cabelo desgrenhado. Tinha feições envelhecidas, apesar da pouca idade. Não era um rosto conhecido, o que a deixou assustada.
— Espere... o que você quer...
— Perdoe-me, senhora, mas fiz uma loucura! — interrompeu a mulher, entrando pela casa.
Júlia encostou a porta e fechou o robe que acabara de vestir correndo ao ouvir o toque da campainha. Clara havia adormecido no sofá da sala, após um copo de leite quente e vários minutos de brincadeiras entre as duas, como vinham fazendo naqueles dias que sucederam seu reencontro.
— Quem é a senhora? — procurou saber, atônita.
— Fui eu quem entregou esta menina ao repórter, como sendo a sua filha. — declarou, cravando os olhos na criança.
— Que história mais absurda!
— A verdade é que não sei sobre o sumiço de sua filha! — Disparou a estranha, com um tom afobado.
— Mas como? Acabou de dizer que foi quem a trouxe... de volta? 
A mulher baixou um pouco a cabeça. Silenciou durante alguns instantes, parecendo encher-se de coragem.
— Essa criança é minha filha.
— Por Deus, o que está dizendo? — Júlia mal conseguiu pronunciar aquilo.
— Não está vendo nossa semelhança?
Júlia foi tomada pelo mesmo sentimento experimentado há um ano com o roubo de seu bebê. Sentiu-se dormente. Por várias vezes chegou a estranhar as sardas no rosto da menina e seus traços tão diferentes do bebê de um ano e três meses tirado dos seus braços um ano atrás. Num contexto geral, o rosto era o mesmo de Clara — redondo, pele alva e olhos castanhos com os cabelos ruivos, como os seus. Apenas aquelas sardas a incomodavam, mas preferiu suspeitar que tivessem aparecido durante este ano de dolorosa separação.
Percebia as mesmas sardas no rosto claro da mulher à sua frente, o que a deixava completamente confusa. No entanto, se era verdade o que dizia, certamente teria sido escolhida a dedo. Mas por quem, e porquê?
— Não! Não pode ser! Parece que estou num pesadelo novamente. — Julia procurou o sofá para se apoiar e evitar despencar, acometida de uma leve vertigem. Levou a mão à cabeça e se recordou de tantos infortúnios no trajeto até ali. Ergueu-se novamente, tendo a figura de uma mulher apreensiva, atônita, como se preparando um ataque ou uma defesa, dependendo de qual fosse sua reação. — Por que entregaria sua filha no lugar da minha? — Nem sabia como tivera forças para formular aquela pergunta, assumindo a verdade de uma situação surreal.
— Grana — respondeu a mulher, de pronto. — Mas me arrependi. Juro! — completou, num impulso. — Por favor, quero a minha filha de volta.
— Se eu acreditasse no que está dizendo... quem a mandou até aqui? — Júlia alimentava a esperança que ela pudesse lhe dar alguma pista. Se aquela menina não era sua filha, onde estaria Clara naquele momento?
— Não sei. — Respondeu a mulher, começando a se impacientar. — Preciso ir embora, dona! — justificou. — Vamos, entregue-me ela. — Ela avançou em direção ao sofá.
Julia impediu-a, tomando à frente.
— Como não sabe?!
— Quero resolver na boa. — A mulher segurou a bolsa com firmeza, como se ali dentro tivesse o necessário para levar sua filha consigo.
— Por favor, o que a senhora sabe sobre a minha filha? — insistiu, baixando o tom, por perceber que não conseguiria nada se a agredisse.
— Nada, juro! Recebi essa grana para entregar a minha filha no lugar da sua e desaparecer. Precisava muito do dinheiro... — explicou. — Me deram a certeza de que ela seria bem tratada, teria uma vida digna ao lado de pessoas boas, a vida que não tive.
Júlia olhou o entorno da sala de estar de sua casa, o colorido da árvore de Natal ressaltado pelo piscar das luzes, o mesmo cenário sede de tanto horror desde o desaparecimento de sua filha. Tudo voltava a acontecer.
— Quem te pagou? — perguntou, quase caindo em prantos.
— Não sei. Mas é gente grande.
— Por favor, me dê uma resposta concreta!
— Essa gente tem meios, dona. Fazem tudo sem se comprometer — justificou. — Vamos acabar logo com isso — propôs.
Júlia não poderia perder a oportunidade, no entanto. Se toda aquela loucura fosse verdade, certamente a mulher à sua frente teria alguma pista, alguma informação que pudesse conduzi-la ao paradeiro de sua filha, ou mesmo ao mentor do sequestro.
— Vou chamar a polícia — sentenciou, pegando o telefone sem fio na mesinha ao lado do sofá. A única forma de forçá-la a falar.
Antes que Júlia pudesse completar a ligação, a mulher sacou uma arma de sua bolsa. Vinha preparada para um embate, e com certeza, disposta a tudo.
— A senhora não vai chamar ninguém — afirmou, com toda a segurança que aquela arma lhe proporcionava.
— Quero a minha filha de volta, nada mais... — Julia baixou o fone.
— Eu também — respondeu ela, sem mais delongas.
Julia percebeu um misto de dor, frustração, tristeza e alívio tomarem conta de sua vida naquele momento. Sofria em saber que sua filha permanecia desaparecida, mas parecia tirar um peso de suas costas. Desde o primeiro momento em que a viu, após ter sido encontrada pelo repórter investigativo Tancredo Flores, desconfiou que pudesse ser um equívoco. Sentiu algo estranho naquela menina, como se não fosse realmente sua filha, apesar de serem idênticas. A angústia presente em seu peito nunca desaparecera. Sua intuição continuava a lhe alertar do perigo que assolava sua menina, embora ela estivesse supostamente sob a sua guarda. E novamente, estava certa.
— Por favor, diga-me quem a contratou. — insistiu, com as mãos postas, diante de seus lábios, como se a implorasse.
— Vamos acabar logo com isso, dona. Não sei de nada.
Júlia olhou para a arma apontada a ela. Se insistisse, poderia tudo terminar ali. Nada restava senão entregar a criança. Afastou-se um pouco, dando o espaço para que ela a pegasse em seus braços. Pensou por um instante em reagir, tentar tomar o revólver, gritar por socorro. Mas não queria correr o risco de um disparo acidental. Ela ou a própria menina poderiam se machucar.
Fora tomada por um choro silencioso enquanto via a mulher sair com a criança dormindo em seus braços. Encostou-se na parede e deixou-se deslizar até o chão, vencida pela dor de se ver de novo furtada da presença da filha, como algo que lhe atravessava a carne. Sim, chegava a ser física a sua dor.
                      Mais do que nunca, Júlia Serrado estava certa de que a luta para reencontrar sua filha estava recomeçando. 







Capítulo 1

A água quente do chuveiro quebrava o silêncio daquele final de manhã de dezembro, garantindo um momento propício ao planejamento rápido e preciso de algumas providências a serem tomadas naquele dia. Júlia erguia a cabeça, numa entrega certeira àquele instante e permitia que a água percorresse seu corpo, como se a envolvesse numa redoma de objetivos — a consulta com o oftalmologista, alguns pagamentos no banco e o ensaio do novo espetáculo na boate, tudo num tempo encurtado pelas horas a mais na cama após o toque do despertador. Porém, a organização de seus compromissos logo dera lugar às lembranças impiedosas da distância de sua filha, como em tudo o que fazia naqueles últimos seis anos, desde que ela desaparecera de sua casa.
 “Júlia, entregaram uma encomenda para você.” A voz de Raquel, sua cunhada, invadiu seu quarto. “Vou deixá-la em sua cama.” Completou ela, pouco antes de bater a porta.
Resgatada do mundo configurado pela dor da saudade, Júlia fechou o chuveiro e acolheu o rosto com a toalha. As lembranças foram ficando mais distantes, como se espanadas. Seria mais um dia sem Clara. Em nenhum momento desistiu de procurá-la ou saber a verdade, mas os anos sem notícias foram lhe dando a certeza de que poderia sim ter sido adotada por outra família, como se pensava na época do sequestro.
Vestiu-se com o roupão, diante do espelho. O sofrimento e a saudade pareciam ter lhe roubado a beleza. Enxergou no reflexo, através da porta do banheiro entreaberta, a figura da tal encomenda anunciada por Raquel. Um embrulho grande, acomodado em sua cama. O que a impulsionou de pronto a matar sua curiosidade, direcionando-se à encomenda inusitada.
Quem teria mandado aquilo?
O papel de presente num estilo envelhecido trazia anjos em sua estampa. Ela rasgou-o na intenção de desvelar o que o bonito e pesado pacote escondia. Em poucos minutos, o papel de seda amassado foi dando lugar ao dourado de uma imagem forte de resina em cor de bronze. Asas imponentes se erguiam nas costas de um corpo musculoso protegido de armadura. Numa das mãos, uma espada. A outra segurava a ponta de uma faixa que contornava suas vestes. O rosto inclinado para baixo trazia uma expressão serena e vitoriosa do combate, pisando na cabeça de um ser macabro. Uma belíssima imagem de São Miguel Arcanjo.
A pergunta não era apenas quem teria enviado aquilo... mas por quê?
Júlia pegou a imagem com cuidado. Sentiu o peso e sorriu. Voltou-se mais uma vez para a caixa e encontrou um cartão, escrito a punho, em letra de forma.
São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate, sede o nosso refúgio contra as maldades e ciladas do demônio. Assim seja.
Meu Deus, um sinal? Poderiam ter se passado os anos e a ausência de Clara se alastrado em sua vida, a falta de notícias e pistas tê-la feito nutrir-se somente da dor. Em nenhum momento, no entanto, Júlia desistiu. Aquela imagem majestosa reacendia em seu peito a esperança.
Miguel Arcanjo!
Sim, um sinal. Miguel, Miguel Serrado, o Guel, seu cunhado. Ele sempre fora o grande suspeito do sequestro. Na época do acontecimento, a polícia nada encontrara que pudesse indiciá-lo. Configuraram-se apenas as acusações de Júlia contra a sua defesa. As únicas testemunhas eram somente seu marido e ela mesma. Infelizmente, sua cunhada Raquel não havia presenciado também a proposta imunda do irmão. Júlia não tinha como provar seu envolvimento no sequestro de Clara. Joel, seu marido, por sua vez, havia perdido a própria vida, na esperança de lhes proporcionar uma situação financeira mais digna, principalmente para a filha.
Muitas dúvidas inquietavam sua alma. Júlia perguntou-se por anos se Guel não havia sentido a morte do próprio irmão e o que o motivara verdadeiramente no intento de vender a própria sobrinha. Algo lhe dizia não se tratar somente de dinheiro. Mas como alguém poderia ser tão perverso? Vender a própria sobrinha de um ano de idade e arquitetar a morte do próprio irmão para ficar com o dinheiro? Sim, só havia esta explicação. E talvez com aquele sinal ela estivesse perto de obter, de uma vez por todas, as respostas de que ansiava.
— Raquel? — gritou pela cunhada. — Raquel?
— Sim? — Raquel logo estava na porta do quarto.
Júlia segurava a bela imagem do anjo em suas mãos.
— Quem entregou este pacote?
— Acho que um entregador comum — respondeu, sem tirar os olhos do anjo.
— Mas ele não falou nada, não disse quem mandou?
— Não. Não veio nenhum cartão?
— Veio, mas não se identificou. Olhe!
Raquel leu a mensagem e pegou a estatueta. A imagem pareceu lhe encantar.
— Júlia, que anjo lindo!
— Verdade. Forte, não é? — completou, com largo sorriso e recebeu o anjo de volta, acolhendo-o como se fosse uma peça preciosa de museu. — Ele veio para me dizer algo.
— O que quer dizer?
Júlia ignorou a pergunta, olhando para a peça como se hipnotizada. Aquela imagem chegava em sua vida, cinco anos após ter a criança que presumia ser sua filha arrancada de seus braços pela mãe verdadeira. Nunca mais tivera nenhuma notícia ou qualquer pista que fosse acerca de Clara. São Miguel vinha como uma provocação, dilacerando seus medos, sua acomodação, trazendo de volta o ímpeto, e principalmente, uma ideia de por onde começar. Mas teria coragem de seguir seus instintos? E se estivesse enganada?
Não havia o que decidir. Seus planos para aquela tarde teriam que ser modificados. Chegava o momento de um reencontro com a única pessoa que poderia lhe revelar alguma pista sobre o paradeiro de sua filha. E certamente, São Miguel lhe orientaria naquela nova batalha. 






Capítulo 2

Júlia hesitou diante do número “1302” da porta que a separava de Guel Serrado. Por um instante, pensou em não tocar a campainha e voltar. Suas mãos tremiam, nervosa. Tinha medo de seus sentimentos e do que seria capaz de fazer contra aquele homem, se confirmasse sua culpa. Precisava se acalmar.
Ela apertou a campainha antes que se sentisse novamente fraca. Quando a porta se abriu, depois do terceiro toque, seu coração disparou.
— Como vai, Miguel Serrado?
— Júlia? — Guel ficou estático, perplexo ao vê-la. Parecia ter acabado de acordar naquele início de tarde. O cabelo um pouco desajeitado, de roupão.
— Posso entrar?
— O que faz aqui?
— Pensou que nunca mais me veria?
— Pelo menos, sei que era seu desejo. — Refeito do susto, ele apoiou-se na porta, como forma de impedi-la de entrar.
— Tem razão. Mas eu preciso saber de muita coisa, Guel. Posso entrar ou vai querer conversar aqui mesmo no corredor?
Júlia percebeu-o coletar algumas informações em sua mente antes de aumentar a abertura da porta e permiti-la entrar. Ela exprimiu um rosto satisfeito, que logo deu espaço para a angústia de pisar no seu apartamento. Situado no décimo terceiro andar de um prédio de classe média no bairro Edson Queiroz, aquele lugar aproximava-a mais das lembranças do sumiço de sua filha. E imaginou quantos golpes seu cunhado teria dado para bancar aquela estrutura imponente e bem cuidada.
— Paga esse lugar com o dinheiro da venda de minha filha ou de outras crianças que também roubou? — Julia expunha para fora toda sua indignação.
— Não sei do que está falando... — Guel respondeu sorrindo, como um triunfo. — Por favor, diga logo o que quer, Júlia. Não tenho muito tempo. — Jogou-se no sofá, apoiando a cabeça com as duas mãos e demonstrando certa intolerância no olhar.
— Sabe do que passei nos últimos seis anos?
— Isso novamente? Não me interessa! — Ele foi categórico, projetando-se para frente, como forma de deixar claro o limite. — Na verdade, hoje não me interessa nada que venha de você, Júlia. Nada! E quer saber do que mais? Não tenho mais tempo para as suas acusações. E já disse que não tenho a ver com o sumiço da sua filha.
— Não pode ter sido somente por dinheiro. Tenho quase certeza que existe alguma coisa por trás. Matou seu próprio irmão!
— Você é louca. Vê se me deixa em paz. — Guel estava de pé, começando a perder a paciência. — A polícia não conseguiu provar nada contra mim.
— Mas nós dois sabemos que é culpado, não é?
— Concentre-se na sua filha. Quem sabe a encontrará...
Julia aproximou-se de Guel, tentando intimidá-lo.
Como pôde ter sido apaixonada por aquele homem?
— Vou encontrar Clara. — declarou, pegando sua bolsa. — Nem que seja a última coisa que eu faça na minha vida, você vai pagar por tudo o que me fez. E por todos os seus crimes.
Ela se afastou em direção à porta, sem conseguir mais encará-lo, As lágrimas que brotaram em seus olhos imprimiam o ódio despertado por aquele homem, a saudade de sua filha. Quando, de repente, Guel falou:
— Realmente amou meu irmão?
O que aquilo tinha a ver com o sequestro de Clara?
— Por que essa pergunta, Guel?
— Preciso saber — explicou, sem conseguir desviar seu olhar. Julia imaginou se estava sendo frio ou sincero. — Sempre quis te perguntar, mas nunca tive coragem.
Por um segundo, Julia presumiu que travar aquele diálogo com ele poderia impeli-lo a responder as suas perguntas, ou até mesmo, a levá-la até sua filha.
— Amei Joel como um grande amigo que foi. Encontrei em seus braços o apoio no momento que eu mais precisava, após ter sido abandonada por você.
— Abandonada? — Ele arregalou os olhos, surpreso. — Abandonada, Júlia?
— Não vejo mais por que ficarmos falando sobre isto, Guel. Passaram-se muitos anos. Juro que hoje, para mim, aquilo parece um filme.
— Mas você e o Joel não estavam juntos na época em que fui preso?
— Joel e eu só nos casamos após seu desaparecimento.
— O Joel me fez acreditar que não, que vocês vinham se descobrindo apaixonados e que era o melhor para você naquele momento, tendo sofrido como sofreu nas minhas mãos. E a confirmação veio com a sua ausência, a falta de respostas às minhas cartas e o silêncio de Raquel sobre o assunto, como se quisesse me poupar. Eu me senti abandonado por você, Júlia.
Julia estagnou, completamente perplexa com aquela revelação. Joel sempre comentava sobre a indisponibilidade do irmão em lhe receber ou de vê-lo atrás das grades, por isso, manteve-se tão distante de Guel. Naquela época, foram inúmeras as vezes em que sentiu-se impedida de saber ao menos como ele estava vivendo. Três anos de uma intensa paixão, jogados fora porque Guel fora acusado de tráfico de drogas, mesmo que continuasse alegando inocência. Ela sempre acreditou nele. Lembrava-se de quando se conheceram, em Recife: ele, um modelo com uma carreira promissora; ela, bailarina de uma companhia de dança que viajava pelo Brasil. A paixão fora arrebatadora, inevitável. Depois aquilo havia se transformado em dor e angústia, até seu retorno, seis anos mais tarde, propondo a venda de Clara. Pior, descobrir que foram vítimas da paixão proibida de um homem pela namorada do próprio irmão. Será que Guel estava falando a verdade? E Raquel, sua grande e fiel amiga, que participação tivera naquela sujeira? Para Júlia, talvez aquela revelação explicasse muita coisa, tantos anos depois. 
São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate, sede o nosso refúgio contra as maldades e ciladas do demônio.
A oração vinha forte em sua lembrança.
— Sempre pensei que tivesse me traído com o meu irmão — justificou ele, tentando se aproximar.
— E isso te dá o direito de me tirar a minha própria filha?
...as maldades e ciladas do demônio...
— Ela simbolizava a felicidade de vocês.
Uma confissão! Finalmente estava claro para Júlia.
Ela mal conseguiu conter o choro.
— Roubou a minha filha por causa disso?
— Não! Está entendendo errado.
— Pelo contrário. Tudo está ficando claro. O sequestro foi uma vingança.
— Estou confuso com isso. Na verdade, não estava falando do sumiço da sua filha. Falava de mim, da gente, do Joel, dessa mentirada toda que eles inventaram para nos separar. — Ele se aproximou mais, ofegante. — Meu Deus, que loucura, Julia! Para mim não passava de uma traidora, não quis ficar com um presidiário, ficou com o irmão. — Seus olhos transbordavam em lágrimas. — O Joel e a Raquel me fizeram acreditar nisso, Júlia. Por isso sumi. Após sair da cadeia, não tinha mais motivos pra continuar em Fortaleza. Minha carreira como modelo tinha acabado. E você, casada com meu irmão.
— Eu... preciso me refazer, organizar todas essas informações. — sentia-se zonza.
— Perdão, Júlia, perdão!
Tantas revelações, um passado que havia voltado de forma impiedosa, colocando-os em lados diferentes do mesmo jogo. Um Miguel que assumia a forma de demônio, com o qual ela lutaria, a fim de reencontrar sua filha. Mais do que nunca, acreditava que seria ele quem a levaria até Clara. Olhou-o pela última vez e saiu daquele apartamento.


Júlia saiu do elevador do prédio de Guel atordoada com tantas revelações. Ela tirou o celular da bolsa e demorou alguns segundos até encontrar o nome de Tancredo Flores na agenda. Foi a primeira pessoa que lhe veio à memória, por ter sido ele um grande aliado na tentativa de encontrar sua filha. E depois de algumas chamadas, finalmente sua voz pôde-se ouvir do outro lado da linha.
— Alô... Júlia Serrado? Que boa surpresa!
Ela podia imaginar seu largo sorriso.
— Espero que não esteja incomodando.
— De jeito nenhum, é sempre bom falar com uma velha amiga.
— Está aqui em Fortaleza?
Júlia nem sabia precisar, mas provavelmente já tinha uns dois anos que não se viam pessoalmente. Tinha conhecimento de que Tancredo Flores passava uma grande parte de seu tempo viajando em missões perigosas, como ele definia alguns de seus trabalhos como repórter investigativo da RTN, um dos maiores canais de televisão do país.
— Nesse momento em São Paulo, finalizando uma matéria.
— Mas pode falar rapidamente?
— Claro. O que houve? — seu tom denunciava saber que algo sério havia acontecido.
— Estive com Guel Serrado, meu cunhado.
— E descobriu algo novo?
— Tenho certeza que ele sabe do paradeiro de Clara. Praticamente confessou que fez tudo por vingança.
Em poucos minutos, Júlia atualizou Tancredo com toda a conversa que tivera momentos antes com o cunhado. Ela sabia que há cinco anos, antes de ser procurado pela falsa babá para lhe entregar a menina como se fosse Clara, ele tudo fizera para descobrir a verdade, dizia na época ser um caso pessoal, e por meses, empenhou-se exclusivamente em ajudá-la a encontrar a filha, até que os anos foram lhe afastando naturalmente deste objetivo, pelas próprias circunstâncias profissionais, segundo ele. No entanto, em poucos minutos Júlia parecia trazê-lo com seu tino investigativo de volta à sua vida.
— Em anos nós não tínhamos nada tão significativo como agora.
Aquilo a encheu de esperanças. Sim, estava certa.
— Acha que isso nos coloca no rumo da verdade?
— Certamente que sim. Guel não é inocente como afirma todos esses anos.
— Acha que ele sabe onde está minha filha?
— Não tenho certeza. Mas que participou do sumiço, isso sim.
Uma pontada de tristeza a surpreendeu. Esperava que Tancredo lhe dissesse que Guel era a porta que eles precisavam abrir para encontrar sua filha.
— Ele não pode ajudar?
— Guel pode até não ser a porta que nós estamos procurando, mas é a chave.
Parecia ter lido seus pensamentos. Tancredo era uma figura curiosa, quase sempre se adiantava às expectativas das pessoas, surpreendendo-as com tiradas mais que interessantes.
“...estamos procurando”
Esta fala a encheu de felicidade.
— O que quer dizer? — tentou saber, ansiosa.
— Este é um bom recomeço, Júlia.
Ela não conteve o sorriso.
— Está me dizendo que me ajudará novamente?
— Tenho uma dívida com você, desde que lhe entreguei aquela criança como sendo Clara. Na verdade, nunca me perdoei por aquela falha.
— Não tinha como saber, Tancredo. Eu mesma me enganei. Por mais que desconfiasse, a trama foi muito planejada. Aquela menina era muito parecida com Clara.
— Expor você àquela situação, sem o cuidado de nos cercarmos da veracidade dos fatos, não tem perdão.
— Esqueçamos aquela história, meu amigo.
— Pode contar comigo, Júlia.
Ela sentiu vontade de vibrar ao ouvir aquilo.
— Mas como? Você está fora...
— Vou concluir meu trabalho por aqui, dentro de dois ou três dias estarei de volta a Fortaleza. Alguma coisa me diz que seu cunhado nos colocou no caminho certo.
— Obrigada, meu amigo, esta notícia me deixa muito feliz!
Júlia desligou o telefone com a certeza de que seria diferente. Aquela prestação de contas com Guel abria caminhos para um novo momento em sua vida. Lembrou-se do anjo e o impulso que tivera a procurá-lo, depois de receber aquele presente, como se Deus lhe conduzisse ao encontro de sua filha.
O que fazer, esperar por Tancredo? Temia tomar qualquer atitude e deixar que Guel escapasse de suas mãos, como tantas outras vezes. Entretanto, não tinha como aguardar quieta pela chegada de seu amigo. Não, não poderia mais esperar.
Raquel.
Sim, sua cunhada tinha muito a explicar, desde o plano com Joel, o irmão mais velho, a fim de separá-la de Guel, até possíveis pistas do sumiço de Clara que isso pudesse revelar.
Precisava voltar para casa o mais rápido possível e tirar aquela história a limpo. A ponta de um iceberg começava a se desvelar.






Capítulo 3

Não havia se passado uma hora da conversa esclarecedora com Guel Serrado e Júlia entrou em casa, ansiosa para tirar aquela história a limpo com a cunhada. Por mais que procurasse compreender sua atitude, muitas coisas precisavam ser explicadas.
O silêncio deixado pelos dois filhos pré-adolescentes de Raquel era preenchido pela voz do locutor da rádio FM em que o micro system da cozinha encontrava-se sintonizado.
— Raquel? — Júlia a chamou para saber onde estava.
— Oi, Júlia, aqui... — a voz veio da área de serviço, ao lado da cozinha.
Júlia foi até a geladeira tomar um copo d`água.
— Os meninos estão na escola?
— Chegam mais tarde. — Raquel surgiu na porta da cozinha, enxugando as mãos. — E você, não tinha ensaio na boate?
— Estive com o Guel.
Raquel mordeu o próprio lábio, desviando o olhar.
— Com o Guel? E como foi isso, aonde vocês se encontraram?
— Fui procurar por ele.
— Mas... o que aconteceu? Por que isso? — A fala atropelada, demonstrava nervosismo.
— Ele é a única pessoa que pode nos trazer alguma informação sobre o sumiço de Clara — explicou. — Mas acabamos por esclarecer nossa separação.
Raquel desviou o olhar, deixando transparecer o nervosismo.
— E... o que vocês falaram? 
— Você e o Joel me fizeram acreditar que Guel não queria mais nada comigo, após ter saído da cadeia. Vocês tramaram para nos separar, Raquel.
Houve um silêncio. Uma prestação de contas, onze anos depois. Raquel mudou de cor. Júlia sentiu uma pressão, como se estivesse remoendo um passado que talvez devesse ficar esquecido. Envolvia também Joel, que não estava mais entre elas.
— Júlia... sinto muito! — Não tinha o que ser dito.
— Por que vocês fizeram isso?
Ela sentou-se, apoiou o queixo com as mãos.
— O Guel te fazia sofrer, nunca foi a pessoa certa para você.
— E na sua opinião, o Joel era a pessoa certa?
— Ele te amava. Eu achava que podia te fazer feliz.
— Vocês dois manipularam as nossas vidas.
— Foi pensando na felicidade de vocês — disse, apoiando-se na mesa e inclinando-se para frente. — Joel te amava de verdade. Ele sim, poderia te fazer feliz. O Guel só te traria mais sofrimento. Veja o que aconteceu com você no período em que esperava por ele. Saiu da companhia de dança, abandonou sua carreira. Hoje você poderia ter conquistado muitas outras coisas se não fosse por aquele momento. Foram dois anos vivendo à espera de Guel, quando ele estava na cadeia. Aquilo não poderia continuar. Por mais que eu gostasse do meu irmão, sempre soube de seu caráter. Ele gostava de brincar com as mulheres, sem falar nas drogas. Ele destruiu sua própria carreira, e quase sua vida. Não demoraria para fazer o mesmo com você, minha amiga.
Por um instante, Júlia fraquejou. Havia ali um prognóstico acerca de seu futuro, que somente Raquel poderia dar, pois conhecia bem o irmão caçula a quem criou. Mas era direito mentir, enganar, manipular pensando no melhor? 
Júlia se lembrou do que fez logo após o desaparecimento de Clara. Em nome do desejo de reencontrar sua filha, foi capaz de tudo isso ao se envolver com pessoas sem caráter num perigoso e sórdido jogo de poder. Pagou caro, no entanto, por desconsiderar seus próprios valores e tentar transformar o mundo à sua volta num produto de seus medos e inseguranças, direcionando a imprevisibilidade da vida ao que julgava como adequado às suas necessidades. Por mais nobres que fossem seus motivos, eles perdiam sua força diante de suas atitudes, as mesmas, em alguns momentos, reconhecidas até mesmo em Guel Serrado. E por isso perdeu a pessoa que amava. Olhando por este lado, no que Raquel e Joel haviam sido piores?
Sim, tinha consciência que Raquel fizera aquilo para seu bem. Uma amiga leal, uma amizade que motivou Júlia a acolhê-la em sua casa com seus dois filhos pequenos, após perder o emprego e ser praticamente abandonada pelo marido. Podia-se dizer até mesmo, a irmã que nunca tivera.
Mas aquilo não acalentava sua maior dúvida.
— Por que não me contou que sabia que Joel aceitou a proposta de Guel para vender Clara ao casal de holandeses?
Júlia sabia que aquela informação não era real. Blefou, tentando descobrir até onde ia a cumplicidade dela com o irmão. Raquel, porém, hesitou. Em seguida, deu sua justificativa:
— Eu pensava que o Joel desistiria dessa atrocidade.
— Então sabia?
— Sim, mas...
— Por que não me contou? — Raquel sentiu o sangue queimar a face.
— Na verdade... eu não sabia de detalhes...
Mentira!
— Se soubesse das intenções do Joel, talvez eu pudesse tê-lo impedido.
— Não, não adiantaria...
— Disse que não sabia de detalhes, como sabe que não adiantaria?
— Imagino, sei lá... ele vendeu a própria filha.
Sim, era óbvio, ela mentia.
— Raquel, em nome de nossa amizade, o que sabe mais sobre o sumiço da minha filha?
— Nada, juro! — respondeu. — Eu sabia que ele queria aceitar, mas tentei demovê-lo da ideia. Ele me dizia que era para o bem de vocês, da própria Clara, que ela teria uma vida mais digna e herdaria uma grande fortuna do tal casal.
— Sempre foi minha amiga! Tratava-se da minha filha!
— O Joel me fez jurar que eu não contaria nada, que tudo ficaria bem.
— Depois de venderem a minha filha?! — disse Júlia, indignada.
— Não, ele disse que não faria isso.
— Mas você afirmou que ele queria aceitar! Como tinha certeza que ele não faria?
— Pelo menos eu esperava que sim.
Júlia tentou conter o choro, mas a dor da traição insistia em se manifestar. Afinal, foram duas grandes mentiras de Raquel, transformando por completo sua vida. A primeira, podia até compreender; a outra, no entanto, significava o sofrimento presente em sua vida nos últimos seis anos. 
— É difícil aceitar que você sabia desde o princípio do que Joel faria e nada tenha me dito. 
— Temia que não compreendesse.
A lágrima que Raquel deixou cair não a comoveu. Ela fora testemunha de sua dor durante aqueles anos e definitivamente não tinha o direito de esconder aquelas informações por simples medo de ser julgada.
— Não tem mais nada a me dizer?
— Perdão, Júlia.
Sua fala não foi o suficiente. Suspeitava que Raquel sabia muito mais e estava escondendo — o que mais a entristecia. Uma confiança de anos fora abalada.
Júlia a deixou num arrependimento aparente. Precisava se recompor. Saiu dali acompanhada de inúmeras dúvidas e diversas suposições. Raquel sempre fora um porto seguro. Via-a sem chão. Pensou em ligar imediatamente para Tancredo e partilhar a nova descoberta, mas precisava realmente se reorganizar emocionalmente. Imaginar que ela pudesse ter sido cúmplice do irmão no roubo de sua filha atingia-lhe como um grande golpe.
O bom daquilo era poder vislumbrar a possibilidade de extrair qualquer pista que fosse sobre o paradeiro de Clara em meio aos velhos segredos guardados pela cunhada. Depois do susto, logo pensaria em como aproveitar as revelações. Se Raquel realmente soubesse de mais alguma coisa, logo descobriria. 






Capítulo 4

Júlia chegou ao restaurante meia hora antes do horário combinado com Tancredo Flores. Mal podia conter a ansiedade por reencontrar o velho amigo e parceiro na busca pela sua filha. Ele havia retornado de São Paulo há um dia. Ficou surpresa quando ele ligou e marcou aquele almoço.
Ela sentou numa mesa indicada pelo garçom no canto do restaurante de decoração rústica, mas requintada. Sua atenção foi roubada pela imagem de um casal com a filha pequena a algumas mesas da sua. A menina brincava com uma boneca e lhe trazia a lembrança de Clara. Inevitável imaginar onde e com quem sua filha estaria naquele momento, bem como se abater pela saudade. Por um instante sentiu-a em seus braços, como pouco antes do roubo. Era a lembrança que tinha, de um bebê de um ano e três meses. Agora ela estaria com mais de sete. 
— Pensamento longe o seu...
Aquela voz familiar a trouxe de volta de seu universo de lembranças, uma voz que há muito não ouvia e que fez disparar seu coração em batimentos acelerados. A figura de Pedro Lucena estava diante de seus olhos, sorrindo.
— Pedro?!
— Há quantos anos não nos vemos? Quatro, cinco?
Pedro passou a mão pelo cabelo comprido, como se aquilo demonstrasse as mudanças naqueles longos anos de distância. Quando esticou a mão para cumprimentá-la, Júlia se ergueu e preferiu abraçá-lo. Podia sentir o descompasso de seu próprio coração, como a respiração ofegante de Pedro em sua nuca. Há muito não desfrutava daquele cheiro, do calor daquele abraço.
— Que coincidência você por aqui... — Júlia nem sabia ao certo o que falar.
— Coincidências não existem — ele disse sorrindo, ao sair do abraço. — O que faz aqui sozinha?
— Esperando um amigo... — falou como se tivesse esquecido por um instante que se tratava do melhor amigo de Pedro e que fora ele mesmo quem o contratou há seis anos para trabalhar na RTN, pensando que Tancredo pudesse ajudar no caso de Clara. — O Tancredo... — preferiu completar. — Sabia que ele está aqui em Fortaleza?
— Sim, sim. Nós nos falamos ontem por telefone. Apenas não nos encontramos.
Óbvio que sim. Além de amigos, Pedro Lucena era o vice-presidente da RTN. Que comentário bobo aquele! Mas jamais imaginaria encontrá-lo ali, por isso sentia-se tão desconsertada. Afinal, depois de tanto tempo morando na mesma cidade sem se esbarrarem, pensava que aquilo não mais aconteceria, por mais que desejasse o contrário.
— E você... está acompanhado?
Pedro se voltou para outra mesa, do outro lado do ambiente, onde estavam algumas pessoas.
— Almoço de negócios — explicou. — Mas e você, por onde tem andado, o que tem feito?
— Continuo na Mirage, estamos trabalhando num novo espetáculo que estreia próximo final de semana.
— Está coreografando?
— Pois é, há tempos que Olívia me pedia para voltar aos palcos como bailarina do grupo. Vinha com algumas resistências, mas acabei topando.
— Vai dançar então?
— Sim.
— Júlia, que maravilha! — pareceu vibrar. — É muito bom quando fazemos o que gostamos.
— E você, o que tem feito?
— Manter uma emissora fora do eixo Rio-São Paulo como um dos maiores canais de televisão do país não é fácil. Mas deve saber disso... — Uma insinuação? — Tem visto o Leonardo? — Sim, para ela uma insinuação. Pedro nunca aprovou sua relação com Leonardo Gondim, o dono da RTN, o que a levava a acreditar ser esse o verdadeiro motivo de seu afastamento.
— Somos amigos, nos encontramos sempre — explicou ela, provocando-o. Diversas vezes tentou manter contato com ele naqueles últimos anos, mas Pedro sempre encontrava uma desculpa para não vê-la ou prolongar qualquer conversa por telefone, o que os foram afastando aos poucos, até que se distanciassem por completo.
De repente, foram interrompidos pela voz de Tancredo, que havia acabado de chegar à mesa.
— Ora, ora, que encontro formidável! — celebrou. — Meus dois amigos aqui para me receber? 
— Trabalhando muito, rapaz, sem tempo para os amigos? — brincou Pedro, ensaiando um jeito sério.
— Nada, tentando fazer um bom trabalho para não ser demitido — retribuiu a brincadeira aos risos, certamente por ser Pedro o vice-presidente do canal para o qual Tancredo trabalhava há seis anos. — Cuidando da minha convidada? 
— Nos encontramos por acaso — revelou Júlia.
— Acaso? — questionou o repórter, com olhar insinuativo. — Isso... não... existe — completou, dando ênfase em cada palavra.
— Também concordo — Pedro respondeu prontamente. — Eu disse o mesmo.
— Vai almoçar conosco?
— Infelizmente não.
— Que tal nos encontrarmos na estreia do novo espetáculo de Júlia? Neste fim-de-semana? — sugeriu Tancredo.
— Claro. Por quê não? — arrematou Pedro, fitando os olhos de Júlia.
Júlia não respondeu. Nem imaginava o que aquele olhar comunicava. Não sabia se ele ficara tão feliz quanto ela de reencontrá-lo. Desejava que aquele rápido encontro se eternizasse, que pudessem falar mais de suas vidas, do que tinham vivido naqueles últimos cinco anos, de sua saudade. O próprio Tancredo dizia nunca ter se conformado com a separação dos dois. Para Júlia, aquela proposta poderia ser uma forma de tentar mais uma vez reaproximá-los, como tantas outras no passado. Mas ela acreditava que Pedro jamais aceitaria.
Com sua afirmativa, Júlia não conteve o sorriso. Pedro se despediu dos dois e saiu. E antes que chegasse em sua mesa, deu uma última olhadela, o que a deixou desconsertada diante de Tancredo.
Ela sentou-se à mesa. Depois, Tancredo.
— Não consigo entender por que não estão juntos. — desabafou ele.
— Não era para ser — uma resposta forçada. — Precisamos conversar sobre outra coisa. É para isso que estamos aqui, não é?
— É claro! Que tal fazermos o pedido e me contar o que houve na conversa com seus cunhados? — Tancredo propôs.

Júlia seguiu o protocolo. Depois da visita do garçom à mesa, ela entrou no assunto da forma mais direta que conseguiu. Durante sua explicação, Tancredo apreciou atentamente os detalhes, como se tentasse farejar qualquer pista que fosse. Parecia ser o início de uma grande jornada. O que mais a deixava ansiosa, era por onde começar, se por uma investigação na vida de Guel ou da sua própria cunhada, com quem morava. Mas foi de Tancredo Flores o veredicto — começariam pela relação dos dois. Para ele, os irmãos sabiam mais do que diziam sobre o desaparecimento de Clara. 






Capítulo 5

Pedro Lucena recebeu uma pasta de couro das mãos de Caetano. O velho trazia o semblante retorcido em rugas e uma tristeza irreconhecível em todos os anos dedicados a cuidar da casa de praia de sua família. Pedro apoiou a pasta na mesa e começou a abrir.
— O que é isso, Caetano?
— Os documentos que o senhor procurava.
— O dossiê do meu pai? Sempre esteve com você?
— Seu Alberto, antes de falecer, me pediu para guardar como se fosse minha própria vida — respondeu o velho.
Pedro não acreditou no que estava diante dele. Todos os documentos organizados pelo pai, revelando a identidade de seu grande inimigo dentro da RTN e as negociações ilícitas envolvendo a emissora. Soube disso logo que viu, nas primeiras páginas, o nome grifado de Donato Pessoa — Diretor Comercial da empresa. 
— Meu Deus... — deixou o pensamento transformar-se em palavras. Depois, voltou-se para o caseiro. — Por que não me entregou esta pasta, Caetano?
— Parecia que seu Alberto tinha se arrependido de juntar esses papeis. Ele estava com medo e me pediu para ficar com eles, caso lhe acontecesse o pior — explicou.
— Está dizendo que meu pai pode ter sido morto por causa disso?
— Não sei, seu Pedro.
— Mas a morte do meu pai não foi um simples ataque cardíaco?
— Pode ser que sim... — o velho deu de ombros, como se levantasse uma suspeita.
— O que mais sabe, Caetano? Desconfia de alguém?
— Não, não, seu Pedro... — recuou, como se temesse algo. — Apenas que seu Alberto parecia estar sempre com medo.
— De quem ou de que?
— Ele não falou nada, somente que eu devia guardar essa pasta.
— Procuro por esses documentos há seis anos e só agora me diz que sempre esteve com eles? Qual foi seu motivo?
O velho baixou a cabeça.
— Estou doente, seu Pedro. Fiquei com medo de me acontecer o pior e o senhor ficar sem saber de nada.
Pedro observou Caetano curvar-se, mostrando fragilidade. Parecia menor do que se lembrava. Pensou o quanto conhecia aquele velho homem. Estivera presente em sua vida sempre que a família aparecia nos finais de semana, naquela casa de praia.
Tocou em seu ombro, gentilmente. Precisava escutá-lo.
— Mas, Caetano... doente de que?
— Parece que é coisa ruim na garganta.
— Na garganta? Laringe, quer dizer?
O velho fez que sim.
— Seu Alberto dizia que o cigarro me mataria. Acho que ele tinha razão.
Pedro sentiu pena e o abraçou. De uma forma irrepreensível, o velho caseiro lembrava a presença de seu pai naquela casa no Porto das Dunas.
— Faremos de tudo para ajudá-lo, não se preocupe.
— O senhor me perdoa, mas achei que estava fazendo o certo. Seu pai sempre teve medo por causa desses papeis. Ele morreu logo depois de me entregá-los.
— Entendo. Obrigado, Caetano. É um amigo leal, não tenho porque ficar chateando com você.
Assim que o homem saiu, Pedro sentiu-se afogado em todas as revelações que ele tinha lutado para encontrar desde a morte de seu pai, contidas naquela pasta. Muitas laudas, cópias de contratos, extratos bancários, folhas de pagamentos e cheques, licitações e diversos outros documentos que traziam em evidência o nome de Donato Pessoa. Pedro podia imaginar a dor do pai ao descobrir a verdade acerca do homem a quem ele deu todas as chances e transformou num grande executivo — o grande amigo de faculdade de Pedro, e atualmente, concorrente declarado na sua disputa pela vice-presidência da RTN. Porém, algo na conversa com Caetano reverberava dentro dele. Seu pai poderia ter sido assassinado por causa daqueles documentos?
Aquelas suposições o fizeram largar os papeis, angustiado.
Pedro resolveu caminhar até a área da piscina. Precisava de espaço. De onde estava, observou a imagem do mar revolto sobre o muro. Lembrou-se do pai, ali na varanda ao lado, celebrando a vitória de uma jogada na mesa de sinuca contra ele e Donato, os dois universitários.
Ele o considerava como um filho, Donato... E eu o tinha como um irmão.
Pedro retornou para a sala. O que fazer de posse daquela pasta, afinal? Desejava justiça, como acreditava que seu pai também desejava, quando o organizou. Poderia entregá-lo à polícia ou primeiramente a Leonardo Gondim, o dono da RTN, supostamente a pessoa mais atingida pelas armações de Donato Pessoa dentro da emissora. Ou ainda, poderia mostrá-lo ao próprio diretor comercial, numa prestação de contas pessoal, antes de fazê-lo chegar nas mãos da justiça. Sim, porque este último destino seria inevitável ao dossiê.

Pedro juntou os papeis, devolvendo-os à pasta. E decidiu que faria o necessário naquele momento.






Capítulo 6

Donato Pessoa se serviu de uma dose de uísque. Fechou os olhos, degustando a bebida e procurando esquecer a exaustão provocada por uma difícil negociação entre um importante anunciante e seu departamento na RTN. Confortou-se com o silêncio do seu escritório. Para ele, o local mais aconchegante do seu luxuoso apartamento na Beira Mar. A tranquilidade, porém, não duraria muito, quando ouviu o telefone tocar. Não atendeu. Até que sua secretária bateu na porta e abriu, no momento errado. 
— Com licença... é a filha do caseiro para você — anunciou Luísa..
— A essa hora? — questionou, impaciente.
— Não quis adiantar nada, mas disse-me ser urgente.
Donato atendeu o aparelho em sua mesa. Foi direto ao assunto, produzindo seu melhor tom grave e arrogante.
— O que quer? 
— Os papeis que o senhor procurava... — noticiou a moça do outro lado da linha. — Meu pai entregou ao seu Pedro há pouco.
— O que está me dizendo? — Pousou o copo na mesa e franziu a testa. — Fala do dossiê do Alberto Lucena?
— Pelo que ouvi, é isso sim — ela confirmou.
Donato sentiu a adrenalina subindo.
— E esses documentos estavam aonde, sua incompetente?! — Donato trocou um olhar de cumplicidade com a secretária, indignado por ter contratado a filha de Caetano há anos para procurar aquele dossiê e ela nunca tê-lo encontrado.
— Parece que dentro de um baú no quarto do meu pai. Estava muito escondido, seu Donato, não tinha como eu...
— E onde está o Pedro Lucena? — interrompeu-a num grito.
— Sa-saindo no carro.
— Sua idiota! — Donato humilhou-a, desligando o celular. Voltou-se à secretária. — Luísa, avise aqueles nossos amigos imediatamente e passe as coordenadas sobre Pedro Lucena. Sabe como proceder.
— Eles terão liberdade para...
Donato ficou furioso. Deu um soco na mesa, interrompendo a pergunta.
— Será que preciso ser mais claro? Muito está em jogo. E pelo que nós sabemos, não é apenas o meu nome que está naqueles documentos.
Luísa assentiu. Deu um passo para trás, fazendo um gesto com a cabeça, até que saiu do escritório.
Donato tomou o restante de bebida de um só gole. Tentou se recompor, deixando o sangue desaparecer calmamente da face. Deixaria nas mãos de Luísa. Ela nunca falhara seriamente em tantos anos de parceria, e não seria agora. Mas se isso acontecesse...
— Donato?
Desta vez, era a voz de Marina, sua esposa, da porta do escritório.
— Oi, querida — respondeu, tentando melhorar a cara de azia. — Algum problema?
— Não tive... como deixar de ouvir a conversa de vocês. 
— Que conversa? Do que está falando? — Ele abriu um sorriso largo, como se realmente acreditasse não saber do que se tratava.
— Vi que descobriu sobre o dossiê. Donato, por favor, sabe que nunca me intrometi em seus negócios. Mas agora é diferente. Trata-se de Pedro.
Donato não teve como disfarçar. Por um lado, podia imaginar porque sua esposa tivera coragem de intervir. Sabia de sua gratidão por Pedro Lucena, não apenas por ter sido seu cunhado, mas por tê-la acolhido como a uma irmã mais nova por anos em Londres, quando era casado com Vanessa.
Ele aproximou-se da mulher, tocando firme seu cabelo.
— Minha querida, não se preocupe. Pedro estará em segurança. Será apenas um susto.
— Fale com a Luísa antes que seja tarde! — ela pediu, quase implorando.
— Marina, fique tranquila, está tudo sob controle. — insistiu. — Preciso fazer isso, entende? Para nosso bem.
Marina abraçou o tórax. Antes de deixar a sala, disse:
— Não estou com um bom pressentimento. 
Enfim, deixou-o sozinho. Donato se serviu de mais uma dose de uísque, desta vez, degustando gole a gole. No fundo, partilhava da mesma preocupação de Marina. Vislumbrou por um instante a possibilidade de desistir. Entretanto, necessitava daqueles documentos comprometedores. Fazendo uma breve retrospectiva, sabia que não havia chegado aonde chegou por acaso. Havia passado por cima de muitas pessoas. Mas aquilo era pouco. Hoje, enxergava o grande amigo da época de faculdade como seu maior inimigo, não só por lhe roubar o cargo de vice-presidente da RTN, quanto por estar de posse de documentos que poderiam destruir sua carreira. E isso era inaceitável.
Deste modo, preferiu terminar sua bebida e esperar. Em breve, tudo estaria resolvido. E talvez, veria Pedro Lucena finalmente fora de seu caminho. 







Capítulo 7

Júlia deu o último giro, encerrando a tarde de ensaios antes da estreia do novo número de dança que estrelaria. Depois, dispensou os bailarinos com algumas palmas, sugerindo descansarem antes da abertura da casa, dali a algumas horas. Em seguida, desceu do palco, enxugando-se com uma toalha. Ouviu Olívia Cordeiro, dona do espaço, elogiá-la, após apreciar o ensaio de uma mesa ao lado.
— Estamos dando o nosso melhor, Olívia — explicou à mulher, que também havia sido bailarina clássica e modelo.
— Confio em você, Júlia.
Elas tinham estabelecido uma admiração mútua uma pela outra desde que haviam se conhecido há muitos anos. Um sentimento que foi se consolidando, principalmente depois que Júlia deixou de ser apenas a coreógrafa dos números de dança apresentados pela casa de espetáculos Mirage, assumindo a direção artística da requintada estrutura situada à Praça Portugal, responsável por movimentar as noites de Fortaleza, com shows que integravam sensualidade e a criatividade de seus bailarinos.
De repente, Tancredo Flores surgiu esbaforido, acompanhado por um dos seguranças da casa, que parecia tê-lo conduzido até ali.
— Não acredito que perdi o ensaio! — lamentou ele.
— Ainda bem que não viu nada! — Olívia comemorou, indo ao seu encontro. Tancredo abraçou-a, e depois a Júlia. — Pensei que o famoso repórter cearense nunca mais voltasse à sua terra — ela brincou.
— Tancredo tem um grande motivo a estar de volta, Olívia — Júlia justificou.
— Claro, claro! A beleza da Júlia me prende à Fortaleza.
— Galanteador, como sempre! — Olívia concluiu, sorridente. — Vou deixá-los a sós.
Júlia havia prevenido Olívia que Tancredo a ajudaria novamente na busca de Clara. Ela por sua vez, colocara-se a total disposição para apoiar no que fosse preciso.
Depois que Olívia saiu, Tancredo puxou Júlia para uma mesa e tirou um papel do bolso do paletó, colocando-o diante dela.
— Veja isso, Júlia.
Júlia segurou o papel. Tratava-se de uma fotografia — uma jovem morena, de beleza exótica, na porta de embarque no aeroporto Pinto Martins.
— Bonita mulher... — concluiu, sem compreender.
Ele apontou para a imagem na fotografia por trás da moça. Júlia identificou a figura de Guel Serrado perto da sacada que dava para o andar térreo do aeroporto, ao lado de uma mulher com uma criança nos braços. Os dois pareciam conversar com um homem de costas para o ângulo em que o fotógrafo capturou aquela imagem. Todos usavam óculos escuros.
— Conhece esta criança? — Tancredo perguntou.
A imagem era um pouco desfocada, visto que o objetivo da foto certamente devia ter sido a moça posando na frente. Mas Júlia reconheceu o vestidinho rosa com detalhes brancos, comprado para Clara meses antes de seu desaparecimento. Ela pôs a mão na boca, como se segurasse a emoção.
— Meu Deus! É... Clara!
— Era o que eu pensava.
— Mas como conseguiu esta foto? Quem é ela? — referiu-se à jovem da frente.
— Estava concluindo um material para uma reportagem sobre tráfico de mulheres para o exterior. Esta jovem da foto desapareceu na mesma época do sequestro de sua filha. A família me deu acesso a seus arquivos pessoais. Coincidência ou não, encontrei esta foto dentre muitas outras as quais analisava para a matéria.
— Santo Deus! — Ela encheu-se de lágrimas.
— Viu a data?
Júlia prestou atenção nos pequenos números gravados no canto inferior direito. A fotografia datava de 17 de dezembro de 2005, dois dias após o desaparecimento de Clara, às 14h23.
— O que acha, Tancredo?
— Esta é a primeira prova substancial do envolvimento do seu cunhado com o sequestro da sua filha.
Guel Serrado era mesmo culpado!
— Desgraçado! — Júlia desabafou, fechando o punho com toda a força. Levantou-se, procurou se recompor e começou a refletir. — Se estavam no aeroporto...
— Eles embarcaram com a criança. — Tancredo confirmou.
Júlia voltou-se para o amigo, quase como um pedido de socorro.
— O que nós devemos fazer?
— Descobrir quem são essas pessoas que estão com ele.
Júlia olhou a imagem novamente. A mulher loira tinha um rosto familiar. Parecia tê-la visto antes, mas não lembrava. Já o homem que estava de costas, não tinha como identificá-lo. Guel falava alguma coisa no momento em que a fotografia fora batida.  Talvez desse coordenadas, quem sabe...
— Como vamos fazer isso? — perguntou, ansiosa.
— Primeiro deve mostrar essa fotografia à sua cunhada. Vamos ver como ela reage. Quem sabe, ela conhece essa mulher.
— Mas se Raquel sabe de alguma coisa, ela não vai me dizer.
— Talvez, não com palavras.
Júlia pensou um pouco e percebeu que Tancredo tinha razão. Aquela imagem desfocada poderia ajudá-los a descobrir alguma outra pista. Pela primeira vez em anos, sentiu-se mais próxima do caminho que a conduziria ao paradeiro de Clara.
Uma lágrima batizou seu rosto.
— Sinto que nós estamos perto, Tancredo.
— Nosso próximo passo é descobrir os voos e seus respectivos destinos naquela tarde, como seus tripulantes.
— Mas como fazer isso?
— Tenho meus meios, Júlia. — explicou Tancredo, com um sorriso triunfante. — Vou deixá-la nos preparativos para sua estreia.
— Obrigada, meu amigo. Muito obrigada — disse, enxugando os olhos.
Tancredo a acolheu num abraço e deixou-a em seguida, com a fotografia.
Júlia agradeceu a Deus por ter um dos maiores repórteres investigativos do país debruçado sobre o caso de sua filha. Finalmente uma pista, um direcionamento. Se não tivesse conversado com Guel e depois procurado novamente por Tancredo, talvez o repórter tivesse visto àquela fotografia sem ter desconfiado de nada. A história vinha se encaixando.
Ela queria pular de felicidade, já que aquela prova acalentava seu coração. Sim, pois estavam no caminho certo! Tudo seria diferente, por disporem de um ponto de partida. E quanto à ela, certamente não ficaria de braços cruzados esperando que Tancredo Flores trabalhasse sozinho.
Júlia olhou mais uma vez para a imagem do cunhado na fotografia e decidiu procurá-lo. Guel Serrado teria muito a lhe explicar. Mas não sem antes, interpelar Raquel.







Capítulo 8

Pedro Lucena entrou no carro e colocou a pasta com os documentos no banco ao seu lado. Deixando a garagem, avistou a filha de Caetano falando ao celular na varanda da casa. A moça acenou para ele e logo desapareceu porta a dentro.
Pedro tomou a estrada do Porto das Dunas de volta a Fortaleza. Tinha como intuito desmascarar seu maior rival dentro da empresa, como fazer cumprir a justiça que seu pai certamente desejou antes de morrer. Um alívio por finalmente encontrar aquele dossiê o qual procurava desde sua volta de Londres, seis anos atrás, pouco depois da morte de seu pai. Uma ferida, no entanto, se expandia em seu peito, por confirmar o nome de Donato Pessoa como principal acusado nos golpes ali denunciados. Além disso, teria Donato se envolvido diretamente com a morte de seu pai? Essa suspeita estava o matando, o que o motivou a pisar fundo no acelerador.
O sol estava quase se pondo e o fluxo de carros havia diminuído depois de vinte minutos de viagem. Pedro prosseguia concentrado, até que uma caminhonete preta cruzou por ele em alta velocidade. Ouviu o cantar de pneus e olhou pelo retrovisor. Metros atrás, o veículo deu meia-volta e seguiu na mesma direção que ele.
Pedro percebeu que o veículo repetia seus gestos. Se acelerasse, a caminhonete também acelerava; se diminuísse, ela fazia o mesmo.
O que está acontecendo? Estão me seguindo?
Pedro pisou mais fundo no acelerador, sem respeitar o limite de velocidade da estrada. A noite começava a cair, e os números digitais de seu velocímetro aumentavam gradativamente. A caminhonete seguia em sua cola, sem que pudesse fazer muita coisa. Até que ele ouviu um estampido e o barulho que se seguiu na lataria traseira do seu carro.
Um tiro!
Pedro apavorou-se. Tentou aumentar a distância da caminhonete, fazendo com dificuldade as curvas da estrada, desviando das sinalizações e escombros, conforme as muitas obras inacabadas na pista. 
De repente, outro tiro atingiu seu carro. Percebia que sua vida estava em jogo, sem fazer ideia do motivo. Tratava-se de um assalto? Mas àquela horário e numa rodovia de tão fácil acesso?
O terceiro tiro acertou o vidro traseiro.
Por Deus, o que é isso?
Pedro se agachou o máximo que pode, sem soltar a direção. A caminhonete o acompanhou, manobrou para a pista do lado e se colocou lado a lado com seu carro. Quando veio o quarto disparo, ele mal teve como ver os homens encapuzados.
Sentiu a dor no braço esquerdo e percebeu o sangue.
Havia sido ferido.
A caminhonete levou alguns segundos para ultrapassá-lo. Pedro se viu atrás de seus agressores, que foram diminuindo a velocidade, tentando forçá-lo a parar. Queria desviar, mas sentiu o braço dormente, quase inutilizado. O pavor lhe consumiu. Não conseguia pensar em mais nada. Logo foi tomado por uma sensação de vertigem, provavelmente pelo ferimento no ombro, por estar sangrando muito.
Num último esforço, jogou seu carro para o acostamento e freou bruscamente. Antes que os homens reagissem, ele saiu do carro, ensaiando uma fuga. Mas e a pasta? Deixaria o dossiê de seu pai nas mãos daqueles bandidos, depois de tantos anos procurando ele? Não. Não podia permitir. Se seu pai havia escondido aquilo por tanto tempo e talvez até morrido por causa daqueles papeis, o esforço valeria a vida.
Pedro retornou. Viu quatro homens descerem da caminhonete, todos armados. Pegou a pasta e saiu pela porta do passageiro, caindo numa ribanceira ao lado do acostamento. Quando se pôs de pé e correu, ouviu vários tiros. Uma queimadura lancinante tomou conta de seu ombro, depois de sua perna, fazendo-o despencar no chão.
Ouviu passos se aproximando. Sua visão turvou.
Quando olhou para cima, percebeu um dos homens com a pasta nas mãos. Eles falavam coisas que não dava para ouvir, como se fossem ecos em sua mente.
Foi pelo dossiê!
Tudo escureceu. 







Capítulo 9

Donato Pessoa acompanhou o cair da noite da janela de seu escritório, do vigésimo segundo andar. Permaneceu por um bom tempo hipnotizado pelo mar e o movimento lento dos barcos que por ali navegavam. Foram pelo menos cinco ou seis doses de uísque, na tentativa frustrada de conter uma ansiedade sufocante, provocada pela espera de notícias acerca da operação de apreensão do dossiê que estava com Pedro Lucena.
Não era somente sua carreira que estava em jogo. O segredo de um grande esquema de corrupção envolvia outros nomes; portanto, torcia para que Pedro não tivesse tido como ler o documento antes de sair de casa, assim, afastaria a necessidade de uma providência mais contundente contra ele. Por mais que desejasse vê-lo fora da vice-presidência da RTN, não pensava em vê-lo morto. A amizade profunda construída na época da faculdade exigia-lhe uma pontinha de saudade — sentimento rude e autoritário do qual Donato fugiu a vida inteira, a fim de não se ver roubado em sua lucidez, ou mesmo, perder-se de seus objetivos definidos numa adolescência pobre e solitária.
De repente, o silêncio do ambiente fora quebrado pelo toque estridente de seu celular. Donato pegou o aparelho e olhou o visor.
LUÍSA CHAMANDO...
Finalmente!
— Conseguiram?
— O dossiê está em lugar seguro — respondeu Luísa, do outro lado da linha.
— E Pedro Lucena? — sua voz veio quase como um atropelo.
Houve uma pausa, antes que ela respondesse.
— Ele está morto — a mulher sentenciou.
Por um instante, Donato não ouviu nada mais além das palavras de Luísa, ecoando em sua cabeça. Mal sentiu a pancada da própria mão sobre a mesa, numa coreografia de resposta ao seu berro. Uma expressão de raiva e dor desenhou-se nas curvas contidas do rosto de Donato, deixando-o visivelmente transtornado.
— Morto?!
Não, não pode ser!
— Donato, sabe que não seria fácil, Pedro Lucena não entregaria esse dossiê de mão beijada — Luísa tentou justificar.
A esta altura, a esposa de Donato entrou no escritório.
— O que houve?
Donato fez um sinal para que ela aguardasse enquanto terminava a ligação.
— Quero detalhes, sua idiota! — exigiu ele.
— Donato, pelo amor de Deus, o Pedro está bem? — Marina tentou interferir novamente.
Donato pediu-lhe calma.
— Pelo que os homens disseram foram vários tiros — Luísa detalhou. — E... Parece que Pedro foi atingido no peito. — uma pausa e finalmente completou: — eles acham que pode ter pego o coração.
— Meu Deus! — Donato colocou a mão na cabeça. — Isso não podia ter acontecido.
— Aconteceu o pior? — Marina persistiu, tomada em choro.
Pela primeira vez em dez anos de casamento, Donato permitiu que a esposa testemunhasse sua fragilidade denunciada pelas lágrimas. Sem coragem de confirmar, ele insistiu com a secretária.
— Mas... como eles podem ter certeza?
— Eles tiraram o dossiê das mãos dele e o deixaram lá, sem vida — Luísa confirmou.
Novamente Donato voltou-se para a mulher, que percebera tudo e chorava diante dele. Desejou abraçá-la, acalentá-la ou, de repente, receber um pouco de cuidado. Verdadeiramente, era ele quem precisava de amparo. Mas voltou-se ao telefone, mais uma vez.
— Aonde está?
— A caminho daí. Logo esses papeis estarão em suas mãos, como prometi.
Por um instante, Donato queria que Luísa não fosse tão competente como em todos aqueles vinte anos de parceria e trabalho. Desligou o telefone e balançou a cabeça para sua mulher, sem pronunciar uma só palavra, como se condenado sumariamente pela própria culpa alastrada em sua alma.
— Donato, pelo amor de Deus, me diz o que aconteceu! — Marina implorou, aos prantos.
Ele entrelaçou os dedos, colocando as mãos na cabeça, como se fosse possível conter o turbilhão de pensamentos e culpa que o dominavam naquele momento. Ganhou um pouco mais de tempo e finalmente conseguiu pronunciar algo com muito esforço, quase sem se fazer ouvir.
— Tudo... tudo está acabado! — sorriu, dissociado, com os olhos marejantes.
Marina foi quem se precipitou, batendo em seu peito, enquanto Donato permaneceu rígido.
— Meu Deus, o que você fez?!
— Eu não queria, Marina... Juro que não queria isso! — procurava conter-se para não aparentar tanta fragilidade, como a mulher.
Nunca ninguém o tinha visto naquele estado, nem mesmo sua esposa. Desejava dizer a ela que Pedro havia invadido seu espaço, tomado seu lugar. O que eles haviam conseguido estava sob ameaça, pela terrível mania que Pedro tinha em querer fazer justiça. Mas que nunca desejou fazer mal a ele ao ponto de querer matá-lo. Porém, as palavras ficaram entaladas na garganta.
Não tive culpa, foi culpa do caseiro, daquele velho imbecil. Ele não tinha nada que ter entregue aquele dossiê para o Pedro depois de tanto tempo... foi culpa dele!
— O que vai fazer? — Marina procurou saber.
Donato pensou naquela pergunta. Precisava convencer a si mesmo de que superaria aquela culpa. Procurou apoiar-se na ideia de que a rivalidade com Pedro Lucena finalmente teria chegado ao fim. Os dois grandes obstáculos responsáveis por não realizar seu sonho dentro da RTN estavam mortos — pai e filho, os mesmos responsáveis por ele encontrar abertas as portas do mundo que tanto sonhava.
Só restava a ele ocupar o cargo que tanto sonhou desde a inauguração da RTN, há quinze anos, quando era um canal local na capital cearense, e que lhe fora roubado pelo velho Alberto Lucena. A vice-presidência de uma das maiores emissoras de televisão do país, enfim, passaria a ser sua, e ninguém mais o impediria.
Após se recompor, ele se virou para sua esposa e disse:

— Seguirei com a minha vida.






Capítulo 10

Júlia Serrado deu o toque de rímel antes da estreia de seu novo número de dança. Rodopiou uma última vez diante do espelho de seu camarim, certificando-se de que estava bem no figurino — uma roupa colada em couro cor de vinho que lhe valorizou perfeitamente todas as curvas. O cabelo ruivo preso num coque em rabo de cavalo ressaltava a beleza de seu rosto, destacando o olhar selvagem. Sim, estava linda, pronta para subir de volta aos palcos.
Uma das bailarinas veio lhe avisar que entraria em dois minutos.
Que Deus esteja comigo!
Júlia deixou o camarim e percorreu o corredor que dava para o palco, tomada de ansiedade e nervosismo, como de costume numa estreia. Procurava, no entanto, manter o foco, a concentração, através da respiração regulada em contagens sequenciais de dez em dez. Em instantes, uma apresentação de vinte bailarinos entre homens e mulheres, envolvendo arte e sensualidade e estrelada por ela, dominaria o palco da casa de shows Mirage por meia hora. A equipe inteira estava empenhada no sucesso daquela estreia, e nada poderia dar errado.
Da coxia, podia ouvir o murmurinho da multidão que sobressaía à música eletrônica executada pelo DJ. A alguns metros dela, quatro bailarinos se aqueciam. Eles fariam parte do número, juntamente com o cavalo, o qual seria montado por Júlia. Ela olhou para o animal, como se estabelecesse uma espécie de comunicação ou cumplicidade. Parecia que tudo estava pronto.
— Casa lotada!
Júlia ouviu aquele comentário da boca de algum dos bailarinos que aguardavam atrás dela sempre como se fosse a primeira vez. Mas não tinha como negar que aquele momento lhe trazia uma magia a mais. Afinal, havia muitos anos que não subia no palco como bailarina, preferindo os bastidores, a direção do grupo, a criação e coreografia. Retornava aos trinta e seis anos, como estrela principal de um novo espetáculo.
E Pedro, será que veio?
Desejava muito que ele estivesse presente. Haviam combinado de saírem depois da apresentação para conversar. Aquilo a deixava mais apreensiva. Temia que Pedro não aparecesse. E se isso acontecesse, entenderia o recado.
Júlia fechou os olhos e rezou por uma última vez antes de sua entrada. Depois montou no cavalo com a ajuda de um dos bailarinos.
Este show é para você, filha!
— Preparados? — ela indagou aos colegas de trabalho.
Todos responderam em coro que sim. E o DJ da casa anunciou:
— E com vocês, o mais novo espetáculo da maior casa de shows de Fortaleza. Neste palco... no coração da Aldeota... a companhia de dança da Mirage apresenta: Amazona!
A voz grave do DJ vinha carregada de efeitos sonoros. O batuque de muitos tambores e uma música de fundo orquestrada marcavam a entrada triunfal de Júlia Serrado montada num cavalo branco. Luzes, fumaça e a coreografia precisa e sincrônica de oito bailarinos no entorno do animal completavam a beleza do número. O público parecia acompanhar atento os detalhes, passos e movimentos.
No compasso da música, uma gaiola dourada despencou do teto, entre os refletores, parando por sobre a estrela principal. Ela testemunhou um susto geral e o delírio, com a abertura da grade frontal da gaiola, liberando vários pombos no ambiente, conforme fora ensaiado nos últimos dois meses.
E Justo, quando Júlia iniciou sua coreografia, no cavalo, ela sentiu que havia algo de estranho com o animal, que começou a relinchar, erguendo-se de forma agressiva. Numa atitude instintiva o movimento ensaiado deu lugar à tentativa de conter o cavalo e evitar que alguém pudesse se machucar.
Meu Deus, ajude-me!
Em segundos, Júlia viu a euforia do público se transformar em medo e apreensão. Todos começaram a se afastar do palco, enquanto os bailarinos procuravam dominar o animal. A música parou e o que deveria ter sido um efeito surpresa, chocando positivamente as pessoas, ganhou a tensão de um acontecimento perigoso.
No ambiente, ouvia-se somente alguns gritos e os murmúrios das pessoas, além de pedidos de calma, por parte dos profissionais da segurança do espaço.
Para o alívio de Júlia, o animal fora acalmado em pouco mais de um minuto, que lhe pareceu uma eternidade. Ela apeou com o auxílio de um dos bailarinos, e os demais trataram de levar o cavalo aos bastidores, enquanto os outros profissionais a cercavam.
— Você está bem, Júlia? Você está bem?
Nem conseguia definir ao certo quem perguntou aquilo, por falarem todos simultaneamente. E Júlia, desejando sair dali, deixar o palco e o foco de todos.
Logo que chegou à coxia, ela ouviu a voz de Olívia Cordeiro no microfone:
— Pedimos desculpas a todos. Tivemos um pequeno problema, mas foi resolvido. Em alguns instantes, teremos a apresentação do próximo número. Portanto, divirtam-se, a festa continua.
A fala de Olívia foi seguida de uma música colocada pelo DJ.
Meu Deus, o que houve? Tudo deu errado!
Júlia respirou fundo, retornando ao camarim. Alguns rostos vieram da multidão em lembrança: Tancredo Flores, Guel Serrado, Leonardo Gondim, a própria Olívia Cordeiro... pessoas que estavam ali para lhe prestigiar e acabaram por presenciar o fracasso de um trabalho de meses. Sentiu-se frustrada diante daquele episódio. Ela que sempre enxergara a dança como uma oração, um momento de encontro com sua porção divina, de plenitude, de expressão da sua alma. E partilhar aquilo com as pessoas, era fazê-las em algum nível sentir o mesmo, por mais que não tivessem a mesma consciência. Mas o que fazer afinal? Pensou em procurar Olívia para saber como estavam os bailarinos, mas logo desistiu. Desejava ficar quieta, esconder-se de todos, sem maiores explicações ou especulações.
Que vergonha!
Decidiu refugiar-se em casa.

Diante do espelho do camarim, Júlia limpou os últimos indícios da maquiagem que usaria no espetáculo. Havia trocado de roupa e se livrado do figurino que definia a personagem Amazona vivida por ela naquele número de dança. Parou diante da própria imagem refletida no espelho e tentou imaginar como encararia o mundo, depois do fracasso. Foi quando alguém bateu à porta.
— Entre — ela autorizou.
Tancredo Flores surgiu, com um olhar cuidadoso.
— Você está bem?
Júlia suspirou e sorriu.
— Estou tentando ficar. — tentou convencer a si mesma.
— Foi apenas um acidente. Não se preocupe, Júlia. — Aproximou-se, segurando-lhe as mãos. — Logo, logo você estará de volta aos palcos. — E a abraçou.
— Obrigada, Tancredo. Você é um grande amigo.
— Está indo para casa? Posso te dar uma carona... — ele ofereceu.
— Acho que vou aceitar. Preciso falar com as meninas da boate.
— Espero você no carro.
Ele beijou-lhe a testa. Antes que saísse, Júlia o chamou.
— Tancredo... e Pedro?
— Ele não veio. Deve ter tido algum problema. — E saiu.
Júlia precisaria acomodar-se com mais aquela frustração. Respirou fundo e catou suas coisas na mesa. Queria ir logo para casa descansar, esquecer aquela noite, quando ouviu um novo toque na porta.
— Posso entrar? — disse o homem sorridente.
Era Leonardo Gondim.
Júlia foi ao encontro de seu grande amigo e o abraçou com o ímpeto que lhe restava, como se caísse no colo de um pai.
— Que bom, vê-lo aqui.
A presença do velho amigo deixou-a extremamente feliz. Leonardo fora para Júlia um porto seguro naqueles últimos cinco anos e meio, desde que haviam se conhecido numa tentativa de assalto sofrida por ela, em frente à Mirage.  Uma amizade que resistiu ao assédio da imprensa, por ser ele um dos maiores empresários do país, dono da RTN. E por ironia do destino, o provável motivo de Pedro ter se mantido distante naqueles anos.
Mas era Leonardo que ali estava, com seu ombro amigo, como de costume.
— Temi que tivesse se machucado — ele revelou.
— Não houve nada de grave, graças a Deus. Mas estou muito triste pelo que aconteceu. Foram meses de ensaio, afinal.
— Quem sabe no próximo final de semana vocês apresentam o número?
— Não sei como vai ser. Olívia e eu precisaremos conversar.
— Ela sabe que não teve culpa. Foi um acidente.
— Com licença — a voz de Olívia os interrompeu.
A dona da Mirage estava na porta do camarim. Em seu rosto, a tensão não havia se desfeito.
— Falávamos de você. — Leonardo explicou, sorridente.
— Como estão todos, Olívia? — Júlia procurou saber.
— Algumas pessoas foram embora assustadas, outras tentando manter a calma, fingindo que nada demais aconteceu — respondeu, visivelmente aborrecida.
— Nada demais aconteceu. — Leonardo saiu em defesa de Júlia.
— Como “nada demais”, Leonardo? Percebeu o que aconteceu? Não só o show principal da casa, anunciado há meses, não ocorreu, como colocamos os bailarinos e clientes em perigo — Olívia arrematou, de modo impetuoso.
— Acidentes acontecem — ele insistiu na defesa.
— Olívia tem toda razão, Leonardo — Júlia interferiu.
Ela podia compreender o posicionamento de sua chefe. Certamente aquilo arranharia a imagem de seu negócio.
— Mas, Júlia...
— Por favor — ela o interrompeu. — Olívia e eu precisamos ter uma conversa.
Leonardo encarou Olívia, como se reprovasse sua atitude. Em seguida, voltou-se para Júlia.
— Depois nos falamos.
Ele deu um beijo em seu rosto, depois cumprimentou Olívia e deixou-as a sós. Ela, por sua vez, deu um giro com o olhar no camarim, como se procurasse por onde começar.
— O que aconteceu, Júlia?
— Olívia, sinceramente eu não sei. Nós ensaiávamos há mais de dois meses, você é testemunha. Nunca tivemos problemas com o cavalo, pelo contrário. Ele se assustou com a multidão.
Houve um silêncio antes que Olívia se pronunciasse.
— A Mirage sempre foi uma das casas de shows mais badaladas de Fortaleza, frequentada pelas altas rodas da sociedade. Não posso permitir que uma coisa como essas interfira na imagem que nós construímos ao longo de tantos anos.
— Claro, Olívia, está coberta de razão e...
— Esse show não existe mais, Júlia — Olívia cortou sua fala bruscamente.
— Pensei realmente em fazer algumas adaptações.
Olívia cruzou os braços.
— Você não entendeu. Esse número não será mais apresentado de modo algum! — Olívia foi mais enfática. — Ou melhor, não quero mais você se apresentando como bailarina.
— O quê?!
Aquela atitude autoritária de Olívia chegou-lhe como uma grande surpresa. Pior, seria um peso a mais para suportar naquela noite desastrosa. Em tantos anos de parceria e amizade, Olívia nunca havia tomado qualquer decisão sobre os shows, atrações ou apresentações artísticas, sem antes consultá-la. Júlia sempre tivera total autonomia em seu trabalho como coreógrafa e diretora artística da Mirage. E pensar que, momentos antes, ela só desejava ir para casa e descansar. Recarregar suas forças, estar inteira e esquecer aquela noite, o incidente no palco, como a ausência de Pedro de Lucena, tudo que a entristecia naquele momento e que a tirava do foco daquilo no qual mais necessitava se concentrar — a pista trazida à tarde por Tancredo Flores acerca do envolvimento de Guel Serrado no sequestro de Clara.
Mas não podia ir embora sem entender a decisão de Olívia. Parecia que alguma outra coisa a motivava a agir arbitrariamente. Mas o quê?
— Olívia, nunca agiu desse modo. Claro que foi delicado o que houve há pouco, mas não há motivos para tanto. Sempre confiou em mim.
— Confiança a gente conquista, mas também a gente perde. De hoje em diante, contente-se com os bastidores.
Júlia não reconhecia o tom agressivo de Olívia. Aliás, mal a reconhecia.
— Aconteceu alguma outra coisa que eu não saiba?
— O que causou no palco não foi o suficiente? — A pergunta de Olívia vinha carregada de ironia. — Se não consegue enxergar a gravidade do que houve, não tem condições nem mesmo de permanecer na direção do grupo.
Para Júlia, ela passava dos limites.
— Está me demitindo, Olívia?
Olívia se retraiu.
— Estamos nervosas, acho que precisamos esfriar nossas cabeças. Não é o melhor momento para continuarmos essa conversa.
— Talvez esteja mais nervosa que o esperado para o que aconteceu.
— Tem razão. De qualquer modo, as coisas ficam como coloquei. Vá para casa e descanse, Júlia.
Olívia saiu pé ante pé. Júlia permaneceu estagnada, tentando se desvencilhar do turbilhão que acabara de presenciar naquele camarim.
E agora, mais isso!







Capítulo 11

Donato Pessoa recebeu a pasta de couro organizada pelo velho Alberto Lucena das mãos de sua secretária. Encontrava-se visivelmente abalado com o desfecho da emboscada a Pedro, enxergando naqueles documentos o peso de uma sentença. 
Ele sentou-se à mesa do escritório e pôs o dossiê diante de seus olhos, sem coragem de abri-lo e constatar a própria culpa ali registrada. Podia sentir a dor que cada prova arquivada teria causado no homem responsável por inseri-lo no mundo do poder. Sentia falta de quem mais se aproximou de uma figura paterna em sua vida e do quanto fora feliz naquela época, encontrando em Pedro e seu pai, a família tão sonhada nos muitos anos vividos no orfanato, após ser abandonado pela irmã adotiva. Em poucos anos de amizade com Pedro, Donato conquistara o velho Alberto, que o transformara em seu braço direito na agência de publicidade de Leonardo Gondim, empresa que seria vendida para mais tarde possibilitar a criação da RTN.
Quando finalmente tivera coragem de abrir o dossiê, constatou que ali dentro guardavam-se não somente as provas de seu alpinismo político, social e financeiro, mas talvez, o motivo da morte de seu melhor amigo, como da única pessoa que acreditara em seu potencial e caráter, mesmo quando todos duvidaram, como na época de seu primeiro casamento, com Maria Eugênia, a filha mais velha de Leonardo Gondim. 
As lembranças trazidas por aquela pasta por pouco não fizeram-no perder o foco. Mas Donato precisava ser forte, encarar a verdade e os possíveis benefícios proporcionados a ele e a todos os envolvidos.
— Tem certeza  que está tudo aqui? — perguntou à secretária friamente, desconsiderando o turbilhão de sentimentos experimentados naquele momento.
Luísa confirmou com a cabeça.
— Os homens são da mais absoluta confiança. Era o que estava com Pedro Lucena no carro. 
Donato arriscava uma pontinha de esperança acerca do estado de Pedro.
— E Pedro... — hesitou. — Eles tem realmente certeza de sua morte?
— Sim.
Ele virou para o lado, como se para evitar que a secretária também testemunhasse sua fraqueza.
— Não poderia ter sido diferente?
— Donato, foi o melhor para todos nós. Sinceramente não compreendo essa crise de culpa — Luísa desabafou. — Sonhamos em nos livrar desse homem há anos. E finalmente quando isso acontece, vem mudar de ideia?
— Luísa, nós não estamos nos livrando de um obstáculo qualquer. Trata-se do vice-presidente de uma das maiores emissoras de televisão do país. Isso é perigoso — procurou disfarçar.
Donato se levantou e foi até o cofre, na parede lateral do escritório, coberto por uma tela de pintura francesa arrematada por sua esposa em uma viagem à Europa. Deixaria aqueles papeis em lugar seguro.
— Tudo foi feito como de costume, sem deixar rastros — explicou ela, enquanto Donato trancava os documentos. Completou com um ar de triunfo: — Todos pensarão que foi um assalto.
Marina entrou no escritório, atônita.
— Donato...
— Marina? O que houve?
— A Vanessa acabou de ligar — informou, com a voz trêmula.
— O que ela disse? — antecipou-se Luísa.
— Pedro está morto!
Marina caiu em prantos. Luísa olhou para Donato, sem se manifestar. Ele engoliu a seco aquela notícia, como se no fundo esperasse que alguém a desmentisse. Desejava sentir o mesmo que Luísa, vibrar por dentro com a morte de Pedro Lucena. Mas não, não conseguia experimentar mais que remorsos, dor e saudade do melhor amigo, de quando estudaram juntos na faculdade de administração, das diversas viagens ao exterior em sua companhia.
“Vou te mostrar o mundo, meu amigo.”
A imagem de Pedro mais jovem, pronunciando aquilo com alegria ao lado de Donato em sua primeira viagem de avião, veio-lhe como um golpe certeiro. Teve vontade de gritar, assumir o que sentia, xingar o Deus no qual nunca quis acreditar. Teria de enfrentar uma nova e difícil etapa naquela empreitada — o luto oficial, as especulações da imprensa e de todas as pessoas, a chatice da polícia. O ônus por varrer um dos maiores obstáculos de seu caminho. Precisava definir que postura tomaria em público, se a lamentação discreta pela morte de um parceiro de trabalho, pelo qual estabelecera uma rivalidade profissional assumida; ou a dor provinda da perda de um grande amigo do passado, afastados circunstancialmente por ideias opostas em seu ambiente de trabalho.
Considerava a primeira possibilidade como a mais adequada, tendo em vista o histórico conhecido pelas pessoas acerca de sua amizade com Pedro Lucena. Revelar a verdade escondida em seu coração soaria falso. Disse com a frieza que lhe era peculiar:
— É uma grande perda para todos nós. Uma grande perda.







                                                   Capítulo 12

Júlia saiu do banheiro, refeita após um banho demorado, como se tivesse conseguido se desvencilhar de boa parte do cansaço. As imagens daquele péssimo dia reverberavam em sua cabeça, e mais ainda o posicionamento de Olívia à respeito do incidente. Não conseguia compreender a dureza com que ela havia lhe tratado, como a decisão de impedi-la de dançar. Julgava completamente descabida a sua sentença.
E Pedro, por que será que não apareceu? Como fui tola em considerar uma reconciliação!
Deitou-se na cama com o roupão e fechou os olhos. Desejava esquecer-se de tudo, especialmente a ausência de Pedro e o sentimento forte despertado pelo reencontro com ele, há alguns dias.
Lembrou-se então da fotografia trazida por Tancredo, à tarde. Júlia tirou a prova de sua bolsa e a observou. Tinha certeza de que conhecia a loira ao lado de Guel e o homem de costas de algum lugar. Eram figuras familiares, mas não conseguia lembrar ao certo de onde vinham as lembranças daqueles traços.
Júlia ouviu alguém bater na porta do quarto, imaginava ser Raquel.
— Entre.
— Desculpa, vim saber se precisava de algo, um copo de leite quente...
A cunhada como sempre, cuidadosa, em anos de lealdade.
Lealdade?
Aquele seria o momento certo.
— Raquel, olha essa fotografia.
Júlia estendeu o papel para que ela o pegasse. Raquel não demonstrou nenhuma reação.
— Quem é? — perguntou, apontando para a moça em destaque.
— Uma mulher desaparecida — Júlia respondeu, fitando-a, como se a perscrutasse. — Tancredo está finalizando uma reportagem sobre tráfico de mulheres para o exterior.
— E?
— Veja a imagem ao fundo da fotografia.
Raquel fez o que Júlia propôs, sem demonstrar novamente nenhuma reação.
— O que tem?
Júlia se aproximou, apontando para o irmão de Raquel.
— Este não é o Guel? — Lançou a isca e ficou a observando, procurando descobrir qualquer pista ou atitude suspeita da cunhada.
— A imagem está desfocada, não dá para ver direito, Júlia.
— Como não? — Mostrou-se desapontada com a colocação de Raquel. — Este é o seu irmão. Está longe a imagem, um pouco desfocada sim, mas dá para saber que se trata de Guel.
Raquel aproximou a fotografia do rosto, distanciou-a em seguida, como se procurasse um ângulo melhor para visualizar a imagem que Júlia descrevia.
— É... olhando bem, pode até ser...
— “Pode até ser”? — Tomou a fotografia das mãos da cunhada, focando a imagem. — Só pode estar brincando, Raquel. Não tenho a menor dúvida, este é o Guel Serrado sim.
— Mas e daí? O que ele tem a ver com o sumiço dessa moça?
— Não está entendendo, Raquel. — Júlia estendeu a mão na direção do fundo da fotografia, fazendo com que ela observasse a mulher ao lado de Guel, com a criança no colo. — Esta mulher está segurando a Clara.
— Tem certeza que é a Clara?
Raquel apertou o olhar.
— É a Clara, sim. E esta fotografia está datada de dois dias após o Joel ter desaparecido com a nossa filha.
— Mas se estiver certa...
— Nós temos em mãos a primeira prova contra Guel Serrado.
Raquel parecia chocada.
— Raquel, nós precisamos descobrir quem é essa mulher que está com a minha filha nos braços. É ela que pode nos ajudar a descobrir a verdade.
— Mas como?
— Não a conhece? Nunca a viu?
Raquel balançou a cabeça que não.
— Pois acho que a conheço de algum lugar.
— Bom, se viu essa mulher, logo vai se lembrar — comentou Raquel. — Vou preparar um leite quente para você dormir bem. Acho que teve muitas emoções por hoje.
Ela pediu licença e saiu. 
Para a surpresa de Júlia, a cunhada parecia realmente nada saber sobre aquela fotografia ou sobre a mulher que carregava sua filha. Talvez tivesse alimentando uma pontinha de esperança de que Raquel pudesse lhe ajudar de alguma forma, com mais informações sobre o sequestro. Por isso, veio a frustração. No entanto, não podia deixar de cogitar a possibilidade dela estar mentindo.  Afinal, além de Raquel ter orquestrado o plano com Joel para separá-la de Guel, também omitiu durante todos aqueles anos o fato de saber das intenções do irmão de aceitar a proposta para vender a própria filha — o que a transformava numa suspeita. Na verdade, não sabia se lamentava a possível deslealdade da amiga ou se ficava feliz pela possibilidade de ter dentro da própria casa uma pista do paradeiro de Clara.
Deste modo, Júlia percebeu que não poderia desistir na primeira tentativa. Precisava ter paciência.
Se Raquel sabe de alguma coisa, vou descobrir.

Ela pôs a fotografia na mesinha de cabeceira e preparou-se para dormir. Necessitava estar disposta pela manhã. Guel Serrado teria muitas explicações a lhe dar. 






Capítulo 13

Donato e sua esposa entraram na recepção do hospital Monte Klinikum, pouco mais de dez minutos após deixarem seu apartamento na Beira Mar. Ele procurava manter o controle emocional diante do sofrimento aparente de Marina, que não parava de chorar, desde que ficara sabendo da notícia da morte de Pedro através do telefonema de Vanessa, sua irmã.
Donato se informou com a recepcionista e foi orientado a subir até o oitavo andar do prédio. Pelo que Vanessa havia dito a Marina, ele havia chegado com vida ali, mas acabou não resistindo. 
Tomou a mão da mulher e a conduziu até o elevador, sem dar uma só palavra. Enquanto subiam, ele se pronunciou, olhando fixo para o painel que mudava os dígitos rapidamente:
— Cuidado com o que vai falar para sua irmã, ela sempre me odiou e não perderia a oportunidade de me acusar.
Marina nada respondeu, apenas soltou sua mão. Ele podia sentir sua indignação, sabia de seus sentimentos pelo cunhado. Ela nunca escondera o respeito e admiração dispensados a Pedro, desde que ele iniciou seu namoro com Vanessa.
Mais alguns andares e finalmente as portas se abriram, expondo a nova recepção. Vanessa estava sentada no canto de um sofá em couro marfim, segurando o queixo, com os braços apoiados nos joelhos. Ao perceber a presença da irmã, ela se ergueu, aos prantos. Donato ouvira Marina contar sobre seu passado diversas vezes. As duas sempre foram muito ligadas, desde a morte dos pais. Ainda menina, Marina foi morar com Vanessa e Pedro, em Londres, até Donato a conhecer, quando tinha dezoito anos de idade, e levá-la consigo, rumo a um casamento abominado pela irmã, o que as separou por anos. Mas havia muito tempo, ele tivera que suportar uma reconciliação, embora preferisse a distância entre elas, por Vanessa ter sido a responsável por afastá-lo de seu melhor amigo. 
— Que desgraça, minha irmã! — Marina lamentou, nos braços de Vanessa.
— Não tive oportunidade de me despedir. — a outra desabafou.
— E Felipe?
— Em casa, dormindo. Preferi não contar nada a ele — respondeu. — Não sei como proceder diante dessa tragédia.
— Nós estamos aqui para isso, Vanessa — Donato finalmente tomou coragem e falou. — Farei o que for preciso, fique tranqüila.
Vanessa parou de abraçar Marina e olhou fixamente para ele.
— Como está se sentindo, Donato?
Ele percebia certa provocação no tom daquela pergunta.
— Apesar de termos nos afastado nos últimos anos, sempre considerei o Pedro como o irmão que não tive. É um momento de dor para mim também, Vanessa — pronunciou com um texto ensaiado.
— Mentira! — Vanessa se contrapôs.
— Vanessa, não é o momento...
Marina tentou acalmá-la, mas foi interrompida pela irmã.
— Seu marido é um grande ator.
— Vanessa, por favor! — Marina insistiu, procurando segurar seu braço.
Ela se afastou da irmã bruscamente.
— Chega de defender esse homem! — Estava quase gritando, sem se preocupar em chamar atenção das enfermeiras e outros profissionais que por ali transitavam. — Tenho certeza que foi o seu marido que mandou matar Pedro.
Sentia que era a chance de colocá-la em seu lugar.
— Nunca suportou a minha amizade com Pedro, nem muito menos sua irmã tê-la deixado para se casar comigo. Mas insinuar que eu tenho a ver com este atentado a Pedro, isso é demais!
— Atentado? — Vanessa pegou a deixa. — Então sabe que foi um atentado?
Ele bufou por perder a jogada. O ódio que sentiam um pelo outro sempre fora recíproco. Entretanto, precisava cautela. Respirou fundo e respondeu:
— Está descompensada.
— Você matou o Pedro! — ela respondeu de pronto.
— Vanessa, por favor, nós estamos num hospital. — Mais uma vez, Marina tentou acalmá-la.
Vanessa se aproximou do cunhado, como se fosse destruí-lo e disse baixinho, com os lábios quase travados, passando o ódio que tinha em seu coração.
— Assassino!
Donato desejou agredi-la, tirá-la de sua frente e fazê-la engolir todas as suas acusações. Uma fera contida lutava para sair de dentro dele e acabar com a vida daquela mulher que ousava enfrentá-lo, sem temer a nada. Não admitia que ninguém o destituísse de seu poder duramente conquistado. Aquilo não o surpreendia. A caminho do hospital, havia comentado com a mulher o que poderia acontecer. Vanessa nunca o suportou. Exigiu de Pedro, logo após o casamento, o afastamento entre ambos. Ela só não contava que anos mais tarde sua irmã caçula se apaixonaria justo por ele e largaria tudo para viver esse amor. Sabia que a cunhada acumulara anos de rancor, aguardando ansiosa o momento para se vingar. E parecia que ele havia chegado. Mas sentia que aquele poderia ser o jogo de Vanessa, provocá-lo até que, de algum modo, confessasse, em suas atitudes, a culpa pela morte de Pedro. Ela era ardilosa. O que fizesse ou dissesse poderia ser usado contra ele. Preferiu recuar, dando um passo para trás.
— Com licença. — o médico neste momento os interrompeu. — Dona Vanessa Lucena?
Ela deu um suspiro, colocou o cabelo para trás da orelha, procurando se recompor.
— Sim?
— A cirurgia foi um grande sucesso. Seu marido está bem.
Ele não morreu!

Donato olhou para Vanessa e logo se deu conta de que havia sido vítima de uma grande jogada da cunhada. 






Capítulo 14

Júlia entrou na luxuosa academia situada a três quadras do apartamento de Guel Serrado. Percorreu com o olhar o salão repleto de aparelhos e pessoas se exercitando, à procura do cunhado, conforme indicação da recepcionista. Uma música dance se propagava pelo ambiente, deixando o lugar mais descontraído e vital. Julgou-se astuciosa por ter conseguido aquele endereço com o porteiro do prédio dele.
Localizou o cunhado a alguns metros em um dos equipamentos de halterofilismo. Júlia lembrou-se da vaidade de Guel quando namoraram, cultivando o corpo musculoso com horas diárias de academia. Hoje, nem aparentava ter trinta e oito anos de idade.
Ela cruzou o espaço por entre os aparelhos. Guel sentava-se num banco e abria e fechava os braços, estufando e contraindo os músculos do tórax, com a ajuda de pesos.
— Podemos conversar um pouco?
Ele parou o exercício, surpreso.
— Júlia? — ele pegou a toalha ao lado, enxugando o rosto suado. — Sinto muito pelo que aconteceu ontem. Sente-se melhor?
— Sim. Mas não foi sobre isso que vim falar com você, Guel.
— Podemos sair e falar num canto mais reservado.
Júlia não tinha mais o que esperar. Tirou a fotografia da bolsa e entregou a ele.
— O que tem a me dizer sobre isso?
Houve um momento de silêncio entre eles.
— Não sei do que se trata.
— Claro que sabe. Não é você, no fundo?
— A imagem não é nítida, pode ser alguém parecido comigo — argumentou.
— Não seja cínico!
Júlia começou a perder a paciência. Guel tirou a toalha pendurada no aparelho e secou a testa.
— O que isso significa, afinal?
Ela tomou a fotografia das mãos dele e apontou para as pessoas ao seu lado na imagem.
— Quem são essas pessoas que estavam com você, Guel?
— Definitivamente não sei. Não sou eu nessa fotografia.
— Considera-se muito esperto, não é?
Guel sorriu da mesma forma de quando mentia, na época em que namoravam.
— Júlia, acredite, não tenho nada a ver com o sumiço da sua filha. Procura pela pessoa errada.
— Não falei nada sobre Clara. Se não é você realmente na fotografia, por que se reportou ao sequestro?
Pela primeira vez o viu inquieto, olhando para os lados. Depois ele mordeu o lábio inferior.
— Sei lá... todas as vezes que me procura é para tratar desse assunto.
— É mentira! É você nessa foto.
Guel se levantou. Aproximou-se de Júlia e segurou-a pelo braço.
— Júlia, está obcecada. Não sou eu nessa foto. Não conheço essas pessoas. Coloque uma coisa na sua cabeça de uma vez por todas: Não sou culpado pelo sumiço da sua filha!
Ela puxou o braço e se afastou.
— Há seis anos, falei que um dia a verdade seria descoberta e que pagaria pelo que fez. Esse dia está chegando.
Guel tomou a fotografia num impulso.
— Não sou o culpado! — gritou, amassando o papel.
— O que está fazendo? — Júlia tentou pegar a prova de volta, mas ele a segurou no alto. — Devolva-me!
Guel pareceu preocupar-se com as pessoas no entorno, que começaram a observá-los, puxando-a para um canto.
— Precisa acreditar em mim, Júlia!
— Por que eu acreditaria?
Ele baixou o braço, devolvendo a fotografia.
— Porque te amo.
Aquela declaração a deixou meio desconsertada.
— Você... não ama ninguém!
Guel a tomou nos braços.
— Júlia, você foi a única pessoa que amei até hoje. Nunca mais consegui sentir a mesma coisa por outra pessoa. E sabe por quê? Porque nunca te esqueci. Todos esses treze anos em que estivemos longe um do outro, nunca deixei de pensar em você um só dia, mesmo que movido pelo desejo de vingança.
— E foi por vingança que propôs a Joel vender a nossa filha?
— Ficaria mais feliz se eu confessasse?
— Só desejo a verdade.
— A verdade está aqui. — Ele tomou a mão dela, colocando-a em seu peito e fazendo-a sentir seus batimentos acelerados. — Sente? É assim que fico quando chego perto de você.
Júlia percebeu que havia muito tempo que não se tocavam daquela forma. Ela esquecera o quanto Guel era bonito e sedutor, e como ela se perdia no azul-esverdeado de seus olhos.
— Solte-me — pediu, desviando o olhar, para que ele não a percebesse tão nervosa.
— Você também me quer, Júlia.
— Por favor, Guel... não vim aqui para isso.
— Olhe para mim.
Quando voltou-se para ele, foi surpreendida por um beijo, provocando-lhe calor, suor e um tremor, que seria mais fácil entregar-se. Júlia não experimentava aquela sensação há muitos anos, desde o rompimento com Pedro. No entanto, precisava resistir, focar seu objetivo ali, mas acabou cedendo aos próprios instintos, prolongando a fusão dos lábios em volúpia despertada por um único beijo. E por um instante, não se reportou a mais nada que não à dança das línguas movidas pelo desejo de possuir e consumir um ao outro.
Somente a lembrança do sequestro de Clara a fez parar.
— Chega!
Guel sorriu, como se comemorasse.
— Não adianta, Júlia, você vai ser minha novamente.
— Prove que me ama, diga-me a verdade.
Ele mordeu o lábio novamente. Desviou o olhar, passando a mão pela nuca. Por um momento Júlia acreditou que Guel pudesse mudar de ideia e lhe dizer algo substancial.
— Não sei de nada.
Mentira.
— Existe um meio de consertar isso, Guel. Conte-me o que sabe. — Júlia colocou a fotografia na bolsa e antes de deixá-lo, completou: — Pense bem.
Ela saiu torcendo para que aquela proposta o convencesse a revelar o que sabia, pois experimentara algo diferente em seu beijo. Nunca o tinha sentido tão inteiro e verdadeiro como naquele momento, nem mesmo nos vários anos em que estiveram juntos. Se Guel continuava realmente apaixonado, ele mudaria de ideia.
Contudo, imaginou que pudesse estar sendo novamente enganada pelo cunhado. A sedução e a conquista sempre foram para ele uma grande vantagem. E tê-la mais uma vez em seus braços poderia ser uma nova estratégia, talvez para despistá-la, por vê-la perto de descobrir a verdade de posse daquela prova.
Júlia não conseguiu definir seu estado depois daquele beijo e teve raiva de si mesma. No fundo, era consciente de que havia gostado da situação e esquecido do desprezo e nojo que alimentara pelo cunhado em todos aqueles anos. Ela parou na saída da academia e tocou os próprios lábios, revivendo o que acabara de acontecer. Nunca imaginou que pudesse mais uma vez desejar aquele homem, responsável, talvez, pelo maior sofrimento de sua vida.
“Pura carência!”, justificou para si mesma, recordando-se dos muitos anos em que estava sozinha.
Se Guel estava jogando, ela daria as cartas, dali para frente.







Capítulo 15

O nome de Tancredo Flores foi selecionado na agenda do celular, após a mensagem de texto digitada no visor do aparelho:
Tentei falar com você algumas vezes e não consegui. Acho que descobri um dos pontos fracos do Guel. A isca está lançada! Preciso lhe encontrar. Um abraço, Júlia.
A mensagem foi enviada com sucesso.
Júlia estava no banco traseiro de um taxi a caminho de casa. Ela tirou novamente a fotografia da bolsa, desamassou-a e mirou na mulher ao lado de Guel. A sensação de conhecê-la tornava-se mais forte. Quem sabe Tancredo não teria descoberto algo com seus contatos no aeroporto sobre os vôos daquele dia 17 de dezembro de 2005? De qualquer modo, o que pudesse conseguir de informação junto ao cunhado, seria de grande valia. Até mesmo ceder ao seu jogo de sedução.
Mais alguns quarteirões e o carro parou na frente de sua casa, na Rua Romeu Martins.  Ela pagou ao taxista e desceu do veículo no exato momento em que Raquel batia o portão, pronta para sair.
— Raquel? — antecipou-se, sem que a cunhada a tivesse visto, provocando-lhe um susto.
— Júlia?
— Onde vai?
Raquel demonstrou total desconserto, olhando para os lados, como se não soubesse o que responder.
— Onde estão os meninos?
— Na casa de uma vizinha. Eles ficaram brincando com um colega.
Não se lembrava de quando a cunhada havia feito aquilo. A desconfiança instalou-se de vez.
— Está indo aonde? — insistiu.
— Aonde? É... na casa de uma amiga.
Conhecia a cunhada para saber que estava inquieta e mentia. Raquel nunca fora de muitas amizades, sempre em casa cuidando dos afazeres domésticos, dos doces e salgados que fazia para ajudar na renda familiar. De repente, deixar os filhos na casa de uma vizinha para visitar uma amiga numa manhã de sábado, realmente era de se estranhar.
— Está mentindo para mim, Raquel?
— Mentindo? Não, Júlia. É a mãe de um amiguinho dos meninos, da escola. Ela adoeceu, está internada no Hospital Geral e achei de bom tom uma visita. Só isso.
— Pareceu que estava assustada.
— Não, fiquei surpresa de vê-la aqui tão cedo. Pensei que tivesse ensaio hoje na Mirage.
— A Olívia achou melhor eu ficar em casa e descansar.
— Parece uma boa ideia — comentou. Vou indo, senão perco o horário de visitas.
Raquel saiu apressadamente. Júlia olhou o relógio. Dez e meia. Achou impróprio aquele horário para um hospital público, que acontecia comumente à tarde.
“Ela está mentindo”, disse para si mesma, abrindo o portão.
Uma voz rouca a chamou:
— Dona Júlia Serrado?
Ela voltou-se e se deparou com um desconhecido, um homem de barba e cabelos grisalhos.
— Sim. O que o senhor deseja?
— Podemos conversar? — ele propôs, gesticulando em direção à porta da casa, como se insinuasse os dois irem para um local mais reservado.
Júlia olhou para um lado e para o outro da rua. Sentiu-se insegura.
— Quem é o senhor? O que quer comigo?
— Não tenha medo, estou aqui para ajudá-la.
Ela fechou o portão de uma só vez, passando o ferrolho o mais rápido que podia. Aquelas grades seriam sua única defesa.
— Desculpe, preciso entrar...
— Dona Júlia, por favor, me escute.
Júlia parou e se voltou para o estranho mais uma vez.
— O que o senhor quer?
— A senhora está no caminho certo.
— Do que o senhor está falando?
— Do seu cunhado, Miguel Serrado.
Guel? O que esse homem sabe, afinal?
— Como?
— Seu cunhado, está envolvido até a cabeça no sequestro de sua filha.
Ela sentiu o próprio coração disparar. Precipitou-se até o portão e segurou as grades com toda a força que dispunha. Não tinha mais medo de nada.
— O que o senhor sabe?
— Ele tem uma comparsa e está nesse momento com ela. Se a senhora me acompanhar, poderá descobrir muito mais do que a revelação de uma simples fotografia.
Júlia ajeitou o cabelo, colocando-o para trás da orelha, desviou o olhar, como se ganhasse tempo para pensar. Procurou imaginar quem seria aquele sujeito munido de tantas informações e o motivo que o fizera surgir, propondo ajudá-la. Nunca o tinha visto e sua voz lhe causava arrepios. Que garantia teria de que ele falava a verdade e não tentaria nada contra sua vida? Pois se estivesse realmente no caminho certo, prestes a descobrir a verdade sobre o sumiço de Clara, poderia abalar a comodidade do responsável ou dos responsáveis por aquela tragédia em sua vida. A melhor alternativa era tirá-la do circuito. Deste modo, era possível estar diante de um assassino, separados por aquelas grades frágeis do portão de sua casa. Do contrário, acompanhá-lo poderia representar a destruição de uma vez por todas da farsa de Guel Serrado, trazendo à tona o real envolvimento do cunhado no sequestro de sua filha.
Ela pensou em correr, entrar em casa e chamar a polícia, antes que o estranho pudesse invadir. Mas se aquele homem fosse um amigo, como o anônimo que lhe enviou a imagem de São Miguel Arcanjo? Estaria perdendo a oportunidade de desmascarar o cunhado.
A dúvida lhe corroia por dentro, e sabia que precisava tomar uma decisão logo. Avaliou o rosto do estranho. Algo nele indicava que havia mais sinceridade do que ela tinha visto nos últimos dias, nas pessoas que a cercavam. Talvez fosse melhor jogar todas as cartas de uma vez e apostar alto.
Júlia puxou o ferrolho e abriu o portão.
Que São Miguel me acompanhe!


Júlia pressionou a própria bolsa contra o peito, como se buscasse uma proteção. Estava no carro do estranho que havia se apresentado como Romualdo, alguém a quem Guel enganara numa transação, e agora desejava se vingar, como ele mesmo lhe explicou ao entrarem no veiculo. O homem preferiu não dar maiores detalhes de como o conhecera, talvez para não se comprometer.
“A senhora verá com seus próprios olhos”, Romualdo justificou a falta de informações logo que entraram em seu carro. À Júlia, cabia controlar a ansiedade e o medo por estar na companhia de um homem completamente desconhecido, em direção a algum lugar que ela nem imaginava onde poderia ser.
Não posso fraquejar. A verdade sobre minha filha está em jogo.
Ela observava todos os movimentos do homem na direção do automóvel, procurando se assegurar de um controle daquela situação, que na verdade não existia. Preferiu permanecer calada depois de algumas perguntas feitas a ele, respondidas com monossílabos, no trajeto do Montese ao Bairro de Fátima.
Júlia manteve-se atenta ao percurso do carro após dobrar na Av. Luciano Carneiro, até parar na frente de um motel.
— O que significa isso? — ela o interpelou.
— O local onde seu cunhado e a comparsa se encontram — o homem respondeu.
Rapidamente, Júlia desconectou o cinto de segurança.
— Não vou entrar nesse lugar com o senhor! — explicou, com a voz alterada.
— A senhora veio até aqui. Vai desistir da verdade?
— É loucura entrar num motel com um completo desconhecido. Quem me garante que o senhor não está blefando?
— E como eu saberia de sua filha, da fotografia?
Júlia fez menção de abrir a porta.
— Por favor, dona Júlia, logo a senhora estará diante de toda a verdade — o homem misterioso insistiu.
Ela hesitou um pouco, temia persistir naquela loucura sem que ninguém soubesse seu paradeiro. Poderia ter avisado a Tancredo antes de aceitar a proposta do desconhecido e entrar no carro, mas não lembrara. Tinha que conter o medo e prosseguir. Ajeitou-se no banco do carro e fez um sinal positivo com a cabeça para que ele continuasse.
O homem passou a marcha e entrou no prédio. Depois de avançarem pela recepcionista e receberem a chave da suíte, dentro do automóvel, os dois cruzaram o portão que dava para os quartos e seguiram adiante até o número “26”.
O desconhecido tirou os óculos escuros e declarou:
— É aqui.
Júlia averiguou o local pelo vidro do automóvel, fazendo uma varredura com os olhos pelo ambiente. Não tinha mais como controlar o medo que a forçava tremer. Por um instante se sentiu perdida, talvez vítima de uma armadilha. Um golpe planejado meticulosamente pela pessoa que estava por trás do sumiço de Clara, quem sabe pelo próprio cunhado. Se descesse do carro ali mesmo e voltasse à portaria, estaria em segurança.
Mas e se ele estivesse realmente pondo em prática um plano para acabar com seu inimigo e desmascará-lo frente a ela? Perderia a chance de descobrir a verdade, a identidade dessa tal comparsa de Guel anunciada pelo homem.
A mulher da fotografia. Meu Deus, pode ser ela!
Júlia imaginou a possibilidade de Guel ter procurado a comparsa motivado pela conversa que eles tiveram há poucas horas na academia.
Nesse momento, o portão da suíte “27” começou a levantar. Ela olhou para o homem no volante e propôs, antes de serem vistos pelas pessoas que sairiam do quarto vizinho:
— Vamos?
O homem, no entanto, deixou o veículo estancar.
— Desculpe-me...
O Corola prata deixou a outra garagem no exato momento em que o desconhecido deu novamente partida no carro. E para a surpresa de Júlia, era Olívia Cordeiro quem estava no banco do passageiro. Os dois automóveis pararam um ao lado do outro.
— Júlia?! — surpreendeu-se a dona da Mirage.
Em seguida, pôde ver o rosto de Guel se inclinando atrás da figura de Olívia, como que para constatar o que acabara de ouvir.
Júlia lembrou-se imediatamente do que o tal Romualdo havia lhe dito:
“Ele tem uma comparsa e está nesse momento com ela.”
Sem conseguir pronunciar uma só palavra, Júlia perdeu a imagem do casal de seu raio de visão, logo após o motorista estacionar o carro na garagem da suíte.

— Então... Olívia é a comparsa?! 






Capítulo 16

Donato fechou com cuidado a porta do quarto. Voltou-se para a cama, tendo a visão de Pedro com um braço imobilizado, segurando um livro com a outra mão, a perna enfaixada e um olhar que parecia lhe perscrutar.  Pedro havia pedido para vê-lo.
Donato estava refeito após o susto causado pela mentira de Vanessa, anunciando a morte do ex-marido, com o objetivo de testar sua reação. Preparava-se, contudo, para enfrentar quaisquer outras acusações acerca daquele atentado, o que certamente aconteceria.
O silêncio instalara-se completamente no ambiente. Os dois estavam diante um do outro, sem nada falar. Até que Pedro abaixou o livro e se manifestou:
— Quando Marina me disse que estava aí, quase não acreditei. Milagres não têm feito parte de minha vida nos últimos anos, sabe? — disse ele, com um sorriso meio sarcástico. E completou: — Veio se assegurar de que o serviço deu certo?
Donato retribuiu o sorriso.
— Vim me assegurar de que está realmente bem.
Pedro fez certo esforço para colocar o livro que segurava na mesa ao lado. Em seguida, voltou-se completamente para Donato.
— Dessa vez você realmente me surpreendeu — confessou Pedro.
— Refere-se à minha visita? Posso retornar outra hora, se for o caso.
— Quanto a isso, não esperava que aparecesse aqui, depois do ocorrido.
— Como não? Temos nossas diferenças na RTN, mas é o vice-presidente.
— Donato, são totalmente dispensáveis suas encenações. Não pedi que entrasse aqui para vê-lo bancar o político carismático no trato com seu eleitorado. Há muitos anos deixei de acreditar em Papai Noel. Portanto, sejamos claros. Onde está o dossiê?
Donato respirou fundo e sorriu, prosseguindo seu ritual:
— Dossiê? Pensei que tivesse esquecido essa história. Pedro, depois de tantos anos, não se convenceu de que ele nunca existiu?
— Como eu poderia me convencer se você sempre acreditou na existência desses documentos, a ponto de contratar alguém idêntica à mulher que mais amei, a fim de me seduzir e roubá-los de mim?
Donato sabia do que Pedro estava falando. Jamais esqueceria o plano para descobrir se ele dispunha do dossiê, forçando Júlia a se passar por Mirela, o grande amor da vida de Pedro, que havia morrido quinze anos antes num acidente, justo na época em que se preparavam para se casar. Acreditava ser um golpe de mestre, elaborado logo que descobrira a existência de Júlia, fisicamente idêntica à irmã mais velha, que ela mesma não chegara a conhecer.
— Remoendo emoções do passado, meu amigo? — ironizou Donato. — Isso foi há seis anos. Para mim esse caso havia sido encerrado.
— Mas não para mim. Nunca engoli essa história, Donato. Inventar que Mirela estava viva, a fim de me tirar do seu caminho, foi demais até para você.
— Tudo tem seu lado bom. Veja só, você havia acabado de perder seu pai e logo em seguida se separado de Vanessa. De repente, reencontrar o grande amor da sua vida, que pensava estar morta, seria maravilhoso para qualquer pessoa. Não concorda?
— Se fosse verdade, sim. Mas isso é doentio, Donato.
— Doentio? Dei a você um novo amor no pior momento de sua vida. Você e a Júlia Serrado se apaixonaram completamente. E mesmo depois de saber de toda a verdade, que ela não era Mirela, esse amor continuou. Estou mentindo?
— Brinca com a vida das pessoas, Donato — lamentou.
— Acho que minha visita chegou ao fim — constatou, sorrindo e dando as costas para Pedro. — Melhoras, meu amigo.
— Vi o que tinha no dossiê, Donato — Pedro revelou no impulso. — Donato parou e esperou que falasse mais. — Sei o que causou a morte do meu pai — completou.
— Isso também estava escrito no dossiê? — perguntou Donato, dando meia volta.
— Não, mas acredito que o que tinha dentro daquela pasta lhe causou muito mal.
— E o que tinha dentro da pasta, afinal?
— As provas de que o que todos diziam a seu respeito, desde quando nos conhecemos, era mesmo verdade.
— Nunca acreditou em mim, no fundo sempre desconfiou que eu mentia, como todas as pessoas. Mas sabe o que é mais irônico, Pedro? Ontem quando nós soubemos do que houve com você, senti medo. De repente, vi um filme passando na minha cabeça. O dia que a gente se conheceu na faculdade, as brincadeiras, as namoradas, os problemas que nós enfrentávamos juntos, as alegrias, as comemorações, os porres, o quanto nós fomos amigos. Me dei conta do quanto isso me fez... me faz falta!
Pedro pareceu atônito com aquela revelação.
Donato se empolgou.
— Pedro, foi muito duro quando pediu pra me afastar! Jogou fora uma amizade de anos por conta dos caprichos de uma mulher ciumenta.
Pedro deu um suspiro e procurou se explicar, embora não aparentasse crença total em sua reação emotiva:
— A Vanessa ameaçou separar o Felipe de mim.
Donato se aproximou, apoiando-se na grade inferior da cama. Pela primeira vez, deixaria transparecer a emoção no seu tom de voz:
— O amigo que conheci na faculdade jamais baixaria a cabeça para uma chantagem desse tipo.
— Nunca teve filhos, se tivesse saberia do que estou falando. O Felipe tinha muitos problemas de saúde. Eu não correria o risco de ser afastado do meu filho.
— Tive raiva de você, por achar que o cara que sempre admirei pela coragem e justiça, fraquejava logo comigo. Não faz ideia do que representava na minha vida aquela amizade, Pedro. Esperava de fato que fosse diferente, que a enfrentasse.
— Esse é o maior problema do ser humano, a expectativa acerca do outro. Ninguém é perfeito. Todos nós estamos sujeitos a erros, a fraquezas. Só que o nosso maior equívoco se configura exatamente quando alimentamos o desejo de que o outro seja como queremos, ou ainda que tome determinadas atitudes. Quando fazemos isso, esquecemos que aquele desejo só é real por conta de “nossas” questões, não do outro. Por isso a outra pessoa nunca conseguirá atender às nossas expectativas e nós seremos eternos frustrados e decepcionados com o mundo.
Donato engoliu a seco aquela resposta, embora procurasse manter uma tranquilidade ensaiada.
— Não é questão de expectativa. A nossa amizade era muito importante para mim. Mas isso não importa mais. Acho que precisa descansar.
— Sei que o dossiê está com você, Donato.
— Teimoso como sempre! Bom, vou indo.
Deu meia volta e se direcionou à porta.
— Esse surto emocional não vai me tirar do foco. Mais do que nunca, vou me dedicar a provar para o mundo quem é o verdadeiro Donato Pessoa.
Mais uma vez, Donato parou.
— Está me ameaçando? — perguntou.
— Não. Estou avisando. As pessoas não só vão descobrir o que estava dentro daquela pasta, mas também a verdade sobre a morte do meu pai.
A guerra está declarada!
— Que assim seja.
Donato deixou o quarto, tomado pelo ódio liberado das feridas mexidas ali dentro e por sentir-se afrontado por Pedro. Mas de uma coisa estava certo: ele não havia manuseado o dossiê. Do contrário, a conversa não teria tido aquele tom, visto que os documentos organizados por Alberto Lucena revelavam não apenas seu enriquecimento ilícito ou manobras políticas envolvendo a RTN, como traziam à tona segredos muito mais graves. A promessa que acabara de ouvir deixava-o em estado de alerta. Como o pai fizera no passado, Pedro também poderia descobrir toda a verdade, se nada fosse feito para impedir.
Donato percebeu que da amizade deles nada mais restara, senão as lembranças. Pensava que seria melhor se Pedro tivesse realmente morrido. E todos os seus problemas estariam resolvidos, já que depois do atentado, ficaria mais difícil de fazer algo contra ele sem chamar atenção.
Pensou em procurar pela pessoa que mais estava envolvida naquele dossiê. Melhor que ninguém, ela saberia como proceder. Todavia, se o fizesse, estaria assinando sua incompetência. Deste modo, a postura mais adequada era esperar um pouco e saber os rumos tomados por Pedro, a fim de neutralizá-lo. E foi o que decidiu fazer.
Ele tirou o celular do bolso do blazer, procurou um nome na agenda e discou.
— Alô? Não se preocupe, tudo sob controle. 







Capítulo 17

Júlia entrou no escritório de Olívia ofegante, pouco mais de uma hora depois de flagrá-la acompanhada de Guel no motel. Encontrava-se completamente perturbada por imaginar ser ela a comparsa do cunhado no sumiço de Clara. Necessitava tirar aquela história a limpo e entender que tipo de envolvimento os dois teriam realmente, se um romance ou alguma relação com o sequestro de Clara, como o tal Romualdo havia insinuado. Preferia que tudo não passasse de um equívoco! Embora o desconhecido soubesse de informações que faziam sua história parecer verídica.
Olívia estava em pé, de costas, com o olhar fixo para a prateleira de porta-retratos atrás de sua mesa. Júlia respirou fundo, tomou coragem e falou:
— Acho que precisamos conversar, Olívia.
— É rápida em suas aventuras, não é, Júlia?
— Aventuras? Do que está falando?
Olívia se virou para ela com um olhar fulminante. 
— Do cliente da boate com quem estava — respondeu de prontidão.
— Cliente da boate? Não sei do que está falando, Olívia. Fui àquele motel para flagrar o Guel com sua comparsa. — Parou um pouco e prosseguiu: — Dei de cara com você. Que tipo de relação vocês mantém, afinal?
Olívia se apoiou na mesa e respondeu agressivamente:
— Minha vida particular não lhe diz respeito!
— Olívia, sempre fomos amigas. Não entendo sua reação.
— Não precisa continuar fingindo, Júlia. Sei muito bem o que aconteceu.
— Fingindo?! — parecia confusa. — Acompanhei aquele homem na esperança de descobrir a verdade sobre Guel Serrado. Ele me convenceu, afirmando que eu saberia quem estava junto com ele no sequestro de Clara.
— Mentira! — Olívia gritou, batendo a mão na mesa. — Eu o conheço. Trata-se de um cliente da Mirage.
— Cliente? Mas nunca o vi por aqui.
— Ele havia procurado por outras bailarinas, tentando aliciá-las. Pensam que as meninas podem se prostituir mediante uma boa proposta.
— Meu Deus! — Júlia pôs a mão na boca. — E como soube?
— Vinha acompanhando o caso há algumas semanas, até ele chegar a você. — e fez uma expressão de desdém: — Logo você, Júlia?
— O que está insinuando?
— Insinuando? Vi você entrando no motel com ele. A minha pessoa de confiança aqui na Mirage se prostituindo? Como pôde?!
— Não acredito que você...
Júlia estava completamente chocada, sem conseguir compreender o que acontecia. Em algum momento parecia ter perdido o fio da meada naquela conversa absurda. Chegara ali disposta a cobrar uma explicação de Olívia e de repente fora transformada em ré. 
— Sempre foi regra dentro dessa boate, Júlia. Nenhuma bailarina pode se envolver com nossos clientes. Tenho um nome a zelar. A Mirage é uma das casas de shows mais conceituadas de Fortaleza. — Olívia se inclinou mais em sua direção: — E não admito prostituição aqui dentro!
— Olívia, está equivocada! — afirmou, quase em desespero. — Aquele homem me procurou dizendo que o Guel o tinha enganado numa negociação, por isso queria se vingar, revelando para mim o nome da sua comparsa. Foi isso que nos levou até aquele motel.
— Todos têm razão sobre você. Esconde-se atrás dessa história da sua filha para conseguir tudo que quer.
— Todos? De quem está falando? Quem está inventando essas histórias a meu respeito?
— Não me engana mais, Júlia. Foi assim quando se fez passar pela namorada de juventude do Pedro e o seduziu, orientada por um plano sórdido de Donato Pessoa; não satisfeita, aproximou-se de Leonardo Gondim, conquistando sua confiança, por ser ele um homem poderoso; tem também como objetivo destruir a vida do Guel, movida por uma vingança torpe, por ele tê-la abandonado no passado; e agora, prostituição? Desde quando?
— Não tem esse direito! — gritou Júlia.
— Quem é você para falar em direitos? — Olívia questionou, contornando a mesa para encará-la mais de perto.
— Alguém te envenenou contra mim, só pode ser! Quem foi? O Guel, foi ele que inventou essas calúnias? Ou vocês estão juntos nessa?
— É uma mulher perigosa, Júlia. Acha pouco perseguir o cunhado, agora procura uma nova culpada para a monstruosidade cometida pelo seu marido? Quer saber do que mais? O Joel era igual a você, por isso vendeu a própria filha.
Julia fechou o punho, como que se contivesse para controlar a fúria despertada por tantas acusações. Por muito pouco não agrediu a amiga de tantos anos, movida pela indignação. Ainda que Olívia estivesse cega pelas possíveis mentiras criadas por Guel, não tinha o direito de proferir tamanhas aberrações. Acabou por transformar a raiva em choro.
— Olívia, não sei o que está acontecendo ou o que te disseram sobre mim, mas vai se arrepender. O que foi dito aqui... — quase não conseguiu terminar, tomada pela emoção. — ...é uma grande injustiça!
Olívia baixou a cabeça e disse:
— Está doendo muito em mim também! É ruim descobrir que uma pessoa não é o que a gente pensa, Júlia. — Fitou-a. — Você é uma grande decepção! E claro, não trabalha mais aqui.
Júlia a encarou por alguns instantes, como se quisesse compreender de onde vinha tamanha convicção. Olívia parecia outra pessoa, dura, implacável, como se não tivesse qualquer afeto por ela.
Balançou a cabeça e saiu. Não tinha mais o que dizer. Fora muito agredida, machucada, sem qualquer possibilidade de defesa. Apoiou-se numa coluna do corredor, colocou a mão no peito e chorou copiosamente, expulsando de si a dor por ter sido humilhada, acusada injustamente por alguém a quem tanto considerava e a acompanhava em sua trajetória profissional, como em sua luta para encontrar a filha.
Júlia lembrou que no passado os dois tiveram um caso, pouco depois do desaparecimento de sua filha. E que tudo terminara após um golpe em que o cunhado perdera uma alta quantia em dinheiro de um investimento de Olívia. Imaginou com isso que era provável nunca terem rompido a relação.
Pensou em voltar lá e insistir com a verdade ou pelo menos saber que tipo de relação ela vinha mantendo com Guel. Se o homem tivesse certo, havia uma grande possibilidade de Olívia estar envolvida no sequestro de Clara. O que explicaria a sua reação, um jogo para tirá-la do foco, driblar sua atenção e distanciá-la da verdade. Todavia, não conseguia imaginar um motivo pelo qual sua chefe teria se deixado envolver numa trama daquelas. Parecia loucura levantar aquela hipótese.
Concluiu que aquele não era o melhor momento para um confronto com Olívia.
Guel está por trás disso. Ele passou dos limites. Já sei como deixá-lo em minhas mãos e fazê-lo contar a verdade.
Júlia enxugou as lágrimas e partiu para um novo encontro com o cunhado.







Capítulo 18

Júlia apertou a campainha do apartamento de Guel meia hora depois de sair da Mirage. Ela estava tomada de raiva e indignação pela injustiça sofrida em relação à sua ida ao motel. Imaginava ser o cunhado o responsável por aquilo. E sentiu-se uma tola por cair naquela jogada.  Mas logo saberia a verdade.
Quem está mentindo afinal? Guel? O tal Romualdo? Ou a própria Olívia?
Só de pensar naquela mentira como sendo mais uma etapa da vingança de Guel contra ela, Júlia trincou os dentes para conter a própria fúria e cravou o dedo na campainha.
A porta imediatamente foi aberta. Guel olhou de modo agitado, talvez por conta do barulho estridente da campainha, acionada freneticamente por ela.
— Júlia, o que é isso?
Ela respondeu e foi entrando, sem esperar ser convidada:
— Que tipo de relação mantém com Olívia Cordeiro?
— Boa tarde para você também — ele brincou, sorrindo.
Júlia jogou a bolsa no sofá e colocou o dedo quase no rosto dele, avisando com voz firme:
— Não me venha com gracinhas, Guel. Estou farta desse jogo! O que você e a Olívia têm um com o outro afinal?
— Ciúmes? — procurou saber, caindo no sofá.
— Não seja ridículo! Fui àquele motel para flagrá-lo com uma comparsa e dou de cara com Olívia. O que isso significa? É ela a sua comparsa? O que ela tem a ver com o sumiço de Clara?
Guel levanta-se e se aproxima de Júlia.
— Ei, ei... pára um pouco... tenta se acalmar e a gente pode conversar.
Júlia respirou fundo e fechou os olhos por alguns segundos, seguindo seu conselho. Ele por sua vez pegou um copo de água na geladeira e trouxe para ela.
— Então foi lá querendo me ferrar? Quem era aquele cara contigo?
— Ele me disse que queria vingança contra você e para isso ele me ajudaria e lhe desmascarar.
— Júlia, deu para eu ver o rosto daquele cara direitinho no carro. Nunca o tinha visto. Caiu numa cilada.
Cilada? Mas de quem?
— Seu plano é me enlouquecer. É isso, quer me deixar louca.
— Júlia, senta aqui.
Guel a puxou pelo braço com cuidado, fazendo com que ela sentasse no sofá, depois se pôs de joelhos diante dela.
— Alguém quis que pensasse que a Olívia era minha cúmplice — completou.
— E para quê?
— Despistar o seu foco, não sei.
— A Olívia está pensando que fui àquele motel para me vender.
Guel fez uma pausa, surpreso.
— Ela acha que está se prostituindo?
— Você a fez pensar isso de mim.
— Não!
— É parte da sua vingança?
— Não! Está errada! — insistiu.
— Vocês estavam juntos lá. É como se tivessem feito uma lavagem cerebral na Olívia. Ela não acredita em nada do que eu fale.
— Não falei nada, juro!
— Qual a relação entre vocês, afinal?
Guel levantou-se e deu as costas, enquanto ela aguardava ansiosa por uma explicação. Júlia podia ver seus bíceps se contraindo.
Em seguida, ele se virou e respondeu:
— Nós voltamos a nos encontrar há alguns meses. Não se trata de nenhuma relação firme como tivemos no passado. Resume-se a uma conveniência. Olívia nunca me esqueceu. Há poucos meses ela me procurou e saímos algumas vezes. Dou o que ela necessita e recebo aquilo que preciso. — Guel deu uma pausa mais longa, como se precisasse tomar fôlego para confirmar o que Júlia estava pensando. — É isso mesmo. Olívia paga para ficar comigo — completou.
Júlia foi até a porta da varanda, tentando ordenar os pensamentos. Estava chocada. Guel, um michê? Até compreendia que Olívia pudesse ter se envolvido com ele no passado, sem saber de nada a seu respeito. Mas mesmo depois de ser enganada e roubada por ele, voltar a procurá-lo e pagar por sua companhia? Aquela era uma Olívia que ela não conhecia. Nem imaginava que uma mulher rica, bonita, inteligente e bem sucedida como sua chefe fosse capaz de bancá-lo em troca de... sexo.  E se o tal Romualdo estava mentindo, a mando de quem ele fez isso?
Mais uma dúvida que a inquietou. De repente, viu-se perdida num jogo, sem saber em quem acreditar.
Júlia pegou a bolsa e partiu em direção à porta. Talvez Tancredo pudesse lhe ajudar.
— Júlia, por favor. Não vá embora! — Guel pediu, quase implorando. — Nunca fui tão honesto, tão sincero com alguém em toda a minha vida. Juro!
— Juras de um michê não valem — ela desdenhou, depois de parar.
— Olhe para mim.
Júlia continuou de costas e ele insistiu:
— Júlia, por favor, olhe para mim.
Finalmente ela se voltou para Guel, com um olhar transbordando de interrogações.
— Sei que não sou digno de confiança. Mas te amo e sou a única pessoa que pode te ajudar nesse momento.
— O que sabe de amor, Guel? É um gigolô de luxo.
Ele se aproximou. Pegou a mão de Júlia, e novamente, como da última vez, colocou-a em seu peito, na altura do coração, fazendo-a sentir seu pulsar descompassado. E sorriu, complementando:
— Isso é amor. E a única vez que eu senti foi por você. Começou no primeiro dia que te vi e está crescendo até hoje dentro de mim.
Júlia puxou a mão e tentou se afastar, mas ele a segurou forte contra o peito.
— Não adianta fugir. Você também me quer, eu sinto! — Guel sentenciou.
— Deixe-me ir embora, por favor.
— Não!
Guel aproximou-se tanto de Júlia que ela sentiu que seria inevitável beijá-lo. Seus lábios se tocaram, levemente, sem que ela resistisse. Guel estava completamente certo ao afirmar que ela também o desejava. De fato, não somente se entregaria ao cunhado, mas também saciaria o próprio desejo totalmente inusitado despertado pelos últimos encontros, quando achou que podia trazê-lo para seu lado e convencê-lo a revelar o que sabia sobre o paradeiro de Clara. Uma decisão tomada pela manhã quando tivera com ele na academia —  embora não assumida completamente –, mas revelada sem hesitação, após o convite dele. Deixou-se lançar totalmente naquele instante, segura que ela se aproveitaria muito mais dele do que o próprio Guel pudesse imaginar.
Em poucos minutos, os dois estavam na cama, num encontro completamente novo e diferente.





Júlia acordou assustada, com uma sensação de total desorientação, sem saber ao certo onde estava e que horas eram. Encontrava-se completamente despida por baixo do edredom, procurando proteger-se do frio proporcionado pelo aparelho de ar condicionado daquele quarto. A luz baixa de uma luminária na mesinha de cabeceira deixava o ambiente quase na penumbra. Ela olhou na direção da janela e viu a figura musculosa de Guel, também sem roupas, apoiado na vidraça, de perfil, como se contemplasse algo lá fora. Procurou rapidamente o celular e o encontrou no chão, ao lado da cama. No visor, marcava dezessete horas e cinquenta e sete minutos.
Meu Deus, nem vi o tempo passar!
A lembrança dos beijos, da sensação ao encostar-se em Guel no apartamento dele, tomou-a por completo. Júlia sentiu vergonha por estar ali, por ter se permitido a uma aventura e justo com ele, responsável por tanto sofrimento em seu passado, como pelo estrago em sua vida depois do sumiço de Clara.
Como pude?
Ela esticou o braço para pegar a peça de roupa no chão, sem se descobrir.
— Dormia tão tranquilamente, que não quis te acordar — Guel justificou.
— É tarde, tenho que ir.
Ele finalmente veio em sua direção. Júlia constatou como Guel era bonito. Estranhava voltar a enxergá-lo daquela forma, depois de odiá-lo por tantos anos.
— Fica mais um pouco, por favor — ele pediu, sentando na cama.
Júlia vestiu-se por baixo do edredom.
— Preciso voltar para casa. Raquel deve estar preocupada — explicou.
— Ligue para ela. Diga que está bem. Ou eu mesmo posso ligar — propôs, pegando o celular na mesinha ao lado.
— Não! — Júlia interveio no susto, segurando sua mão.
— Calma. Qual o problema?
Ela procurou se conter. Não queria que Raquel ou qualquer pessoa soubesse do que havia acontecido ali entre eles.
— Preciso ir mesmo embora.
Guel desviou o olhar e sorriu.
— Quer esconder o que houve. — Voltou-se e completou: — Júlia, para mim o que aconteceu aqui foi muito importante. Eu entendo que tenha mágoa, vergonha de mim. Mas quero que saiba que muita coisa mudou aqui dentro — afirmou, batendo no peito. — Mais do que nunca, tenho certeza que te amo e...
— Guel, sei que... — ela tentou interrompê-lo, mas também teve a fala cortada.
— Júlia, escute. Sei que deve estar confusa, ou até se culpando pelo que houve. Mas quero uma chance de tentar recuperar a confiança perdida.
— Guel, o que houve foi...
— Deixe eu te provar que pode ser diferente.
Júlia percebeu que aquele poderia ser o momento certo para descobrir o que Guel sabia. Jogaria com a fragilidade daquele homem, como aprendera na convivência com ele mesmo.
— Prove! — desafiou.
Guel virou-se para a lateral, pegando a cueca e se vestiu. Mirou os olhos de Júlia, como que para selar um compromisso.
— É a verdade que quer? Pois é a verdade que terá! — ele declarou.
À Júlia, só cabia ouvir atentamente qualquer revelação. Sabia da possibilidade de se tratar de mais um golpe, mais uma jogada. No entanto, pela primeira vez ele se dispunha a contar alguma coisa sobre o sequestro. E o que viesse, seria averiguado juntamente com Tancredo, munido de sua vasta experiência como investigador.
— Fui contratado para tirar a Clara de você — iniciou, deixando-a visivelmente chocada. Ele deu uma pausa, levantou-se da cama, foi até a janela e prosseguiu, fitando o infinito: — Diferente do que pensava na época, não se tratava de nenhuma quadrilha de tráfico de crianças, mas de um plano direcionado a você.
— Mas não fazia parte de sua vingança contra mim?
Guel voltou a aproximar-se da cama. Júlia se ajeitou, abraçando as pernas e se apoiando nos travesseiros, tentando evitar o contato físico.
— A iniciativa não foi minha, Júlia. Queria sim me vingar. Essa proposta veio como uma luva.
— E de quem foi a proposta?
Houve um pequeno silêncio antes que ele respondesse.
— Foi Donato Pessoa quem me contratou.
— Eu sabia! — Júlia quase encostou a testa nos joelhos. — E por quê?
— É a única coisa que não sei.
— Não sabe?
— Eles não me diziam qual era o motivo e o interesse em você.
— Está mentindo!
— Juro que não. Até tentei saber algumas vezes, mas a secretária dele, a tal Luísa, sempre despistava. Na época ele era deputado, daí pensava que podia ser alguma coisa com política, não sei. Só sabia que era coisa de cachorro grande.
— E para onde vocês levaram a minha filha, Guel?
A esta altura, Júlia se encontrava tomada de ansiedade para ir direto ao ponto.
— Não sei.
Ela não se conteve e se aproximou de Guel, de joelhos em cima da cama.
— Como não sabe? E a fotografia no aeroporto, dois dias após o sumiço de Clara? Estava lá com aquela mulher segurando a minha filha.
— Não sou eu naquela fotografia, já falei.
Júlia levantou e se pôs diante dele.
— Mentira! Não está contando tudo o que sabe.
— O Joel passou na minha frente e negociou diretamente com o deputado.
— Está me dizendo que o Joel te enganou e seqüestrou a Clara sozinho?
— Exatamente.
Júlia encostou as mãos na testa. Caminhou de lado para o outro do quarto, transtornada com tantas revelações.
— Não sei se posso acreditar em você.
Guel chegou mais perto, tomando-a em seus braços.
— Júlia, pela primeira vez falo a verdade, juro! Sempre soube que tinha um grande jogo por trás disso tudo. Nunca consegui imaginar o que seria e porque você estava envolvida. Mas esteja certa que o sequestro da Clara é apenas a ponta desse iceberg. Tem muito mais escondido por trás disso, acredite.
— E o que me garante que está falando a verdade?
— O que estou sentindo por você. Foi isso que me fez abrir essa história depois de tantos anos. Quero te propor uma aliança. Sei muito mais do que descobriu em todos esses anos de busca. E acho que sou a única pessoa capaz de descobrir mais sobre isso.
— E por que o faria?
— Por isso.
Ele a beijou. Mas Júlia, diferente de horas antes, não conseguiu retribuir. Seus lábios pareciam frios, sua pele estava fria, todas as células do corpo reagiam da mesma maneira.
— Quero uma chance para provar que pode ser diferente. Vou ajudar a encontrar a sua filha. Conseguiu um grande aliado, Júlia.
Júlia desvencilhou dos seus braços, procurando organizar as informações. Sentiu-se confusa frente a tantas novas revelações. E se fosse mais um jogo do cunhado, como tantos outros para enganá-la ou despistá-la do caminho certo?
 Uma aliança?
Viu-se diante de um impasse — aceitar ou não a proposta de Guel, o criador de tantas mentiras e desgraças em sua vida. Nem sequer compreendia o que ele chamava de “aliança”. Temia tratar-se da continuidade de sua história de amor, interrompida no passado pelas mentiras de Joel e Raquel. E se fosse aquilo, não teria coragem. Pensar na possibilidade de reatar um relacionamento a fim de garantir a permanência daquele homem ao seu lado para lhe ajudar a encontrar a filha, trazia-lhe a sensação de estar se vendendo, algo como o que ele tinha feito com Olívia. Prostituição! Todavia, se Guel vislumbrasse apenas o espaço para conquistar sua confiança, talvez não fosse de todo o mal. Não teria nada a perder.
Ela finalmente parecia dar as cartas naquela relação. A decisão estava com ela, não com ele. E isso lhe outorgava total poder diante do proposto, impulsionando-a a se voltar para aquele homem e firmar suas exigências:
— Aceito a aliança. Mas somente até encontrar Clara. Topa?
Estendeu a mão para selar o acordo. Ele olhou-a de modo interrogativo. Muita coisa poderia mudar se aquela parceria fosse firmada naquele instante. Júlia torceu para que ele aceitasse, até que Guel sorriu e tomou-lhe a mão firmemente.
— Mas você será minha de novo — ele arrematou. 







Capítulo 19

Júlia entrou no táxi e solicitou ao motorista que a levasse à sua casa, passando-lhe o endereço. O relógio digital no painel do veículo marcava dezoito horas e cinquenta e seis minutos. Ela estava surpresa consigo mesma por ter passado toda a tarde com Guel, numa prestação de contas que havia se transformado num momento de entrega e prazer, como há muito não experimentava.
Finalmente, tivera a confirmação de que tinha sido realmente Donato Pessoa o responsável pelo sumiço de Clara. No fundo, sempre desconfiara, mas até então não fazia sentido algum. A não ser que ele quisesse forçá-la a aceitar integrar o plano para tirar o dossiê das mãos de Pedro, Júlia não conseguia enxergar outro motivo.
Meu Deus, será que foi por isso?
Parecia que tudo se encaixava na revelação de Guel. Júlia só havia aceitado a proposta de Donato para assumir a identidade de Mirela e se aproximar de Pedro, por ele ter lhe prometido trazer sua filha de volta. Embora muitas coisas começassem a fazer sentido, outras tantas se transformavam num amontoado de cenas confusas e interrogações se alastrando em sua mente. Se Clara era uma isca, por que não tivera sua filha de volta quando fora desmascarada por Pedro? Que motivos Donato teria para manter mãe e filha separadas até hoje?
Júlia suspirou e tirou o celular da bolsa em busca de ajuda. Rapidamente percorreu a agenda até o nome de Tancredo e ligou. Aliviou-se ao ouvir o “alô” do outro lado da linha. 
— Tancredo? Pode falar?
— Claro, Júlia. Aconteceu algo?
— Estive com Guel há pouco. Finalmente ele acusou Donato Pessoa de estar por trás do desaparecimento de Clara. 
— Isso é ótimo! Acredito que estamos chegando mais perto.
— Podemos nos encontrar? Acho que precisamos falar pessoalmente. Que tal um almoço?
— Combinado. — Uma pausa, e depois: — Júlia?
— Sim?
— Tem uma pessoa aqui querendo falar com você. Vou passar para ela, só um instante.
Houve alguns segundos de silêncio até a pessoa responder.
— Alô?
A voz era grave e provocou-lhe uma palpitação. Era Pedro ao telefone.
— Pedro? É você?
— Sim. Como anda essa bailarina?
Por alguns instantes, não sabia o que dizer. Encontrava-se desconsertada e surpresa ao mesmo tempo. Jamais esperaria falar com Pedro naquela noite, principalmente depois de sua ausência na estreia do show.
— Aconteceram alguns imprevistos — foi a única coisa que veio à sua mente naquele momento.
— Tancredo me contou o que houve — Pedro explicou. — Espero que esteja tudo bem. Em breve quero lhe ver de volta aos palcos.
Júlia gostaria de perguntar, naquele instante, porque ele não havia aparecido na apresentação do dia anterior. Porém, achou melhor não se referir ao episódio, para que não soasse como uma cobrança. Pedro pareceu ler seu pensamento, e contou o que aconteceu.
— Júlia, escute. Aconteceu uma coisa horrível ontem, por isso não fui à sua estreia na Mirage. Voltava do Porto das Dunas quando fui perseguido por um carro. Acabei sendo baleado.
— Baleado?! Mas você está bem? — perguntou, surpresa.
— Não se preocupe. Estou bem.
— E onde está? Em casa, no hospital?
— No hospital. Mas vou ser liberado amanhã cedo.
— Eu vou te ver.
— Não, Júlia, por favor. Vanessa está por aqui. Tem me acompanhado todo o tempo. Não seria interessante vocês se encontrarem, ela não entenderia.
Júlia sabia a que ele se referia. Vanessa tudo fizera para vê-los separados, e jamais aceitaria a sua presença naquele hospital.
— E amanhã, vai para onde?
— Ficarei uns dias com Felipe. Depois, volto para casa.
— O que importa é que você está bem — pronunciou aquilo com o coração partido. E sentiu inveja de Vanessa por poder cuidar dele naquele instante. –Tem ideia de quem fez isso com você?
— É melhor que converse com o Tancredo amanhã. Tão logo eu possa, nos falamos pessoalmente. 
Júlia sorriu, enchendo-se de alegria. — Então nos falamos.
— Ah, e mais uma coisa: senti muito a sua falta! Queria que estivesse aqui comigo.
— Também desejava estar com você.
Pedro desligou. Júlia permaneceu olhando para o aparelho na mão, sorridente, como se celebrasse aquelas últimas palavras.  A parceria que ela sempre sonhou parecia caminhar para um destino feliz — encontrar a filha ao lado do homem que amava. Precisaria esperar alguns dias e estariam juntos novamente. Uma reconciliação? Porém, a imagem de Guel sequestrou a sua mente de todos os outros pensamentos. A lembrança do que fizera horas antes caiu-lhe como uma bomba, implacável. Júlia se encheu de culpa por ter cedido à tentação, aos encantos do cunhado, sucumbindo ao próprio desejo e carência, que fez com que ela acabasse na cama de Guel Serrado.
Se aquela ligação tivesse acontecido mais cedo, talvez tudo fosse diferente.  Ela só havia se entregado ao cunhado por achar definitivamente que não teria mais nenhuma chance com Pedro. Uma certeza firmada pela ausência do mesmo em seu show. Na verdade, Júlia passara os últimos cinco anos esperando que Pedro a perdoasse pelo modo como os dois haviam se conhecido, quando ela assumiu a identidade de Mirela para enganá-lo. Acreditava que aquela história os separara por todos aqueles anos. Embora não tivesse perdido as esperanças em tê-lo de volta, até aquele dia em que Guel conseguira penetrar o campo intransponível que se constituíra sua vida afetiva. Até então, Júlia imaginava que nunca mais estaria com alguém que não fosse Pedro.
Ela não sabia como administraria aquilo dali para frente. De um lado, Guel propondo uma aliança para encontrar sua filha; do outro, Pedro se reaproximando, o maior objetivo de sua vida. Não tinha como negar o que sentira na companhia do ex-namorado naquela tarde, o quanto havia sido bom estar com ele. E só de pensar na possibilidade de uma reconciliação com Pedro, enchia-se de felicidade. Mas se Pedro soubesse o que havia acontecido entre ela e Guel, jamais entenderia.

O melhor seria se calar. 






Capítulo 20

No dia seguinte, Júlia foi conduzida pelo garçom até o andar superior do requintado restaurante. Os degraus e corrimão da escada feita de troncos de madeira bruta definia o estilo rústico do ambiente. Galhos secos de árvores caiam do teto, ostentando réplicas perfeitas de tucanos e araras coloridas em madeira. Tancredo a aguardava sorridente sentado em uma mesa. Ele soltou o Ipad e levantou para recebê-la. Os dois se abraçaram. Em seguida, adiantaram o pedido ao garçom para começarem a conversa. Ele preferiu um salmão simples ao molho de alcaparras, enquanto Julia se decidiu por uma massa ao molho de camarão. Para acompanhar, uma garrafa de vinho Chardonnay.
Júlia estava ansiosa pelas novidades que o amigo dissera ter descoberto.
— E então? 
Tancredo sacou um papel do bolso e entregou a ela.
— Sabe onde fica esse local?
Av. Pontes Vieira, 2403 — Apto. 802 — Dionísio Torres.
Júlia sabia de onde se tratava. Tancredo a fez recordar que na época em que ela se aliou a Donato e Luísa para conseguirem o dossiê que supostamente estaria com Pedro. Os três se reuniam constantemente num apartamento no bairro Dionísio Torres, no qual planejavam uma maneira dela se aproximar do vice-presidente da RTN e conquistar sua confiança, encarnando o papel de Mirela, a irmã mais velha que ela nem sabia que existia.
Após contar tudo a Tancredo, o jornalista lhe revelou que naquele mesmo lugar esteve hospedado um casal e uma criança no período exato do desaparecimento de Clara e da data registrada na fotografia do aeroporto. Disse também que, mesmo sem saber, Júlia havia se hospedado no mesmo local onde sua filha estivera até ser tirada de Fortaleza. Depois afirmou ter chegado ao referido endereço através de um taxista do Aeroporto, que parecia ter prestado serviços ao casal e acabou por reconhecer a mulher da fotografia. Levando-o a garimpar mais informações junto aos funcionários do prédio indicado — uma missão que lhe custou alguns dias, segundo ele.
— E quem é essa gente afinal? — Júlia se antecipou.
— Chamam-se Aldenora e Emanuel.
Júlia apoiou os cotovelos na mesa e cruzou as mãos embaixo do queixo. Respirou fundo e vasculhou em sua memória aqueles nomes. Nada de familiar encontrou, no entanto. Nunca ouviu nenhuma referência acerca daquelas pessoas.
— O que mais descobriu sobre eles?
Tancredo trouxe-lhe algumas curiosidades sobre o casal, como sua rotina silenciosa durante os dias em que esteve no apartamento e as visitas constantes de Guel, identificado pelo porteiro do prédio como o rapaz da fotografia.
— Júlia, segundo informações de embarque naquele dia, Aldenora e Emanuel viajaram com destino a São Paulo. Provavelmente é lá que eles estão, e é para lá que estou indo amanhã. Vou ver o que consigo descobrir.
— Guel está mentido sobre sua participação no sequestro... — constatou ela.
— Provavelmente sim — Tancredo confirmou. — Mas está falando a verdade sobre Donato Pessoa. Afinal, o apartamento em que Aldenora e Emanuel estiveram hospedados até saírem de Fortaleza, é de propriedade do senador.
— O que será que ele está querendo com isso?
— É cedo para tirarmos conclusões, mas acredito que Guel prefere não se expor. Delatar o mentor do sequestro e tirar seu nome de foco, parece-me uma boa saída.
— Mas com que intenção? Ele poderia não mexer nessa história. Tem alguma coisa errada.
— Os objetivos dele podem ter mudado.
Podem!
Júlia cogitou a possibilidade de Guel desejar realmente uma reaproximação. O que talvez ele considerasse impossível de acontecer se fosse comprovada sua participação no sumiço de Clara. O fato é que o cunhado parecia jogar alto com o que sabia. E manter uma aproximação naquele momento seria o mais indicado. Todavia, as confirmações de Tancredo a deixaram mais confiante. Júlia se deu conta que em dez dias eles haviam conseguido mais informações do que em seis anos, desde o ocorrido. E tudo, por ter tocado no cerne da questão em seu primeiro reencontro com Guel, orientada por Miguel Arcanjo, acreditava ela. Era também o momento de estar novamente diante de Donato Pessoa, cobrando-lhe explicações. Fazia muitos anos que não se viam pessoalmente e surpreendê-lo naquele instante, munida de tantas provas contra ele, poderia forçá-lo a revelar alguma coisa sobre o paradeiro de Clara ou até mesmo acerca do motivo de mantê-la distante da filha.
Aquilo era o que mais lhe intrigava naquele momento. O que um homem tão importante como Donato estaria ganhando em vê-la separada de Clara? Vingança? Certo que ele a odiou na época por ela tê-lo enfrentado e decidido não continuar no plano contra Pedro, motivando-o a contar toda a verdade a Vanessa, o que resultou de imediato na descoberta da farsa pelo vice-presidente da RTN. Donato havia prometido que Júlia pagaria por destruir seu plano brilhante. Mas daí, não lhe devolver a própria filha, seria exagero.
Alguma coisa não se encaixava naquela história. E seria o próprio Donato quem lhe responderia. Porém, não era cedo para procurá-lo? Até então, Júlia e Tancredo agiam de modo sigiloso, o que lhes vinha garantindo o sucesso em suas descobertas. E se ela acabasse pondo em risco toda a investigação, dando a Donato tempo para maquiar a verdade mais uma vez e sumir com os indícios de seu crime?
Precisaria ponderar mais um pouco, conter seu impulso e descobrir uma prova mais substancial contra aquele homem, antes de um confronto. Júlia preferiu esperar até a volta de Tancredo de sua viagem a São Paulo.

A sorte estava lançada. 






Capítulo 21

Dois dias depois, Júlia chegou ao prédio número “2201” da Rua Silva Jatahí, a duas quadras da Beira Mar. De frente para o enfeite natalino pendurado na porta do apartamento, ela ajeitou a roupa e arrumou os cabelos, tentando garantir que estaria impecável para reencontrar Pedro. Olhou o relógio e constatou que chegara dez minutos antes do horário combinado, o que a fez hesitar se apertava ou não a campainha. Contudo, a ansiedade por vê-lo depois de tantos dias após o atentado, impulsionou-a a antecipar aquele encontro.
Um minuto após, a porta foi aberta e Pedro surgiu com largo sorriso. Vestia uma camisa de malha regata branca — deixando à mostra parte do curativo no ombro, um resquício da cirurgia para a retirada da bala -, uma calça de moletom cinza e chinelo de dedos. O cabelo negro era jogado contra seu rosto pelo vento da varanda atrás dele.
No todo, parecia ter se recuperado do atentado.
— Seja bem vinda. — Ele abriu passagem para que ela entrasse.
Júlia agradeceu e entrou timidamente. Tentava conter o nervosismo e dava graças por ele não saber o quanto seu coração estava acelerado.
Tão logo pisou no apartamento, percebeu o cheiro de incenso e uma música agradável pelo ambiente. Do lado da porta de entrada, um console acomodava três grandes imagens dos arcanjos Miguel, no centro, Gabriel e Rafael, à direita e esquerda respectivamente, e mais um incensário com um bastão queimando. Uma ampla sala em L trazia um confortável jogo de sofás marfim à frente, antecedendo a visão privilegiada do mar de Iracema que se apresentava, soberano, acima do parapeito da varanda. Uma porta de vidro entreaberta permitia a movimentação dos fortes ventos por todo lado.
Um lugar bonito e refinado, totalmente aconchegante, evidenciando o estilo moderno e espiritualizado de Pedro Lucena.
— Gostou do meu novo canto? — Pedro quis saber.
— É realmente lindo, Pedro! — Júlia respondeu feliz por estar ali.
— Vem cá, deixa eu te mostrar uma coisa. — Ele a puxou pela mão, levando-a até a varanda, um local maravilhoso com muitas plantas que se estendia por toda a frente do prédio, constituído de três ambientes distintos — um espaço com mesa e seis poltronas, outro com duas espreguiçadeiras e mais um com uma rede. Dali, podiam ver a beleza do por do sol.
Júlia foi tomada por um sentimento profundo de gratidão que a fez transbordar em lágrimas. Estar ali, partilhando daquele momento com Pedro, fazia dela a mulher mais feliz do mundo.
— Estou encantada!
Ele sorriu.
— Comprei esse apartamento há mais ou menos um ano. Estava cansado da impessoalidade do apart  hotel — explicou, segurando-lhe a mão. — Fico feliz por recebê-la aqui.
— E eu também, por conhecer o seu canto.
Eles fitaram o rosto um do outro. Júlia, em especial, seus lábios. Ela desejou beijá-lo, matar a saudade que a consumira durante os últimos seis anos. Mas temia que ele não quisesse o mesmo.
— Deve estar com frio — Pedro falou, conduzindo-a de volta para a sala. — Podemos saborear o café que preparei para você.
Os dois sorriram e sentaram-se à mesa de jantar, servindo-se da variedade de pães, patês e doces. Em seguida, discorreu sobre o atentado e sua recuperação. Depois, foi a vez dela partilhar das descobertas sobre o desaparecimento de Clara.
Pedro revelou suas suspeitas:
— Se foi contratada para me seduzir e conseguir o dossiê que incriminava Donato, é possível que o sumiço de Clara esteja ligado diretamente a este caso.
— Acredita que Donato tenha mandado roubar a minha filha só com o objetivo de me convencer a participar do plano contra você?
— Raciocine comigo — ele propôs. — O que mais iria garantir que assumiria a identidade de outra mulher e me seduziria para conseguir esses documentos?
— Se não fosse por isso, jamais me submeteria a tal despropósito! — respondeu ela de prontidão, num tom de indignação pelo que fora forçada a fazer.
— Só pode ter sido por isso, Júlia — ele constatou.
— Mas por que Donato nunca a devolveu, se o objetivo era me forçar a participar do plano? Quando aquela farsa acabou, ele deveria ter devolvido minha filha.
— É isso que nós precisamos descobrir — complementou. — A partir de agora tem um novo aliado, Júlia — Pedro declarou, segurando forte sua mão por sobre a mesa. — Eu a ajudarei no que for preciso.
Mais uma vez, o coração de Júlia disparou. Sentia-se tão feliz por ouvir aquilo e imaginar Pedro do seu lado, cúmplice do maior objetivo de sua vida.
Ele completou:
— Júlia, ter estado perto da morte, me fez perceber o quanto sinto falta de você. Depois que a reencontrei, pude constatar que o meu sentimento continua pulsando aqui dentro. — Ele tocou delicadamente no peito, na altura do coração, com olhos firmes para ela. E Júlia, pasma, totalmente emudecida com aquela declaração. Era o que também sentia por ele e sempre desejou ouvir. — Nesses dias de recuperação, pude repensar muitas coisas em minha vida. Uma delas, é você.
— Pedro, eu... — ela tentou falar, mas logo foi interrompida.
— Quero você de volta em minha vida, Júlia!
Pedro ergueu-se com os olhos cheios de lágrimas. Em seguida, ajudou-a a fazer o mesmo. Há muito tempo não ficavam tão perto um do outro, sentindo o cheiro, o calor das mãos, como se enfeitiçados pelo olhar desejoso, pelos lábios sedentos do sabor de suas bocas. Seria incapaz de mensurar sua alegria por ouvi-lo declarar-se a ela. Pedro se aproximou com cuidado, beijando delicadamente os lábios. De repente, ela se lembrou do quanto havia sofrido e retraiu-se um pouco. Temia que acontecesse novamente, que ele a deixasse. Mas logo Júlia se viu completamente entregue, sentindo o toque, seu hálito, seu tremor, como se suas vidas se cruzassem no lamber impetuoso de suas línguas e quisessem consumir um ao outro num único beijo.
Uma reconciliação?
Melhor não criar nenhuma expectativa, como tantas vezes o fizera e depois se decepcionara. Melhor seria entregar-se ao momento e desfrutar do amor que sentia por Pedro, de repente parecendo também retribuído por ele na mesma intensidade. Júlia decidiu viver aquele momento plenamente, como se fosse único, e realizar o que tanto desejou em todos os anos distante dele.
Pedro a tomou nos braços mais intensamente. Sem que ela visse mais nada a sua volta, ele foi lhe conduzindo pelo corredor, esbarrando nas paredes, num beijo ininterrupto. Em alguns segundos, estavam no quarto, vivendo a plenitude daquele momento. Aos poucos, foram se despindo, tomando posse novamente um do outro. Os dois caíram na cama. Por fim, Júlia se viu em fusão total com Pedro e o ouviu sussurrar:
— Te amo, Júlia!
— Como?
Ela precisava se certificar de que ouvira certo.
— Eu te amo! — ele reafirmou em seu ouvido. — Te amo muito, Júlia!
E Júlia sentiu-se nos braços de Pedro, a mulher mais feliz do mundo.


Júlia ficou curiosa por saber o que a aguardava ao ser conduzida por Pedro, de olhos fechados, do quarto até a sala. Que surpresa era aquela? Os dois estavam de roupão, depois de um demorado banho. Pareciam dois adolescentes apaixonados, zanzando pelos cômodos do apartamento numa brincadeira que alternavam risos e muitos beijos.
Por mais que ela reclamasse, Pedro só tirou as mãos de seus olhos ao chegar no local prometido. Júlia sentiu os músculos de suas pernas falharem e o coração disparar ao ver a sala do apartamento de Pedro tomada pelo vermelho de centenas de rosas em arranjos de todos os tamanhos, espalhados pelos cantos e móveis do ambiente transformado num belo jardim carmim. Petrificada, ficou boquiaberta diante da surpresa, sem conseguir pronunciar uma só palavra.
Foi Pedro quem primeiro falou, com um largo sorriso:
— Queria demonstrar para você o quanto estou feliz e só me veio essa ideia — explicou, abrindo o braço num gesto em que apresentava o ambiente. – Liguei para a minha secretária e ela providenciou tudo rapidamente.
— Pedro...  — Júlia não conseguia traduzir o que sentia, nem mensurar a felicidade por estar ao lado do homem que amava.
— Casa comigo!
Ele a surpreendeu com o pedido. 
— Como?
— Casa comigo, Júlia!
Ela colocou as duas mãos na boca, num impulso, perplexa e feliz, transbordando em lágrimas. Na verdade, Júlia jamais esperaria uma proposta daquelas por parte de Pedro. Até há dez dias atrás os dois não se falavam, nem tinham notícias um do outro. Após um encontro casual, tiveram novamente seu amor reacendido. Para ela, era quase inacreditável.
Júlia não conteve as lágrimas. A alegria do instante sufocou cinco anos de saudade. Pedro também parecia emocionado, ao deixar cair uma lágrima, e insistiu:
— Casa comigo!
E ela que pensava que aquilo não era real, duvidando de suas reais intenções em estar ao seu lado. Pedro provara a Júlia o que o movia, seus sentimentos.
Júlia sorriu, abraçando-o.
— É tudo o que sempre quis! — ela confessou em seu ouvido.
— Isso é um sim?
— Sim.
Pedro a tomou num grande e caloroso beijo, selando o compromisso. Em seguida, desatou o nó da faixa que prendia o roupão e a despiu ali mesmo, em meio às flores. Ele foi beijando cada parte de seu corpo, como se demarcasse um terreno. A partir daquele momento, pertenciam um ao outro novamente, presos pela liberdade que o amor proporciona. Júlia o viu completamente despido, com todo o seu amor centrado na firmeza masculina. Senti-lo novamente foi o que ela sonhou nos últimos anos.
E novamente os dois se fizeram um, consagrados pelo perfume das rosas exalado em todo o ambiente.


Capítulo 22

Antes de abrir a porta, Júlia ouviu as risadas e brincadeiras de Zezinho e Rafael, vindas da sala de estar. Chamou a atenção dos dois sobrinhos que estavam esparramados no tapete, rodeados de velhos álbuns de fotografias, caçoando das roupas, estilos e aparências eternizadas por eles mesmos, familiares e amigos. Quis saber onde estava Raquel, porém, os dois disseram que a mãe fora ao mercadinho fazer compras, sem dar mais detalhes. Depois voltaram a zombar um do outro, ou de algum personagem das fotografias, rindo bastante.
Júlia resolveu ceder à própria curiosidade e descobrir o motivo de tanta diversão dos pré-adolescentes, sentando-se junto a eles. Ela se tocou que há tempos não lhes dava nenhuma atenção ou carinho, e sentiu falta daquela alegria tão presente em sua casa na convivência com os meninos. Aliou-se aos dois, elaborando diversas piadas acerca das imagens ali registradas. 
Se soubesse o que encontraria nas mãos deles, teria feito aquilo antes.
Ao passar a página de um dos álbuns, a imagem de uma mulher saltou-lhe os olhos. Aldenora, a mesma pessoa da fotografia do aeroporto, ao lado de algumas outras pessoas, junto com Raquel. Ela cravou o olhar no registro fotográfico, como se quisesse ter certeza. Por um instante, não ouviu mais as gargalhadas dos sobrinhos, tendo a lembrança roubada da fala da cunhada, afirmando não conhecer aquela mulher. E, de repente, a prova estava ali, diante dela.
Ela a conhece! Claro que conhece!
Como se num universo paralelo à algazarra dos meninos, Júlia se levantou e passou página por página daquele álbum em suas mãos, na esperança de encontrar mais alguma foto ou outra prova de que Raquel e Aldenora se conheciam.
Mais para o final do álbum, encontrou outra fotografia em que Aldenora e a cunhada apareciam, desta vez ao lado de antigos vizinhos, de quando Júlia e Joel moravam na Maraponga. Parecia, enfim, a confirmação de que precisava.
 Aldenora era minha vizinha na época em que Clara foi roubada! Meu Deus, será que Raquel está envolvida nessa sujeira?!
A imagem da mulher chegou-lhe nítida à memória. Júlia recordou-se de diversos momentos daquele período, dos vizinhos, de pessoas conhecidas da rua em que morava. Aldenora era filha de dona Terezinha, uma senhora obesa que vivia de fazer faxina nas casas de todos na vizinhança, inclusive na dela. Todavia, Júlia não tinha contato nenhum com a moça, que parecia, segundo comentários da própria mãe, não aceitar o nível social da família, e por causa disso, morava distante e pouco visitava a casa de dona Terezinha.
Raquel estava mentindo. Ela sabe quem é a Aldenora!
A cunhada teria muito a lhe explicar. Mas antes, precisava deixar Tancredo informado.
Júlia fechou o álbum e buscou o celular na bolsa. Afastou-se até a cozinha, isolando-se do barulho dos sobrinhos. Quando Tancredo atendeu, ela revelou ao repórter a sua mais recente descoberta, detalhando as recordações daquela época o mais que podia, a fim de que ele pudesse investigar o paradeiro da família de Aldenora. Mais um grande passo seria dado em direção à verdade.
Ao desligar o telefone, Júlia ouviu a porta da sala bater e, em seguida, a voz de Raquel orientando os filhos a guardarem aqueles álbuns sem danificá-los. Um nervosismo tomou-a dos pés à cabeça, e ficou sem saber o que fazer. Mostraria logo aquelas fotografias à cunhada e provaria que ela havia mentido sobre não saber quem era Aldenora, ou esperaria informações mais precisas de Tancredo acerca dos antigos vizinhos? E se Raquel soubesse de sua descoberta... poderia sua cunhada de algum modo atrapalhar as investigações, caso realmente estivesse envolvida no sequestro de Clara? E se ela, como a própria Júlia, tivesse esquecido o rosto de Aldenora? Estaria sendo injusta com a amiga leal de tantos anos, se tudo não passasse de um mal entendido.
Júlia preferiu aguardar por Tancredo.
Raquel entrou na cozinha. Pôs as compras em cima da mesa e a cumprimentou, alegre por vê-la em casa tão cedo, mas procurou saber de seu compromisso:
— E a entrevista para o novo trabalho, deu certo?
— Fui selecionada. Em uma semana, assumo o grupo de dança da instituição social. Trata-se de uma ONG no Pirambu — respondeu, sem muita empolgação. Não conseguia parar de imaginar que tipo de relação Raquel teria com Aldenora na época do sequestro.
— E é assim que me diz isso? Não está feliz com o novo trabalho? Diz que adora ensinar a dança para as pessoas.
— Claro, estou feliz sim. Eles fazem um belíssimo trabalho naquela comunidade.
— Também estava mexendo nesses álbuns velhos com os meninos? — Raquel indagou, referindo-se ao álbum que Júlia segurava.

— Pois é, relembrando velhos tempos — respondeu com um sorriso e saiu. 






Capítulo 23

Donato aguardou que a secretária de Pedro o anunciasse e depois de sua autorização, entrou na vice-presidência — setor almejado por ele desde a fundação da RTN. Sentia-se extremamente incomodado todas as vezes em que necessitou estar naquele local, sonegado-lhe injustamente. Entretanto, engolia o orgulho, como de costume, na certeza de que um dia teria o reconhecimento merecido.
O ambiente era praticamente o dobro de sua sala, com uma confortável ante-sala de reuniões, separada do escritório por prateleiras de vidro, ostentando algumas esculturas trazidas por Pedro de suas viagens por vários países diferentes.
Quando atravessou a porta, Donato foi recebido por Pedro, que se levantou prontamente, indo ao seu encontro. E ele, de braços abertos e grande sorriso, apresentando uma alegria que parecia real em encontrá-lo ali. Todavia, disfarçava o incômodo implacável que o dominava, por saber de seu retorno obstinado a descobrir a verdade acerca de suas transações dentro da empresa.
A imagem que passamos para o inimigo deve ser a melhor possível!
— Mas olha quem temos de volta ao trabalho... — declarou, abraçando-o.
No entanto, Pedro não retribuiu o acolhimento.
— Esse é o momento em que agradeço a calorosa recepção, depois sentamos e partilhamos a felicidade por trabalharmos juntos? — Pedro ironizou.
— Não acredita mesmo que estou feliz em vê-lo bem. — Donato procurou esconder a frustração pelo fracasso da encenação e procurou acomodar-se na poltrona indicada por Pedro.
— Chamei você aqui porque precisamos conversar...
Pedro sentou-se no sofá de frente para Donato. E este, por sua vez, estendeu o braço sobre o encosto, representando que se sentia à vontade na presença do outro.
— Pensei que ficaria mais uns dias em casa.
— Não posso me ausentar tanto da RTN, principalmente agora — Pedro respondeu de modo incisivo.
— É, realmente final de ano exige mais da...
— Donato, pode deixar os textos ensaiados para os seus eleitores — Pedro interrompeu. — Sabe por que está aqui. Certamente, chegou aos seus ouvidos as minhas investigações dentro da empresa.
— Investigações?
— Não tenho mais tempo a perder com as suas encenações. A morte do meu pai tem a ver com o dossiê organizado por ele a seu respeito?
Aquela pergunta rolou pela sala como uma granada, trazendo lembranças e dores em seus estilhaços que Donato desejava esquecer. Não se tratava de uma indagação, mas de uma acusação. Nunca o vira tão direto e mordaz.
Donato abandonou a pose e se levantou. Caminhou até um pouco mais à frente, de modo a ficar de costas para ele.
— Vejo que as balas afetaram a sua lucidez.
— Pelo contrário, elas me fizeram enxergar a importância daqueles documentos. Por pouco, não tive o mesmo destino do meu pai.
Donato finalmente deu meia-volta.
— O que quer dizer com isso?
Pedro se ergueu e aproximou-se, encarando-o de frente.
— Tudo ficou mais claro. Meu pai foi assassinado!
Donato sentiu um frio na espinha com aquela declaração. 
— Seu pai foi vítima de um ataque fulminante do coração.
— Isso foi o que disseram.
— Pedro, você está fora de si, fantasiando uma história que não existe.
— Por que estava lá?
Olhou profundamente nos olhos acusadores do homem que fora seu melhor amigo e não conseguiu enxergar mais nenhum afeto. Eram realmente dois inimigos!
— Está louco.
— Donato, você foi a última pessoa que esteve com o meu pai antes de sua morte.
— Acha que eu o assassinei?
Pedro pareceu tentar conter um movimento involuntário do músculo de seu rosto, demonstrando toda a tensão que aquele encontro poderia lhe causar. E Donato, aguardou ansioso pela resposta. A cada palavra dita, os dois de distanciavam mais de uma amizade arraigada a um passado distante.
Donato esperou ser agredido fisicamente, tendo a impressão de Pedro cerrar o punho por um instante. Um clima tenso se fez sentir no ambiente.
— Há muita coisa escondida por trás dessa história. — Pedro afirmou, afastando-se. — Mas nós vamos descobrir.
— Nós? Refere-se à Júlia e Tancredo?
— Vejo que está bem informado — Pedro exibiu um arremedo de sorriso. — O que eu queria saber, você me disse. A verdade virá à tona em breve. Estamos perto, pode acreditar.
Sem mais nada a declarar sobre aquilo, Pedro foi para o outro lado de sua mesa e falou:
— Pode sair. Tenho muito trabalho pela frente.
Donato conteve toda a sua raiva. Ficou furioso por ver seu inimigo tão seguro e lhe tratando de modo tão arrogante. Os três sabiam mais do que deveriam e algo precisava ser feito para impedir que chegassem mais perto. Quando era apenas Júlia e o repórter, parecia mais fácil de controlar e manipular a situação. Com a entrada de Pedro naquele jogo, a situação se tornava um tanto mais complexa. E ele sabia, mais do que ninguém, como lhe atingir e arrancar-lhe dos trilhos de seu equilíbrio aparente e constante. Talvez tivesse sido melhor que ele tivesse morrido, mesmo que no princípio não tivesse desejado tomar uma atitude tão extrema. Tudo parecia escapar-lhe por entre os dedos — o que ele jamais permitiria.
Tão logo Donato saiu da vice-presidência, ordenou para Luísa, que estava à sua espera na ante-sala da secretária de Pedro:

-       Descubra onde estão Aldenora e Emanuel. Se preciso for, queime arquivo. Ou nós seremos queimados!






Capítulo 24

Júlia chegou à cafeteria do Empório Delitalia quinze minutos após o horário combinado. Leonardo Gondim a aguardava sentado à mesa. Há mais de um mês que os dois não se encontravam, devido à agenda atribulada do importante empresário. Como de costume, ele estava impecavelmente elegante, vestido com um blazer grafite e uma camisa azul em tom mais claro. O que realçou o azul de seus olhos. Leonardo estava inegavelmente mais charmoso aos setenta anos.
Quando a viu, o amigo levantou-se da cadeira para cumprimentá-la, e Júlia sentou-se à frente dele. Ele chamou a atenção do garçom, que anotou os pedidos. Dois capuccinos e uma cesta de pães e patês acompanharia os dois durante a conversa.
Leonardo entrelaçou os dedos das mãos por sobre a mesa e declarou:
— Júlia, Júlia... Fiquei tão feliz ao receber sua ligação.
— Não liguei antes por medo de incomodá-lo, Leonardo.
— Jamais me incomodaria. Soube de sua saída da Mirage depois daquele incidente.
— Pois é, muitas coisas aconteceram nos últimos dez dias. — Ela se lembrou da imagem de São Miguel recebida naquele período. Certamente, Leonardo sabia de sua devoção aos arcanjos, então, resolveu perguntar: — Leonardo, você me enviou alguma coisa nos últimos dias?
— Não, querida. O que foi?
— Nada, esqueça! Queria muito lhe encontrar e falar das novidades pessoalmente. Tancredo e eu estamos no caminho certo sobre as investigações acerca do sequestro de Clara.
— Exatamente o que ia perguntar.  O que vocês descobriram?
Júlia partilhou as novidades e Leonardo acompanhou atentamente toda a história. Ele sempre esteve ao seu lado em todos aqueles anos, desde que se conheceram no estacionamento da Mirage, quando a livrou de um assalto. Uma grande amizade nasceu entre os dois, superando as diferenças sociais. Ela mesma não acreditava ser possível uma relação de tanta proximidade entre uma simples coreógrafa e o dono de uma das maiores emissoras de televisão do país. Com o tempo, Leonardo provou o contrário, fazendo com que ela enxergasse seu próprio preconceito e não desse ouvidos aos comentários maldosos das pessoas, como às notas mentirosas da imprensa insinuando um caso entre ambos.
Por duas vezes, Júlia ignorou as ligações de Guel durante a conversa. Ele vinha ligando insistentemente desde o último encontro. Ela, contudo, preferiu permanecer em silêncio e manter-se afastada, a fim de que a recente proximidade entre eles não interferisse em sua relação com Pedro. Porém, foi interrompida mais uma vez, pelo sinal de uma mensagem de texto em seu celular. Pediu licença a Leonardo para ler o recado:
Por que não me atende? Desde aquele dia não consigo mais pensar em outra coisa senão em você e no quanto estou apaixonado. Errei, mas estou disposto a mudar e lutar por você, pelo nosso amor. Me perdoa, Júlia. Te amo! Guel.
Júlia gelou ao ler aquilo. Diferente do que o cunhado declarava, ela achou que pudesse ser uma obsessão o que Guel sentia a seu respeito e temia que ele passasse dos limites. E começava a fazê-lo!
— Algo urgente? — Leonardo quis saber.
— Não, não. Uma mensagem sem importância.
— Tem certeza?
— São algumas orientações do meu novo trabalho — explicou, tentando disfarçar.
— Não quer ligar para eles?
— Depois faço isso.
O celular tocou mais uma vez. No visor, o nome de Guel Serrado piscando. Júlia finalmente pediu licença e saiu para atender, de um canto que teria facilmente a visão do amigo, na mesa.
— Alô.
— Júlia? Graças a Deus me atendeu!
— O que está acontecendo, Guel? Nesse momento, não posso falar.
— Por que não me atende mais?
— Tenho andado ocupada.
— Precisamos conversar.
— Como disse, não estou com tempo.
— Tenho novidades sobre Aldenora.
— Do que se trata?
— Só pessoalmente.
Julia pensou se aquilo seria uma maneira de Guel forçá-la a vê-lo. Não estava com ânimo para aquele tipo de joguinho, mas precisava arriscar. Além disso, Leonardo esperava à mesa, e não queria ser deselegante com ele.
— Amanhã, então.
— Te espero às dez horas, pode ser?
Ela hesitou um pouco e confirmou, desligando o telefone. Em seguida, voltou à mesa, enquanto o garçom servia o pedido.
— Conseguiu resolver? — Leonardo perguntou, tomando um gole do capuccino.
— Sim, tudo certo. 
O telefonema de Guel desencadeou um turbilhão de pensamentos em Júlia, muitos deles contraditórios. Ela desejava partilhar com Leonardo a notícia do pedido de casamento que recebeu de Pedro. Na verdade devia isso a Leonardo, mas não sabia como ele reagiria. A amizade entre eles sempre fora sombreada pela paixão que o empresário afirmava sentir por ela, levando-o a pedi-la em casamento diversas vezes, embora Júlia tenha sempre levado na brincadeira. Ela o considerava verdadeiramente seu melhor amigo, por isso, não desejava vê-lo sofrer, principalmente por conta da fragilidade de sua saúde. Leonardo enfrentava silenciosamente um câncer há alguns anos e contava constantemente com apoio e cumplicidade dela para enfrentá-lo. Júlia temia que aquela notícia pudesse, de algum modo, afetar negativamente seu tratamento, causando uma piora em seu estado.
Mas quando seria o melhor momento para contar a verdade? Em breve Pedro e ela seriam vistos juntos. Se Leonardo soubesse pelos outros ou pela imprensa, seria terrível. Pedro, inclusive, não compreenderia o porquê do silêncio e reforçaria suas desconfianças acerca da relação dela com Leonardo. E como a verdade era sempre o melhor caminho, Júlia desfez-se dos muros à sua volta e optou por contar tudo a Leonardo, para ajudá-lo a enfrentar qualquer dor que tivesse.
Mais uma vez, Leonardo pareceu acompanhar a partilha da amiga atentamente e declarou ao final:
— Júlia, sabe que considero o Pedro quase como um filho. Saber que vocês finalmente se entenderam é um grande presente, apesar de... apesar de tudo! E isso me alivia, deixando-me mais confortável para partir.
— Do que está falando?

— Minha saúde, Júlia. Não tenho mais muito tempo de vida — sentenciou.






Capítulo 25

No dia seguinte, ainda abalada com a revelação de Leonardo, Júlia escolhia um dos livros na estante da livraria Cultura quando foi surpreendida por Guel. Ela preferiu encontrá-lo num lugar onde ele não tivesse a chance de aprofundar a intimidade, por isso ligou logo cedo e propôs o novo local, a fim de evitar qualquer clima de sedução por parte do cunhado. Os dois se cumprimentaram e ele logo disparou:
— Parece cansada.
A maquiagem pouco disfarçava as olheiras de Julia, por causa de uma noite péssima de sono. Ela estava abalada, devido à revelação de Leonardo na tarde anterior, o que não lhe permitiu pregar o olho.
— E estou, realmente. Por isso, vamos direto ao ponto. O que tem a me dizer sobre Aldenora?
— Por que não tem atendido as minhas ligações, nem retornado às mensagens?
— Guel, não tenho tempo para cobranças. Se não for me dizer algo de útil, podemos encerrar essa conversa.
Ela colocou o livro que tinha na mão de volta na prateleira e fez menção de se sair. Guel a segurou pelo braço.
— Por favor, Júlia. Nós temos uma aliança, lembra?
Júlia não queria mais nenhuma referência ao momento em que estiveram juntos no apartamento dele, há alguns dias. Desejava esquecer aquela história completamente.
— Vai me dizer o que sabe sobre aquela mulher?
Ele fez um pouco de suspense e revelou:
— Aldenora e Raquel foram amigas de infância.
Aquela declaração chegou à Júlia como uma punhalada, desferida por uma das pessoas que mais confiou na vida. Aquilo parecia lhe corroer por dentro. Contudo, ouviu com muita atenção o que Guel tinha para lhe contar. Aldenora e a cunhada haviam, segundo ele, estudado juntas a vida inteira e até dividido por anos o mesmo namorado. A filha de dona Terezinha fora o grande amor de Djair, antes dele se casar com Raquel. Informação que inviabilizava completamente a possibilidade da amiga não se lembrar de quem se tratava.
Mais uma mentira de Raquel!
— Até que ponto a sua irmã está envolvida no sequestro da minha filha? — Júlia aproveitou para perguntar. Se ele estava disposto a revelar tantas coisas daquele passado sujo para se aproximar dela, era possível que delatasse Raquel completamente.
Guel desviou o olhar por um instante, como se voltasse no tempo, deu um suspiro e respondeu:
— Raquel e Joel sempre foram muito mais próximos um do outro do que eu.
— Pensei que ela protegesse mais a você.
— Todos pensavam isso. Os dois faziam com que as pessoas acreditassem. Talvez assim, eles se sentissem um pouco menos culpados.
— E o que isso tem a ver com sumiço de Clara?
— Raquel sempre foi cúmplice de Joel no que ele fazia. Pela segunda vez, eles me enganaram. Primeiro com você, causando a nossa separação. Depois, negociando diretamente com o deputado Donato Pessoa.
— Está me dizendo que Raquel sabia de todos os detalhes dessa transação?
— Pode acreditar que sim.
— Não pode ser! Ela acompanhou meu sofrimento, meu desespero. Não, isso não é possível! Seria monstruoso!
— Júlia, a Raquel não é o que parece. Tem muito mais sujeira embaixo desse tapete. Foi ela quem aconselhou o Joel a não confiar em mim e procurar diretamente o deputado, na época.
— Por que ela faria isso comigo? Nós sempre fomos amigas.
— Ela sempre sentiu inveja de você. E dizia também que você havia chegado para destruir a nossa família, jogar um irmão contra o outro.
— Mas ela se referia a quê?
— Ao amor que o Joel e eu sentíamos ao mesmo tempo por você.
— Isso é loucura! — Júlia passou as duas mãos pela cabeça, ajeitou o cabelo, respirou fundo e fitou o cunhado. — Por que está fazendo isso?
— O quê? Contando a verdade? Por que Raquel não merece que eu a proteja. Ela não presta, Júlia. Mora com uma cobra dentro da sua casa. Se duvidar, ela sabe até do paradeiro da Clara.
Júlia sentiu-se completamente perdida diante de tantas informações. Falas e mentiras recentes de Raquel se fizeram ressoar em sua memória naquele momento. A presença afetuosa da cunhada, de repente, estava se dissolvendo na frente de Júlia, como num passe de mágica.
... Sede o nosso refúgio contra as maldades e ciladas do demônio.
A oração e imagem de Miguel Arcanjo ecoaram em sua mente. “Mora com uma cobra dentro da sua casa.” Aquela afirmativa de Guel fomentava sua dúvida. Contudo, como acreditar num homem que lhe causou tanta desgraça, pondo em xeque a honra de uma pessoa que passara a vida inteira ao seu lado, provando lealdade? E se Guel estivesse mentindo, a fim de se vingar de Raquel, por ela tê-lo enganado no passado, aliando-se a Joel? Era possível que tudo aquilo fosse parte de um plano para destruir a imagem da irmã. Aquele homem, sim, era capaz uma atitude tão monstruosa.
Mas, e as mentiras de sua cunhada... o que afinal significavam diante daquela história sórdida? Até que ponto ela estava envolvida?
Júlia precisava de um tempo para ponderar, organizar aquelas informações diante de si e decidir o que fazer, que atitude tomar.
— Tem mais alguma coisa a dizer? — desejou encerrar aquela conversa.
— Senti muito a sua falta.
— Guel, não há mais nenhuma chance entre nós. Entenda isso definitivamente.
— Não se diz isso a um homem apaixonado.
— Pedro e eu vamos nos casar.
— Como?!
— Isso mesmo que ouviu. Nós reatamos e vamos oficializar isso.
Ela o olhou profundamente nos olhos, para que não sobrasse nenhuma dúvida. Guel engoliu a saliva e a observou de um modo que parecia lamentar o que ouvira. Júlia desviou o olhar para os lados, como se procurasse o momento certo para deixá-lo e finalmente deu as costas. Em seguida, aguardou alguns segundos, a fim de que ele dissesse mais alguma coisa para encerrar aquela história definitivamente. Só então saiu. Mas antes de dobrar o corredor ouviu sua última afirmativa.

— Vocês não ficarão juntos!






Capítulo 26

Júlia foi recebida por Pedro assim que a porta do elevador se abriu. Ele estava sorridente e com olhar arregalado, parecia ansioso por vê-la. Já ela, tentava disfarçar o cansaço de um dia inteiro no novo trabalho como professora de dança na ONG e o ônibus lotado que tomara do Pirambu à Beira Mar, para caminhar cinco quadras até o prédio dele. Os dois se entregaram a um demorado beijo, logo interrompido por uma brincadeira de Tancredo, que pigarreou alto, enquanto os aguardava na sala.
Júlia cumprimentou o amigo, que foi direto ao ponto:
— Tenho novidades sobre a família de Aldenora.
Os três se acomodaram no sofá, ela de mãos dadas com Pedro.
— A mãe dela ainda mora na Maraponga? — Júlia se antecipou.
— Mudou-se de lá. Está morando num grande apartamento no Papicu.
— E Aldenora?
— Não mora com ela.
Júlia trocou um olhar de cumplicidade com Pedro, que procurou amenizar a situação:
— Nós esperávamos por isso.
Tancredo fez que sim.
— Ela não continuaria aqui em Fortaleza — completou.
— Mas conversou com alguém da família dela? Descobriu alguma coisa?
O jornalista aproximou-se, apoiando os braços nos joelhos.
— Aldenora está morando em São Paulo, como suspeitávamos — explicou. — Vem à Fortaleza de vez em quando para ver a mãe. Deve ter uns seis meses que não aparece.
— Mas isso é bom? — ela perguntou.
Desta vez, foi Pedro quem fez que sim com a cabeça. E confirmou em seguida:
— Pelo que Tancredo descobriu através da moça que hoje faz faxina na casa da mãe de Aldenora, ela pode chegar a qualquer momento, para as festas de final de ano com a família. Para nossa sorte, não desconfia que estamos no encalço dela — Tancredo complementou.
Júlia levantou-se num impulso, cheia de expectativas.
— É aí que nós a pegamos!
— Meu amor, nós estamos muito perto de descobrirmos onde Clara está — declarou Pedro.
— E de sabermos o que tem por trás disso tudo — Tancredo arrematou. — Sim, porque “quem” está por trás, nós sabemos.
— Isso mesmo — Pedro confirmou. — Alguma coisa falta se encaixar nessa história. O que motivou Donato a tirar sua filha de você, nós podemos imaginar. Seria uma forma de mantê-la sob controle e forçá-la a participar do plano para conseguir tirar o dossiê das minhas mãos. Mas o que justificaria ele não devolver a menina?
Júlia teve a concentração roubada pelo toque do seu celular. Era Guel, mais uma vez. Vinha ligando insistentemente nos últimos dias, desde que soubera de sua reconciliação com Pedro. E ela, como todas as vezes, preferiu suprimir a ligação, principalmente naquele momento, na frente dos dois. Pedro, no entanto, parecia atento, talvez achando estranho, mas nada falou.
Prosseguiram a conversa naturalmente, definiram algumas estratégias e procedimentos em relação a como chegariam até Aldenora. Em seguida, Tancredo se despediu e deixou-os, alegando outro compromisso. No fundo, eles sabiam que era uma forma de deixá-los a sós.
Pedro fechou a porta e foi até Júlia, perto da varanda, de onde se avistava o mar do Mucuripe. Ele a abraçou e beijou-a delicadamente.
— Tudo bem com você?
— Sim. Estou ansiosa para pegar logo esta mulher.
— Estamos chegando perto.
— Eu sei.
Pedro afastou um pouco a cabeça, para poder ter uma visão melhor de seu rosto.
— Não. Tem alguma coisa errada com você. — ele afirmou.
Júlia não respondeu. Deixou o olhar repousar adiante, no mar tranquilo à frente deles. Recordou-se de todas as ligações e torpedos de Guel, como da tarde em seu apartamento. Àquela altura dos acontecimentos, vinha se preocupando em não chamar a atenção de Pedro, sem deixar que ele soubesse do que havia acontecido entre ela e Guel no apartamento do cunhado. Temerosa de que aquilo interferisse em sua relação, embora soubesse que tudo não passara de um momento de fragilidade e que Pedro compreenderia por ter acontecido antes deles reatarem, sentia-se envergonhada por ceder à própria carência e encantos de Guel, mesmo depois do que a fizera passar.
Mas e o compromisso com a verdade? No passado, fizera tudo em nome da busca pela filha, traindo os próprios princípios existenciais — como quando enganou Pedro e a todos, fingindo ser Mirela, ou mesmo quando roubou de seu amado um projeto importante a mando de Donato Pessoa. A vida cobrou-lhe caro por seus erros, fazendo-lhe enxergar os limites de suas próprias escolhas, a partir das duras conseqüências que lhe foram impostas, a exemplo da batalha perdida na procura por Clara e da distância crescente e implacável do homem a quem amava. Na ocasião, prometera a si mesma que se um dia tivesse uma nova chance, faria diferente. E agora que vivia uma situação semelhante, o que estava fazendo? A mentira não se fundamentava na falta de coragem em assumir o que havia acontecido, mas em esconder mensagens e ligações. Seria mais fácil se Guel a deixasse em paz, sumisse, compreendesse seu silêncio de uma vez por todas. Todavia, ele vinha decidido a conquistá-la, como deixou claro no último encontro, e aquilo dificilmente ocorreria.
Por um instante, pensou em contar de uma só vez a Pedro e cumprir o compromisso. No entanto, a coragem se perdeu em algum lugar no mar, enquanto seus olhos procuravam novamente pelo rosto de seu amado.
— Não é nada. Estou cansada.
E o abraçou.






Capítulo 27

Júlia acordou assustada com o toque de seu celular. A claridade do início da manhã invadia o ambiente através da cortina entreaberta. Pedro não havia acordado com o barulho do aparelho, por isso ela tratou de procurá-lo por sobre o criado-mudo e por fim à sinfonia utilizada como toque de chamada, atendendo a ligação, sem sequer observar o nome no visor.
— Alô — falou baixinho, para que Pedro não acordasse.
— Júlia? É Tancredo, tudo bem?
— Só um momento — pediu, deixando a cama e dirigindo-se para perto da janela, a fim de conversarem mais à vontade. — Oi, Tancredo. Pode falar.
— Desculpe estar ligando tão cedo — Ela olhou para o relógio digital a alguns metros no criado-mudo e constatou que faltavam dez minutos para as oito horas –, mas é que tenho novidades.
— Sem problemas. Pedro e eu é que acabamos perdendo o horário. O que aconteceu?
— Falei hoje cedo com a empregada do apartamento de dona Terezinha, a mãe de Aldenora. Descobri o endereço dela em São Paulo.
— Como conseguiu isso?
— Tenho meus meios. — Júlia podia sentir o riso do outro lado da linha. Mas ele completou: — Ela pensa que sou produtor de um programa de televisão e que estou organizando um quadro sobre pessoas que moram distantes da família.
Júlia não conteve a risada.
— Só você mesmo, Tancredo... E agora?
— Vou tentar um vôo para São Paulo ainda hoje. Se tudo der certo, em poucas horas estarei com essa mulher.
— Que notícia maravilhosa.
— Quem é? — Pedro procurou saber, da cama. Parecia ter acabado de acordar.
— Tancredo — respondeu, aproximando-se. Depois, voltou-se ao telefone. — Não quer que eu vá junto?
— Melhor não, Júlia. Mas vou mantê-la informada, pode deixar.
Os dois se despediram e ela desligou, sentando na cama, próxima de Pedro. Em seguida o acolheu com um beijo de bom dia, partilhando as boas novas. Só que mais uma vez, a melodia do celular a chamou.
— Ele deve ter esquecido de dizer alguma coisa — Julia ressaltou, atendendo o aparelho. — Oi, Tancredo.
— Júlia? Sou eu, Guel.
Júlia sentiu-se petrificar por inteira. Pedro estava à sua frente, como se aguardando mais uma novidade. E ela, com seu passado, sua culpa, falando do outro lado da linha.
— Júlia, preciso conversar com você urgente! — Guel insistiu.
Júlia hesitou e respondeu, gaguejando.
— Eu... é... nós podemos... é... nós podemos falar mais tarde?
— O que está acontecendo? Está aí com ele? — Guel tentou descobrir.
— É o Tancredo mesmo? — Pedro quis confirmar.
Por um instante, ela não sabia o que fazer, o que dizer, tanto a um quanto ao outro. Desejou acabar logo com aquilo e se libertar da culpa por sentir-se traindo mais uma vez o homem que amava.
A verdade sempre é a melhor saída!
Mas como justificaria as muitas ligações supridas nos últimos dias, sem revelar de quem eram? Pedro logo saberia que ela havia mentido, e aquilo certamente borraria mais uma vez a confiança entre os dois. De qualquer modo, Júlia sentia-se cansada de esconder o que mais cedo ou mais tarde viria à tona. A obsessão de Guel na certa o motivaria a fazer com que Pedro descobrisse a verdade. Melhor seria que Pedro soubesse logo por ela do que pelo mal caráter do cunhado.
— Guel, por favor, não ligue mais para mim!
Júlia desligou o telefone, um pouco afobada, e virou-se completamente para Pedro, contando-lhe detalhadamente o reencontro com o cunhado, desde o dia em que descobriram terem sido separados no passado por Joel e Raquel, até a aliança proposta pelo mesmo. Preferiu, contudo, omitir a parte em que eles se encontraram intimamente. Uma forma de se preservar e a eles mesmos.
Após escutar aquilo calado, Pedro saiu debaixo dos lençóis, tomando certa distância, o que deixou-a preocupada.
— Júlia, nós precisamos conversar.

E o que Júlia tanto temia, estava prestes a acontecer. Exceto pelo som da campainha, que tocou naquele exato instante.




Júlia se aproximou da porta do quarto de Pedro que dava para a varanda, enquanto ele saiu para atender a campainha. Ela observou da sacada as velas do Mucuripe, pequeninas ao longe, e imaginou tantas histórias em idas e vindas naqueles barcos, a provável saudade e ansiedade em deixar a família por parte dos pescadores, se existia o medo de não retornarem para estar novamente com os seus, a simplicidade de uma vida humilde, trazendo preocupações objetivas. Não tinha como não se reportar à sua convivência com Pedro, considerando a conversa que tiveram há pouco como o zarpar de todos aqueles homens que deixavam suas esposas, seus filhos, suas histórias, furtados da certeza de um regresso.
Pedro, quando retornasse para o quarto, certamente lhe cobraria a verdade, vivida em deficiência. Algo que pareceria simples para qualquer pessoa, mas pesando toneladas frente à historicidade de sua relação.
De repente, Júlia ouviu gritos vindos da sala. Uma voz feminina. Ela não conseguiu definir o que estava sendo dito, mas percebia que Pedro tentava contê-la. Tratou de abrir a porta do quarto que dava para o corredor. Foi quando constatou que era Vanessa, a ex-mulher de Pedro, protagonista de inúmeras outras cenas de gritos, ciúmes e escândalos no passado.
Mais essa!
Júlia fechou a porta e procurou trocar de roupa o mais rápido possível, antes que o “espetáculo” chegasse até ali — o que não demoraria muito, pelo que conhecia da rival.
— Aquela vagabunda está aqui!
— Vanessa, chega! — era a voz de Pedro.
— Diga logo, Pedro! Onde ela está? No quarto?
— Pare com isso! — insistiu ele. – Não tem o direito de invadir minha casa!
— E você não tem o direito de fazer isso comigo! “Eu” cuidei de você, não ela!
— Foi uma escolha sua.
— Vou atrás dela!
— Vanessa, pare com isso! Volte aqui! Vanessa... — a voz ficou mais perto. — Vanessa...
Quando a porta do quarto foi aberta, a imagem de Vanessa, furiosa, surgiu no ambiente. Júlia estava vestida, a alguns metros, apreensiva.
— Então está aqui? — concluiu Vanessa.
— Vanessa, saia, antes que eu perca a paciência! — Pedro decretou, visivelmente alterado.
— Reatou com essa mulher? — Vanessa trazia um gesto de desdém, contorcendo a boca, com os olhos transbordando em lágrimas.
Júlia permaneceu imóvel. Falar qualquer coisa pioraria a situação.
— Sim, nós estamos juntos — ele respondeu de uma vez.
Aquilo trouxe um pouco mais de alívio para Júlia, tanto por ele enfrentar a fúria da ex-mulher, quanto por assumir a relação. Talvez quisesse dizer que não fosse tão grave a conversa que teriam depois que Vanessa fosse embora.
— Está cego! É isso, está cego.
— Por favor, Vanessa, vá embora. Depois passo no seu apartamento e a gente conversa — pediu ele.
— Conversar? Para quê? Quer me convencer que é o melhor para todos nós? Só falta me convidar para ser madrinha do casamento de vocês.
— Chega, Vanessa!
Vanessa virou-se completamente para Júlia.
— E você, acha que vai ficar assim?
— Não tenho nada para conversar com você — Júlia respondeu prontamente.
— Mas eu tenho — Vanessa retrucou, aproximando-se dela.
Nesse momento, Pedro segurou o braço da ex-mulher com força.
— Falei que chega! Saia daqui!
Vanessa fitou a mão de Pedro, prendendo-a com força e mirou seus olhos.
— Vai me machucar por causa dessa vagabunda?! — deixou as lágrimas banharem seu rosto.
— Estou te pedindo para ir embora! — Pedro explicou com tom alterado, sem soltar o braço dela.
— Foram anos de casamento. E você troca uma história séria, de verdade, por uma aventura com uma...
— É melhor calar a boca! — ele ordenou, apertando-lhe o braço.
Júlia sentiu-se extremamente constrangida. Por mais que tivesse gostado por ver Pedro defendê-la, sabia que era uma situação difícil para ele obrigar-se a colocar um limite drástico na mãe de seu filho diante dela. Na verdade, chegava a ser humilhante para Vanessa, por mais que tivesse sido ela mesma a responsável por aquela algazarra. Foi inevitável se recordar de outros confrontos com a ex-mulher de Pedro no passado, sempre temperados com o mesmo ódio e agressividade. E com aquela nova situação, Júlia teve vontade de sumir, simplesmente desaparecer daquele quarto e deixá-los resolver suas diferenças. Mas precisava enfrentar, tomar uma atitude e dar uma força a Pedro de alguma forma.
Finamente intercedeu:
— Deixe, Pedro. Acho melhor ir embora, vocês precisam conversar. A gente sabia que isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde.
Pedro pareceu ponderar um pouco. Olhou para as duas e soltou o braço da sua ex-mulher, que imediatamente massageou o local, caindo em prantos.
— Você me machucou por causa dessa vagabunda!
Júlia contornou a cama e acenou para ele. Pegou a sua bolsa e ia saindo do quarto, até ouvir mais uma colocação da mulher.
— É pouco o que está passando. Talvez seja por isso que todas as pessoas do seu convívio acabam te traindo, mais cedo ou mais tarde.
— Do que está falando?
— Da sua filha — Vanessa respondeu esnobando um sorriso sarcástico. — As respostas que procura, minha querida, estão dentro da sua casa!
— O quê? O que sabe?
Vanessa deu uma gargalhada, tão ruidosa que até mesmo Pedro pareceu sentir-se intimidado. Júlia percebeu que ela não revelaria mais nada, e saiu perturbada com o que ouvira.






Capítulo 28

Em casa, Júlia se pôs diante de seu altar, acendeu um incenso e tocou delicadamente o rosto da estatueta de São Miguel. Um turbilhão de interrogações a inquietava naquele instante.  As revelações de Guel acerca de sua irmã sequenciavam-se repetidas vezes em sua memória, acusando-a de cumplicidade no plano de Joel junto a Donato Pessoa no sequestro de Clara. E agora, aquela última provocação de Vanessa:
“As respostas que procura, minha querida, estão dentro da sua casa!”
Só pode ser de Raquel que ela estava falando!
Júlia desejou que o anjo à sua frente a iluminasse naquele instante, mostrando-lhe com clareza o que não conseguia enxergar, que a amiga de tantos anos fosse uma traidora. E se fosse, certamente sabia onde e com quem estava sua filha.
O momento de oração foi interrompido por leves batidas na porta, aberta em seguida, devagar. O rosto de Raquel surgiu por detrás dela querendo saber se Júlia tomaria café da manhã. O espaço propício para uma séria conversa entre as duas.
— Raquel, por favor, entre.
Embora parecesse desconfiada, Raquel fez que sim com a cabeça e entrou,  fechando a porta atrás dela. Júlia apontou para a cama, sugerindo que sentasse. Pôs-se à frente da cunhada, olhando profundamente em seus olhos.
— O que houve? — Raquel perguntou de um jeito despretensioso, como se quisesse demonstrar naturalidade. Contudo, Júlia sentiu o gelo em suas mãos, no instante em que as tocou, antes de lhe responder: 
— Sempre a considerei como a irmã que nunca tive. Partilhamos juntas momentos de muitas alegrias, mas também de inúmeras tristezas, o que foi estabelecendo na nossa relação laços cada vez mais fortes. — Ela tomou fôlego e prosseguiu: — Raquel, acompanhou de perto a minha dor quando Clara foi tirada de mim e depois o meu sofrimento nos últimos seis anos. Foi a pessoa que mais confiei. — Uma lágrima despencou de seu rosto. — Há alguns dias atrás estive com o Guel novamente e ele me falou muitas coisas sobre aquela época, sobre você.
Júlia podia sentir o suor nas mãos da cunhada e o nervosismo aparente nos olhos esbugalhados, como se esperasse ouvir ali o pior. Com dificuldade, repetiu toda a história contada por Guel sobre o sequestro, envolvendo Raquel diretamente no crime como cúmplice do irmão. E esta, completamente estática, sem piscar os olhos ou emitir qualquer palavra, exceto a emoção a lhe denunciar, pelas lágrimas que lhes escapavam.
O silêncio de Raquel confirmou o que no fundo Júlia desejava que não tivesse acontecido.
Massacrada pela decepção, Júlia se levantou e deu as costas para a cunhada, mirando mais uma vez a imagem do anjo em seu altar.
— Onde está a minha filha? — perguntou firmemente. Raquel permaneceu calada, levando-a gritar: — ONDE ESTÁ A MINHA FILHA?
Virou-se para a cunhada, furiosa, derrubando sem querer, várias outras imagens que compunham a harmonia de seu altar no entorno de São Miguel. Raquel mirou as coisas no chão, espalhadas por sobre o tapete do quarto, como se ali percebesse a gravidade do momento, balançou a cabeça e finalmente liberou o choro, postando as mãos diante do rosto.
— Não sei! Não sei, juro!
— Mentira! Participou de tudo junto com o Joel, sabia que ele venderia a nossa filha. Deve saber aonde ela está.
— Não, não sei! — Raquel foi para junto da cunhada, como se implorasse que ela acreditasse. — Por favor, Júlia, precisa acreditar em mim. Não sei onde está a Clara!
Júlia não conseguia reconhecer a amizade, a cumplicidade de tantos anos naquela mulher. Suas palavras não tinham mais a menor credibilidade.
— Você é um demônio, Raquel!
— Não diz isso, por favor! Você é a minha irmã! — agarrou as pernas de Júlia, num choro incontrolável. — Me perdoa! Me perdoa, por favor!
— Me conte a verdade.
— Não sei, juro! O que sei só vai até a morte do Joel. E só descobri por um descuido dele. Mas tentei convencê-lo do contrário.
— E por que não me falou sobre Aldenora? Você a conhecia, eram amigas.
— Por medo de você me condenar! Mas não tive nada a ver com esse plano. E não sabia que a Aldenora estava envolvida nisso. Para mim, vê-la naquela foto no aeroporto foi também uma grande surpresa.
— Não foi o que o Guel me disse.
— Ele ainda está muito magoado por eu tê-lo separado de você. Você o conhece melhor que ninguém. O Guel quer se vingar de mim.
Aquilo a deixou mais confusa. Quem dizia a verdade, afinal? Por um lado, Raquel omitira seu conhecimento acerca do sequestro; por outro, Guel realmente era uma pessoa vingativa, visto que ele havia reaparecido depois de tantos anos ausente, movido pelo intuito de fazê-la pagar por seu suposto abandono e traição. E se Raquel estivesse de fato falando a verdade, reconhecendo sua covardia e o medo de perder sua amizade? Como ela, Júlia fizera o mesmo em relação a Pedro, escondendo o que verdadeiramente havia acontecido no apartamento de Guel. Sem falar no passado, quando não conseguiu revelar a verdade sobre Mirela para ele.
Por um instante, Júlia colocou-se no lugar de Raquel e viu a possibilidade de verdade em suas omissões. Considerar o contrário seria reconhecê-la como um monstro e apagar treze anos de amizade. Por outro lado, se Guel estivesse correto, ela estaria dispensando a maior testemunha daquele crime.
Ou não.
Júlia se agachou, segurando a cunhada forte nos braços e sacudiu.
— Seja verdadeira comigo, pelo amor de Deus! Não me faça desistir de você!
— Acredita em mim, Júlia! Por favor, acredita em mim! É mentira do Guel. — continuava aos prantos. — Ele quer se vingar de mim, destruir o que de melhor a vida me deu, a nossa amizade. Sempre estive ao seu lado.
— Sempre precisou de mim.
— Não. Você é como uma irmã para mim. Não deixe que ele destrua a nossa amizade, Júlia.
Júlia preferiu não tomar nenhuma atitude precipitada. Melhor ter Raquel debaixo de sua vista. Afastou-se, deixando a cunhada de joelhos. Pensou durante alguns segundos e lhe estendeu a mão.

— Levante-se, Raquel. Acredito em você.






Capítulo 29

Após caminhar quatro quadras até a parada de ônibus mais próxima de sua casa, Júlia apoiou-se no poste, aguardando que o veículo coletivo passasse. Os ponteiros de seu relógio marcavam dez horas e sete minutos, e ela chegaria pelo menos meia hora atrasada para a reunião com os demais professores de arte da associação no Pirambu, por causa da conversa com Raquel. Tudo porque havia preferido ficar mais um pouco na companhia da cunhada, a fim de que ela se acalmasse repetindo as mesmas justificativas firmadas anteriormente — o medo que Júlia não a compreendesse e aquilo pudesse de algum modo afetar a confiança construída entre elas. E afetou! Aquela história não saía de seu pensamento, isolando-a por completo num mundo só seu de outras pessoas que também aguardavam seu ônibus em meio à movimentação da Av. João Pessoa.
Alguns ônibus passaram, mas nenhum era o que entraria. Júlia ficou mais apreensiva, olhando o relógio repetidas vezes. Estava começando no novo trabalho e não queria causar má impressão. Por pouco não ouviu o toque de seu telefone celular, demorando a encontrá-lo na bolsa, sem tempo de atendê-lo.
O nome de Tancredo ficou registrado no visor do celular. Imediatamente, Júlia ligou de volta. Era possível que ele tivesse alguma novidade de São Paulo.
— Tancredo?
— Oi, Júlia. Achei que ficaria feliz em saber logo o que descobri aqui. 
— Encontrou com Aldenora?
— Não. Seu apartamento aqui em São Paulo está fechado. Segundo o que me informaram, ela foi visitar a mãe aí em Fortaleza.
Júlia sentiu um alívio diante daquilo.
— Vou procurá-la, então! — precipitou-se ela.
— Não, por favor! — Tancredo falou no impulso. — Se ela desconfiar, nós podemos estragar tudo.
— Mas não podemos perder esta oportunidade.
— Sim, eu sei. Por isso estou retornando à Fortaleza ainda hoje. Embarco no primeiro voo à noite, foi só o que consegui.
— Eu poderia pelo menos ir até o prédio de dona Terezinha, a mãe de Aldenora, e ficar atenta a quem entra e sai de lá.
— Prefiro que não faça nada, Júlia. É muito arriscado. À essa altura, precisamos ir com cuidado para não perdermos nenhuma pista.
Júlia silenciou um pouco, incomodada com aquele limite, mas concordou.
— Também tenho novidades... É quase certo que Raquel está envolvida no sequestro de Clara.
— O que descobriu?
— Ela e Aldenora se conheciam.
— Isso é muito interessante. Logo que eu chegue a Fortaleza, nós nos encontraremos.
Os dois se despediram e desligaram o telefone, justo no momento em que o ônibus de Júlia parou no ponto. Ela tratou de subir e se acomodar nas primeiras cadeiras. Estava feliz pela notícia de Tancredo, embora não conseguisse se libertar do incômodo causado pelos cuidados do repórter. Compreendia, porém, não concordava. Foi tomada pelo desejo de ligar para a associação, desmarcando a reunião e mudar sua rota. Sentia-se ansiosa por estar frente a frente com Aldenora e descobrir para onde ela havia levado sua filha. Pela primeira vez, não cumpriria um acordo com Tancredo e aquilo não lhe deixou nem um pouco confortável. Afinal, era a visão de um profissional investigativo, e ele sabia quais eram as melhores estratégias e procedimentos. E ela, totalmente movida pelo instinto, pela emoção, correndo o risco de por tudo a perder, porque se encontrasse com Aldenora, na verdade não saberia sequer o que fazer, o que dizer, como proceder. Temia pela própria reação.
É, talvez Tancredo estivesse correto e fosse melhor ela esperá-lo para tomar qualquer atitude.
De qualquer modo, Aldenora estava mais perto do que nunca. 






Capítulo 30

Raquel olhou pela janela da sala, assegurando-se de que os filhos brincavam na varanda e foi até o quarto de Júlia, encostando a porta atrás dela. Com o caminho livre, ela poderia fazer o necessário para se proteger e garantir que tudo permaneceria como estava. Foi direto nas gavetas do criado-mudo. Na primeira, alguns livros e papeis soltos, organizados primorosamente. Mexeu nas coisas, com cuidado para deixar na mesma ordem. Na segunda gaveta, encontrou diversos acessórios e artigos tecnológicos, como carregador de celular, cabos, cartões de memória, pen drive, câmera fotográfica e outros objetos. Folheou dois livros de cabeceira que estavam do lado do abajur, mas nada conseguiu encontrar. 
Ela parou e tentou imaginar onde Júlia esconderia alguma informação importante. Lembrou-se do guarda-roupa e da caixa onde a cunhada guardava suas jóias e algum dinheiro. Mais uma vez, nada além do previsível. Por fim, vasculhou o armário, prateleiras, maleiro — o que começou a lhe impacientar, considerando que fora tudo em vão. Talvez o que Júlia e Tancredo vinham descobrindo estava sendo protegido pelo jornalista. A própria Raquel havia se negado inicialmente a fazer aquilo, a mexer nas coisas de Júlia, mas se via obrigada pelas circunstâncias, para se proteger.
Raquel balançou a cabeça negativamente, lamentando a investida sem sucesso. Pegou o cabelo com as duas mãos, fazendo um coque temporário e abanou o pescoço para se livrar do calor.
Nada feito!
Precisava tomar alguma atitude, mas o que fazer? Ligar para a pessoa que a colocara naquela enrascada e avisar o que estava acontecendo? Talvez fosse melhor que tudo logo se resolvesse e Júlia descobrisse a verdade. Pelo menos acabaria com aquela angústia tão presente em sua vida nos últimos anos, desde o desaparecimento de Clara.  Mas é fato que estaria perdida. A cunhada jamais a perdoaria pelo que fizera. Por mais que tivesse as suas razões, nada justificava ela ter conhecimento de tanta coisa e se omitir completamente.
Ela tratou de tirar o celular do bolso e procurou um número na agenda. Depois de selecioná-lo, esperou algumas chamadas até completar a ligação.
— Alô. É você? — Uma pausa. — Sei que não poderia estar ligando. — Outra pausa. — Sim, já falou isso, mas é urgente. — Raquel sentou na cama e mudou o celular de ouvido. — É sobre a Júlia, sim. Acho que não é mais nenhum segredo para você que ela e o Tancredo Flores voltaram a investigar tudo. O que está me tirando o sono, pois rapidamente eles conseguiram descobrir coisas que eu pensava estarem enterradas há anos. — Precisou calar novamente para ouvir a voz do outro lado da linha e prosseguiu: — Sim, fiz exatamente o que me orientou. O que deu para negar neguei, mas é diferente, eles estão munidos de informações importantes. Sempre falei que essa história viria à tona mais cedo ou mais tarde. E a Júlia é muito mais esperta do que pensava. — Mais uma pausa, apoiando o queixo com as costas da mão. — No fundo, no fundo, acho que ela está descobrindo toda essa história muito tarde. Não existe crime perfeito. Fui realmente muito ingênua de acreditar nisso e compactuar com essa trama absurda. — Raquel parou novamente, levantou e se pôs diante do altar de Júlia. — Arrependida? Sabe o que me levou a estar nessa. Mas não se preocupe, agora é tarde. De qualquer forma, avisei. Ela sabe sobre a Aldenora.
Nesse momento, Raquel se virou para a sua direita e deparou-se com Júlia à sua frente, na porta do quarto.
E quase deixou o celular cair no chão.







Capítulo 31

— Droga! — Donato esbravejou, desligando o celular. Em seguida, entrou no saguão do aeroporto Pinto Martins, carregando uma bolsa discreta de couro a tira-colo e uma maleta na mão. Apressou o passo. O jatinho que lhe levaria a Brasília decolaria em alguns minutos. Luísa o acompanhava como de costume, levando uma série de pastas contendo contratos para que ele os estudasse durante o voo.
Os dois passaram pelo portão de embarque, identificaram-se aos funcionários do aeroporto e foram conduzidos até a pista por outros dois profissionais, onde pegariam a aeronave.
Donato sentiu-se mais irritado por causa do sol escaldante do início de tarde queimando sua pele, enquanto o vento amarrotava-lhe o paletó impecável e jogava sua gravata de um lado para o outro. Não via a hora de estar no jatinho a alguns metros e se livrar do calor embaixo daquela roupa. Os dois entraram no aeronave e tomaram seus assentos, um de frente para o outro, procurando se recompor e acomodar-se para a decolagem.
— O que ela disse? — Luísa se antecipou, ao colocar o cinto.
Donato sabia que ela se referia ao telefonema recebido há pouco, quando estacionaram no aeroporto. Afrouxou um pouco o nó da gravata, a fim de deixar escapar o calor, pensou em não responder nada. Estava muito impaciente, irritado para qualquer diálogo. Seu mau humor parecia ter sido alimentado desde que começara o dia com vários contratempos na RTN. E agora, mais aquela ligação desagradável, justo quando estavam atrasados para a viagem.
Ele respirou fundo e por fim, respondeu:
— O cerco está se fechando. Júlia está mais próxima do que nós esperávamos.
— Alguma coisa precisa ser feita para frearmos esta mulher, Donato. Ela pode acabar com tudo! — disparou ela, balançando a cabeça negativamente.
Ele suspirou, olhou pela janela e desabafou:
— Acha que não desejei tirá-la de nosso caminho? — indagou, sem paciência. — Júlia deveria ter sumido há seis anos, quando tudo aconteceu.
Luísa tirou os óculos escuros e inclinou-se, aproximando-se de Donato. Ele podia perceber sua indignação no tom afobado da voz da secretária.
— Não gosto de me sentir refém de ninguém. Essa mulher é perigosa, Donato.
Aquilo aguçava sua irritação, fazendo-o fechar o punho apoiado no braço do assento para conter a raiva.
— Mas estamos com as mãos e pés atados. Júlia Serrado encontra-se numa posição privilegiada no jogo. Não temos como tocá-la. — Donato rebateu, olhando em seguida pela janela. Desejou que seu incômodo ficasse para trás, como a imagem do aeroporto perdida rapidamente do ângulo de visão, pelo movimento da aeronave.
— Talvez seja por isso que a odeie tanto! — cogitou a mulher.
— Já conversamos sobre isso. — a imagem do bairro do aeroporto mostrava-se reduzida através da janela, depois da decolagem. Donato permaneceu com o olhar fixo àquela paisagem em miniatura, como se hipnotizado.
— E quanto a Aldenora?
— Ela sim precisa desaparecer. Não podemos mais deixar rastros. E, diferente de Júlia, não há ninguém que a proteja.
— Quando fala em desaparecer, refere-se a um sumiço espontâneo ou em nós fazermos isso por ela?
— DROGA! — foi quase um grito. Donato voltou o olhar finalmente para a secretária, com a sobrancelha arqueada e um aspecto impaciente no rosto e completou: — Não é minha a função de ensinar a você o que tem que ser feito. Faça!
— Claro, claro. Desculpe-me, Donato. — Ele podia perceber claramente o quanto a intimidara com aquele grito. — Tomarei uma providência logo ao desembarcar em Brasília. Vou ligar para o...
— Não preciso saber dos detalhes! — ele a interrompeu, articulando as palavras compassadamente e fechando os olhos, como acompanhando o ritmo do curto discurso com a palma da mão, feito um maestro, para demonstrar a impaciência. E complementou firmemente: — Essa responsabilidade é sua, não minha. O fato é que esse jornalista não pode, em hipótese alguma, encontrar Aldenora.
— Providenciarei tudo.
O comandante anunciou que decolaria e o fez em seguida.
Luísa parecia incomodada, como se quisesse dizer algo e esperava o melhor momento. Após alguns minutos de silêncio, disparou:
— Acho que precisamos dar um susto nessa Júlia Serrado.
Donato tirou os óculos escuros, mas desta vez parecia curioso.
— O que seria?
— Se não podemos tocar nela, tudo bem. Mas um aviso, nós podemos. Ela precisa saber que existem limites.
Na verdade, Donato sentia-se tão afrontado por Júlia quanto Luísa. Por ele, já teria tomado uma atitude mais enérgica. Todavia, encontrava-se impossibilitado pelas circunstâncias, por algo muito maior que seus desejos pessoais ou seus brios. Mesmo que ela não soubesse, Júlia estava protegida. E aquilo despertava ódio em Donato. Achava inadmissível um senador e empresário tão importante quanto ele estar à mercê de uma bailarina medíocre como aquela mulher, embora ela mesma desconhecesse sua posição no jogo.
Sua vontade era de acabar definitivamente com a vida dela.
Mas deveria?
Talvez Luísa tivesse razão. Se Júlia tomasse um susto, poderia retroceder ou não se antecipar com tanta sede aos fatos. Deste modo, teriam como maquiar a realidade e impedi-la de emergir. No entanto, correria o risco de quebrar as regras impostas e sofrer duras consequências, o que não seria nada confortável. Muitos outros interesses estavam envolvidos. Seu orgulho não passava de um detalhe desprezível diante do todo.
Foi a vez dele curvar-se para perto de Luísa.
— Um susto, nada mais! — Donato autorizou, com meio sorriso. Colocou os óculos escuros de volta e mirou a cidade de Fortaleza que se apresentava pela janela da aeronave pequenina, feito um mapa vivo.






Capítulo 32

Júlia se apressou para sair de casa, por saber que Pedro a esperava no carro. Ele havia preferido não descer, o que lhe causou certa estranheza. Nem pareceu ter tomado um banho há pouco, sentindo-se consumida pelo calor, apesar do cabelo molhado. Ela anunciou sua saída pouco antes de bater a porta, para Raquel que estava na cozinha. E logo avistou o carro de Pedro, estacionado em frente. Júlia o percebeu diferente no momento em que o cumprimentou com um beijo nos lábios. Não tinha a mesma intensidade. Ele pareceu disfarçar, demonstrando certa irritação com o trânsito. Não a olhou nos olhos, e preferiu mudar a música que tocava baixinho no som do automóvel. No entanto, para Júlia, era claro que algo o incomodava. O estresse aparente adiava uma séria conversa que aconteceria no momento e local adequados.
Ela tentou quebrar o gelo:
— Flagrei Raquel contando para alguém no telefone que nós sabíamos sobre Aldenora.
— E ela falava com quem? — ele procurou saber, sem muita empolgação, como se dedicasse mais atenção ao espelho retrovisor.
— Não sei. Preferi fingir não ter ouvido nada. Mais que nunca, acredito que Raquel está envolvida até o pescoço nessa história. A tática é dar corda até que se enforque.
Pedro concordou com um simples “hum-hum”, deixando-a mais inquieta. Não ficariam bem até que conversassem sobre a relação que tinha com seu ex-namorado, como acerca do motivo que a fizera esconder aquilo dele.
Ela decidiu silenciar e pensar em como iniciaria aquela conversa. A música clássica escolhida por Pedro reinou no interior do veículo, embora num volume mais baixo do que eles conseguiriam ouvir se estivessem conversando. E nada falaram, até o instante em que Julia não suportou mais e desligou o som. E o abordou, quebrando o voto de silêncio:
— O que está acontecendo, Pedro? É perceptível que está chateado comigo.
Ele finalmente olhou-a e respondeu:
— Esperava chegar ao meu apartamento para conversarmos, mas tem razão. Estou muito incomodado com o que me disse pela manhã sobre o seu cunhado.
Ela procurou se virar para ele o máximo que pode no banco do carro, até o limite permitido pelo cinto de segurança. Tomou fôlego e justificou:
— Ia te contar, mas...
— É sempre assim, Júlia. — ele a interrompeu, impaciente, gesticulando com uma mão enquanto alternava o volante com a outra. — Você me faz recordar exatamente o modo como nós dois nos conhecemos. Depois que descobri a farsa de você se passar por Mirela, foi essa a sua explicação... que me contaria tudo, mas não tinha tido coragem. Agora, é a mesma coisa.
— Pedro, me desculpe. Sei que agi mal. O Guel estava me pressionando. Não queria perder a oportunidade de descobrir qualquer informação que ele tivesse sobre o desaparecimento da minha filha, por isso, não me afastei.
Pedro freou no semáforo vermelho. Voltou-se totalmente para ela.
— Nesse momento não questiono sua proximidade com esse cara, sei que ele pode ser uma peça importante nesse quebra-cabeça. Refiro-me ao pacto silencioso estabelecido entre vocês.
— Achei que não compreenderia.
— Como não compreenderia, Júlia? — questionou com um tom afobado, voltando-se para o trânsito novamente com a abertura do semáforo. — Eu te apoiaria!
— Fui uma tola — concordou ela, colocando as mãos no rosto. — Devia ter confiado mais em você.
— “Confiança”. Esse é o ponto, Júlia. Isso vai de encontro ao que nos separou no passado. Melhor que ninguém, sabe do meu compromisso com a verdade, com a transparência. A mentira é um câncer nas relações.
— Ei! — ela chamou sua atenção, segurando firme em sua perna. — Não menti, apenas... omiti.
— A linha é tênue entre essas duas dimensões.
— Está sendo injusto. O que fiz foi por cuidado a você.
— Desculpe, Júlia, dispenso esse tipo de cuidado. Isso pode acabar com a nossa relação. Quando reatamos, pensei que pudéssemos esquecer o que aconteceu no passado e construir uma nova história. Quero confiar em você. Para mim, isso é fundamental em qualquer relação. Muitas vezes as pessoas faltam com a verdade com a desculpa de estarem ajudando, zelando ou fazendo o bem ao outro. Isso passa pela falta de ética e não tem justificativa. Trata-se de um princípio de vida. Ou é, ou não é!
— Está completamente certo. Fui uma idiota. Me desculpe!
— Tem mais alguma coisa que queira me contar?
Aquela pergunta a fez pensar que Pedro sabia além do que aparentava. Júlia logo imaginou que o cunhado pudesse tê-lo procurado e revelado o que havia acontecido entre eles há alguns dias. O que não a surpreenderia, por saber que Guel era um grandessíssimo canalha. Por um instante, sentiu-se envergonhada por ter cedido à sedução do cunhado, depois do que ele lhe havia feito.
Júlia observava algumas pessoas que passavam apressadamente pela faixa de pedestres, enquanto ganhava tempo para lhe responder, numa fração de segundos. Pensou na possibilidade de contar a verdade, revelar que havia transado com Guel pouco antes de ligar para Tancredo, falando da perseguição sofrida por Pedro. Entre eles, não tinha nenhum compromisso firmado, portanto, Pedro deveria compreender. Além do mais, fora um momento de pura carência de sua parte. E se encontrava profundamente arrependida. 
Mas e a vergonha se de ver exposta em sua fragilidade de mulher? O que faria com ela? Em muitos anos não tinha estado com nenhum homem na cama, talvez esperando que pudesse reatar com Pedro algum dia. Via-se obrigada a assumir um único deslize. Não queria que ele pensasse mal a seu respeito ou que de algum modo aquilo arranhasse sua confiança.
Pedro aguardava uma resposta, com olhar interrogativo, revelado pela luz de um poste em seu rosto, como se a perscrutasse em sua hesitação. Então ela disse:
— Claro que não, Pedro. Guel e eu temos um pacto, só isso.
Pedro fez um bico com os lábios, balançando a cabeça, como se digerisse aquela resposta e o silêncio que a antecedeu. Após um curto “ok”, engatou a marcha e seguiu o fluxo natural do trânsito, quando o semáforo abriu.






Capítulo 33

No dia seguinte, Júlia adentrou, apreensiva, o prédio da Polícia Federal de Fortaleza. Ela e Tancredo estavam alguns minutos adiantados do horário marcado com o delegado, amigo do jornalista, que se prontificara em recebê-los na manhã de natal. Era o único tempo disponível na agenda do policial. Tancredo tomou a frente, identificando-se ao funcionário da movimentada recepção do prédio. A falar o nome de Ricardo Rosendo, o delegado federal em questão, o funcionário indicou uma escada, orientando-os a se direcionarem ao terceiro andar do prédio.
Júlia sentiu as próprias mãos geladas. Pela primeira vez, durante todos esses anos em que esteve afastada de Clara, nunca tinha chegado tão perto de pessoas que poderiam verdadeiramente ajudá-la a encontrar sua filha. Procurava se inspirar na segurança passada por Tancredo naquele momento. Para ele, era hora de reabrir o caso do sequestro formalmente e pedir ajuda à polícia a fim de que eles pusessem as mãos em Aldenora. O jornalista estava certo de que o delegado federal Ricardo Rosendo era a pessoa mais adequada a este intento. Segundo ele, os dois vinham partilhando informações por telefone nas últimas semanas.
Logo que chegaram ao andar indicado pelo recepcionista, foram atendidos por uma mulher gorda de meia idade, cabelos desgrenhados e uma cara de poucos amigos, que solicitou aos dois, de modo pouco interessado, a aguardarem alguns minutos enquanto o “Dr. Ricardo” podia recebê-los.
Júlia precisava conter a ansiedade e o medo que o tal Ricardo Rosendo tivesse o mesmo desinteresse em ajudá-los, feito àquela recepcionista gorda. As recordações de seis anos atrás, na época do desaparecimento de Clara, açoitavam de forma implacável as suas esperanças em estabelecer uma aliança segura com a polícia. O delegado responsável pelo caso naquele ano mostrava-se completamente incrédulo na possibilidade de descobrir o paradeiro de sua filha. Para ele, Clara havia sido traficada para fora do país e não se tinha mais nada a fazer. O que provocava o desespero de Júlia e sua total falta de confiança na justiça brasileira. Ela via claramente com aquela postura o quanto o serviço público estava fragilizado e as pessoas entregues à própria sorte.
De repente, a gorda mal humorada chamou a atenção de Tancredo, dizendo que o delegado os aguardava em sua sala.
Júlia pediu que Deus os iluminasse e procurou controlar o nervosismo e ansiedade que provocavam-lhe um tremor absurdamente insuportável nas mãos, seguindo o amigo até a sala indicada pela recepcionista.
A liberdade dessa mulher está com os dias contados. Ela vai pagar por tudo o que ela fez. Que São Miguel nos ajude!
O delegado federal Ricardo Rosendo era um homem jovem, de idade aproximada à de Tancredo, e os dois pareciam ter estudado juntos antes da faculdade. Um moreno alto, usando uns óculos de armação preta, o que lhe proporcionava ares de Clark Kent. Diferente da figura esperada por Júlia, um homem mais velho, baixo e gordo, Ricardo ostentava uma beleza exótica, com olhos puxados, e recebeu o amigo em clima de grande celebração. O que mais a surpreendeu foi saber que ele também conhecia Pedro da época de colégio e que os três foram grandes amigos.
Tancredo a apresentou, deixando-o aparentemente encantado.
— Muito prazer, Júlia. Vejo que meu amigo Pedro tem razão de estar apaixonado — galanteou Ricardo, com grande sorriso, beijando-lhe a mão. — Preparados para finalmente resolver este caso? — complementou ele, abrindo os braços, como se abraçasse com imensa alegria aquela causa.
O fato de Ricardo ter sido amigo de Pedro trouxe a ela um pouco mais de tranqüilidade. Os dois se acomodaram e Tancredo reiterou muitas informações sobre o desaparecimento de Clara, as quais havia adiantado ao amigo por telefone. Júlia contou-lhe detalhadamente o que acontecera há seis anos, como as últimas descobertas ao lado de Tancredo Flores. O delegado parecia acompanhar atentamente, intervindo algumas vezes para compreender melhor os detalhes.
— Nós temos informações seguras de que Aldenora está neste momento em Fortaleza. Ela é provavelmente a chave para chegarmos à verdade. Entretanto, caso a encontremos, corremos o risco de não apenas descobrirmos o que ela sabe, mas também de assustá-la e novamente voltarmos à estaca zero. É aí onde entra o trabalho da polícia — Tancredo arrematou, após o longo relato acerca do caso e ter entregue todas as provas reunidas nas mãos de Ricardo.
Por um instante, Júlia desejou sair dali, deixar que Tancredo resolvesse tudo junto ao seu amigo e comunicasse-lhe o que havia acontecido. Caso o homem não demonstrasse tanto interesse em ajudá-los, ao menos ela teria se poupado de mais uma decepção. No entanto, sabia da importância de sua presença. “Ela”, a mãe, reabriria o caso formalmente, sob a orientação da polícia federal. Sim, era um devaneio, não tinha como fugir, faria o que fosse necessário para prender a responsável por todos aqueles anos de sofrimento em sua vida.
Deste modo, optou por deixar o medo de lado e fazer sua parte.
— Há algo que a polícia possa fazer por nós, Dr. Ricardo? — fez quase um apelo, temendo que o policial não demonstrasse interesse pelo caso.
Ricardo se debruçou sobre a mesa e declarou:
— Júlia, quando Tancredo me falou sobre sua história, fiquei muito interessado em saber mais a respeito e ver no que a polícia poderia realmente ajudar. Apesar do desaparecimento ter acontecido há muitos anos, acredito que nosso amigo aqui — mirou Tancredo — conseguiu reunir provas suficientes para reabrirmos este caso sim e instituirmos uma investigação a respeito. — Ele se acomodou melhor em sua cadeira e completou, seguro: — A partir desde momento a polícia federal assumirá este caso, Júlia.
Júlia olhou para Tancredo com grande sorriso, sem acreditar direito no que ouvira.
— E qual será o próximo passo? — Tancredo se antecipou.
— Comprovarmos todas as evidências — respondeu o policial, de pronto. — O que não será muito difícil, segundo o que tenho em minhas mãos. Em seguida, pedirmos a prisão preventiva dessa mulher.
Júlia apoiou os braços nos joelhos e postou as mãos diante do rosto, aliviada e feliz pelo que ouvira. Mais do que nunca, conseguia conectar-se ao fim do seu sofrimento. 







Capítulo 34

Pedro digitou o segredo do cofre de seu quarto na casa de praia. Em poucos segundos, estava diante dos documentos guardados por ele mesmo há algum tempo atrás. Vasculhou atentamente. Retirou os papéis, pastas e envelopes, mas não encontrou o que procurava. Colocou as coisas de volta ao cofre do mesmo modo em que estavam organizadas anteriormente. Afastou-se, de modo a ter uma visão mais ampla no armário de seu quarto, focando cada porta e gaveta, como se imaginasse aonde o relógio de seu pai poderia estar.
— Com licença — interrompeu Caetano, o caseiro, da porta do quarto. — O carro está prontinho, seu Pedro, do jeito que o senhor gosta.
O homem de rosto envelhecido parecia feliz por fazer os gostos do menino que vira crescer. Pedro aproveitou e contou a ele o que procurava. Talvez Caetano soubesse o paradeiro do relógio de seu pai. Uma peça com pulseira de couro preta e mostrador reluzente, que o velho Alberto Lucena adquirira em uma viagem à Suíça nos anos setenta, mas que ele gostava muito e utilizou até a morte. Pedro lembrava de inúmeros momentos em que vira o pai com aquele relógio. E naquele Natal, decidira presentear o filho com ele.
— Felipe já é um rapazinho e vai adorar o relógio do avô — justificou ao velho amigo.
— Pode estar no armário da biblioteca. Vamos dar uma olhada por lá — sugeriu Caetano, solícito, como de costume. Os dois desceram ao andar inferior. — Aldenora arrumou todas as coisas pessoais de seu Alberto numa caixa, pouco depois de sua morte — completou.
Aquele nome chamou a atenção de Pedro.
— Quem?
— Aldenora — confirmou o homem.
— Espera um pouco, Caetano. Quem é Aldenora? — Pedro perguntou antes de entrar na biblioteca.
— A empregada do seu Alberto.
— A pessoa que trabalhava com meu pai na época de sua morte chamava-se Aldenora?
— Sim. Inclusive ele gostava muito do trabalho dela.
— Pode me falar mais dessa mulher?
Pedro teve certeza que era a mesma pessoa, a mulher da fotografia no aeroporto. Seria mais uma prova contra Donato Pessoa.
Caetano sentou e contou em poucos minutos o que sabia sobre a empregada de Alberto Lucena, até a época de sua morte. O que mais chamou a atenção de Pedro foi saber que ela havia sido indicada a trabalhar com seu pai por Donato.  Mais ainda, que Aldenora estava ali na casa de praia, junto com eles, no dia em que Alberto morreu. Segundo Caetano, ela havia se transformado em poucos meses numa pessoa de confiança de seu patrão, por sua competência e cuidado exagerado, chegando a lembrá-lo todas as horas em que precisava tomar o remédio do coração.
Só pode ter sido ela!
Pedro se levantou do sofá, visivelmente abalado. Pensou um pouco e foi até a biblioteca, ao lado da sala. Caetano, mesmo parecendo não compreender nada, seguiu-o. Sem pestanejar, Pedro pegou uma cópia da fotografia em que estavam Aldenora com Clara no colo, ao fundo, ao lado de Guel e o homem de costas. Estendeu-a na direção do caseiro.
— Esta é a mulher de quem está falando? — Pedro disparou, ansioso por uma resposta afirmativa.
Caetano pegou a foto e aproximou-a do rosto para enxergar melhor, depois distanciou-a, como se procurasse o melhor ângulo. Por fim, respondeu:
— E ela sim, seu Pedro. O retrato não está bom, mas dá para a gente ver que é Aldenora sim, a empregada de seu pai naquela época — confirmou com um pequeno sorriso, como se feliz por ter prestado mais serviço ao chefe.
Pedro recebeu a fotografia de volta e mirou aquela mulher. Embora não a conhecesse, sentiu uma raiva profunda dela e pena do seu pai. Amassou o papel em sua mão e socou a mesa, enfurecido.
— NÃO PODE SER! — o desabafo veio quase como um grito. — Eles te enganaram, pai! — Virou-se de costas e olhou para o alto, com as mãos coladas ao quadril. — Eles te enganaram!
— Seu Pedro, o que houve? O que está acontecendo? — a voz de Caetano chegou-lhe feito um apelo.
— Essa mulher pode ter matado o meu pai, Caetano — explicou, voltando-se ao amigo. — Ou melhor, “eles” podem tê-lo matado.
— Eles? De quem o senhor está falando?
— Você me disse que no dia em que o meu pai morreu, pouco antes de encontrá-lo agonizando, Donato esteve aqui, não foi?
— Foi. Mas seu Alberto estava tendo um ataque do coração.
— Meu pai precisava dos remédios, Caetano. Sabe que ele tinha crises constantes de hipertensão.
— Sim, mas...
— Encontrou os remédios dele na hora dessa última crise?
— Não, senhor.
— Então foi ela! — Pedro afirmou de pronto e caminhou pelo cômodo.
Caetano sentou-se, perplexo. Finalmente parecia compreender o que estava acontecendo.
— Santo Deus! — desabafou o homem.
— Com certeza eles estavam mancomunados para matar o meu pai.
Pedro viu-se tomado de ódio. Desejou gritar, colocar para fora o que lhe corroia por dentro. Foi até a sala e observou tudo a sua volta, o ambiente que tanto traduzia o seu pai, com seus quadros, vasos e esculturas — a cara do velho Alberto Lucena. Veio uma saudade, um vazio em seu peito, a falta do abraço não dado, a despedida nunca ocorrida, a voz silenciada nos últimos seis anos.
Ele gritou e quase se debruçou por sobre a mesinha de centro, derrubando tudo, com uma força descomunal. Precisava extravasar, soltar seus monstros, suas dores! Em seguida, chorou a dor da perda do seu pai, sem se preocupar com Caetano, que tentou, sem sucesso, saber como poderia ajudá-lo. E por um instante, Pedro se viu culpado. Foi ele quem trouxera Donato para o universo do pai. Sem saber, Alberto Lucena fizera de seu filho um futuro algoz, o homem que mais tarde, tiraria sua vida, desejando o que era seu.
Você vai pagar, Donato! Com certeza, vai pagar!
Poderia pegar o carro e procurar aquele canalha, dizer que não ficaria impune e que logo estaria atrás das grades, pagando por todos os seus crimes. Vê-lo sofrer, chorar de arrependimento, como ele chorava. Mas antes, Pedro precisava desfazer-se da raiva que o consumia, pois com qualquer ato impensado, correria o risco de afugentá-lo e transformar o próprio ódio e desejo de justiça numa forma de inocentá-lo. E Donato seria capaz de aproveitar-se disso.
Pedro se lembrou de que Tancredo e Júlia estavam naquele instante na Polícia Federal. Recompôs-se, enxugou as lágrimas e finalmente decidiu o que fazer. Precisava contar as novidades a eles. E saiu dali, com uma promessa incólume:
Vou fazer justiça, pai!






Capítulo 35

Júlia se apoiou no parapeito que contornava a estátua da índia Iracema, de frente para o mar, na Praia de Iracema. Ergueu um pouco a cabeça e deixou que o vento massageasse os cabelos e levasse consigo as preocupações com o encontro, marcado por Pedro ao telefone, há algumas horas. Ela não havia compreendido direito porque ele não pudera comparecer ao almoço de Natal, combinado entre eles e Tancredo, após saírem da Polícia Federal. Inicialmente, Pedro pareceu ansioso em encontrá-los. Em seguida, ligou remarcando, com uma desculpa pouco convincente.
Júlia passou a tarde inteira com Tancredo, num restaurante da proximidade. Depois ele tivera que deixá-la próximo da estátua, por causa de outro compromisso. Estava feliz por conta da conversa com o delegado Ricardo Rosendo, mas apreensiva em encontrar Pedro, ele lhe parecera frio ao telefone.
Ela olhou no relógio e viu que faltavam vinte minutos para as dezessete horas, horário combinado com Pedro. O sol estava firme, longe de se por. Algumas outras pessoas se espalhavam pelo local, tirando fotos, conversando, rindo, combinando a ceia natalina mais tarde. E Júlia, refém de suas inquietações.
— O trânsito dessa cidade está um inferno — comentou Pedro, surgindo com alguma antecedência e aproximando-se dela. Cumprimentou-a com um breve abraço, desconsiderando totalmente sua postura receptiva de um beijo.
Algo sério aconteceu...
— Está tudo bem, Pedro? — disparou ela de pronto, ao sair do abraço.
Pedro suspirou e segurou firme na barra de metal que contornava o local, mirando o mar de Iracema. Silenciou por alguns segundos e revelou:
— Estive com Guel.
Júlia sentiu seu estômago se contorcer ao ouvir aquilo. Nem sabia o que dizer. Certamente, o canalha do seu ex-namorado havia estragado tudo. Ela tomou fôlego e perguntou:
— Por isso desistiu de almoçar conosco?
Pedro fez que sim com a cabeça.
— Antes havia dito que tinha novidades... — Júlia tentou desconversar.
— Eu vinha da casa de praia, ele me ligou, dizendo que era urgente. Falou que era sobre você. Não tive como deixar de encontrá-lo.
— E... — não sabia como perguntar. — o que ele queria?
— Você sabe, não é, Júlia?
Júlia colocou a mão por sobre a dele na barra de metal e arrastou os óculos escuros para o alto da cabeça. Precisava olhar em seus olhos.
— Pedro, não sei o que esse canalha te falou, mas... preciso te dizer que antes de nós reatarmos...
— Sei o que aconteceu entre vocês — interrompeu ele, num impulso.
Júlia mirou o horizonte e desejou sumir dali, tomada de vergonha, sentindo-se exposta em sua intimidade, em sua fragilidade.
— Não foi importante — ela arrematou.
— Compreendo.
Ela olhou para ele de novo. Sentiu-se tola por não ter tido coragem de lhe falar a verdade. Óbvio que Pedro compreenderia. Na verdade, não existia motivo para não entender ou não aceitar.
— Estou com vergonha de você — ela confessou.
— Ele me falou também sobre a sua demissão da Mirage.
— Canalha! Ele não tinha o direito...
— Por que me escondeu isso também?
— Pedro, não escondi. Apenas quis me proteger. — Júlia sentiu-se angustiada ao vê-lo tirar sua mão debaixo da dela. — Fui demitida como se fosse uma prostituta. Estive naquele motel, e não queria que as pessoas, feito Olívia, pensassem aquilo de mim. Por isso não falei nada para ninguém.
— Se foi vítima de uma armação, não tinha o que temer.
— Se? — aquela colocação chegou como se fosse uma agressão. — Pedro, acha que pode não ter sido uma armação? Acredita que eu estava naquele motel realmente me prostituindo? — seu tom vinha carregado de indignação. Não era possível que justo ele não acreditasse nela.
Pedro balançou a cabeça negativamente e lançou-lhe um olhar baixo, de um modo como se lamentasse tudo aquilo.
— Uma pessoa vítima de uma armação desse porte colocaria a boca no trombone, gritaria sua inocência, se indignaria... mas fez exatamente o contrário, Júlia. Escondeu-se. Os motivos que lhe afastaram da Mirage foram muito sérios, graves. Uma questão dessas não devia ser tratada assim. É caso de polícia, de processo!
— Tudo estava contra mim, você não entende.
— Não precisamos ter medo quando somos inocentes, quando falamos a verdade.
— Isso só acontece no seu mundo.
— No meu mundo, Júlia? Vejo o quanto somos diferentes. Diz acreditar no mesmo que eu, mas quando posta contra a parede, revela de fato o que pensa sobre mim e “meu mundo”.
— Não se trata disso, está entendendo errado.
— Ponha-se no meu lugar.
— Ponha-se você no meu lugar! — exigiu ela, com o tom alterado. — Minha honra, minha moral, foram totalmente abaladas por aquelas calúnias. Era compreensível que eu não quisesse entrar em contato com aquilo, pois se tratava de algo que me envergonhava. Para uma mulher, não é tão fácil quanto para um homem.
— Pois torno a repetir, Júlia. Não falo dos fatos em si, mas dos princípios que orientam a sua realização. Não sei quais são os seus princípios, não os deixa claro. Falamos em transparência e não a reconheço em você, falamos de verdade e você me vem com omissões. Quando omitimos, deixamos de mostrar quem somos. E não podemos construir um relacionamento verdadeiro se não sabemos realmente quem somos nós.
Júlia não teve como conter o choro.
— Sei que errei, Pedro. Mas é difícil para mim.
Ele pareceu não se comover.
— Venho tentando descobrir quem você é há mais de seis anos, Júlia. E definitivamente não sei. Não sei o que está por trás do que diz e faz. É como se estivesse sempre escondendo algo. A impressão que me dá é que a qualquer momento posso descobrir uma nova mentira, entende?
— Está sendo injusto — rebateu ela, limpando as lágrimas, para não chamar a atenção das pessoas ali perto, embora aquilo fosse quase inevitável. Vez por outra, alguém olhava para eles.
— Injusto? — Pedro sorriu, sem graça. — Júlia, não se trata de ter escondido um envolvimento com seu cunhado ou o motivo pelo qual foi demitida do seu trabalho, mas as inúmeras vezes que mentiu sobre as ligações e mensagens do Guel, a falta de confiança em mim. Falta cumplicidade entre a gente, sabe? Isso é fundamental! Cumplicidade, respeito, confiança.
— Tem toda razão.
— Preciso pensar melhor sobre isso. Não temos como continuar desse modo.
— Está rompendo comigo?
— Estou rompendo com esse ciclo vicioso de mentiras. Preciso de um tempo, Júlia. Só isso.
— Não faz isso comigo, Pedro!
— Não vamos piorar as coisas, por favor. Posso te deixar em casa.
— Deixar em casa?
Sim, certamente era um rompimento, justo no dia de Natal. Uma tsunami parecia ter passado por ali e arrastado consigo a felicidade por tê-lo reencontrado naquele último mês e finalmente terem se acertado, depois de tantos anos de separação. Tudo acontecera tão rápido, o reencontro, a reconciliação... e mais um término. Talvez definitivo. Era como se aquelas descobertas de Pedro viessem com a missão de consolidar suas desconfianças a seu respeito, de mostrá-lo inadvertidamente as diferenças gigantescas de posturas de vida. Ele, tão crente na verdade das relações, e ela, disposta a defender sua imagem a qualquer custo.
Todavia, Júlia acreditava sempre sair viva dessas tsunamis, morta por dentro, mas viva por fora, tendendo a uma ressurreição inevitável de sua alma, dos sentimentos ora tão destruídos, e do nada, refeitos, sedentos de outras manifestações da natureza. Uma força implacável da vida que faz e desfaz, constrói e destrói em segundos, mas que junta os cacos e simplesmente vive!
Ela pensou em lhe pedir perdão e uma nova chance, falar da dor sentida, de seus sentimentos, do quando o amava e de seu arrependimento por aquelas tolices. Seria sua luta implacável para permanecer próxima ao homem que amava, pela própria felicidade. Assumindo sua fraqueza e clamando por ajuda, a fim de sua superação, de vencer o ego e o controle da auto-imagem, ao qual se flagrou tão submetida por quase toda a vida. Ninguém melhor do que Pedro para ajudá-la. No entanto, sabia de suas limitações e que ela infringira a maior de todas as suas regras — a confiança. E aquilo, seria difícil de esquecer e reconstruir. Talvez fosse melhor respeitar seu pedido de tempo e ponderação, e que mais tarde, em outro momento, pudessem se encontrar e acertar os ponteiros de sua vida.
Júlia preferiu respeitar o momento de Pedro.
— Não vou para casa. Prefiro ficar por aqui e organizar minhas ideias — respondeu à sua proposta de levá-la.
Pedro não insistiu. Os dois se despediram e ela o viu sair, sumindo em meio à multidão do calçadão da Praia de Iracema. Segundos depois, reencontrou ao longe a imagem de Pedro entrando em seu carro. E chorou, lamentando não estar lá com ele, por sua própria culpa.






Capítulo 36

Júlia entrou em uma das salas de exposição do Centro Cultural Dragão do Mar, onde estavam distribuídas obras de vários artistas e estilos diferentes. Ela havia recebido o convite de Leonardo Gondim para uma confraternização pessoal de final de ano. A ideia era visitar a exposição naquela tarde e depois saírem para jantar. Júlia resistiu um pouco ao convite por causa da tristeza experimentada nos últimos dias, após o rompimento com Pedro, mas por fim, aceitou.
                O Natal havia sido péssimo, e se não fosse o convite de Leonardo, o Réveillon não seria muito diferente.
Ela se aproximou de uma pintura e viajou, por alguns segundos, naquela abstração e cores diferenciadas. Desejava se distanciar da saudade de Pedro, que tanto a machucava e experimentar o alívio da ressurreição, após a destruição de um sonho. Imaginou ela que no quadro, a pintura imortalizava o sonho do artista, capaz de fazê-lo viajar por séculos, sem quase nada perder. Queria que fosse assim com relação aos seus desejos mais profundos, como estar ao lado do homem que amava.  
Saindo de seu transe temporário, provocado pela arte esboçada no quadro, Júlia avistou Leonardo a alguns metros. Ele parecia já tê-la visto e estava lhe observando. Aproximou-se sem alarde, com sorriso no rosto e a mão no bolso, com o charme que lhe era peculiar. Os setenta anos de idade pareciam não lhe pesar.
— Simples, moderno e profundo — categorizou Leonardo, ao seu lado, certamente referindo-se ao quadro.
Júlia simplesmente o abraçou, feliz por reencontrar o amigo.
— Que bom vê-lo!
— Que receptividade! Está tudo bem?
Ela fez que não com a cabeça.
— Pedro e eu terminamos.
Leonardo segurou sua mão, procurando mostrar-se cúmplice e lamentou por ela e sua dor. Depois iniciaram sua trajetória, visitando toda a exposição, enquanto conversavam. Júlia contou-lhe em detalhes, repetindo algumas vezes o último diálogo com Pedro. Leonardo, por sua vez, permaneceu calado, atento à história e aos seus gestos. Demonstrou total aversão à atitude e postura de Pedro, taxada por ele de extremista, radical e desprovida de sensibilidade. Apontando-a como vítima de uma circunstância. Ela, no entanto, preferiu mudar de assunto e tirar o foco daquela história que tanto a maltratava naquele momento. Rapidamente o deixou a par das últimas descobertas e procedimentos acerca das investigações do desaparecimento de Clara. Leonardo mostrou-se empolgado com o envolvimento da Polícia Federal, considerando-o como o passo final para descobrirem o paradeiro da criança.
Por fim, antes de saírem da sala de exposições, Júlia percebeu certa ansiedade em Leonardo, como se quisesse lhe contar algo importante e estivesse procurando o melhor momento.  Insistiu para que o fizesse. E veio a revelação:
— Só tenho mais seis meses de vida — anunciou de uma só vez.
Aquela notícia pareceu arrancar o chão de Júlia. Foi como se inicialmente ela não compreendesse o significado; depois, chegou com seu poder de destruição existencial. Ela ali, preocupada com seus problemas pessoais, e seu melhor amigo condenado à morte. Aquilo era infinitamente mais importante.
— Seis meses? O que houve? Você estava bem, parecia que vinha se recuperando...
Leonardo demorou para responder. Os dois estavam parados em meio a diversas esculturas em papel marche. Leonardo as observava, como se quisesse fugir da verdade, pela dificuldade de assumir o que a vida lhe convidava naquele momento. Mas Júlia insistiu, e ele cedeu:
— Os últimos exames comprovaram que o tumor cresceu muito nos últimos meses e está pressionando o cérebro. O que era uma hipótese, confirmou-se.
— Não tem como operar?
— Os médicos acreditam que se eu for submetido a uma cirurgia, não resistirei.
— Meu Deus!
Júlia voltou-se para as esculturas, chocada com a revelação. Imaginou a transformação do papel, resultando naquelas formas primorosas e a luta diária de Leonardo com o câncer desde que fora descoberto há sete anos, o quanto ele batalhou para a transformação e a superação daquela doença maldita, e depois, mais nada! Como nadar, nadar e morrer na praia. Injusto com uma pessoa tão humana e sensível feito ele!
— Não existem alternativas, Júlia — anunciou.
Júlia se voltou completamente para Leonardo. Aproximou-se num impulso e o abraçou forte, como se naquele abraço ela pudesse salvá-lo, impedir sua partida.
— O que posso fazer por você, meu amigo?
— Case-se comigo.
Como? Ela teria ouvido bem?
Júlia tomou distância e o olhou de modo interrogativo.
— Isso mesmo que ouviu. Case-se comigo, Júlia — insistiu ele. — Só me restam seis meses de vida. Eu gostaria de desfrutá-los ao seu lado. É meu último pedido.
Apesar de sentir-se chocada com a revelação, Júlia considerou desonesta aquela proposta. Leonardo se aproveitava de um momento de fragilidade sua para concretizar o que sempre sonhou em todos aqueles anos de amizade. Ele não tinha o direito de jogar tão baixo com os seus sentimentos. Estava sendo egoísta ao responsabilizá-la por sua felicidade nos últimos momentos de vida, como se coubesse somente a ela definir se ele morreria bem ou mal. Mas por um instante, se perguntou: afinal, que direito tem uma pessoa condenada à morte diante das regras normais de uma convivência diária? Talvez Leonardo tivesse, sim, que lutar pela sua felicidade, desconsiderando toda e qualquer forma ética de relação. Egoísta? Por que não? O que lhe restava senão o egoísmo solitário num mundo que não traduzia nenhum sentido? Para Júlia, seu amigo tinha direito a infringir todas as regras, todas as normas aprisionantes responsáveis por nos afastar de nossos desejos mais instintivos e garantir a boa convivência numa sociedade hipócrita, infeliz e educada. A ele cabia a irreverência, a liberdade diante do que impedia a sua livre expressão. 
O que responderia? Daria a seu amigo a felicidade de acordar todos os seus últimos dias de vida ao seu lado ou desconsideraria completamente aquela proposta absurda, oferecendo-lhe o que era possível, a sua amizade? E a sua própria vida, seu amor por Pedro, a busca pela sua filha? Como ficaria? Com seu aceite àquela proposta, Pedro consideraria que sua relação com Leonardo sempre fora de interesses. E se existia uma possibilidade de reconciliação, seria completamente aniquilada por aquela união estapafúrdia! E mais, poderia ela se perder completamente de seu principal foco naquele momento — saber o paradeiro de Clara.
Não, ela não podia aceitar, mas também não podia magoá-lo. Precisava encontrar uma saída, um meio termo. Só conseguiu dizer:
— Leonardo, está brincando comigo?
— Não, Júlia. Jamais brincaria com algo tão sério! Preciso de você ao meu lado nesses últimos momentos.
Júlia ponderou e finalmente encontrou a saída:
— Deixe-me pensar um pouco. É uma situação nova, muitas coisas estão em jogo.
— Lembre-se que não tenho muito tempo.
— Deixemos entrar o ano e te dou uma resposta.
Pelo menos por enquanto, ela não precisara magoá-lo.






Capítulo 37

Do banco de trás do carro de Ricardo Rosendo, Júlia observou o relógio digital no painel. Às 10h52, o delegado estacionava na Avenida Principal da Praia do Morro Branco, em Beberibe. Tancredo ia no lugar do carona, ao lado do policial. Ele apontou para o número “350” destacado no muro de pedra de uma grande casa, alguns metros à frente. Do lado de fora via-se uma enorme propriedade, paralela a tantas outras residências nobres daquela região, como as mansões que ficavam de frente para o mar.
Ricardo pegou o rádio e se comunicou com algum outro policial:
— Tudo pronto?
Primeiro, um som de estática, depois a resposta na frequência:
— Positivo, chefe.
— Pode mandar os homens — autorizou. Deu um sorriso. — Hoje ela não me escapa.
— Tomara. Uma ação em pleno dia trinta e um de dezembro... não pode dar em viagem perdida! — observou Tancredo, um pouco apreensivo. Afinal, tudo era resultado de seu trabalho investigativo durante aquele mês de dezembro.
— Não se preocupe, amigo. Não tem como dar errado — Ricardo tranquilizou-o. Tirou uma caixa com pastilhas de menta do painel do carro e ofereceu aos dois. Certamente havia percebido o nervosismo no ar.
Júlia não dera uma só palavra durante o trajeto até ali. Preferia orar, pedir que São Miguel intercedesse por aquela operação e permitisse que Aldenora finalmente fosse presa. Logo cedo, havia recebido o telefonema de Tancredo dizendo que, segundo informações recebidas por Rosendo, um sobrinho de dona Terezinha voltara ao apartamento da família e fora seguido por um agente da polícia. Horas depois, os três estavam na estrada, rumo à Beberibe.
Júlia percebeu que Ricardo observava sua expressão de tensão pelo espelho retrovisor. De repente ele deu uma olhadela para trás e lançou um sorriso sarcástico.
— Está com medo, Júlia?
— Um pouco apreensiva.
— Não acredita que vamos pegá-la, não é mesmo? — Ricardo perguntou.
— Não é isso... nunca participei de um momento como esse.
— Olha só — o delegado chamou atenção para o retrovisor, mostrando outros três carros bastante parecidos com o que eles estavam. 
— Precisava realmente de tantos homens? — questionou Tancredo.
— Não sabemos o que nos espera — respondeu Ricardo.
Júlia suspirou.
— Seja o que Deus quiser!
Ricardo apontou para a imagem de um motoqueiro se aproximando.
— A surpresa! — disse o delegado, sem mais delongas.
— Do que está falando? — Tancredo procurou saber.
— Veja só.
O homem, uniformizado de entregador, guiava uma moto carregada de botijões de gás e passou por eles, estacionando em frente à casa observada. Os três acompanharam seu movimento atentamente, embora Júlia não compreendesse o que estava acontecendo. Em seguida, o rapaz desceu da moto e apertou a campainha. Um minuto depois, um senhor de meia idade abriu o pequeno portão, falaram algumas coisas e o motoqueiro o acompanhou, levando no ombro um dos botijões.
Yes! — Ricardo socou o ar, em comemoração.
Júlia permanecia sem compreender.
— Aquele motoqueiro é um de seus homens! — disse Tancredo, com uma expressão de quem começava a entender o plano.
— Sim. É um de nossos homens — respondeu o delegado, sorrindo. — Disfarçado, é claro. 
Júlia finalmente entendeu que o delegado encontrava-se preparado. A dúvida era se Aldenora estava realmente na casa ou não.
O silêncio no interior do carro foi quebrado pelo toque do aparelho celular de Ricardo, que logo o atendeu.
— Pronto. — uma pausa. — sei... — mais outra pausa. — Ok. Estamos indo. — Desligou o aparelho e se voltou para Tancredo. — Vamos! Nosso peixe mordeu a isca.
Tancredo desceu do carro e ajeitou o colete à prova de balas por baixo da camisa. Andou até a porta da casa, seguindo o delegado. Atrás deles, os homens dos outros três carros os acompanhavam, todos com armas em punho. O combinado era que Júlia aguardasse no veículo. Ricardo não considerava seguro que os dois entrassem na casa, todavia, Tancredo acabou por convencê-lo a permitir sua presença.
Cerca de dez homens se posicionaram diante do portão de madeira maciça e aguardaram até que o mesmo fosse aberto. Demorou muito pouco até o motoqueiro aparecer e eles entrarem na propriedade, com Ricardo à frente. Do veículo, Júlia podia ouvi-lo gritar que todas as pessoas na piscina ficassem onde estavam.
São Miguel Arcanjo, defendei-nos o combate, sede o nosso refúgio contra as maldades e ciladas do demônio!
Restava rezar e procurar conter o nervosismo do momento. Ela alternava a atenção entre os ponteiros de seu relógio e o portão da residência onde estaria Aldenora. Vez por outra observava o movimento natural da rua. Aguardava ansiosamente que alguém passasse por aquele portão. E nada! Os minutos que eles ficaram lá dentro pareceram-lhe uma eternidade.
Finalmente avistou os homens saírem da casa escoltando uma mulher, que Júlia não conseguia identificar se era Aldenora. Ela tinha os cabelos pretos e curtos, totalmente diferentes da moça da fotografia do aeroporto. De onde estava, tentou reconhecê-la. Quando achou que poderia ser um engano, viu os policiais passarem com a estranha ao lado do veículo de Ricardo, e pode olhá-la profundamente nos olhos. Desviou o rosto ao perceber a mulher encará-la.
— É ela — confirmou Tancredo, aproximando-se do veículo, como se tivesse percebido a dúvida de Júlia. — Está um pouco diferente, mas é Aldenora, sim.
— Nós sabíamos que ela havia mudado a aparência — completou o delegado, guardado sua arma.
Júlia ouviu um grito de mulher e depois vários outros de homens. Virou-se rapidamente e viu alguém se debatendo em meios aos policiais.
— SEGUREM ELA! — gritou Ricardo, correndo em direção ao movimento.
Aldenora estava resistindo.
Santo Deus, se essa mulher conseguir fugir...
Júlia teve dificuldade em destravar a porta, mas conseguiu sair. Tancredo segurou-a pelo braço, talvez por achar que ela pudesse partir para a confusão.
— Tancredo, ela vai fugir! — disparou Júlia, no impulso.
— Não se preocupe, eles vão dar um jeito! — advertiu ele.
Mas Júlia teve muito medo de vê-la escapar. Desejou fazer alguma coisa. No entanto, não tinha o que ser feito.
— ME SOLTEM! ME SOLTEM! VOCÊS ESTÃO COMETENDO UM ERRO! — Aldenora gritava desesperadamente, agredindo como podia os homens. Não demorou muito, Aldenora fora contida e colocada à força em um dos automóveis na fila atrás do veículo de Rosendo. Apesar do transtorno, tudo acabara bem, como o delegado previra.
Em seguida, todos entraram de volta no carro e Júlia mal podia acreditar que um grande passo fora dado. Aldenora seria obrigada a prestar contas sobre o sequestro de Clara. Talvez ela confirmasse a participação de Donato Pessoa no caso e garantisse também a prisão daquele bandido. Agoniada, só pensava em descer do carro e ir até o veículo onde estava aquela mulher. Queria abordá-la, antecipar alguma informação, qualquer notícia que fosse. Via-se tão próxima de sua menina por conta da presença dela. E se a mulher sentisse seu desespero, talvez pudesse de algum modo se sensibilizar e adiantar algo.
Mas não seria muita ingenuidade pensar dessa maneira? Provavelmente Aldenora fora orientada pelo mentor daquele plano maquiavélico, e caso fosse pega, não entregaria os pontos tão facilmente. Júlia conteve o próprio impulso em abrir a porta do carro, procurando seguir o curso natural da operação. O melhor seria irem todos para a delegacia e descobrir o que ela tinha a dizer, de verdade. 







Capítulo 38

Júlia sentou-se à mesa no centro da sala de visitas, dentro do prédio da polícia federal. Um ambiente amplo, sem nenhum outro móvel, exceto por aquela mesa e duas cadeiras, uma de frente para a outra. Sem janelas ou qualquer espaço para a entrada de ar, a não ser por um velho aparelho de ar condicionado ruidoso no alto de uma das paredes. No teto, apenas uma das três lâmpadas fluorescentes estava acesa. Ela acomodou a bolsa em cima de suas pernas e soltou o ar dos pulmões com força. Em breve estaria diante da sequestradora de sua filha, já que Ricardo Rosendo havia autorizado o encontro na mesma tarde em que Aldenora fora presa. Era um direito seu aquela conversa.
O desejo de descobrir alguma informação que revelasse onde Clara estaria superava a raiva sentida por aquela mulher. Por isso, teria o cuidado para não agredi-la e garantir sua colaboração, segundo orientações de Tancredo.
Júlia gelou ao ouvir a porta se abrindo. Aldenora apareceu, algemada e acompanhada por um policial. As duas se olharam como se ali trocassem informações imprescindíveis que serviriam de base à sua conversa.  Em seguida, o policial tirou as algemas da mulher e as deixou sozinhas, fechando a porta.
Aldenora manteve-se estática por alguns segundos. Não fosse a expressão abatida, conservava uma postura arrogante, de nariz empinado e sobrancelha arqueada, como se nada devesse a Júlia ou mesmo à justiça. O que nutria sua mágoa daquela criminosa.
— Olá, Aldenora — Júlia quebrou o silêncio estabelecido. — Acredito que se lembra de mim.
— Menos do que a senhora imagina — respondeu ela com um tom irritadiço.
Júlia apontou para a sua frente, indicando a cadeira a Aldenora. Esta, por sua vez, olhou o ambiente à sua volta e deu um suspiro; depois se aproximou e sentou diante de Júlia.  Em nenhum instante, desviou o olhar provocador.
— Onde está a minha filha, Aldenora? — Júlia disparou, sem rodeios.
— Não sei do que a senhora está falando.
Júlia se inclinou sobre a mesa, mirando fundo nos olhos da outra.
— A polícia confirmou que você saiu de Fortaleza há seis anos levando a minha filha com você.
— Isso não é verdade.
— Existem provas, Aldenora. Viajou para São Paulo dois dias após o desaparecimento de Clara, carregando ela consigo. Estava acompanhada de um homem. A empresa aérea confirmou isso. Nós temos uma foto em que aparece com minha filha nos braços.
— Realmente não sei do que a senhora está falando.
Júlia se ajeitou na cadeira, perdendo a paciência, embora Tancredo tivesse lhe advertido que Aldenora faria exatamente aquilo. 
— O que pretende, Aldenora? Foi presa, acusada de sequestro. Como pensa em provar sua inocência?
— Desculpe-me, mas isso não lhe diz respeito. Meu advogado está providenciando para que eu saia daqui em breve.
Cretina!
Aldenora era pior do que ela pensava. Certamente tinha um plano e aquilo lhe tirava o chão. Se aquela mulher conseguisse driblar a polícia e sair da cadeia, aí sim nunca mais veria Clara.
— Quem está por trás de você? — Júlia fez outra investida.
— Do que a senhora está falando? — Aldenora respondeu, deixando escapar um sorriso que despertou em Júlia o desejo de partir para cima dela.
— Entendeu o que perguntei. Quem foi a pessoa que te pagou para roubar a minha filha?
— Não roubei a sua filha.
— Foi o senador Donato Pessoa? Foi ele que planejou tudo?
— A senhora está louca. Não conheço esse senador. — ela rebateu, com leve sorriso.
Júlia se levantou e deu as costas. Precisava se recompor, acalmar-se um pouco. O tom apático e tranqüilo na voz daquela ordinária alimentava sua raiva.
— Por que vocês não devolveram minha filha depois que o Pedro descobriu que eu não era Mirela?
— A senhora realmente precisa de ajuda. Talvez um psiquiatra pudesse resolver o problema da senhora mais do que eu.
— FALA A VERDADE, DESGRAÇADA! — Júlia gritou, num único giro, batendo com força na mesa. Aldenora, entretanto, não demonstrou nenhum abalo com aquela reação. — É melhor para você colaborar, dizer o que sabe! Isso pode até lhe ajudar no seu processo!
— Obrigada pelo conselho, mas meu advogado está cuidando disso. 
Júlia se lembrou da fotografia. Foi direto na bolsa e a pegou, estendendo-a na direção de Aldenora.
— Vai me dizer que não é você aqui?
A mulher segurou o papel e o analisou.
— Bonita a moça — referiu-se à pessoa na frente da imagem.
— Está ao fundo com Clara nos braços.  Esse homem de costas é Emanuel, seu comparsa?
— Parece que a senhora vive num filme policial.
— Até quando vai segurar essa mentira?
— Realmente não sei do que a senhora está falando.
— PARA DE MENTIR! ONDE VOCÊS ESCONDERAM MINHA FILHA? — gritou mais forte, batendo desta vez com as duas mãos na mesa. E poderia mais. Seria capaz de voar em cima daquela criminosa e destruir o sorriso sarcástico e dissimulado que ela insistia em manter. Expor toda a sua raiva contida e indignação contra uma bandida, a responsável por ela não ter acompanhado o crescimento da própria filha. E Aldenora bem que merecia uma surra para perder pelo menos a arrogância e segurança de enfrentá-la com tanta tranquilidade.
Júlia olhou para aquela mulher à sua frente como uma fera olha para a presa. Ela merecia pagar pelo que  lhe havia feito. Contudo, se o fizesse, perderia a chance de convencê-la a revelar qualquer informação que fosse. E se Aldenora tivesse realmente um plano para sair dali? Nunca iria descobrir o paradeiro de Clara. Isso não podia acontecer! Precisava manter o controle e dominar sua raiva. Uma guerreira estabelecendo as estratégias para sair vitoriosa daquela batalha.
Júlia deixou a rigidez no corpo de lado, mostrando quase uma expressão de clemência.
— Pelo amor de Deus, me diga o que sabe a respeito da minha filha!
Aldenora balançou a cabeça negativamente e repetiu com toda calma:
— Não sei de nada. — E gritou pelo guarda.
— Por favor, não faça isso! — insistiu Júlia.
— Sinto muito, não tenho mais nada a dizer.
— SUA CRETINA! — gritou, pulando finalmente em cima dela.
Aldenora tentou se defender, pedindo ajuda ao guarda. Júlia a sacudiu, exigindo que lhe dissesse algo. Na verdade, queria machucar aquela ordinária.
O policial entrou na sala e a tirou de cima da mulher, enquanto outro agente carregava Aldenora. Para sua surpresa, Aldenora deferiu seu golpe certeiro e fatal:
— Cuidado, Júlia Serrado. Está mexendo num vespeiro! Elas podem te picar...
Júlia ficou atônita, dominada pelo policial, enquanto via a mulher deixar a sala. Não disse mais nenhuma palavra, somente a certeza de que assanharia aquele vespeiro.






Capítulo 39

Donato vestiu o blazer grafite por sobre a camisa branca e deu uma olhada no espelho do closet para se certificar de que a combinação estava adequada. Seu estilo clássico praticamente não permitia despojar-se num jeans como na noite de réveillon, embora não dispensasse os belos sapatos italianos. A vaidade confirmava a aparência impecável de um homem que adorava vestir-se bem e despertar a atenção das pessoas sobre aquilo. Para ele, nunca fora o bastante ser visto como um homem bonito, mas também ter a elegância como uma de suas marcas indeléveis.
Ele entrou no banheiro e viu Marina terminando a maquiagem diante do espelho. As ondas douradas de seus cabelos desmanchavam-se por sobre os ombros deixados à mostra pela forma do belo vestido branco que valorizava sem muito esforço as curvas de seu corpo. Orgulhou-se de ser casado com uma mulher tão bela e jovem. Aproximou-se e a acolheu por trás num abraço. Marina, por um instante, pareceu espantada com a atitude nem um pouco convencional do marido, lançando um olhar interrogativo através do espelho.
— Está belíssima! — elogiou Donato, deliciando-se com seu perfume.
— Obrigada — ela agradeceu, arregalando os olhos verdes.
— Sem dúvida, será a mulher mais bonita desta festa.
— Pelo menos isso. — Sorriu. — Sabe que não estou feliz de passar o réveillon com esse grupo da política. Parece que todas as conversas são puro interesse.
— Marina, ficaremos lá até a virada do ano, depois voltamos.
— E por que não saímos de lá para ver a queima de fogos? Sempre tive vontade de assistir de perto.
— Já conversamos sobre isso. Veja a nossa posição, minha querida. Aquela é uma festa popular, não é para nós.
Marina pareceu desanimar em seus braços por mais aquela negativa. Todavia, a insistência da esposa em não reconhecer a posição social que ocupavam — ele como senador da república e executivo importante de uma das maiores emissoras de televisão do país –, cansava-o definitivamente. Precisou vencê-la em todos os diálogos que cercavam a mesma história, desde que haviam se separado, há cinco anos, quando Marina deixou para trás a postura resignada e exigiu uma mudança na relação, que segundo ela, a sufocava em silêncio. Para Donato, aquilo começava a passar dos limites. Não sabia até quando teria paciência para ouvir a mesma ladainha.
Para sorte de Donato, o toque do celular interrompeu o momento que poderia ser mais uma discussão de relação. Ele tirou o aparelho do bolso, pediu licença e voltou para o closet.
— Alô — atendeu num tom mais baixo que o habitual, para que a mulher não ouvisse. Certificou-se de que ela estava aonde a deixara e foi para o quarto. — Fiquei sabendo logo após o acontecido. Eles a prenderam no final da manhã. — uma pausa. — Sim, sei que precisamos fazer alguma coisa. — precisou parar para ouvir o que a outra pessoa dizia, ficando um pouco mais afobado. — Não faço a menor ideia de como aconteceu. Era para Aldenora estar longe de Fortaleza. A informação que eu tinha era que ela não apareceria mais. — mais uma pausa. — Incompetência? Deixei a Luísa cuidando disso e pensei que estava tudo sob controle. A questão não se resume à Aldenora, mas também a esse jornalistazinho, que por mim, estaria no olho da rua. E também à própria Júlia Serrado. Eles sim, precisam de um freio, não acha? Se nós não colocarmos um limite neles em breve todos nós estaremos perdidos. — mais um tempo. Só de falar naquilo despertava a raiva dentro de si. E aproveitou para averiguar de que Marina não escutava nada, voltando a atenção à ligação. — Como não? A impressão que me dá é que está se divertindo com isso e não consegue enxergar o perigo que estamos correndo. Se eu cair, cai todo mundo junto e aí os inocentes dessa história vão passar a ser vilões. — pausou novamente. — Não, não é nenhuma ameaça, apenas uma constatação. Nós estamos por dentro de todos os passos deles e não podemos quebrar suas pernas. Isso não é justo. — afirmou com um tom raivoso. A expressão no rosto definia sua impaciência e indignação por não ter como resolver as coisas do seu jeito. — Mas não se preocupe, Aldenora não falará nada. Isso pode ter cer-te-za! — pronunciou sílaba por sílaba, expressando sua fúria. E quando percebeu que a outra pessoa encerrou a ligação sem que ele tivesse acabado, ele gritou: — MERDA! — e jogou o telefone em cima da cama, voltando-se para a parede e socando-a com toda força. Sem se importar com a dor na mão, soltou um ruivo de uma fera enjaulada. Não era justo estar contido, sem poder agir do seu modo.
Marina apareceu imediatamente na porta do closet, com o olhar espantado, como se estivesse assustada com o marido.
— Donato? O que houve?
— Problemas! — respondeu quase gritando. — Problemas!
A mulher se emudeceu. Certamente ficara com medo.
Donato estava transtornado. Procurara manter a calma durante o telefonema, pois era preciso. Mas agora não tinha porquê. Fora cobrado, taxado de incompetente e aquilo lhe perturbava profundamente. Ninguém podia tratá-lo daquela forma, ninguém! Era um senador, não um subalterno qualquer. Mas estava perto de conseguir seu objetivo e se livrar daquela organização. Apenas isso o fazia ponderar e seguir daquela forma.
Se tudo fosse ao seu modo, não só Aldenora teria sido eliminada definitivamente, mas a própria Júlia. Chegava de confusões armadas por aquela dançarinazinha vagabunda! Quem ela pensava que era, afinal? E tudo teria sido articulado antes da polícia estar envolvida, assim não levantariam suspeitas. Mas agora, seria mais complicado tomar qualquer atitude drástica e tirá-la de seu caminho. Júlia Serrado estava cada vez mais com as costas largas. Ele sabia, contudo, o que deveria ser feito. Foi até a cama, distanciando-se de Marina, pegou novamente o celular, procurou um número na agenda e abriu espaço para um torpedo.
MATE-A!
Em seguida enviou a mensagem, balançando a cabeça positivamente, enquanto fazia um bico com os lábios.
— 2012 será diferente para todos nós... Você me paga, Júlia Serrado! — Balbuciou, com o sorriso sarcástico que lhe era peculiar, desconsiderando a presença interrogativa e assustada da esposa. Por fim, ajeitou o blazer e se dirigiu a ela.
— O que disse? — Marina tentou compreender.
— Vamos, querida?






Capítulo 40

Uma das secretárias da presidência da RTN autorizou a entrada de Pedro e o acompanhou até a porta. Ele vinha tentando se ocupar de outros assuntos importantes e esquecer a saudade de Júlia. Leonardo estava de pé, preparando duas doses de uísque, no barzinho ao fundo do amplo ambiente decorado por móveis e peças que misturavam os estilos clássico e moderno, numa combinação perfeita, que denunciava o bom gosto de um dos maiores empresários do país. Pedro estava com muitas expectativas, os dois deveriam ter tido aquela conversa antes, desde que ele estivera com o dossiê em mãos, comprovando inúmeras negociações ilegais de Donato dentro emissora. Mesmo sem as provas, Pedro conhecia parte do conteúdo do dossiê organizado por seu pai, e isso lhe bastava para deixar Leonardo a par de tudo.
Leonardo o recebeu de modo acolhedor, reclamando da exacerbação de trabalho, que praticamente os havia impedido de estarem juntos naquele início de ano, apesar de estarem na mesma empresa, por conta de viagens e outros compromissos profissionais. Existia uma relação de muito afeto entre eles. Alberto Lucena fora o melhor amigo de Leonardo e o ajudara a construir o maior império de comunicação do Ceará, estando na vice-presidência da RTN por dez anos, até sua morte. Pedro crescera testemunhando a amizade e cumplicidade entre os dois e acabara por herdar do pai, não apenas o cargo, como o sentimento de família, como sempre tratou de ressaltar o próprio Leonardo.
— O que nós temos para conversar não pode mais esperar — declarou Pedro, recebendo o copo de bebida das mãos do amigo.
Antes de responder, Leonardo propôs um brinde. E pronunciou-se:
— Vejo que é muito grave.
— Mais do que imagina — Pedro arrematou.
— Do que se trata, afinal? Conseguiu me deixar curioso.
— A RTN está sendo roubada há muitos anos e Donato está por trás de tudo — Pedro anunciou, sem rodeios. Leonardo quase se engasgou com um gole do uísque, ao ouvir aquilo.
— Trata-se de uma acusação bastante grave — considerou o presidente.
— Por isso mesmo que só procurei você agora.
Leonardo o levou para o ambiente de estar da presidência e pediu que ele se sentasse e contasse o que sabia. Pedro falou do dossiê, da morte do pai, do acesso que teve à pasta, do atentado, dos confrontos com Donato e de seu provável envolvimento no sequestro de Clara, com o único objetivo de conseguir os documentos que imaginava estar com Pedro. Procurou descrever a teia criminosa do diretor comercial da RTN detalhadamente, pelo menos até onde sabia ou supunha. Leonardo permaneceu calado, atento. Pousou o copo vazio em sua mesa e foi até a vidraça que se estendia por toda a parede de fundo da sala que dava para a Av. Antônio Sales, como se estivesse tentando digerir a enxurrada de informações a que fora submetido em poucos minutos.
— Sei que é difícil de acreditar, mas nós estamos diante de um esquema perigoso e milionário que já dura anos, Leonardo — Pedro completou, levantando e se aproximando do amigo. Sabia que aquilo o havia chocado, como ele mesmo ficara ao descobrir o dossiê. Leonardo parecia perdido na imagem minúscula da avenida a que tinham acesso do vigésimo segundo andar do prédio da RTN, na qual carros e pessoas nada mais eram que miniaturas em movimentos. Pedro colocou a mão em seu ombro para lhe dar continente. Preocupou-se por um instante e se arrependeu de ter lhe contado daquela forma, sem considerar sua idade avançada, sua saúde. Afinal, Donato fora casado com sua filha Maria Eugênia por oito anos, trabalhara com ele desde quando Leonardo tinha a agência de publicidade, antes mesmo da fundação da RTN, tornando-se o diretor comercial da emissora. Por mais que não fossem um exemplo de amizade, mantinham hoje uma relação profissional e de confiança de mais de vinte anos. Aquelas revelações certamente o tinham deixado extremamente abalado. — Leonardo, você está bem?
— O que está me contando parece surreal, Pedro.
— Faço ideia do quanto está sendo difícil para você, como foi para mim. Até peço-lhe desculpas por ter falado dessa forma, sem nenhum cuidado, mas era tempo de saber. 
Leonardo segurou a mão de Pedro em seu ombro, com um ar de agradecimento e por um instante fechou os olhos, como estivesse passando mal.
— Leonardo? Você está bem?
Ele arregalou os olhos, expulsou o ar dos pulmões com força e respondeu:
— Estou sim, não se preocupe.
— Tem certeza de que está bem?
— Existe alguma prova com você? — quis saber, sem dar atenção à pergunta de Pedro.
— Infelizmente não. Tudo me foi roubado do dia do atentado.
— Então nós não podemos tomar nenhuma atitude. Trata-se de um dos mais importantes executivos da empresa.
— É por isso que estou aqui. — Pedro afastou-se por um instante, ponderou e disparou sua proposta. — Quero pedir uma auditoria na RTN. Para sabermos toda a verdade escondida por esse bandido aqui dentro. — O próprio Pedro se surpreendeu com seu tom agressivo e a forma como chamou Donato, seu grande amigo de juventude. Estranho não reconhecer mais nenhum afeto por alguém que fora tão importante em sua vida. Mas tudo mudara desde que soubera que ele poderia ter tido realmente participação na morte de seu pai.
— Desculpe-me, Pedro, mas não posso permitir que isso aconteça na minha empresa. Seria um escândalo!
Pedro não acreditou no que ouvira e chegou mais perto de Leonardo. Estava perplexo.
— O quê?
— Isso mesmo que ouviu. Não sei ainda o que fazer, que atitude tomar, mas uma auditoria seria péssima para a RTN nesse momento. Se isso chegar à imprensa, nossa imagem estaria acabada! O próprio Donato sendo acusado nesse momento pode abalar os negócios.
— Não acredito no que estou ouvindo!
— Pedro, existem muitos interesses por trás de uma empresa tão importante para o país. As coisas precisam ser feitas com calma. Pelo que disse há o envolvimento de políticos, pessoas importantes, empresas de publicidade e até inúmeros clientes, anunciantes fazendo parte do esquema. Se isso vier à tona, nós corremos o risco de acabar em segundos com o império que levei anos para construir.
— É impressão minha ou compactua com isso, Leonardo?! Vem sendo roubado há anos! Dá para entender?
— Pedro, nós precisamos ter cautela. Não é apenas o nome do Donato que está em jogo, mas a repercussão que isto poderá causar. Não, uma auditoria nesse momento na minha empresa, não! Nós vamos encontrar outro caminho.
Pedro estava completamente chocado, sem acreditar no que ouvira. Não compactuava com aquele tipo de procedimento. Considerava uma questão de ética e verdade. A atitude de Leonardo denotava uma estratégia política de manutenção de interesses, fingir que não estava sendo roubado para proteger a própria imagem. Sim, seria estabelecer uma cumplicidade com a mentira. E aquilo ia contra a sua crença, afinal, ele revelava não apenas o esquema de enriquecimento ilícito de Donato, mas até mesmo sua participação no assassinato de seu pai.
Se de repente saísse dali e autorizasse a auditoria com o poder que tinha como vice-presidente da empresa, não poderia voltar mais atrás. O próprio Leonardo não teria controle e poder para tanto, diante dos diretores e até mesmo da justiça. Seria obrigado a acatar e aguardar o resultado, o que levaria alguns meses, certamente. Mas passaria por cima da autoridade do dono da emissora e pela primeira vez tomaria uma atitude totalmente arbitrária, rasurando a confiança depositada em seu trabalho há tantos anos. Seria na verdade uma forma de traição à Leonardo. Também não acreditava ser o melhor caminho. Não, precisava agir de modo legal e ético, como sempre o fizera e encontrar uma forma de convencer o amigo a mudar de ideia. Afinal, aquele era o velho Leonardo Gondim que ele conhecia, inteligente, paciente, racional e de um cuidado excessivo com a própria imagem, capaz de tudo para evitar escândalos. Não podia, entretanto, ser incoerente com os princípios herdados de seu pai, que conduzira suas ações durante toda a vida. Precisava ser verdadeiro e firme com suas crenças, sem se corromper e garantindo que a justiça fosse cumprida.
— Não posso fazer parte de uma empresa que se omite diante de um crime. Mas compreendo que nós precisamos encontrar a melhor forma de lidar com isso. Vamos pensar numa estratégia, sim. Mas de uma coisa pode ter certeza, Leonardo: Vou destruir esse esquema, concorde ou não!
Pedro sabia que Leonardo não tinha como freá-lo. O poder de um executivo do seu porte dentro de uma empresa era quase ilimitado, tanto quando o do presidente. Ele precisava dele ali dentro, assim como se obrigava a engolir Donato. Fazia parte do jogo empresarial. E por mais que não concordasse com os caminhos estratégicos do poder, acabava naquele momento se beneficiando dos mesmos.
Naquele momento, Pedro liderava uma guerra que estava começando. E saiu da sala, sabendo que havia deixado o presidente sem palavras.






Capítulo 41

Júlia parou diante da porta da sala de visitas na polícia federal tentando conter seu nervosismo. O novo encontro com Aldenora seria diferente. Ela mesma o havia proposto, com certeza tentando ganhar vantagens em seu processo. Mas para Júlia, não importava os motivos dela, o fato era que Aldenora finalmente contaria o que sabia. E aquilo a enchia de felicidade e alívio.
Júlia entrou logo que o policial abriu a porta. Encontrava-se no mesmo cenário em que falou com Aldenora há algumas semanas. A sequestradora de sua filha a aguardava, sentada à mesa, no centro do ambiente. Tinha as duas mãos cruzadas, apoiando o queixo. O policial deixou-as sozinha. O som estridente promovido pelo funcionamento do velho aparelho de ar condicionado seria sua única testemunha.
Ela caminhou até o outro lado da mesa e se pôs diante de Aldenora. As duas se olharam por alguns instantes. Júlia sentiu raiva daquela mulher de novo. Imaginou que ela estivera com sua filha nos braços e o quanto havia rido às suas custas. Cabia somente à Aldenora a sua felicidade naquele instante. Tudo se mantinha nas mãos dela, um poder que lhe fora outorgado de modo a não lhe deixar alternativas.
— Queria falar comigo? — Júlia iniciou a conversa, sentindo a boca seca.
— Não era você que queria saber sobre sua filha? — colocou a outra, com a mesma arrogância que lhe era peculiar.
Júlia estava decidida a não se deixar levar por suas provocações. Queria sair dali com todas as informações necessárias para encontrar Clara.
— Onde está minha filha, Aldenora? — Falou com toda a obstinação de uma mãe lutando por sua cria.
Aldenora passou a língua nos lábios, acomodou-se melhor na cadeira e deu inicio à sua história:
— Criei a sua filha até um ano atrás.
— O quê?
— Isso mesmo. Fui eu a mãe que Clara conheceu.
Júlia a olhou com toda o seu ódio, constando diante de si a figura de uma mulher vulgar, baixa e perigosa. Uma criminosa! Como poderia ter sido uma mãe para sua filha? Que exemplos de vida teria lhe passado? Que ensinamentos Aldenora poderia lhe oferecer?
— Como... foi... isso? — o ódio quase não lhe deixara concluir a pergunta.
O sentimento de Júlia, tão evidente em sua expressão naquele momento, parecia não tocá-la de nenhum modo. Aldenora prosseguiu sua fala totalmente indiferente a ela, contando-lhe detalhes de sua vida nos últimos anos ao lado de Clara. À Júlia, cabia ficar atenta, ouvir e conter o enjôo causado por aqueles absurdos. Imaginando cada cena, cada situação: Aldenora morando junto com o tal Emanuel, por quem se dissera apaixonada na época e criando Clara por achar que se tratava da filha do amante, até descobrir sua farsa há mais ou menos um ano e os deixar.
Mentira!
— Aldenora, você me conhecia naquela época por conta de sua mãe, que era minha vizinha. Era amiga da minha cunhada. Certamente viu Clara diversas vezes, quando a deixava com Raquel para trabalhar. Como poderia achar que se tratava da filha desse Emanuel? — Júlia não tinha como não intervir naquela mentirada.
— Se eu a vi alguma vez, não me lembro — respondeu Aldenora, sem a menor cerimônia. — Estava completamente apaixonada por aquele homem, capaz de tudo, de qualquer loucura, sabe? Ele me disse que era filha dele e eu acreditei.
— Nunca imaginou que fosse mentira?
— Eu sabia que algo estava errado, mas não me importava. Coisa de mulher apaixonada, sabe?
Cínica! Pensa que sou burra.
Ela prosseguiu, afirmando ter descoberto há um ano que ele a traía, foi quando fuçando a história, ficou sabendo de toda a verdade, através de um telefonema dele para alguém aqui em Fortaleza.
— Quem é esse Emanuel, afinal? — Júlia quis saber.
— Sei pouco da vida dele. É um homem cheio de segredos. Dizia-se advogado quando o conheci. Era cheio da grana e me convidou para morar com ele em São Paulo, prometendo que mudaria a minha vida. Meu único sacrifício seria cuidar daquela menina.
Sacrifício?
Júlia manteve-se firme ouvindo tudo, não se deixaria atrapalhar pela emoção. Aproveitou o momento para saber do cotidiano de sua filha, como a chamavam, do que ela gostava, de sua aparência física, do que ela sabia... e disparou no choro ao ouvi-la contar que era uma menina linda, doce e afetiva, super inteligente e estava no segundo ano do ensino fundamental, cheia de perguntas e inquietações. Gostava de se vestir como uma mocinha e era muito apegada ao pai.
— Pai? — Júlia a interrompeu.
— Emanuel — Aldenora logo explicou. — Pelo que sei hoje, ele foi pago para cuidar da menina como se fosse uma filha.
Meu Deus, o que isso significa afinal?
— Ele é pago até hoje?
— “Nós” fomos pagos por todos esses anos — corrigiu ela, como uma vantagem.
— E quem pagava a vocês? Quem roubou a minha filha?
— Essa é a única resposta que não tenho. O Emanuel era o responsável por tudo. É ele que sabe quem está por traz dessa história.
Certamente estava mentindo, tentando diminuir sua culpa.
— Ela a chamava de mãe? — Júlia resistiu em fazer aquela pergunta, mas precisava saber.
Aldenora demorou um pouco em responder. Aquilo encheu Júlia de expectativas.
— Não. Emanuel nunca permitiu. Disse que eram ordens. Ela me chamava pelo nome somente.
— E vocês, como a chamavam?
— Clarinha.
Júlia não conseguiu se conter e entregou-se ao choro. Saber que o nome de sua filha fora preservada era o mesmo que senti-la mais próximo, como se estivesse sendo preparada para um reencontro com suas raízes. Todavia, isso deixou-a um pouco menos infeliz.
Aldenora contou-lhe o que sabia sobre a menina. Júlia a ouviu atentamente, para conhecer mais sua própria filha. Pela primeira vez em seis anos de distanciamento, sentiu-a perto e, sem raiva, enxergou aquela mulher naquele instante como o único elo entre mãe e filha. Desejou ficar ali o dia inteiro, sabendo mais, fazendo milhares de perguntas, rindo e chorando com as histórias de Aldenora sobre sua filha.
Mas e se fosse mentira? E se Aldenora estivesse inventando aquelas histórias para despistá-los e afastá-los da verdade?
De uma coisa eles sabiam: tratava-se de uma mulher ardilosa e inteligente. Mas com tantos detalhes, não era possível que fosse uma criação da mente dela. Talvez quando Aldenora afirmava não ter mais nenhum contato com Emanuel ou não saber de seu paradeiro atualmente, estivesse sim, mentindo. Mas quanto aos detalhes do cotidiano de Clara, isso não. Parecia verdade. E Aldenora até passava empolgação ao falar sobre aquilo. Em alguns momentos chegou a fazer com que Júlia acreditasse que havia se afeiçoado à menina. E Júlia continuou por horas naquela sala, enchendo Aldenora de perguntas e ouvindo atenta a todas as respostas, até serem interrompidas pelo mesmo policial que a trouxe ali.
Aldenora, algemada antes de sair, disse-lhe mais uma coisa:
— As pessoas que estão por trás dessa história são muito perigosas. Tem muito dinheiro envolvido. É muito poder. Clara corre risco de vida. 
Aldenora não pareceu mentir com aquela declaração. E saiu da sala, conduzida pelo policial.
Risco de vida!
Júlia temeu por Clara. Aldenora sabia mais do que falou. Ela simplesmente baixou a cabeça e rezou. Sentiu aquilo como um aviso. Uma ameaça? Tancredo e Ricardo precisavam saber!






Capítulo 42

O relógio de Pedro marcava 05h37 quando chegou ao calçadão da Beira Mar, em frente ao aterro do Ideal, onde iria encontrar-se com Tancredo para caminhar. Adorava quando o dia amanhecia nublado como estava, lembrava-o de sua infância, do convívio com seu pai. Procurou apressar o passo. Pensava em falar com o amigo pessoalmente acerca de sua conversa com Leonardo, pois talvez ele pudesse ajudá-lo a esclarecer muitas interrogações deixadas por aquele encontro com o presidente da RTN.
Pedro andou alguns metros até avistá-lo próximo às árvores na esquina da Av. Beira Mar, deslocando-se de um lado para o outro. Ao se aproximar, sentiu-o inquieto. Tancredo imprimia uma expressão de tensão e olhava à sua volta, como se procurasse por algo.
— Aconteceu alguma coisa? — Pedro procurou saber, ao chegar perto do amigo.
— Acho que tentaram me matar! — respondeu com os olhos arregalados.
— Tem certeza?! Como?!
— Tem alguns minutos — Tancredo não conseguia focar o olhar de tão nervoso. — Quando fui atravessar a rua, um motoqueiro surgiu de repente e por pouco não me atropelou.
— Pode ter sido um descuido dele.
— Não, Pedro! A viseira do capacete estava aberta. Apesar de tudo ter acontecido rápido, deu para eu ver o rosto dele. Ele avançou em cima de mim. Sim, ele queria me matar!
— Não deu para ver a placa da moto?
— Nada. Foi rápido demais. Eu me joguei na calçada para não ser atropelado.
— Teve algum machucado?
— De jeito nenhum.
— Menos mal. Teve sorte.
— Sorte? Nós estamos muito perto, meu amigo. Isso foi um aviso de que estamos incomodando. — Ele fez um sinal para começarem a andar.
— Não sei, acho que seria loucura alguém tentar te matar — Pedro declarou, enquanto caminhava ao lado de Tancredo.  — Chamaria muito a atenção. Acredito que Donato seja mais estratégico.
— Desespero, meu amigo. Ele pode estar desesperado. Mais cedo ou mais tarde, Aldenora vai revelar o paradeiro do tal Emanuel. E quando isso acontecer, o Donato estará perdido. — Tancredo passou a mão na testa e tirou o suor que escorria dela. — O que tem de tão urgente para me dizer?
Em alguns minutos, Pedro relatou o encontro com Leonardo e sua reação ao propor a auditoria na emissora.
— Fiquei muito intrigado com isso, Tancredo.
— Sabemos que Leonardo Gondim sempre foi um grande estrategista. Não foi à toa que ele transformou a RTN numa das maiores redes de televisões do país, mesmo fora do eixo Rio-São Paulo.
— Sim, mas apesar de ele ter se impactado com a descoberta do Donato estar roubando a empresa dele, não cogitou nenhuma forma de retaliação. É estranho.
— De certa forma, ele tem um pouco de razão sobre a auditoria. Seria um escândalo! E isso envolveria diretamente anunciantes da empresa. Talvez não fosse o melhor caminho.
— A ideia da auditoria era uma provocação. No fundo, esperava que ele propusesse uma forma de desmascarar Donato.
— Pode fazer isso.
— Como?
— Do mesmo modo que seu pai.
De cara, Pedro compreendeu o que Tancredo sugeria — uma investigação secreta. Caso persistisse no mesmo procedimento, exigindo uma atitude de Leonardo em relação a Donato, certamente perderia mais tempo e daria espaço para que o outro se resguardasse em seus álibis mentirosos, como de costume. No entanto, uma investigação silenciosa àquela altura do campeonato adiaria a sede de justiça. Seriam procedimentos minuciosos e articulações certeiras junto a funcionários chaves e diversos setores da empresa. Necessitaria da mesma cautela e perspicácia, que na certa, seu pai tivera.
Ele sorriu, pondo o braço no ombro do amigo. Vibrava por dentro. Que belo conselho Tancredo lhe deu. Fazer exatamente como o velho Alberto Lucena no passado era uma forma de promover justiça que faltava a seu pai. E quando estivesse com tudo pronto, entregaria o novo dossiê à polícia.
— Só tem um detalhe — Tancredo advertiu. — Se estivermos certos, seu pai foi assassinado por causa desse dossiê. Ele sabia demais.
— Será diferente, Tancredo.
— Hoje fui avisado de que não estão para brincadeira.
— Nós também não!
Os dois seguiram no mesmo passo, até o toque do celular de Tancredo disparar. Ele atendeu. Em segundos, Pedro viu sua fisionomia se transformar. Parecia chocado.
— Santo Deus! — Tancredo desabafou ao telefone. — E como foi isso?
Pedro manteve-se atento. Percebeu que era sério e se conteve para não interrompê-lo. Aguardou até que o outro desligasse o telefone.
— O que houve?
— Aldenora está morta!


Capítulo 43

Júlia, acompanhada por Pedro e Tancredo, entrou na sala do delegado Ricardo Rosendo. Logo que souberam da morte de Aldenora, buscaram-na em casa. A fisionomia de Júlia alardeava a frustração e tristeza pelo ocorrido. Ficou sem chão ao receber a notícia. Aldenora era a única ligação existente entre Clara e ela. Deste modo, sua morte representava um retrocesso no caso, como se todos os esforços nos últimos dois meses tivessem sido em vão.
Ricardo os cumprimentou, indicando que se sentassem. Depois ofereceu um café, recusado por todos, e soltou o ar dos pulmões com força, acomodando-se em sua cadeira. Parecia exausto.
Uma atmosfera de tensão pairava pelo ambiente. Pedro foi o primeiro a perguntar:
— Como isso aconteceu, Ricardo?
— Aldenora foi encontrada morta em sua cela, enforcada por um lençol — respondeu o delegado, cruzando as mãos em cima da mesa.
Júlia permaneceu calada, com vontade de chorar.
— Que hipótese vocês levantaram? — Tancredo lançou-se para frente.
— Vocês acreditam que tenha sido suicídio, Ricardo? — Pedro indagou.
— Tudo leva a crer que sim. O caso está sendo estudado.
— Aldenora foi assassinada! — Júlia se manifestou. Não tinha como ouvir aquilo e ficar calada. — Ela sabia demais!
— Mas como alguém pode tê-la matado dentro da própria cela? Ninguém viu nada? — Pedro questionou.
— Nós iniciamos a investigação. O carcereiro foi interrogado, afirmou não ter visto nada.
— Pode ter sido ele! — Júlia disse, num impulso.
— Cuidado, Júlia. Essa acusação é grave — advertiu Rosendo.
— Ricardo, nós sabemos que considerar a possibilidade de um assassinato é bastante delicado por envolver a própria Polícia Federal, mas é uma hipótese que vocês não podem deixar de levantar — disse Tancredo.
— Acreditem, todas as hipóteses estão sendo consideradas. Em breve saberemos o que realmente aconteceu dentro daquela cela.
Júlia desabafou:
— Voltamos à estaca zero!
— Não podemos desanimar. Estamos no caminho certo — Ricardo afirmou com uma segurança que não se justificava diante do ocorrido.
— Mas Aldenora era o único trunfo que nós tínhamos para desvendar este caso. Como procederemos daqui para frente? — Pedro procurou saber.
— O que tem em mente, Ricardo? — complementou Tancredo.
Júlia estranhou, mas o delegado não parecia experimentar o mesmo sentimento de frustração tão forte para ela naquele momento.
— Nunca acreditei que Aldenora pudesse realmente nos dizer a verdade — respondeu ele, projetando o corpo para cima da mesa. — Ela era o caminho para chegarmos em nosso alvo.
— Do que está falando? — Júlia perguntou.
— De quem está de fato com sua filha. Emanuel.
Tancredo sorriu, como se tivesse entendido o raciocínio do amigo.
— Mas se Aldenora está morta, como chegar até ele? — Pedro questionou.
— Antes de morrer, ela nos deu muitas referências sobre Emanuel. Por mais que ele tente se esconder, nós estamos na mira dele. Mais cedo ou mais tarde nós o acharemos, como fizemos com Aldenora.
— E se ele estiver morto?
— Nós descobriremos — respondeu o delegado tranquilamente.
Tancredo procurou saber de mais detalhes sobre a morte de Aldenora, enquanto Júlia se recordou de sua última conversa com ela. “As pessoas que estão por trás dessa história são muito perigosas. Tem muito dinheiro envolvido. É muito poder. Clara corre risco de vida.”
Aquela colocação de Aldenora reverberou em sua mente. Na verdade, diante do que havia acontecido, não somente Clara corria risco de vida, como Júlia deveria torcer para Emanuel estar bem. Ele era a última alternativa para encontrar sua filha.
Júlia sentiu-se mal por um instante, uma leve vertigem. Estava muita tensa e não havia comido nada antes de sair de casa. Pediu licença discretamente e saiu, deixando os três conversando. Havia um certo movimento na ante-sala de Ricardo Rosendo. A recepcionista gorda atendia um casal, enquanto alternava com o telefone. Pessoas aguardavam sentadas na poltrona ao lado, e policiais que entravam e saiam do ambiente. Ela se aproximou de um bebedouro para tomar um copo d’água.
— Júlia, você está bem? — Pedro estava ao seu lado.
Por instante ela queria abraçá-lo, sentir-se acolhida. A notícia da morte de Aldenora a deixara muito fragilizada, temia que tudo estivesse perdido. A presença de Pedro naquele instante lhe trazia um pouco mais de segurança. O fato de ele ter ido com Tancredo pegá-la demonstrava seu cuidado para com ela. Talvez uma oportunidade pra se verem novamente. Ou não, Pedro poderia estar junto por se sentir parte naquele caso. Afinal, tudo indicava que a morte de seu pai tinha uma ligação íntima com o sequestro de Clara. De repente, uma aproximação mais íntima, não seria uma boa ideia. E se ele se sentisse invadido?
Era preferível deixar as coisas como estavam.
— Estou bem, sim.
— Não se preocupe, Júlia. Logo, logo a polícia achará esse Emanuel também. Procure ficar tranquila.
Pedro colocou a mão em seu ombro e sorriu. Em seguida voltou para a sala de Ricardo. E Júlia deixou escapar uma lágrima.

Naquela mesma tarde, Júlia e Tancredo saíram do elevador e foram em direção ao apartamento “802”, onde morava dona Terezinha, mãe de Aldenora. Por mais que a mulher tivesse sido ouvida em depoimento oficial, segundo o delegado Ricardo Rosendo, eles acreditavam que a presença de Júlia poderia fazer com que a mulher revelasse algo mais do que dissera à polícia. Aquela possibilidade trouxera um pouco mais de empolgação, depois do choque sobre a morte de Aldenora. Júlia sentia-se apreensiva e com esperança de que sua antiga vizinha e faxineira a ajudasse de algum modo.
Tancredo tocou a campainha. Eles aguardaram alguns instantes até que a porta foi aberta. Viram o rosto de uma moça franzina, abatida, por trás da corrente pega-ladrão.
— Quem são vocês? — A jovem procurou saber.
— Nós precisamos falar com dona Terezinha — respondeu Tancredo.
— Sou Júlia Serrado, fui vizinha de dona Terezinha — disse, por trás de Tancredo. — Nós soubemos o que aconteceu com a filha dela e viemos lhe fazer uma visita. 
A moça olhou no rosto do jornalista e falou:
— Conheço o senhor.
— Sim?
— O senhor esteve na casa de praia no dia em que Aldenora foi presa — concluiu ela.
Júlia se deu conta de que aquela descoberta poderia atrapalhar tudo. Tomou a frente de Tancredo.
— Moça, por favor, nós precisamos falar com dona Terezinha! É urgente!
— Ela não está!
Júlia colocou a mão na porta antes que ela fechasse. Insistiu:
— Por favor, chame dona Terezinha! Ela me conhece!
— Vocês não tem coração? A filha dela morreu hoje! — Justificou, trancando a porta de vez.
Júlia suspirou e se virou para Tancredo com olhar de lamentação.
— Calma, Júlia. Está muito recente. Pode ser que depois consiga falar com ela.
— Talvez não tenha sido realmente uma boa ideia virmos hoje. Mas vou conseguir falar com ela. Ah, se vou!
Os dois deram meia volta e se puseram de frente ao elevador. Logo que as portas se abriram, Júlia chocou-se com a imagem que vira.
— Raquel?! — Sua cunhada arregalou os olhos e pasmou. — O que faz aqui?!
Tancredo impediu que a porta se fechasse e sugeriu à Júlia que entrassem. Eles tomaram o elevador, sem que Raquel desse uma só palavra. Um clima de tensão instalou-se no pequeno ambiente. Júlia mirou a cunhada através do espelho, que permanecia cabisbaixa e em silêncio.
Ao chegarem ao hall de entrada do prédio, Tancredo deixou-as a sós, explicando que iria pegar o carro no estacionamento. Com certeza ele entendia que aquela conversa entre elas não poderia esperar. Júlia pegou a cunhada pelo braço e a levou para um canto, onde poderiam ter mais privacidade.
— O que veio fazer aqui, Raquel?
— Jú-lia... — gaguejou.
— Está sabendo que Aldenora morreu?
— Sim.
— E como ficou sabendo?
— Foi... Dona Terezinha me ligou.
— Dona Terezinha?! E você tem contato com ela desde quando?
— Sabe que Aldenora e eu sempre fomos amigas.
— Você me disse que havia perdido completamente o contato com ela.
— É, mas a dona Terezinha me ligava algumas vezes, dando noticias.
Mentirosa!
Júlia tomou fôlego para continuar. Sentia raiva de Raquel como nunca! Jamais imaginou que um dia pudesse alimentar aquele tipo de sentimento por ela.
— Raquel, olha para mim — exigiu. Raquel ergueu a cabeça. — Nunca perdeu o contato com esta mulher, não é mesmo?
Houve um novo momento de silêncio, até que Raquel falou:
— Tinha anos que não falava com ela. Hoje cedo dona Terezinha me ligou, dizendo que precisava que eu...
— MENTIRA! — Júlia a interrompeu num grito. — Está inventando essa história! — foi para cima de Raquel e segurou-a com força pelos braços. — Diz: que tipo de relação tem com essa gente? Foi você que avisou a eles quando a polícia estava prestes a pegar Aldenora? FALA! — outro grito, sacudindo a outra.
Raquel tremia de medo, parecendo apavorada, com os olhos esbugalhados. Júlia nunca a havia tratado daquela forma.
— Está me machucando, Júlia!
— Não viu nada? DESEMBUCHA! — mais um grito, sacudindo-a com mais força. E Raquel caiu em prantos. — Não me provoque, fale a verdade!
— Juro! Acredite em mim!
— É mentira! — Júlia finalmente soltou Raquel. — Não te conheço mais, Raquel!  Não sei mais quem você é! Acho que não tem mais como convivermos dentro do mesmo espaço!
— O que está querendo dizer?
— Não confio mais em você, não acredito mais em nada do que fala! Não há mais como morarmos juntas!
— Não, Júlia! Por favor, não faça isso! — implorou de mãos postas. — Tenha um pouco de paciência, por favor! Vou te provar que estou do seu lado!
Mentiras, muitas mentiras! Não reconhecia mais a amiga de tantos anos. E se Raquel estivesse mancomunada com aquela gente, inclusive o próprio Donato Pessoa? Poderia estar informando todos os seus passos. Deste modo, colocá-la para fora de sua casa era uma forma de limitar a ação da quadrilha e deixá-los sem nenhum referencial dos procedimentos para desvendar a verdade. Mas e os meninos, Zezinho e Rafael, a quem aprendeu a amar como sobrinhos? Como ficariam? Raquel não tinha para onde ir, vivia com Júlia há muitos anos, desde que fora abandonada pelo marido. Seria maldade com os garotos, que não tinham culpa das escolhas da mãe. Porém, expulsar Raquel de sua casa poderia ser uma estratégia interessante para descobrir alguma pista sobre o caso. Pois se ela estivesse realmente envolvida naquela história, como acreditava que estava, certamente procuraria a pessoa chave para apoiá-la. No entanto, ao se lembrar de Zezinho e Rafael, perdia completamente a coragem. A não ser que encontrasse um meio termo. E encontrou!
Se Raquel tivesse alguma ligação com o mandante do sequestro de Clara, obviamente recorreria a ele para pedir ajuda. Eles precisariam ficar atentos. Enquanto isso, os meninos continuariam seguros.
— Um mês. Tem um mês para arrumar um canto para onde ir.
E deu as costas para Raquel, deixando-a chorando. Do portão, ouviu-a pedindo que voltasse, que lhe desse uma chance para provar que falava a verdade. No entanto, não tinha como retroceder. Com o coração apertado, entrou no carro de Tancredo e pediu-o para tirá-la dali.






Capítulo 44

O veículo de Leonardo Gondim cruzou o portão de metal que separava a rua quase deserta do imenso terreno da casa dele, tomando todo um quarteirão. Júlia acompanhava atentamente sentada ao seu lado. O caminho em paralelepípedo até a frente da mansão era demarcado por palmeiras imperiais e outras árvores e plantas, tudo muito bem cuidado. O veículo estacionou próximo da piscina, de onde se tinha a imagem perfeita da Praia do Futuro. Uma vista belíssima que se misturava ao verde do jardim. Sem sombra de dúvida, um espaço privilegiado, que Leonardo insistiu para que ela conhecesse. Segundo ele, era tempo de Júlia ser apresentada à sua família. 
Leonardo a ajudou a descer do carro. Parecia radiante com aquele almoço. Para Júlia, seria também uma forma de esquecer a morte de Aldenora, há três semanas, enquanto aguardava alguma novidade sobre o tal Emanuel. Ela deixou-se acariciar pela bela brisa daquela tarde de sábado antes de adentrar as dependências da mansão, acompanhando-o, completamente encantada pela beleza do lugar.
Da entrada, Júlia teve a visão da casa luxuosa em que morava a família Gondim. Uma decoração moderna, requintada e acolhedora.
— O que achou? — Leonardo procurou saber, curioso, como se fosse de extrema importância a sua aprovação.
— Tudo de muito bom gosto! Sem sombra de dúvidas, um lugar lindo — respondeu sorridente.
— Papai é um homem muito cuidadoso, adora detalhes — revelou uma mulher bonita, saindo do elevador apoiada a uma bengala, com certa dificuldade ao andar.
— Esta é minha filha, Celina — antecipou-se ele.
— Seja bem vinda, Júlia. Estava curiosa para conhecê-la.
Júlia a cumprimentou, sentindo uma empatia inexplicável. Talvez tivessem a mesma idade. A acolhida de Celina deixou-a menos apreensiva.
— E os meninos? — perguntou o velho Leonardo à filha.
— Estão descendo.
Júlia foi apresentada à velha Mena, de quem Leonardo sempre falava. Uma senhora negra que estivera com eles desde o início de seu primeiro casamento. Ela entrou na sala para tomar informações sobre o horário do almoço e Leonardo aproveitou para que ela a conhecesse. Uma mulher sorridente, esbanjando ternura em seu olhar tranquilo. Postura firme, sem aparentar a muita idade que lhe cabia. Diversas histórias foram remontadas imediatamente por Celina, ressaltando o cuidado da velha cozinheira. E a mesma, resignava-se em leves sorrisos tímidos, escondendo o amor que sentia por aquela família.
Mais alguns minutos e surgiram os dois netos de Leonardo. Maria Antônia, a mais velha, tomou iniciativa e tratou de se apresentar. Uma linda mulher, de olhar firme, passando a mesma maturidade descrita pelo avô, apesar da pouca idade. Já o rapaz, João Henrique, aguardou que o avô seguisse o protocolo e o apresentasse. Tímido, de beleza franzina, escondido por trás daqueles óculos, que vez por outra o realinhava em seu rosto com a ponta dos dedos. Os mesmos a receberam de uma forma curiosa, como se esperassem ansiosamente por aquele momento. Pareciam felizes com sua presença. Um universo que Júlia adiara por anos a conhecer, por medo de não ser bem recebida. Pessoas simples e humanas, aparentando à primeira vista, total indiferença à fortuna que dispunham.
Imediatamente Maria Antônia denunciou o avô, revelando que nunca havia trazido nenhuma amiga ou namorada para conhecê-los. Leonardo demonstrou certo constrangimento, mas logo cedeu ao clima de brincadeira. Riram juntos. Outras intimidades cotidianas da família Gondim vieram à tona, trazidas pelos netos, Celina ou até mesmo pelo próprio Leonardo, fazendo com que Júlia ficasse mais á vontade.
Por fim, ouviu-se um seco “boa tarde” em meio às risadas deflagradas pelas histórias contadas. Júlia viu a elegante figura de uma bela mulher na entrada da sala de estar. Certamente Maria Eugênia, a filha mais velha de Leonardo e mãe de Maria Antônia e João Henrique. Magra, gestos requintados, roupas finas e uma pasta na mão. Ela tirou os óculos escuros e se aproximou.
— Vejo que a alegria paira hoje sobre a nossa casa — disse ela, com ar de seriedade.
— Olá, mamãe. Estávamos aqui relembrando velhas histórias — Maria Antônia explicou, sem perder o riso.
— Junte-se a nós, Maria Eugênia — Celina propôs.
A mulher a olhou de um modo reprovador.
— Esta é Júlia Serrado, minha amiga. Ela veio almoçar conosco, como sabe –Leonardo apresentou.
Júlia estendeu a mão para cumprimentá-la e por alguns instantes, achou que ela não faria o mesmo, causando certo constrangimento em todos. Até que Maria Eugênia também a cumprimentou.
— Seja bem vinda, Júlia — disse Maria Eugênia, de forma seca.
— Obrigada.
— Acho então que Mena pode servir o almoço, não? — Maria Antônia sugeriu.
— Infelizmente não poderei lhes acompanhar. Tenho um vôo para São Paulo em algumas horas, preciso subir e me arrumar — explicou Maria Eugênia, olhando diretamente para seu pai.
— Sem problemas, minha filha.
— Depois quero ter a honra de conhecer melhor esta grande amiga do meu pai — disparou, voltando-se a Júlia. — É “dançarina” da boate Mirage, não é mesmo? — O destaque na palavra “dançarina” chegou a Júlia com certa ironia.
— Bailarina — corrigiu sem deixar o sorriso esmaecer, e completou: — E também, coreógrafa.
As duas se entreolharam por alguns instantes, como se ali demarcassem seu território. Diferente dos demais membros da família Gondim, certamente aquela mulher não estabeleceria nenhuma relação amigável com Júlia. Pelo contrário, em poucos instantes, deu para sentir o peso da rivalidade. Pelas poucas histórias contadas por Leonardo sobre sua família, nos últimos anos, dava para perceber o quanto Maria Eugênia controlava a todos e principalmente ao pai. Júlia era, com certeza, uma intrusa.
Logo Maria Eugênia pediu licença e subiu. Todos tentaram naturalizar e esquecer sua passagem por aquela sala, mas Júlia não conseguia ficar à vontade. Desejou ir embora, inventar qualquer desculpa e sair. Não era bem vinda naquela casa, como achou que seria. A filha de Leonardo jamais aceitaria aquela amizade.
Dançarina de boate.
Foi assim que ela a chamou, impondo um limite. Não, Júlia não precisava se sujeitar àquilo. Mas se refletisse sobre a outra parte, a que cabia a Leonardo, Celina e os sobrinhos tinham lhe tratado tão bem. Valia realmente à pena dispensar tal cuidado e ternura por conta da relação mal resolvida pai e filha? Leonardo era seu melhor amigo e necessitava de sua presença naquele momento. Não podia abandoná-lo por causa de sua filha.
Seria o início de novo momento na relação de amizade com Leonardo.


Após o almoço, Júlia acompanhou Leonardo até o andar superior da casa. Segundo ele, queria mostrá-la sua maior paixão. Ao mesmo tempo que ela se sentia feliz por conhecer tanto da intimidade de seu melhor amigo, ficava um pouco mais apreensiva, por achar que teria um preço. Fazia mais de um mês que Leonardo a tinha pedido em casamento e Júlia vinha conseguindo adiar sua resposta, de modo a não magoá-lo, nem se comprometer com algo tão sério.
Eles tomaram a grande escada que levava a um mezanino, de onde se tinha uma visão ampla do hall de entrada da mansão. Tomaram um longo corredor, até uma porta de madeira maciça. Leonardo tirou uma chave do bolso e abriu. No momento em que ele entrou no ambiente, todas as luzes se ascenderam.
— Vamos? — Ele a convidou, com a mão estendida e um largo sorriso.
Júlia teve a visão de um grande salão, com centenas de espadas de todos os tipos, tamanhos e cores, decorando o imenso espaço que lembrava uma sala de museu. As menores se organizavam em balcões de vidro no meio do ambiente, as maiores presas nas paredes, destacadas por iluminações diretas. Na parede de fundo, um imenso vitral colorido, apresentando as figuras de diversos anjos, em reverência à imagem maior de São Miguel Arcanjo no centro.
— Lindo! — Júlia não conteve o encantamento.
— Sabia que gostaria de conhecer este espaço — vibrou ele.
Júlia se aproximou do vitral, desconsiderando completamente a coleção de espadas, como se aquele mosaico de vidro colorido fosse o que de mais importante existia naquele salão. Reportou-se imediatamente sobre estátua em bronze recebida há dois meses, de alguém que ela não sabia quem era.
— Foi você? — perguntou, quase hipnotizada pela figura à sua frente.
— Eu o quê?
— Foi você que me enviou a imagem de São Miguel?
— De que imagem está falando?
Certamente havia sido Leonardo. Sem saber, dera início novamente às buscas por Clara, mas desta vez de forma assertiva. Foi logo após o recebimento daquela estatueta que Júlia tivera a ideia de procurar pelo cunhado. A partir de então, toda a verdade, nunca revelada, foi emergindo.
Ela olhou para o amigo, lacrimejando e abraçou-o, num surto de gratidão.
— Obrigada, Leonardo, muito obrigada! Foi o maior presente que poderia ter me dado, acredite!
Ele sorriu, sem conseguir esconder mais.
— Sabia que iria gostar, mas não imaginei que fosse tanto.
— Aqui tem muitas peças! Como conseguiu organizar tantas espadas?
— Foram muitos anos. A primeira foi esta aqui — referia-se a um enorme objeto de aço, com cabo de osso, fixada na parede, destacando-se das demais. — Foi um presente do meu pai. Dali em diante não deixaram de chegar, de todos os lugares. Sempre que um amigo viajava, trazia uma nova. E é assim até hoje. Outras tantas foram arrematadas por mim em leilões milionários.
— É surpreendente!
— Aqui guardo boa parte de minha fortuna, não apenas em valor financeiro, mas falo do valor sentimental.
— E por que espadas?
— Elas simbolizam o conhecimento, o poder.
— Sabe usá-las?
Ele pegou uma das espadas e a empunhou em posição de luta. Parecia realizado.
— Faz algum tempo — recordou ele.
— Fazia esgrima?
— Sim... — hesitou, e complementou. — Parei depois da doença. Quando chegar a minha hora, daqui a alguns meses, quero que seja neste espaço. Minha vida está aqui. — Por um instante, Júlia viu seus olhos transbordarem em lágrimas. — Cada peça me faz sentir vivo, é parte de mim, de minha história. — Naquele momento, ela tivera a real dimensão da solidão que acompanhava aquele homem. Como se cada peça daquelas pudesse preencher um vazio existencial. E sentiu pena de Leonardo. — Case-se comigo, Júlia!
Pronto, o que ela mais temia! Como negar o último pedido de seu melhor amigo? Quantos meses ele tinha de vida? Dois, três? Como o próprio Leonardo havia lhe dito, os médicos não poderiam precisar, mas não lhe restava muito tempo. E o que mais desejava era sentir-se menos solitário. Leonardo não tivera mais ninguém desde a morte da mãe de Celina, sua segunda esposa, conforme o que ele mesmo havia partilhado há algum tempo. Maria Eugênia sempre fora um grande empecilho, argumentando estar o protegendo de possíveis golpistas. E ele, nunca tivera pulso de enfrentar a própria filha. Agora, à beira da morte, queria reparar este grande equívoco, disposto a lutar por sua felicidade, embora que por pouco tempo. À Júlia, cabia a decisão de fazê-lo ou não feliz. E Pedro, o que pensaria quando soubesse? Certamente confirmaria as suas eternas desconfianças de que ela havia se aproximado de Leonardo com o objetivo de se dar bem de algum modo. Mas o que isso importava diante da morte de seu melhor amigo? Leonardo a ajudara a retomar as investigações sobre o sequestro de Clara, ao lhe enviar aquele presente e estivera sempre de prontidão quando ela mais precisou.
A decisão estava tomada.
— Eu aceito.
— Como?
— Aceito casar com você, Leonardo. 
Ele simplesmente a abraçou, tomado de tanta alegria.






Capítulo 45

Tancredo estacionou o carro na Av. Santos Dumont, próximo ao bar onde estava sendo comemorado o aniversário de Pedro. Júlia soltou o cinto de segurança com dificuldade, apreensiva pelo reencontro. Havia semanas que não o via, e talvez aquela fosse sua última chance de uma reconciliação com ele. E se acontecesse, poderia ainda desistir do casamento com Leonardo.
Antes de saírem do carro, Tancredo segurou sua mão e procurou saber se estava tudo bem. Júlia fez que sim com a cabeça. De onde estavam, ouviram um cantor dedilhando as notas da música Todo Sentimento, do Chico Buarque, ao violão. Pronto, perfeito. Talvez fosse ali “o tempo da delicadeza”.
Assim que se aproximaram do bar, Júlia avistou Pedro em uma extensa mesa, conversando e rindo com seus convidados. Ele estava mais despojado, longe do estilo executivo-clássico cotidiano, com um ar jovial, sem aparentar os quarenta anos comemorados naquele dia.
“...te amando devagar e urgentemente. Pretendo descobrir no último momento o tempo que refaz o que desfez, que recolhe todo sentimento, e bota no corpo uma outra vez. Prometo te querer até o amor cair doente...” — interpretou o artista ao fundo, como que revelando para todos ali o que Júlia guardava em seu coração.
Pedro levantou-se e recebeu-os. Dando um delicado beijo no rosto de Júlia.
— Está linda — disse ele ao seu ouvido, sorridente.
— Como? — Júlia, meio sem jeito, fingiu não ter ouvido.
Está linda! — repetiu, com um sorriso no rosto. Tratando de apresentá-la às pessoas da mesa que ela não conhecia, enquanto Tancredo cumprimentava os convidados, que pareciam também velhos amigos. Talvez tivesse reunido umas trinta ou mais pessoas. Alguns conhecidos de faculdade e até de escola, como fez questão de explicar, e outros de trabalho, como do grupo de Biodança os quais Júlia conhecia.
Estava sendo uma noite aparentemente agradável a todos. Pedro encontrava-se radiante, orgulhoso por ser um quarentão. Algumas conversas sérias nortearam o evento, como recordações trazidas por todos. Todavia, em nenhum momento Júlia percebeu que Pedro estivesse na mesma sintonia de sentimentos com ela, que estava ali para reencontrá-lo, para reconquistá-lo. Pelo que podia perceber, ele desejava comemorar a passagem de ciclo, desfrutar do encontro com os amigos. O que a foi frustrando a cada minuto passado, fazendo com que abandonasse aos poucos a expectativa que lhe motivara a estar ali. Mas nada lhe foi tão desconcertante quanto à chegada de Regina, apresentada a Júlia como uma antiga amiga de Pedro, das épocas de colégio. Uma mulher linda, de traços finos, elegante. Todos na mesa pareciam conhecê-la, dispensando total atenção a ela e suas histórias de viagens pelo mundo, até brincarem com o fato de ter sido a primeira namorada de Pedro. Era notório o carinho que eles sentiam um pelo outro. A partir daquele instante, os dois não interromperam mais a conversa.
 — A gente dizia que era encontro de almas! — comentou um amigo de Pedro, em algum momento.
— E é. Veja como eles se olham — confirmou outro.
— Realmente eles formam um lindo casal! — constatou uma pessoa do lado.
Júlia olhou para Pedro e Regina e sentiu a cumplicidade construída há muitos anos. Aquilo a deixou profundamente incomodada. Um reencontro que ela preferia não ter testemunhado. O ciúme a tomou de uma forma incontrolável, sem que conseguisse mais se concentrar em nada além do velho casal de namorados. Nem mesmo as investidas de Tancredo, procurando lhe dar um pouco de atenção, foram suficientes para roubá-la daquele universo ácido construído pelo medo de perder o homem que amava. Sentiu-se tola em acreditar que aquela noite seria o grande momento de reconciliação. Nada mais se fazia ouvir. Isolou-se num mundo de dor e frustração em meios à imagem daquelas pessoas rindo em sintonia. E Pedro, totalmente alheio ao que ela sentia, alegre, feliz em seu novo momento, com sua primeira namorada e talvez uma renovação do amor entre eles. Imaginou até que ele a tivesse chamado ali para testemunhar sua nova vida longe de “suas mentiras”, como amigos.
Ela desejou sair dali. Só assim deixaria de se sentir uma completa idiota. Queria estar em casa, longe de toda aquela felicidade que envolvia Pedro na distância de seu amor. Poderia ir embora disfarçadamente, sem que ninguém desse por sua falta. E certamente não dariam. Ninguém notaria que ela havia saído. Mas e se estivesse errada? E se Regina não fosse mais do que uma namorada de adolescência para ele? Entregaria os pontos tão fácil? Hesitou até que todos cantassem parabéns, quando Regina ajudou a apagar a vela do bolo. Somente assim, ficou claro.
Júlia saiu em meio à celebração, sem que qualquer pessoa desse conta.
...prefiro então partir a tempo de poder a gente se desvencilhar da gente, depois de te perder te encontro com certeza, talvez num tempo da delicadeza, onde não diremos nada, nada aconteceu, apenas seguirei como encantado ao lado teu.
Aquela parte da música do Chico parecia ter sido escolhida a dedo para o momento. Que um dia eles pudessem se encontrar de modo diferente, sem dor ou qualquer desconfiança, reconhecendo a beleza de cada um, num tempo de alegria e leveza, um tempo que não haviam experimentado.
Ela entrou no primeiro táxi que encontrou próximo ao barzinho, pediu que o motorista a levasse dali e simplesmente chorou.






Capítulo 46

Júlia precisava retomar seu foco, após a decepção no aniversário de Pedro, na noite anterior. Estava diante da porta do apartamento de dona Terezinha, visivelmente abatida, depois de um dia intenso de trabalho no projeto social e sem conseguir pregar o olho. Sua relação com Pedro havia acabado definitivamente. Tivera o cuidado de enviar uma mensagem de texto para Tancredo, a caminho de casa, justificando sua saída por uma desculpa tola. Entretanto, esperava que Pedro ligasse para saber se ela estava bem, mas nada! Nenhuma mensagem ou telefonema.
                Embora ela se encontrasse destruída emocionalmente, não havia mais tempo para sofrimentos. Era hora de se dedicar a encontrar alguma pista do paradeiro de Clara. Esta era sua intenção ao estar ali novamente.
Foi a própria dona Terezinha quem abriu a porta. A senhora tomou um susto ao se deparar com a ex-vizinha. Parecia ter envelhecido uns vinte anos desde a última em vez que a vira, quando moravam na Maraponga.
— Dona Júlia?! — disse a mulher com olhos arregalados.
— Como vai, dona Terezinha? Eu preciso muito falar com a senhora.
A velha olhou para dentro do ambiente, como se hesitasse, mas acabou permitindo a passagem. O apartamento era bem decorado, destoando das condições financeiras da senhora que, na época, trabalhava como diarista. Júlia imaginou tratar-se do dinheiro que Aldenora havia conseguido com o sequestro de Clara.
A senhora indicou uma poltrona para que ela sentasse e fez o mesmo.
— Por favor, não tenho muito tempo — justificou dona Terezinha.
— A senhora está sozinha?
— Minha neta foi ao supermercado, mas logo estará chegando.
— Dona Terezinha, a senhora sabe que Aldenora foi presa por estar envolvida no desaparecimento da minha filha, não sabe?
A idosa segurou o próprio colarinho e engoliu a saliva, parecendo ganhar tempo para responder. Suas mãos estavam visivelmente trêmulas.
— Dona Júlia, a minha filha morreu por causa dessa história. Não quero que aconteça mais nada a minha família. Não sei de nada. Por favor, vá embora!
Júlia se aproximou.
— Por favor, o que a senhora me disser pode ser de muita valia. Estou há seis anos longe da minha filha, ela foi tirada de mim bebê. A senhora sabe disso. Tenho certeza de que possa imaginar o tamanho do meu sofrimento.
Um apelo de mãe para mãe talvez pudesse fazer com que ela mudasse de ideia e revelasse algo. A velha olhou para Júlia, cheia de lágrimas, mas tentou se conter, colocando a mão na boca.
— Não sei de nada. Por favor, vá embora! Não quero que aconteça mais nada a minha família.
Era a segunda vez que ela falava aquilo.
— Dona Terezinha, a senhora está sendo ameaçada?
— Estou muito velha, doente, não posso mais viajar, sair daqui. A única forma de me proteger e aos meus é ficando calada.
Ela sabe de muita coisa!
Júlia prostrou-se diante da mulher, segurando forte em suas mãos.
— Por favor, me ajude, dona Terezinha! A polícia pode protegê-la e a sua família se a senhora colaborar. Não lhe acontecerá nada, prometo! Por favor, me conte alguma coisa!
A velha primeiramente silenciou, depois disparou:
— Essa gente é perigosa. Eles mataram a minha filha!
— Eu sei. Por isso estou aqui. Temo que aconteça o mesmo com Clara!
— Não, não vai acontecer nada com ela.
— Por que a senhora diz isso? — Júlia ficou chocada com a forma com que ela falou. — A senhora a conheceu? Por que acha que não vai lhe acontecer nada? Por favor, dona Terezinha, não sabe o quanto sofri todos esses anos sem notícias!
— Não sei de nada, de nada! — respondeu no susto, nervosa.
— Não permitirei que nenhum mal lhe aconteça, juro! — insistiu.
A mulher balançou a cabeça negativamente. Na certa tinha muito medo para contar algo a Júlia, mas poderia dizer à polícia. Sim, Júlia pensou em sair dali naquele momento e procurar por Ricardo, relatando aquele diálogo. Se dona Terezinha fosse chamada para depor novamente, pressionada, poderia acabar revelando o que sabia. Se Júlia saísse daquele encontro sem nenhuma pista, poderia não ter mais a chance de estar com a mãe de Aldenora. Precisava pensar rápido no que fazer. Que outro lucro teria sob aquela visita? Tinha uma oportunidade em suas mãos e não jogaria fora.
Veio uma ideia.
Júlia se levantou, pôs a mão na testa e fingiu estar passando mal.
— Não estou me sentindo bem, dona Terezinha!
— O que houve, minha filha? — a mulher se levantou em seguida.
— Uma vertigem. Preciso ir ao banheiro.
Dona Terezinha indicou o corredor e a acompanhou até a porta do lavabo. No caminho, Júlia deu uma varredura com o olhar pelo ambiente. Talvez pudesse encontrar alguma pista. Permaneceu lá dentro por um tempo e abriu a porta devagar, verificando onde a velha estava. Pelo tilintar de copos, deduziu que estivesse na cozinha. Pronto, caminho livre! Ela encostou a porta e entrou no quarto ao lado, trancando-se lá dentro. Numa ação estratégica, correu pelo local, abrindo gavetas, portas de armário, vasculhando tudo. Precisava ser rápida, encontrar qualquer coisa que fosse, antes que dona Terezinha se desse conta do que acontecia. Não demorou muito, ouviu a senhora perguntando se estava tudo bem. Com certeza pensava que ela se encontrava no banheiro. Mas demorou pouco tempo para que ela abrisse a porta e acionasse a maçaneta do quarto.
— Dona Júlia, a senhora está aí? Dona Júlia?
Droga! Eu preciso encontrar alguma coisa!
Júlia não se intimidou com a chamada. Dona Terezinha estava do lado de fora e nada podia fazer. Tinha a oportunidade nas mãos. Continuou sua busca pelo lugar, pondo tudo abaixo. Sem se preocupar com o barulho, derrubava roupas, caixas do armário e outros objetos. Do lado de fora, Dona Terezinha parecia mais aflita, tentando abrir a porta e chamando por ela.
— A senhora não tem o direito! Saia, por favor! Abra essa porta, dona Júlia!
À Júlia cabia continuar procurando por alguma coisa que revelasse algo sobre Clara. Finalmente, no fundo do guarda-roupa, encontrou uma caixa vermelha, com papeis, contas, documentos de Aldenora e outros objetos como uma aliança, um aparelho celular e  um anel.
Coisas pessoais de Aldenora... isso pode ser útil.
Finalmente abriu a porta e se deparou com dona Terezinha, aflita. Ao mirar a caixa em suas mãos, perguntou:
— O que faz com isso?
— Isso fica comigo, dona Terezinha. E depois, certamente a polícia vai procurá-la.
— Volte aqui, não pode levar isso! Volte aqui!
Júlia pegou a bolsa no sofá e foi embora. Que Deus a ajudasse a encontrar alguma pista dentro daquela caixa!


Júlia entrou em seu quarto, trancou a porta e foi direto para a cama vasculhar a caixa vermelha com mais calma. Estava ansiosa dentro do táxi que a trouxe até em casa para abri-la e verificar o que de fato tinha lá dentro, se descobriria algo sobre Clara, quem sabe sobre o tal Emanuel. Pelo visto eram pertences pessoais de Aldenora. E se houvesse algo comprometedor ali, ela logo descobriria.
Júlia tirou a tampa da caixa e pegou alguns papeis que estavam por cima. Eram cópias da escritura de um apartamento localizado na Rua Frei Caneca, em São Paulo. Lembrava-se que o endereço que a polícia tinha de Aldenora na capital paulista era outro, e o imóvel estava registrado no nome de Emanuel de Sousa Ribeiro. Em seguida, pegou a cópia de uma apólice de seguros de um carro, também no nome dele e o cartão de um banco que ficava na Av. Paulista, com a identificação de um cofre — como o saldo da conta de Emanuel, no mesmo banco, datado em dezembro de 2011.
SALDO DISPONÍVEL: R$ 234.387,00
Será que esse dinheiro tem a ver com a minha filha?
Dentro da caixa, cópias de vários extratos, identificando depósitos e retiradas. Depois da prisão de Aldenora, era a primeira grande pista que ela tinha acesso. Com certeza, Tancredo e Ricardo Rosendo saberiam melhor o que fazer com aquela documentação.
Comemorando muito, Júlia olhou detalhadamente cada papel. Não conseguia conter o riso, estava feliz por sua atitude, a grande ideia que teve para ir ao quarto de dona Terezinha. Pegou a aliança de ouro no fundo da caixa. Pelo tamanho devia ser de um dedo feminino. Na parte interna da jóia estava gravada a expressão “Meu Amor. J&A.” Ela realmente devia ter sido apaixonada por aquele homem, como havia afirmado na prisão.
J & A. O que significa isso?
Pareciam iniciais dos nomes dos dois amantes.
Mas se fosse deles, deveria ser E & A. Emanuel & Aldenora!
Bom, aquilo era algo a ser descoberto. Talvez Aldenora chamasse-o por algum apelido. Dentro da caixa restava um anel de prata, com um aro no meio, permitindo girá-lo ao redor de seu eixo. No aro, o desenho de linhas continuas e transversais, perpassando uma a outra, formando o símbolo do infinito. Aparentemente uma peça comum, que se vende em qualquer camelô. Mas naquele formato especifico, ela teve a impressão de já tê-lo visto.
Estranho! É como se eu conhecesse esse anel!
Por fim, encontrou um iPhone desligado. Ali certamente conteria informações importantes. Júlia, ansiosa, ligou o aparelho e aguardou um pouco até que as funções fossem restabelecidas. A foto de Aldenora surgiu como papel de parede na tela.
Que maravilha! O celular dela!
Vibrou com aquilo. Entregaria tudo à policia, mas antes procuraria pelo contato de Emanuel. Foi imediatamente na agenda e procurou na letra “E”. Nada! Nenhum número ou indicação com o nome “Emanuel”. Procurou por recados na caixa de mensagens, mas estava vazia, feito a galeria de fotos. Nenhuma chamada efetuada.
Droga!
Na certa, da cadeia, Aldenora orientou a mãe ou outra pessoa a limpar o aparelho, antes que alguém o encontrasse. Júlia se levantou com o aparelho na mão e se pôs diante do altar, da imagem de São Miguel, buscando por uma inspiração. Não era uma investigadora profissional, e o que havia conseguido tinha sido bastante para um dia.
Júlia pegou os papeis e passou a vista em tudo novamente. Depois segurou a aliança diante de seus olhos.
Meu Amor. J&A
Daria tudo para descobrir que iniciais eram aquelas. Mas como?
J & A
Imaginava que a letra “A” correspondia a Aldenora. E o “J”, que nome era aquele afinal?
A agenda do iPhone... E se encontrasse o nome procurado na lista do aparelho? Júlia acionou de novo a agenda e correu as letras até o “J”. Então a surpresa com os primeiros contatos:
J. CEL I
J. CEL II
J. CASA
Será?!
Se a história contata por Aldenora fosse verdade, seu grande amor era esse tal Emanuel. Imaginando que aquela aliança pertencia a ele, o “J” corresponderia a algum nome ou apelido pelo qual ela o tratava. Deste modo, os contatos especificados na agenda do aparelho como sendo desse J poderiam ser na verdade do Emanuel. Uma possibilidade!
E se ligasse para um daqueles números? Como seria? Embora não soubesse o que dizer, pelo menos descobriria quem era esse J, se se tratava realmente do comparsa de Aldenora. Todavia, temia ligar para Emanuel e por tudo a perder. Se ele percebesse que falava com Júlia ao telefone, poderia se desfazer daqueles números imediatamente. Se é que já não tinha feito isso, após a morte de Aldenora. Não, o mais prudente era entregar tudo a quem de direito naquele momento. Deveria entrar em contato imediatamente com Tancredo e Ricardo e apresentar aquelas provas, assim, eles fariam o que não fora capaz de fazer com o material.
Júlia pegou seu celular e alternou o olhar entre o contato de Tancredo e os números na agenda do outro aparelho. Que atitude seria mais prudente afinal?
Acabou por acionar o número do amigo.






Capítulo 47

Júlia entrou num táxi, comunicou seu destino ao motorista e segurou firme a caixa vermelha com os documentos de Aldenora. Havia combinado de levar os objetos até o apartamento de Tancredo e entregá-los a ele, deixando o resto por sua conta. Certamente o amigo saberia o que fazer com todas aquelas provas e talvez conseguisse enxergar o que ela não vira.
Sua intuição dizia que algo ali dentro a levaria para perto de Clara, e isso a enchia de ansiedade. Sem conseguir mais se segurar, buscou o aparelho e examinou novamente a agenda. Não conseguia tirar aqueles dados da cabeça:
J. CEL I
J. CEL II
J. CEL CASA
Antes que se amedrontasse, pegou o seu celular e digitou o número correspondente ao primeiro nome. Alguns segundos de silêncio e depois, uma gravação da operadora, dizendo que aquele número não mais existia.
Primeira chance perdida!
Digitou em seguida o número que correspondia ao telefone fixo. Talvez tivesse mais sorte. Mas antes mesmo que a ligação fosse completada, veio o sinal de ocupado. Tentou outras três vezes, até ter a certeza que aquele número também não devia mais existir. Júlia deu um suspiro e baixou a cabeça em lamentação pelo fracasso. O J. CEL II era a sua última chance. Ali residia sua esperança de ouvir a voz do homem que provavelmente estaria com sua filha. No entanto, se acontecesse o mesmo que nas tentativas anteriores, seria obrigada a continuar torcendo pelas descobertas da polícia.
Ela digitou cada número devagar, com cuidado para não errar nenhum caractere, certificando-se a cada segundo que aparecia na tela de seu celular o mesmo revelado pela agenda do aparelho de Aldenora. Não poderia errar! Antes de ligar, ela parou um pouco e rezou. Suas mãos estavam suando, não sabia se pelo medo de novamente não conseguir nada ou se pelo desejo de ouvir a voz de Emanuel e não saber o que fazer, o que dizer. 
O que falar para esse homem? Era o sequestrador de sua filha, afinal.
Finalmente, Júlia ligou. Aguardou alguns segundos e outra vez a ligação não pode ser completada. Ela não entendeu se havia sido um problema da operadora ou se novamente a ligação não pudera ser concluída pela inexistência do número telefônico.
Mais uma tentativa... e novamente não completou!
— Droga! — esbravejou, chamando atenção do motorista, que a fitou através do espelho retrovisor.
— Algum problema, senhora? Erramos o caminho?
— Não, me desculpe. Não falei com o senhor. — Rapidamente se assegurou de que estavam na direção correta e constatou que desciam a Av. Desembargador Moreira, sentido praia. — Pode continuar.
O homem voltou sua atenção ao trânsito e ela à tela de seu telefone celular. Passou a mão na calça para limpar o suor da mão que a fazia deslizar sobre o aparelho, dificultando a função touchscreen. Tratou de voltar à tela inicial e recomeçar do zero, para ter certeza de que estava procedendo de modo correto. Por fim, mais uma tentativa. Houve um silêncio. Quando ia desistir, a ligação foi completada!
Deu certo!
Em segundos, a primeira chamada, a segunda, a terceira e assim por diante.
— Vamos, atende! — balbuciou, quase mordendo os lábios.
Finalmente, um pequeno bip indicando que a ligação fora atendida.
— Alô — disse a voz do outro lado da linha. Um timbre grave, com certeza de homem. E aquilo a arrepiou.
Emanuel!
O que dizer para o seqüestrador de sua filha? Petrificou-se, sem conseguir articular uma só palavra. Temeu que ele ouvisse sua respiração ofegante, tentando com dificuldade manter o fluxo de outrora. Temeu por estar fazendo uma besteira. Talvez tivesse sido melhor ter deixado tudo por conta de Tancredo e da polícia, evitando bancar a detetive incompetente e por tudo a perder. Aquele número, aquela ligação era a única chance, um link com o bandido que certamente estava com a posse de Clara. E ela, atônita, simplesmente não sabia o que fazer, como seguir adiante com sua atitude desatinada — entrar em contato com Emanuel, sem o menor preparo ou traquejo. Se por acaso se desse conta de que se tratava de Júlia, na certa se assustaria e procuraria se proteger. Sentiu-se uma tola. Bastava desligar e pronto. Tudo estaria resolvido. Mas se ouvisse um pouco mais de sua voz...
— Alô! — insistiu a voz do outro lado da linha.
 Júlia se assustou. Parecia alguém que ela conhecia. 
— Chegamos — avisou o motorista.
Ela sequer havia percebido que o carro havia estacionado em frente ao prédio de Tancredo.
Veio o sinal de que a pessoa havia desligado.
— Ele desligou! — desesperou-se olhando para o telefone. Colocou-o novamente no ouvido e nada, nenhum sinal do outro lado. Júlia tentou novamente a ligação, no impulso. Veio imediatamente o sinal de ocupado. Pronto, perdera a chance!
— Meu Deus! Eu conheço aquela voz? 







Capítulo 48

Júlia saiu do quarto acabando de se aprontar. Atrasada, se não apressasse o passo, não chegaria a tempo ao cartório para o próprio casamento.
Um mês havia se passado desde que concordara com aquela loucura e diversas vezes pensara em desistir, mas era um sacrifício pela felicidade de seu amigo. Tinha perdido a hora por causa de uma conversa ao telefone com Tancredo, deixando-a a par das investigações acerca de Emanuel. Acreditavam estar mais perto de pegá-lo. Embora não tivessem arrancado nada no último depoimento de dona Terezinha, os documentos na caixa vermelha os levaram a um apartamento vazio em São Paulo. A polícia estava monitorando o tal cofre no banco e naquela tarde conseguiram finalmente fazer o retrato falado de Emanuel, através de informações fornecidas por funcionários e vizinhos do prédio em que ficava o imóvel. Tancredo prometera enviá-lo a Júlia, logo que tivesse acesso à imagem. O fato é que aquilo a deixara extremamente feliz, nem vendo as horas passar.
Ela terminou de colocar os brincos e pegou as chaves quando a campainha tocou. Nem imaginava quem poderia ser naquele momento. Ao abrir a porta, veio a surpresa:
— Como vai, Júlia? — disse Olívia Cordeiro, tirando os óculos escuros.
— Olívia?!
Três meses havia se passado desde que Júlia saíra da Mirage, acusada de prostituição. Jamais pensaria que a dona da boate pudesse procurá-la.
— Podemos conversar?
Por um instante não soube o que dizer. Mirou o relógio e lembrou-se de Leonardo e do horário do casamento. Se demorasse mais, não chegaria a tempo.
— Tenho um compromisso — tentou explicar.
 — É um assunto de seu interesse, Júlia. Prometo ser rápida.
Ela pensou por um momento e abriu passagem para Olívia, convidando-a para sentar.
— É sobre a sua saída da Mirage — revelou Olívia.
— Olívia, realmente não posso falar. — Levantou-se num impulso. — Essa história não tem mais a menor importância para mim.
— Júlia, por favor, me ouça! — Olívia se aproximou. — O Guel me procurou hoje.
— Desculpe-me, mas eu não tenho nada a ver com sua história com esse homem.
— Ele me procurou para falar sobre você.
Júlia não acreditou no que ouvia. O que aquele canalha está tramando dessa vez? Não tinha como não se reportar ao rompimento com Pedro e lembrar que foi Guel quem o havia procurado e o envenenado contra ela.
— Olívia, por favor, vá embora! Estou realmente atrasada.
— Ele me disse que foi vítima de um golpe naquele dia no motel.
— O quê?! — Ele falou a verdade? Só podia ser mais um plano sórdido!
— Foi isso mesmo que ouviu. Sei que alguém tentou te prejudicar, fazendo com que fosse ao motel para que eu pensasse que estava saindo com clientes da boate.
Relembrar aquele episódio provocava-lhe a mesma indignação de antes.
— E o que ele te disse mais? — seu tom era afobado.
— Que não quer nada com ele como pensei que quisesse. Que por mais que ele tente, você o despreza.
Júlia ficou pasma. Estava sem compreender a intenção de Guel, revelando toda a verdade a Olívia naquele momento.
— E por que ele te disse isso, Olívia?
Olívia deu as costas e fitou o chão, como se criasse coragem para falar.
— Nós nos conhecemos há tantos anos e sempre nos demos tão bem, mas nunca fomos amigas de sabermos da intimidade uma da outra. Só que nós duas sabemos dos meus sentimentos por ele. E nisso, Júlia, eu me perdi completamente. — Só então teve coragem de se virar e fitá-la no olho. — O Guel me enganou, me extorquiu, mas eu o amo muito, por isso, acabo fazendo o que ele deseja. Às vezes acho que sou capaz de tudo por esse homem, sabe? — Júlia fez sinal para que ela sentasse novamente. Olívia prosseguiu: — Recentemente propus meu casamento com ele. Foi quando ele se confessou apaixonado por você. E acabou me contando tudo. Pela primeira vez ele pareceu realmente se preocupar comigo, Júlia. — Pausou um pouco, chorou e continuou: — Ele pôs um ponto final em nossa relação. Tentei de tudo, implorei, ofereci dinheiro, mas nada fez com que o Guel mudasse de ideia. Dizia que não queria mais me magoar e repetiu inúmeras vezes o quanto te amava.
Júlia sentiu pena daquela mulher. Estava chocada e não entendia como uma pessoa do caráter e da formação de Olívia Cordeiro poderia se dar tão pouco valor.
— E por que está me contando isso?
— Para me redimir diante de você, Júlia. — Caiu em prantos.
— Olívia, está tudo bem.
— Não, Júlia. Fui cruel com você. Na verdade nunca acreditei que aquela história fosse real. Mas precisava dizer que acreditava, para garantir que se afastasse dele, entende? Que se mantivesse longe da gente. Perdão, Júlia! Por favor, me perdoa!
Júlia levantou e se recordou dos absurdos ouvidos de Olívia no dia em que ela a demitira da Mirage. A lembrança daquela cena a angustiou imensamente. E mais agora ao saber que a própria Olívia não acreditava em nada daquilo. Ao mesmo tempo que sentia pena daquela mulher à sua frente, por vê-la sem a menor estima por si mesma e apaixonada por um homem que não a merecia, também experimentava uma mágoa profunda por ela tê-la acusado injustamente, ferindo a sua honra, em nome de uma amor doentio. Num lampejo, desejou colocá-la dali para fora e lhe dizer horrores, fazê-la sentir-se pior, puni-la pela atitude desrespeitosa e desumana a ela tomada. Olívia não podia ter feito aquilo! E os anos de amizade, nada havia pesado? No entanto, ela estava ali, arrependida, fragilizada, pedindo perdão. Com certeza perdoá-la a faria sentir-se um pouco melhor.
Júlia entregou-se a um choro de lamentação por tantos anos de amizade e respeito maculados por uma paixão desenfreada. A verdade era que sempre sonhou, em todos aqueles meses, que Olívia a procurasse e fizesse exatamente aquilo — pedisse seu perdão. Ela sempre acreditou que amizade era sagrada e que por mais que houvesse um descompasso de almas, seu realinhamento seria inevitável.
Júlia se aproximou da amiga de tantos anos e tomou-a nos braços. As duas choraram juntas.






Capítulo 49

O táxi estacionou em frente ao cartório na Av. Abolição. Júlia olhou desanimada para o prédio. Preferia que aquela corrida não tivesse sido tão rápida. Tinha a certeza que casar-se com Leonardo seria uma insanidade, mas precisava prosseguir, não tinha mais como voltar atrás sem magoá-lo. Soltou o cinto, pagou o valor cobrado pelo motorista e desceu.
À frente da entrada do cartório, ela fechou os olhos, deu um suspiro e caminhou devagar em direção ao que considerava ser um ato de misericórdia e amizade. Todos os pormenores haviam sido negociados com Leonardo na semana anterior. O proposto era que se mudasse para a mansão nas Dunas, onde seria acomodada num quarto ao lado do dele. Estava claro que os dois permaneceriam como amigos fieis, embora unidos por um casamento civil.
Leonardo providenciara tudo no mais absoluto sigilo, sem que ninguém soubesse do casamento, exceto os advogados que cuidavam dos trâmites legais. Isto é, seria uma grande surpresa para sua família — o que aconteceria mais tarde. Ele havia justificado o silêncio por conta de Maria Eugênia, que sempre se intrometeu em todas as suas relações. Sua filha faria de tudo para impedir a concretização daquele casamento.
A outra parte do acordo com Leonardo dizia respeito à vida profissional de Júlia. Como estaria casada com um dos homens mais importantes do Estado, não tinha como continuar dando aulas de dança numa associação na periferia da cidade. Seria até perigoso, além de não ficar bem para a imagem de um grande empresário. De contrapartida, Leonardo lhe ofereceu toda a estrutura para montar a sua própria companhia de dança. O sonho de qualquer bailarina. Ela, no entanto, resistia à ideia. Temia que as pessoas pensassem ter sido um casamento de interesses. E mais, queria evitar qualquer nível de dependência de Leonardo. Sabia que no fundo ele tinha razão sobre muitos aspectos daquela união, que não seria mais uma pessoa comum. Logo que a imprensa soubesse, sua vida se tornaria assunto público, passando a ser apontada por onde fosse. Deixaria de ser uma pessoa anônima para se tornar certamente um dos nomes mais badalados de Fortaleza. E aquilo vinha lhe aterrorizando.
Ao chegar à recepção do cartório, Júlia foi encaminhada para uma sala ao lado. Leonardo a recebeu com grande sorriso.
— Júlia, pensei que tivesse acontecido alguma coisa. Tentamos ligar para você inúmeras vezes e não conseguimos! — Leonardo parecia muito nervoso, tremia como nunca o tinha visto antes.
— Houve uns problemas em casa, acabei me atrasando — justificou.
Em seguida, ela foi apresentada aos dois advogados que haviam providenciado os trâmites legais da união, como ao juiz de paz que se encontrava à sua espera.
— Podemos agilizar tudo? — disse um dos advogados.
— Por favor, vamos logo com isso — Leonardo respondeu de pronto.
Júlia gelou.
O juiz deu início ao discurso do casamento e ela não conseguia se concentrar em nenhuma palavra proferida, apenas no quão difícil seria sua vida dali para frente. Mesmo que Leonardo não suportasse a doença por muito mais tempo, tudo seria diferente. Seria a eterna viúva de Leonardo Gondim, e aquilo lhe pesava toneladas. Como seria a convivência com aquela família, com a própria Maria Eugênia, que demonstrara total resistência ao mandar investigar sua vida? E Pedro, como seria dali para frente? O que ele pensaria quando soubesse? E mais, temia perder o foco de sua filha. Encaminhava-se para um universo desconhecido que a estava apavorando.
Era hora de desistir!
Júlia olhou para o amigo ao seu lado. Ele estava sorridente, atento às palavras do juiz, feliz como nunca o vira. Leonardo retribuiu o olhar e apertou sua mão, como se lhe desse continente. Com certeza nem passava pela sua cabeça o que ela pensava naquele momento, em ir embora dali e acabar com aquela loucura definitivamente. Mas faltava tão pouco. Como ele ficaria se a cerimônia fosse interrompida e seu último desejo abortado daquela forma? Tinha receio que Leonardo não suportasse o choque.
Ela parecia tomada por uma angústia implacável!
— Júlia, é de livre e espontânea vontade unir-se a Leonardo, amando-o, respeitando-o e sendo fiel em todas as circunstâncias enquanto viverem? — perguntou o juiz de paz.
Meu Deus! O que eu faço?
Júlia não tinha como fugir, era a hora da verdade. Poderia continuar como estava ou mudaria sua vida para sempre. Recordou-se de seu primeiro casamento, sem amor verdadeiro, na época fragilizada pelo abandono de Guel. Sentia-se repetindo o mesmo equívoco, embora que por motivos diferentes.
Leonardo aguardava sua resposta, apreensivo.
Ela olhou para o amigo e finalmente respondeu:
— Sim.
Leonardo abriu um largo sorriso. O juiz prosseguiu com a cerimônia. Júlia não ouviu mais nada, absorta num mundo de arrependimentos. Pela segunda vez, casava-se com uma pessoa, sem amá-la para tanto.






Capítulo 50

Leonardo e Júlia entraram na mansão das Dunas como marido e mulher. A tarde quente e abafada deu lugar a uma noite fria, com leve sereno, como que para recebê-los naquele novo momento de suas vidas. Leonardo não escondia a felicidade no sorriso permanente. Aquilo constrangia Júlia, que lhe retribuía com risos forçados e olhares tensos e apreensivos. Ela não se desvencilhava da sensação de ter cometido um dos maiores equívocos de sua vida, maior até que seu primeiro casamento. Deixava de ser uma pessoa simples para se tornar a esposa de um dos homens mais poderosos do Estado.
Celina tomava um chá na sala, acompanhada do sobrinho João Henrique e de Mena. Eles a receberam com a mesma alegria de quando Júlia os havia visitado antes. Todos se cumprimentaram e trocaram algumas palavras sobre a mudança brusca de clima naquele final de tarde. Na certa, não imaginavam o que havia acontecido.
Leonardo era louco de tomar uma atitude tão séria como aquela sem nada comunicar à própria família. Isso incomodava Júlia tremendamente, pois temia o que eles poderiam pensar dela.
Mena deixou-os para providenciar um café fresco. Leonardo e Júlia se acomodaram no sofá. Celina partilhou de sua alegria pelos avanços da fisioterapia em seu tratamento. Passara anos numa cadeira de rodas como tetraplégica e aos pouco fora restabelecendo os movimentos dos braços e voltando a andar. Mesmo que se locomovesse com dificuldade, com a ajuda de uma bengala, considerava-se uma nova mulher. Embora tivessem se passado oito anos do acidente, muito tinha sido o avanço em sua recuperação, estimado pelos especialistas quase como um milagre.
Pouco depois, Maria Eugênia chegou acompanhada da filha. Maria Antônia vibrou ao perceber a presença de Júlia, distante da mãe, que praticamente não a cumprimentou. Pelo olhar dela, Júlia podia imaginar o que passava em sua cabeça: O que estaria aquela aproveitadora fazendo ali, em seu território, com sua família?
Definitivamente, não era uma situação confortável! E certamente a tensão se agravaria quando fosse anunciada a notícia do casamento.
Que não seja agora!
Leonardo levantou-se e tomou a palavra.
— Quero aproveitar esse momento, com a família toda reunida, para fazer um comunicado!
Júlia ficou mais apreensiva, trêmula. Pronto, é agora! Júlia não esperava que fosse estar tão nervosa.  Leonardo tomou sua mão e a fez levantar para junto dele.
— Creio que seja um novo momento para todos nós. A partir de hoje, Júlia fará parte de nossa família. — Maria Eugênia projetou um olhar fuzilante sobre eles. — Nós nos casamos!
Os olhares eram de perplexidade e ao mesmo tempo de incompreensão.
— O que o senhor quis dizer? — Celina tomou iniciativa em perguntar.
— Isso é alguma brincadeira? — Maria Eugênia completou.
— De jeito nenhum! Nós nos casamos hoje à tarde.
— Não pode ser verdade! Como pode tomar uma decisão tão séria, que envolve a vida de toda a sua família dessa maneira, sem que nós soubéssemos?! — comentou Maria Eugênia.
— Acredite, minha filha. Júlia é minha mulher. Sei que parece loucura, mas foi melhor assim.
Júlia, envergonhada, desejava estar em qualquer lugar do mundo, exceto ali.
— Desta vez o senhor conseguiu nos surpreender de verdade! — disparou Maria Antônia, com um leve sorriso de cumplicidade.
— E por que o segredo? — perguntou Celina.
— Não queríamos que nada desse errado. Foi uma escolha minha que tudo acontecesse desse modo.
— Quer saber de uma coisa? Eu adorei! Pensei que nunca veria meu avozinho casado novamente e tão feliz! — celebrou Maria Antônia, abraçando o avô.
Celina sorriu e declarou:
— Seja bem vinda, Júlia!
— Obrigada, Celina. — agradeceu meio desconcertada.
— Eu só posso estar ficando louca! — desabafou Maria Eugênia. — Não! Na verdade, acho que todos vocês é que ficaram loucos! Ninguém em sua sã consciência se casa escondido da própria família dessa forma! Isso é um desatino!
— Mamãe, acho que o vovô já é crescidinho para estar pedindo autorização a alguém do que deve fazer de sua vida.
— Não se meta, Maria Antônia!
— Depois nós conversamos, minha filha — disse Leonardo, sem parecer estar afetado com aquelas declarações.
Era terrível sentir-se o pivô de uma briga de família! Por mais que estivesse presente, Júlia não se sentia à vontade de fazer nenhuma colocação. Cabia somente a eles se entenderem. No fundo, Maria Eugênia tinha razão de estar alterada por ver a vida de seu pai invadida por uma estranha, visto que não tinha conhecimento dos anos de amizade entre eles. Talvez no seu lugar fizesse o mesmo.
João Henrique se levantou e abraçou Leonardo.
— Hoje é dia de comemoração, vô!
— Isso é uma palhaçada! — afirmou Maria Eugênia, num tom agressivo. — O senhor não deve estar nada bem.
— Pelo contrário, minha filha. Nunca estive tão feliz em toda a minha vida — declarou Leonardo.
— O senhor não vê que esta mulher está tentando se aproveitar da sua ingenuidade?
— Contenha-se, Maria Eugênia. — Leonardo avisou.
— Conter?! Como? Chego em casa e sou surpreendida com a notícia de que meu pai se casou às escondidas com uma interesseira e devo ficar contida? Foi isso que ouvi mesmo? O senhor parece um adolescente!
— E você está passando dos limites. — O tom de Leonardo era mais sério.
— O vovô tem o direito de ser feliz, ninguém pode se meter nisso — intercedeu Maria Antônia.
— Maria Eugênia, estava mais do que na hora do papai se casar novamente –Celina fez coro.
— Vocês não sabem quem é essa mulher.
— Cuidado, Maria Eugenia! — Leonardo advertiu.
— Ela se fez passar pela própria irmã morta para seduzir o Pedro Lucena e roubar dele uns documentos...
— Pare com isso, Maria Eugênia! Não tem o direito! — ordenou Leonardo.
Que vergonha!
— ... e foi demitida do lugar aonde trabalhava como prostituta! — completou. — Foi com essa mulher que o senhor casou? É essa mulher que vai entrar dentro de nossa casa? É essa mulher que vocês queriam como esposa para o papai? Júlia Serrado é uma pros-ti-tu-ta! — declarou quase gritando, com o dedo apontado na cara de Júlia.
— CHEGA! — gritou Leonardo.
A declaração de Maria Eugênia repetiu-se na memória de Júlia como um eco avassalador e fulgaz, dilacerando sua dignidade e dando a ela a certeza de seu erro. No entanto, não achava justo ser desrespeitada tão profundamente e nada fazer ou se defender. Desejou sair dali, voltar para o seu canto, de onde nunca devia ter saído. Seria a melhor resposta àquelas acusações absurdas. Não precisaria de mais nada, apenas mostrar que não existia nenhum interesse além de fazer o bem a Leonardo. Defenderia sua honra silenciosamente, com um simples testemunho. Havia pago um preço alto demais por aqueles equívocos.
Entretanto, ver o amigo defendendo-a com tanto ímpeto a fez hesitar. Sabia que não seria fácil, que Maria Eugênia, controladora como o próprio Leonardo a descrevia, não aceitaria aquela união sem relutar. Por isso mesmo ele decidira fazer tudo sem que ninguém soubesse, para que a filha não tentasse impedi-lo, como tantas vezes o fez em outras relações que ele tivera, feito o casamento complicado com a mãe de Celina, antes de sua morte. Na adolescência, Maria Eugênia transformara a vida deles num inferno, causando sua separação. Era como se para ele, aquela união representasse seu último grito de liberdade. Deste modo, Júlia não tinha como fazer diferente e abandoná-lo na frustração de ser novamente vencido pela possessividade da filha. Precisava ficar e enfrentar!
Após o silêncio deixado pelo grito de Leonardo, Júlia finalmente se manifestou:
— É lamentável que as coisas tenham chegado a esse ponto e que um momento que era para ser de celebração tenha se tornado um embate familiar, tendo a mim como causadora. Mas é bom que fique claro, Maria Eugênia, que de hoje por diante, querendo ou não, faço parte dessa família! — Tirara forças não sabia de onde para enfrentar aquela mulher. Maria Eugênia parecia perplexa com sua ousadia. — Quanto à primeira acusação, já me resolvi com Pedro. Em relação à segunda, recebi hoje à tarde, pouco antes do casamento, um pedido de perdão de Olívia Cordeiro. Ela descobriu que tudo não passava de um grande equívoco — declarou, girando o olhar para cada pessoa no ambiente.
— Não sabe com quem está mexendo! — Maria Eugênia ameaçou.
— Creio que você também não — retrucou de pronto.
Sem conseguir evitar, Júlia percebeu Maria Eugênia ficar de frente para ela, numa posição de enfrentamento. Júlia tinha consciência que sua vida ali dentro não seria fácil, mas a partir de agora, seria uma questão de honra.
— Acho que estamos resolvidos — Leonardo tentou amenizar. — Nós vamos subir e descansar um pouco antes do jantar.
Pediu licença a todos e conduziu Júlia pelas escadas ao andar superior. E antes de subirem, falou ao seu ouvido:
— Foi ótima! Estou muito orgulhoso!
Os dois subiram, deixando Maria Eugênia tomada por indignação. E ouviram-na afirmar antes de desaparecerem completamente:
— Isso não vai ficar assim!
A guerra estava declarada.






Capítulo 51

No dia seguinte, Júlia desceu a pequena escada que levava até a parte inferior do jardim e a piscina, onde Tancredo a aguardava para um café da manhã. Sua noite não tinha sido das melhores. Para ela, tudo era muito novo e estranho.
Logo que percebeu sua presença, Tancredo se levantou e a cumprimentou. Seria o primeiro amigo a saber do casamento. Preferiu não adiantar nada ao telefone, embora ele não tivesse entendido porque haviam marcado um encontro na casa de Leonardo.
Mena havia preparado uma mesa com um farto café da manhã, talvez como meio de agradar a Júlia. Ela se serviu antes de começarem a conversa.
— Juro que não entendi nada, Júlia. O que faz aqui, afinal? — adiantou-se ele.
— Leonardo e eu nos casamos ontem.
O jornalista exibiu uma expressão de incredulidade que ela nunca havia presenciado. Diante da sua perplexidade, Júlia contou o que podia, sem expor o motivo verdadeiro pelo qual estava casada com Leonardo. A doença era um segredo e ela prometera não contar a ninguém. Porém, não deixava de ser uma situação extremamente desconfortante. As pessoas não compreenderiam aquela união se não soubessem o que a motivara a tanto.
Tancredo finalmente deixou o silêncio:
— Há algum tempo, Leonardo me confessou o amor que sentia por você! Mas não imaginava que pensasse nessa possibilidade, Júlia.
— E não pensava. Ele sempre foi apenas um grande amigo.
— E desistiu completamente do Pedro?
Pergunta difícil de responder.
— Não. Ele desistiu de mim. Passei os últimos seis anos esperando uma oportunidade. Acho que está claro.
— Foi depois daquele aniversário, não foi?
— Naquele dia percebi que não havia sobrado mais nada entre a gente. Ele me tratou como se eu fosse mais uma dentre tantas pessoas ali presentes. Sabe quando você espera ser vista de um modo especial? Não foi o que aconteceu, Tancredo. Você sabe.
— Mas não ama o Leonardo o suficiente para estar casada com ele. Definitivamente não compreendo, Júlia. Casamento é muito sério.
— Nós somos grande amigos. No nosso caso o que nos motivou foi isso.
— O que está acontecendo, Júlia? Que loucura é essa que vocês dois estão fazendo? A felicidade de vocês está em jogo. Embora o Leonardo te ame, mas nunca conseguirá dar o que ele realmente espera. Isso vai fazer de vocês dois infelizes.
— É complicado, não tenho como explicar.
— O Leonardo prometeu alguma coisa a você, foi isso?
— Não é um jogo de interesses, acredite em mim! — Ela afirmou com um tom afobado e se aproximou, apoiando-se na mesa. — Existe um forte motivo para eu estar casada com Leonardo, mas nesse momento, não posso revelar. Confie em mim. — Ela procurou segurar sua mão com força.
Ele a olhou por um minuto em silêncio e declarou:
— Desculpa a minha reação, Júlia, mas não concordo com isso! — e puxou a mão de volta.
Tancredo certamente a estava julgando, o que a deixou péssima. Claro que ela se incomodaria com que as pessoas pensariam a seu respeito, especialmente um grande amigo feito ele. Se pelo menos pudesse contar a verdade, falar do estado de saúde do marido, talvez compreendessem sua atitude. Sim, devia fazer isso. Na certa Tancredo entenderia e guardaria segredo, assim, teria um aliado naquela loucura e estaria mais segura para levá-la adiante. Além do que, temia que ele desistisse de ajudá-la no caso de Clara, por duvidar de seu caráter. Mas havia a hesitação por causa da sensação de trair Leonardo. Contar para alguém sobre a fragilidade daquele grande homem seria como desonrar sua confiança. Mas se o fizesse, logo diria a Leonardo, não esconderia dele. Sim, ele era capaz de perdoá-la, compreender seus motivos. 
Ela não conseguiu se segurar:
— Leonardo tem uma doença terminal, Tancredo.
Júlia contou tudo ao amigo, que a ouviu atentamente. Pelo menos, sentia-se um pouco mais aliviada.
Por fim, Tancredo ficou em silêncio, como se digerisse aquilo, e manifestou-se.
— Não acho que vocês fizeram o certo, Júlia. Esse casamento é uma mentira.
— Não, é um ato de amizade.
— Uma exigência egoísta e um sacrifício tolo! É a vida de vocês que está em jogo. Ainda pode voltar atrás.
— Não posso, Tancredo. Meu amigo está morrendo.
Ele suspirou, balançou a cabeça negativamente e postou as mãos diante do próprio rosto.
— Vocês dois são loucos! Mas estou aqui para o que precisar.
Exatamente o que ela esperava de Tancredo. Não estava mais sozinha!
Tancredo tirou um papel dobrado do bolso do blazer e entregou para Júlia. Quando ela o abriu, o rosto de um homem em rabiscos se projetou à sua frente. Era o retrato falado de Emanuel. Cabelo negro e grande, caído de lado por sobre a face, óculos escuros tipo aviador, cavanhaque e lábios canudos. Parecia um homem bonito. Pela descrição, tinha em torno de 1,90m e era musculoso.
Júlia se arrepiou ao ver aquela imagem. O sequestrador de Clara! Recordou-se da voz no telefone, um “alô” conhecido. Aquele rosto, porém, não lhe dizia muito.
— Você o reconhece? — Tancredo perguntou.
Ela fez sinal de negativo com a cabeça. Mas a boca daquele homem, seus lábios carnudos... era como se pelo menos aquela parte, Júlia tivesse visto antes.
Só não se lembrava aonde.





Júlia entrou em seu novo quarto, trancou a porta e sentou na cama. Com o olhar firme no retrato falado de Emanuel, queria enxergar algum traço que a fizesse lembrar de quem se tratava. Os óculos escuros não lhe permitiam saber do formato dos olhos. Todavia, algo sinalizava que ela o conhecia ou que pelo menos já o tinha visto. Aquelas feições não lhe eram totalmente estranhas.
Mas e o anel? Recordou-se da peça em aço encontrada nas coisas pessoais de Aldenora, dentro da caixa vermelha que ela roubara do apartamento de dona Terezinha. Apesar de parecer um anel comum, ela tinha também a sensação de já tê-lo visto no dedo de alguém que ela conhecia.
A lembrança da voz ao telefone também lhe provocava um sentimento de estranheza, por reconhecê-la de algum modo. Tentava imaginar se o homem com quem havia falado ao telefone, quando ligou para o número registrado no aparelho celular de Aldenora, era o mesmo retratado naquela imagem.
Será que J e Emanuel são a mesma pessoa?
Era o que Tancredo e a polícia tentavam descobrir. O fato é que Ricardo e sua equipe encontravam-se na cola de Emanuel. E munidos de tantas informações acerca daquele homem, em breve colocariam as mãos nele e o mistério finalmente seria desvendado.
Mas já o vi em algum lugar...
Com Aldenora também havia sido assim, não a reconhecendo inicialmente para depois descobrir que se tratava da filha de sua vizinha e diarista.
Júlia se deu conta que alguém batia na porta. Ela dobrou o papel e atendeu.
— Acho que precisamos conversar — anunciou Maria Eugênia, à sua frente.
Seria um encontro inevitável. Pelo pouco que sabia da filha mais velha de Leonardo, ela não deixaria barata sua atitude ousada em enfrentá-la no dia anterior. Aquela conversa aconteceria mais cedo ou mais tarde.
Júlia deu espaço para que ela passasse. Maria Eugênia pediu licença e entrou, varrendo o ambiente com o olhar.
— Vejo que cuidaram para que fosse muito bem recebida.
— O quarto é realmente muito confortável. O Leonardo é muito cuidadoso. Mas nada como a casa da gente.
— Sua casa? Melhor do que esse quarto? — Falou com ar de deboche.
— Eu não tenho muito tempo, Maria Eugênia. O que deseja?
Maria Eugênia se aproximou.
— Considera-se muito corajosa e esperta, não é, Júlia?
— Sobre ser esperta, não sei a que se refere. Mas sobre ser corajosa, talvez esteja enganada. Na verdade, é simples, não tenho medo de você.
— Se eu fosse você, teria.
Júlia começou a se desanimar com aquela conversa.
— Maria Eugênia, se a sua intenção é me intimidar, não perca seu tempo. É preciso muito mais que simples ameaças para me apavorar.
— Vejo que encontrei uma adversária à minha altura. — Ela sorria, como se experimentasse algum tipo de prazer em reconhecer alguém capaz de enfrentá-la.
Júlia deu as costas, começando a arrumar alguns papéis em sua escrivaninha, para demonstrar sua indiferença à investida da enteada. De onde estava, falou:
— Definitivamente não vim para esta casa na intenção de me contrapor a ninguém ou participar de qualquer tipo de jogo. Portanto, não me considere uma adversária.
— Assumiu o papel de minha adversária direta no momento em que decidiu casar às escondidas com meu pai.
Júlia percebeu Maria Eugênia atrás de suas costas. Precaveu-se. Queria agir de modo a desarmá-la, denotando naturalidade e leveza.
— A vida não é um jogo, Maria Eugênia. As pessoas se relacionam por outros motivos que não interesses materiais. Seu pai e eu somos amigos há muitos anos.
— Está se aproveitando do estado de saúde do meu pai.
Júlia surpreendeu-se. Pensava que ninguém soubesse da doença de Leonardo. Pelo menos, era o que ele dizia ou sabia.
Parou por um instante de mexer em suas coisas e se virou. Tirou aquilo a limpo:
— Como sabe da doença?
— Sei muito mais do que imagina.
— O Leonardo achava que era um segredo para a família.
— Ele não sabe que tenho conhecimento disso. Acho inclusive que seria melhor para ele continuar sem saber.
Júlia viu naquela revelação, já que Maria Eugenia sabia da doença, uma possibilidade de poder explicar melhor seus motivos.
— Maria Eugênia, eu me casei com o Leonardo por causa dessa doença.
— Mentira. Casou-se com ele por causa dos milhões em sua conta bancária.
— Não há milhões. Amo seu pai como amigo. Nós nos conhecemos há muitos anos. Se fosse minha intenção um golpe do baú, já o teria feito.
— Na verdade não sei se é esperta ou ingênua demais, Júlia. Veja isso.
Maria Eugênia lhe entregou a cópia de um contrato bancário que trazia na mão. O documento datado daquele mesmo mês declarava Júlia como a titular de uma conta, com um crédito no valor de dois milhões de reais. Ela ficou completamente perplexa.
— O que significa isso?!
— Vai insistir que não existe nenhum interesse nesse casamento?
— Não sei do que se trata!
— Como não? Por conta dessa união com o meu pai, é uma mulher rica.
— Não pode ser! Tem alguma coisa errada!
Júlia leu e releu o documento. Uma conta fora aberta em seu nome por Leonardo, tornando-a milionária.
— Como pode se aproveitar de um homem à beira da morte para lhe extorquir dinheiro? Esperou todos esses anos para dar o golpe no momento certo.
— Não vou ficar com esse dinheiro! Vou devolvê-lo!
— Quero que vá embora dessa casa, Júlia. Saia da vida do meu pai de uma vez por todas, antes que seja tarde. Não sabe o que é me ter como inimiga!
Sair, ir embora dali, era o que ela mais desejava. E agora, aquela história do dinheiro em seu nome. O que Leonardo esperava com aquilo? Seria um espécie de pagamento pelo sacrifício em casar-se com ele? Que loucura! Em nenhum momento houve qualquer negociação financeira entre eles, pois jamais aceitaria! Fora um ato de amor e amizade somente, nada mais! Compreendia por que Maria Eugênia havia lhe chamado de prostituta na noite anterior. Os dólares provavam que Leonardo a tinha comprado, mas ele não tinha o direito de tomar tal atitude! E quando ela saberia? Depois de sua morte?
Poderia aproveitar aquela descoberta e acabar com o desatino que fora aquela união. Estaria livre! No entanto, poderia enxergar também como uma atitude de zelo por ela após sua partida, para que não ficasse desamparada. Por mais que recusasse aqueles milhões, Leonardo provava com aquela atitude sim o seu cuidado, seu amor.
— Esse dinheiro é um equívoco do Leonardo, não sei porque ele fez isso. Mas vou devolver, acredite. Quanto a deixá-lo, é tarde demais. — Estendeu o documento para que Maria Eugênia o pegasse de volta.
— Está me desafiando?
— Como você mesma falou, talvez eu tenha lhe desafiado no momento em que casei com seu pai às escondidas.
— Muito bem. — Maria Eugênia tomou o papel de suas mãos com um rápido puxão. — Que fique muito claro, Júlia Serrado, que está nesse momento comprando uma briga com Maria Eugênia Gondim!
— Entenda como quiser. — Deu novamente às costas, voltando-se para suas coisas.
Maria Eugênia caminhou até a porta do quarto.
— Não é apenas Emanuel que vocês deixarão de encontrar. Sua filha também nunca mais voltará para as seus braços!
— O quê?! — Aquela declaração a chocou. — Do que está falando?
— De Clara, óbvio! A partir desse momento, farei de tudo para impedir que a encontre. Todos os passos que vocês derem, estarei por lá para atrapalhar. Essa guerra agora é minha, Júlia Serrado! Vai se arrepender de ter me escolhido como inimiga!
E saiu apressada, deixando Júlia perplexa.






Capítulo 52

Ao lado da porta que dava para o mezanino da sala de estar, Júlia podia ouvir perfeitamente a música Suspicious Mind, entoada por uma banda, no andar inferior da mansão das Dunas. Estava pronta para a festa organizada por Leonardo, que iria apresentá-la à alta sociedade de Fortaleza. 
Haviam se passado duas semanas desde o casamento. Sua insistência para que aquele evento não acontecesse fora em vão, e Leonardo acabara por convencê-la, justificando a necessidade de um homem com sua posição social em dar uma satisfação à sociedade. A mesma desculpa utilizada por ele para o dinheiro em sua conta, quando o confrontou após a revelação de Maria Eugênia. Seria também uma forma de matar a curiosidade e especulações da imprensa acerca daquela união repentina. Júlia não se sentia confortável em enfrentar tantas pessoas desconhecidas. Era o mesmo nervosismo que antecedia suas apresentações de dança — e ela rezou para que Deus a acompanhasse. 
Ao despontar no alto da escada, todos se voltaram para ela.  Usava um belíssimo vestido verde musgo, preparado às pressas por um dos mais renomados estilistas de Fortaleza. O que apareceu um detalhe frente ao colar de finas esmeraldas que ela ostentava, presenteado por Leonardo pouco antes da recepção. Seu aparecimento foi registrado por muitos flashes, e Júlia sentia-se uma celebridade. Pois talvez fosse, após o casamento com um homem tão importante no cenário empresarial.
Alguns rostos lhe eram conhecidos da Mirage. Muitos a acompanhavam descer as escadas com admiração, outros talvez com interrogações. Ela por sua vez, procurou se apropriar daquele território com imponência, conforme Leonardo lhe pedira.  Precisava encenar o papel da senhora Leonardo Gondim!
Leonardo a recebeu no início da escada com um beijo.
— Está linda, uma rainha! — disse-lhe no ouvido.
Ela sorriu e o abraçou. Depois iniciou-se a jornada de apresentações aos amigos de Leonardo, intermediada por ele. Reconhecia muitos nomes aos quais tinha acesso somente através das colunas sociais, e conversas superficiais marcavam cada encontro e apresentação. Algumas presenças a tranquilizaram como Tancredo, Olívia Cordeiro, Celina e Maria Antônia. Para seu alívio, Maria Eugênia não estava presente.
Mas e Pedro? Não viria? Desejou perguntar a Tancredo quando o cumprimentou, porém, não seria de bom tom. Precisava manter o foco e prosseguir com seu papel de esposa feliz.
Na sequência de cumprimentos, veio o grande susto; pela primeira vez em muitos anos, Júlia se deparou com a figura de Donato Pessoa. Não teve como esconder o impacto. Os dois, frente a frente. O mesmo homem que lhe propusera no passado assumir a identidade de Mirela e roubar o dossiê de Pedro, garantindo-lhe achar sua filha, o provável mandante do sequestro de Clara.
— Então esta é a nova senhora Leonardo Gondim? — Donato estendeu a mão para cumprimentá-la.
Cretino! Como pode ser tão sórdido e dissimulado?
Era terrível estar diante daquele homem! Sentiu asco e o deixou com a mão estendida, sem corresponder ao cumprimento. Não seria hipócrita em se fingir cortez com aquele homem. Todos se entreolharam e instalou-se um clima de constrangimento. Leonardo se antecipou para salvar a situação:
— Júlia, esta é Marina, a esposa de Donato.
Uma mulher jovem e linda ao seu lado. Júlia sentiu pena por ela ser casada com um crápula como aquele, mas cumprimentou-a normalmente.
— Parabéns, Júlia. Tem o mundo aos seus pés — disparou Donato, sem desperdiçar munição.
Para ela, aquele comentário estava cheio de significados. Um deles, em especial, era atingi-la. Como poderia alguém ser tão frio? Certamente Donato detinha a chave para desvendar o mistério de onde estaria sua filha, mas mantinha-se firme num propósito por ela desconhecido e fingia total indiferença ao caso, tratando-a como se nada existisse. Daquele homem, esperava qualquer coisa. No entanto, poderia enfrentá-lo, surpreendê-lo, aproveitar do próprio status por ele reconhecido e partir para o ataque — o que certamente Donato Pessoa não imaginava que pudesse acontecer. Ser exposto por uma acusação tão grave diante de toda a sociedade fortalezense pela esposa de seu patrão talvez fosse um golpe que o atingisse profundamente. Mas era óbvio que Júlia não conseguiria nenhuma informação importante  dele. A ideia seria demonstrar poder e fragilizá-lo diante das pessoas.
Contudo, agredi-lo em público, acabaria por transformar o momento de celebração de Leonardo num grande escândalo noticiado por toda a imprensa. Na verdade, não poderia mensurar a repercussão e o efeito daquilo nas investigações do sequestro, e isso a fez hesitar.
Júlia pediu licença a Marina e fez um gesto com a cabeça para o marido e saiu. Queria manter-se distante daquele homem para evitar uma atitude impulsiva e prejudicar as investigações. Estavam muito perto de descobrir a verdade com a prisão de Emanuel, e ela não correria o risco de por tudo a perder. Pegou uma taça de champanhe da bandeja de um garçom e tomou um gole. Precisava controlar o ódio desertado por aquele encontro. Neste instante, a música parou e todos se voltaram à porta de entrada da mansão, de onde se podia ver Maria Eugênia, surpreendentemente acompanhada de Guel.
Júlia não acreditara no que vira! O que seu cunhado fazia ali, ao lado da filha de Leonardo?
— Peço a todos um pouco de sua atenção — anunciou Maria Eugênia. — Como meu pai, eu também tenho uma surpresa a todos: quero lhes apresentar Guel Serrado, meu novo marido.
Júlia ficou petrificada com a notícia, sem conseguir compreender direito o que estava acontecendo. Olhou para Leonardo de longe e percebeu que ele engolia a seco aquela provocação. Seria uma vingança, uma forma de Maria Eugênia chamar atenção do pai ou de atingi-la diretamente por tratar-se justo de seu cunhado?
O fato é que... Maria Eugênia conseguira roubar a cena!






Júlia agradeceu Leonardo pela noite na porta de seu quarto, despediu-se com um abraço e entrou. Estava exausta, só haviam subido após o último convidado deixar a casa.
Ela tirou os sapatos e foi até o banheiro. Diante do espelho, olhou para sua imagem, procurando reconhecer em si os valores que a orientaram a vida inteira. Parecia tê-los perdido. A vida dela agora era outra. Modificada bruscamente, levava-a a refletir: será que a mesma Júlia Serrado ainda existia?
Tocou o colar com a ponta dos dedos e tirou-o. Era como se desvencilhasse da máscara tão fortemente usada à noite inteira, diante daquelas pessoas que fingiam acolhimento e admiração. A velha hipocrisia da sociedade, tendo ela como pivô. Protagonizara uma grande farsa!
Alguém bateu à porta. Júlia foi até o quarto e abriu. Era Guel.
— Posso entrar?
— O que quer?
— Não será interessante conversar aqui no corredor. Alguém pode nos ver.
Ela pensou um pouco e abriu caminho para que ele entrasse.
— Seja breve, Guel. Estou muito cansada.
Guel admirou o luxuoso ambiente. Disparou:
— Vejo que estamos muito bem instalados!
— Veio aqui para isso?
Ele sorriu.
— Para você, nunca passei de um inimigo, não é mesmo?
— Não tem como ser diferente.
— Estou aqui por sua causa, Júlia.
— É mesmo? — caçoou. — E qual é o plano? Como vocês pensam em acabar comigo?
— Nós? Quer dizer a Maria Eugênia, não é?
— Vocês estão mancomunados para me destruir. Ela declarou guerra a mim, e sua primeira arma é você.
— Está enganada.
Guel caminhou até uma poltrona e sentou, cruzando as pernas elegantemente.
Como alguém pode ser tão sórdido?
— O que quer aqui, afinal? — perguntou Júlia, com um tom impaciente.
— Esqueceu de nossa aliança?
Aliança?
— Vá embora daqui, Guel! — Apontou firme para a porta.
— Maria Eugênia e eu nos conhecemos há muitos anos, desde que eu trabalhava num bar chamado Mukifu, na Beira Mar.
— Sim, eu sei. Um lugar de prostituição. Depois do sumiço de Clara eu o procurei por lá.
— Aquele lugar é de propriedade da Maria Eugênia, Júlia.
— O quê?! — ficara perplexa com a revelação.
Guel se projetou para frente, apoiando-se nos joelhos.
— Escute bem: Maria Eugênia é uma mulher insaciável, sexualmente falando. Então ela resolveu investir naquele lugar e utilizar os serviços dos garotos quando quisesse, ou seja, quase frequentemente. Quando está carente, liga para o Nacélio, o gerente do espaço e solicita dois ou três rapazes para um flat de sua propriedade, na Beira Mar. O Mukifu é a vida paralela da grande executiva Maria Eugênia Gondim.
Uma mulher tão requintada, dona de uma casa de prostituição masculina? E se fosse mentira de seu cunhado?
— Como posso ter a certeza de que está falando a verdade?
— Sabe que estou. — Guel finalmente levantou e se aproximou de Júlia. — Eu e você temos uma aliança. Prometi que a ajudaria a encontrar sua filha.
— Se está do meu lado como diz, por que se uniu com Maria Eugênia?
— Sempre fui o preferido de Maria Eugênia. Mesmo depois que saí do Mukifu e estava com a Olívia, nós nunca deixamos de nos encontrar. Ela era muito generosa financeiramente comigo, e me procurou recentemente propondo esse casamento.
— Essa mulher não tem limites! — Júlia não se segurou.
— Não mesmo. Mas está unindo o útil ao agradável, acredite. Apesar de não assumir, ela é completamente apaixonada por mim. Diversas vezes cogitou a possibilidade de estar somente comigo, mas a moral que prega socialmente não lhe permitia tal loucura. Temia o que as pessoas comentariam — afirmou, com um sorriso de orgulho.
— E por que está me contando isso?
— Por conta de nossa aliança.
— Vai estar aqui para ajudá-la.
— Errado. Estou aqui para lhe proteger. Maria Eugênia acredita que minha presença pode desequilibrá-la. E mais, quer também que eu a seduza. O que para mim seria perfeito.
— Não seja ridículo!
— Bom, a ideia é que ela continue acreditando nisso. Paralelo a esse jogo, nós podemos investigá-la juntos.
Investigá-la? — Júlia sentiu-se confusa. — Por quê?
— Em muitos momentos percebi que Maria Eugênia recebia estranhas ligações de uma pessoa que ela insistia manter em sigilo. Há algum tempo descobri de quem se tratava.
— E quem é?
— Donato Pessoa.
— Eles foram casados por mais de sete anos.
— Isso mesmo. Separaram-se quando ela descobriu que ele a traía com Luísa, sua secretária. A verdade é que sempre foi uma relação de interesses. Mas o caso de Donato com a secretária veio a público e ela precisava tomar uma atitude enérgica para dar uma satisfação às pessoas. Era a cara de Maria Eugênia.
— Pensei que eles não gostassem um do outro.
— É o que todos pensam. Mas eles mantém boas relações um com o outro, pode acreditar. Imagino que o nome de Maria Eugênia pode fazer parte do dossiê arrancado das mãos do Pedro Lucena. Os dois juntos roubam a RTN há anos.
Ela passou a mão na cabeça e segurou o queixo.
— O que está me contando?!
— Que o Donato Pessoa pode não ser o verdadeiro mentor do sequestro de Clara. — Voltou e se sentou na poltrona.
— Está insinuando que...
— Exatamente. Pode ser a Maria Eugênia Gondim, a pessoa que está por trás disso. Acredita que estou do seu lado? Somos ou não parceiros?
Santo Deus!
“Não é apenas Emanuel que vocês deixarão de encontrar. Sua filha também nunca mais voltará para os seus braços!”
Aquela declaração de Maria Eugênia fazia sentido!
Se o que Guel havia contado era verdade, o destino parecia dar uma força a Júlia, fazendo com que se casasse justo com o pai Maria Eugênia e viesse morar em sua casa, estando dentro do território de sua maior inimiga, quem verdadeiramente fora responsável pelo sequestro de Clara. Mas se ele estivesse mentindo, inventando aquilo para lhe despistar do alvo real? Se tudo fosse um plano de Guel e Donato Pessoa para distrair-lhe o foco? Por mais que aquela história fosse recheada de detalhes e se encaixasse direitinho na trama criada pelo senador para recuperar o dossiê, ela não tinha como esquecer o caráter duvidoso do cunhado, que movido pelo desejo de vingança, foi quem deu início ao plano de Donato para envolvê-la naquele jogo sórdido, a fim de conseguir os tais documentos que o incriminavam.
Quem podia realmente garantir a veracidade da cumplicidade de Guel? Óbvio de que Júlia fazia parte de um jogo perigoso e não sabia no que acreditar. Deste modo, precisava jogar com ele.
— Prove-me que posso confiar em você! — Ela o desafiou.
Guel sorriu e tirou um papel do bolso interno do blazer. Estendeu em sua direção.
— O que é isso?
— Vamos, pegue.
Júlia viu que se tratava de um endereço.
— O que significa isso?
— A prova de que estou do seu lado. Este é o endereço de onde o Emanuel está escondido. É um sítio a alguns quilômetros de Fortaleza, no Eusébio.
Júlia gelou. Fitou aquele papel como se sua vida fosse resolver em breve. Emanuel era a chave daquele mistério.

E agora, sabia onde ele estava escondido! 






Capítulo 53

Sítio Olho D’Água.
Júlia avistou a placa de madeira maciça com o nome encravado, acima do grande portão que separava a propriedade. Ela estacionou o carro de Leonardo por trás dos arbustos, a alguns metros da entrada do sítio indicado no endereço fornecido por Guel na noite anterior. Se Emanuel estivesse realmente escondido ali, em breve teria acesso ao sequestrador de sua filha. No entanto, Júlia desconfiava da veracidade da informação. Como Guel ficara sabendo do esconderijo de Emanuel? Que ligação eles tinham? E por que Guel continuou pedindo sigilo em relação a Maria Eugênia?
Júlia agiria com cautela, discretamente, sem que ninguém percebesse. Preferia se certificar da presença de Emanuel naquele lugar antes de acionar Tancredo e a polícia. Só depois de por os olhos naquele bandido, tomaria as devidas providências.
Júlia desligou o motor do automóvel e baixou os vidros do carro alguns centímetros. Se preciso fosse, passaria o dia ali, até que alguém aparecesse.
Júlia pegou o retrato-falado em cima do banco do passageiro e o apoiou no volante, mirando a figura de cabelo grande, cavanhaque e óculos escuros.
— Quem é você? — Ouviu o próprio pensamento transformar-se em palavras.
O portão finalmente se abriu, saindo uma Toyota preta com placa de Belo Horizonte, conforme Guel havia lhe dito. Seria, segundo seu cunhado, o carro usado por Emanuel naquele momento. Os vidros escuros da caminhoneta permitiam perceber que o motorista estava acompanhado de outra pessoa, no banco do passageiro.
Sentiu-se muito nervosa. Por um instante pensou em desistir, mas continuou. Largou o papel com a imagem rabiscada de Emanuel, ligou o motor do carro e engatou a primeira marcha. Aguardou o outro veículo tomar distância para segui-lo. Os dois carros partiram em direção ao centro da cidade do Eusébio, a poucos quilômetros dali. Júlia alternava a velocidade entre 60 e 80km/h, mantendo distância da caminhoneta para não chamar atenção.
A lembrança da voz de Emanuel ao telefone persistiu em sua memória, feito a imagem do anel, encontrado na caixa, no apartamento de dona Terezinha. A letra “J” na parte interna da aliança e também registrada na agenda do celular de Aldenora gerava dúvidas. Quem era aquele homem?
Quando ela se deu conta, a imagem da caminhoneta à sua frente estava pequena, muito distante. Logo Júlia foi ultrapassada por outro veículo, fazendo-a diminuir um pouco mais a velocidade. Ficou agoniada. Não poderia perder aquele carro de vista.
Engatou a quinta marcha e tentou ultrapassar o automóvel, sem se dar conta de que vinha uma moto no sentido contrário.
— Meu Deus! — gritou.
Buzinando, o motoqueiro desviou a moto para o acostamento, permitindo a ultrapassagem.
Por pouco!
Ela passou a mão na testa e segurou novamente o volante, pisando forte do acelerador, até que o velocímetro marcasse 110km/h. Se aproximou novamente da Hilux. Olhou para o retrato-falado de Emanuel jogado no banco ao seu lado e teve a certeza de que logo o encontraria pessoalmente. E continuou acelerando, até recuperar a distância inicial da caminhoneta.
Foi quando lembrou daqueles lábios carnudos. Alternava a visão da estrada à imagem desenhada naquele papel ao seu lado.
Não pode ser!
Com uma das mãos, pegou a bolsa no banco traseiro do automóvel, colocando-a entre suas pernas. Tirou a foto de Aldenora no aeroporto de dentro da bolsa e juntou-a ao retrato-falado.
Sentiu um calor subir por sua espinha. 
A voz de Emanuel ao telefone, a letra “J”, o anel... Tudo ficou claro em sua mente. O retrato falado e a foto no aeroporto.
— É a mesma pessoa! Isso não pode ser verdade!
Por diversas vezes, Guel negara estar ao lado de Aldenora na fotografia do aeroporto. A imagem era um pouco desfocada, mas parecia com ele, por causa da altura e porte. Os óculos escuros escondiam um pouco as feições.
Porém, estava claro quem era aquela pessoa. A mesma boca desenhada naquele retrato-falado. Só podia ser o mesmo homem! Guel falava a verdade quando afirmava não ter estado no aeroporto naquele dia. Mas seu nome fora confirmado entre os passageiros daquele voo, segundo informações apuradas por Tancredo junto à empresa aérea. Como podia?
Emanuel nunca existiu!
Bateu com força no volante, lamentando não ter imaginado antes aquela farsa. Um misto de sentimentos a bombardeou naquele momento. Ódio, tristeza, frustração. Tudo foi impulsionando-a a se aproximar da Hilux, como se quisesse destruí-la. Não tinha como conter as lágrimas, por sentir-se tão enganada, tão violentada em sua dignidade!
Como ele pôde?
Finalmente o mistério acabava!
Pegou o telefone celular na bolsa e procurou o número de Tancredo na agenda. Ele precisava saber quem era o verdadeiro sequestrador de Clara. Acabaria de uma vez por todas com aquela mentirada absurda que havia lhe causado tanto mal, tanta dor. Mas antes, pretendia ficar cara a cara com aquele homem, saber como tivera coragem de enganá-la daquela forma e por que o fizera. Ouvir dele os motivos que tivera para lhe causar tanto sofrimento naqueles últimos seis anos. Um acerto de contas!
Ela olhou para o nome de Tancredo na tela no aparelho, pensou um pouco e decidiu. Jogou o celular no banco do passageiro e prosseguiu atrás da Hilux.
A esta altura, estavam entrando na cidade. Até que a sinaleira da caminhoneta foi ligada e a velocidade diminuiu, parando na loja de conveniência de um posto de gasolina. Júlia estacionou a alguns metros da Hilux. Viu o homem descer do carro. Lembrava o porte do Guel. Alto, cabelo preto e grande, como no retrato-falado. Óculos escuros, bem vestido com uma camisa azul-escuro, de mangas arregaçadas, calça jeans e sapatos finos. Os traços do rosto, a textura e a cor do cabelo poderiam ter mudado, mas aquele jeito de andar era o mesmo de seis anos atrás.
Júlia soltou o cinto de segurança rapidamente e saiu do carro às pressas, dando um só grito:
— JOEL!
O homem se virou lentamente. E ela viu o rosto do verdadeiro sequestrador de Clara, o homem com quem foi casada por cinco anos e que todos pensavam estar morto!





Júlia finalmente entrou na propriedade onde Joel estava escondido, no assento traseiro de sua caminhoneta. Ela havia se aproximado dele no posto de gasolina, enchendo-o de perguntas, até que ele, talvez por medo de chamar atenção das pessoas no local, propôs irem até o sítio, onde se sentiria seguro para contar o que ela precisava saber.  Depois de certa relutância, aceitou deixar seu carro ali e acompanhá-lo. Contudo, temia que alguma coisa lhe acontecesse.
Eu não devia ter vindo sozinha!
Júlia sentia os nervos à flor da pele. Se Joel lhe fizesse mal, ninguém saberia. Só havia aceitado o convite por causa da esperança de encontrar Clara naquele sítio. Mas no fundo, sabia que ele jamais a levaria para lá se sua filha estivesse presente. Exceto se pensasse na possibilidade de mantê-la junta em cativeiro ou até mesmo matá-la.
Júlia desceu do veículo e acompanhou Joel até a varanda da casa. Estava apreensiva, analisando o ambiente à sua volta. A casa era contornada de alpendre com muitas plantas e um belo jardim. Numa garagem, outros dois veículos e uma moto estavam estacionados. Diversos homens armados rondavam o local e pareciam atentos à sua chegada.
Joel pareceu perceber sua tensão e tentou minimizá-la.
— Não se preocupe, eles estão aqui para nos proteger.
Proteger-nos?
Ela olhou para ele. Tinha o rosto completamente diferente da época em que foram casados, como o cabelo e os olhos, agora negros. Os olhos de Joel eram verdes e o cabelo castanho claro.
— Você está mudado — comentou ela.
— Nada que algumas plásticas não resolvam.
— Poderia ter fingido não ser você.
— Não adiantaria. No demais, era tempo de nos encontrarmos.
Júlia chegou perto da porta de entrada aberta e observou o interior da casa.
— Onde está a minha filha, Joel? — Estava guardando aquele pergunta desde o posto de gasolina. Não tinha mais como adiá-la.
— Não está comigo.
— Mentira! A Aldenora confirmou que vocês criaram a minha filha.
— “Nossa filha” — corrigiu ele. — A Aldenora disse o que podia para se safar.
Júlia cruzou os braços e caminhou de um lado para o outro da varanda. Nunca pensou estar novamente diante do marido que pensava ter morrido há seis anos. Parecia surreal aquela experiência. Sentia dificuldade em organizar as ideias.
— Pelo amor de Deus, Joel! Diga o que significa isso! O desaparecimento da nossa filha, a sua morte, esse jogo... qual é a finalidade? Quem está por trás de tudo?
— Sempre quis mudar de vida, sabe disso. Nunca aceitei a vidinha medíocre que nós tínhamos.
— A vida que eu te proporcionava.
— Que para mim, não era o suficiente — esclareceu.
— Foi você que quis casar comigo e me separou do seu irmão.
— Naquela época eu era apaixonado por você.
— Mas depois apareceu a Aldenora, não foi isso?
— Exatamente. A Aldenora e eu nos envolvemos e entramos nessa juntos.
— Até o momento que ela foi útil ao seu lado, depois a descartou, como fez comigo.
— Não pense que foi fácil, Júlia.
— Não, definitivamente não consigo imaginar. Deve ter sofrido muito!
— Compreendo sua ironia. Mas foram sim decisões muito difíceis. Tudo se torna mais complicado quando a vida de pessoas que amamos está em jogo.
Amor?!
— Vem me falar que fez isso por amor?!
— A Clara tem tudo que ela não teria se nós estivéssemos juntos.
Desgraçado!
— Ela não desfruta da minha presença! — gritou, partindo para cima dele, quase a ponto de agredi-lo. — Ela não tem acesso ao meu amor! Ela não tem uma mãe! E você vem me falar de amor?! — pronunciou aquilo com a boca trêmula, tomada de ódio.
— Nunca compreenderia, Júlia.
— Nunca! Nunca! Nós somos pessoas muito diferentes, Joel, mas eu jamais imaginaria que a sua ambição chegasse a tanto. Cheguei a pensar quando nos casamos que eu havia escolhido realmente o irmão certo, mas esse foi o maior erro da minha vida. — Alternava o olhar entre ele e o chão. Falava com agressividade. — O problema do Guel era a inconsequência de um jovem que conheceu a fama e o dinheiro muito cedo. O seu, ultrapassava o caráter, patinando na linha tênue da psicopatia. — colocou o dedo em sua cara. — Você e sua irmã fizeram do Guel o que ele é hoje. Mas na verdade, o grande equívoco existencial é você! Ele foi tão vítima quanto eu.
— Pensa de forma pequena, Júlia. A vida é muito mais do que um palco de dança e um salário miserável no final do mês, com um bônus de honra e dignidade pelo caminho honesto trilhado no dia-a-dia. Dignidade é poder gozar do conforto de um apartamento de luxo num bairro nobre de São Paulo, é poder dirigir um bom carro, é poder viajar para onde quiser, é poder estar nos melhores lugares e ter acesso às melhores coisas. Dignidade é nascer pobre e morrer rico!
— Nem que para isso seja preciso fazer sofrer, enganar, roubar e matar.
— Essa é a lei da vida. A cadeia alimentar, entende? Sobrevivem os mais fortes.
— Só me tire uma dúvida: o sequestro de Clara foi realmente para me forçar a assumir a identidade da minha irmã e conseguir o dossiê do Pedro Lucena?
Aquela era a hipótese levantada por ela e Tancredo desde o início. Porém, eles não tinham como comprovar.
— Jamais aceitaria se passar por outra mulher se não fosse pelo sequestro.
Júlia engoliu a seco aquele reposta e tentou saber:
-          De quem foi a ideia? Foi sua? — Júlia perguntou, mas tinha a esperança de que ele dissesse que não.
— Foi minha, sim.
— MONSTRO! — gritou, batendo em seu tórax com toda a força que lhe cabia. Chorou o ódio que a movia naquele instante.
Joel permitiu que ela desabafasse, depois continuou:
— Eles pediram para eu convencê-la. Era a única forma de você participar do jogo.
— A vida da nossa filha estava em jogo!
Ele a segurava pelos punhos.
— Ela estaria comigo, nada de mal lhe aconteceria.
— E a minha dor, o meu sofrimento... nunca se importou?
— Sabia que nunca havia me amado. O Guel estava de volta e vocês logo estariam juntos.
— Então era uma vingança antecipada?
— Não. Uma defesa.
— E sua morte? Eu fui ao seu funeral.
— Você foi a um funeral de outra pessoa. O corpo que a Raquel identificou como sendo meu estava carbonizado por conta da explosão do carro, lembra?
— É claro, ela mentiu. – Sentiu-se ainda mais idiota. — E quando a farsa da Mirela acabou, por que vocês não me devolveram a minha filha?
— A ideia era de devolver, sim. Mas depois a gente viu que não se podia mais voltar atrás. Estava apaixonada por outro homem e eu achei que era justo ficar com Clara.
— Passaram-se seis anos.
— Não tive coragem de me afastar dela. Era o que me ligava a esse mundo, a você.
— Onde ela está, Joel?
— Não sei, Júlia. Clara foi tirada de mim há alguns meses, como forma de garantir o meu silêncio.
— E quem está por trás disso, Joel?
— Se souber, sua vida estará em perigo, feito a minha.
— Mentira! — gritou. — Não diz por fazer parte da mesma quadrilha.
— Apesar de tudo, gosto de você.
— É a Maria Eugênia Gondim? É ela a mandante?
— Quero te propor um acordo, Júlia.
— Acordo?
— Sim, um acordo. Nós nos unirmos para descobrir onde está nossa filha e depois me ajudar a fugir.
Bandido, covarde, monstro!
Júlia experimentava um sentimento de repulsa, nojo daquele homem. Não o reconhecia como a pessoa com quem esteve casada por cinco anos, seu companheiro, o pai de sua filha. Era uma sensação de total estranheza a Joel, não apenas pela aparência física diferente, mas pelo caráter. Sabia que o marido era um fraco, mas nunca imaginou-o um psicopata. Via-o como um doente, capaz de qualquer coisa para conseguir seus objetivos. Não acreditava que ele quisesse lhe proteger ou à própria filha em nenhum instante, mas somente a si mesmo. Informação era poder e Joel detinha o nome do mentor de toda aquela trama imunda. Revelá-lo representaria talvez dividir, enfraquecer sua munição numa guerra perigosa.
Como Júlia poderia estabelecer qualquer acordo com aquele crápula? Unir-se ao sequestrador de sua filha na esperança de encontrá-la? Se o fizesse, Joel lhe passaria a perna e sumia novamente com Clara. No entanto, era a alternativa mais cabível naquele momento. Se ele não tinha atentado contra sua vida, poderia ceder, aceitar a proposta e entregá-lo à polícia. A atitude mais prudente naquele instante.
Com certo esforço, Júlia estendeu a mão para firmar a suposta aliança. Jogaria com a mesma arma dele no intuito de vencê-lo. A mentira!
— Eu aceito.
Ele apertou sua mão e sorriu.
— Não se arrependerá, Júlia. É a única forma de encontrarmos nossa filha. Estamos juntos nessa.
— Estamos sim!






Capítulo 54

Júlia acabou de tocar a campainha pela segunda vez quando a porta do apartamento “802” foi aberta. Raquel surgiu diante dela. A cunhada havia lhe passado seu novo endereço há alguns dias, mas em virtude do casamento, Júlia não tivera como acompanhar a mudança, especialmente porque não engolia a história de que Raquel estivesse bem financeiramente, fazendo doces e salgados para festas. Em todos aqueles anos em que elas moraram juntas, a cunhada nunca conseguira sustentar a si e aos filhos sem sua ajuda financeira. O que justificava aquele apartamento?
Júlia entrou e percorreu o ambiente com o olhar. Embora o lugar não parecesse tão grande, sabia que era caro, por causa da boa localização. E todos os móveis eram novos e de bom gosto!
Ela foi até a varanda, de onde se tinha a visão da Igreja de Fátima.
— Parabéns pelo espaço, Raquel. Está realmente lindo.
— Depois de tantos anos, finalmente consegui o meu cantinho.
— Quanto tempo moramos juntas? Dez, onze anos?
Raquel fez sinal com a cabeça, como se concordasse. Júlia deixou a varanda e retornou à sala.
— Foram muitos anos de mentiras. Primeiro, sobre a minha separação do Guel, depois, o desaparecimento de Clara. E você sempre sabendo da verdade.
Raquel permaneceu imóvel, apoiando-se no balcão que separava a sala da cozinha americana. Júlia se aproximou um pouco mais.
— O que mais me dói é ter presenciado a minha dor, o meu sofrimento durante tanto anos e nada ter feito para me aliviar. Sempre com o discurso de que éramos irmãs. Há algum tempo, o Guel me questionou acerca de sua lealdade, mas para mim era muito difícil acreditar que logo você fosse capaz de me trair tão gravemente. — Júlia abriu os braços e deu meia volta. — Esse apartamento diz tudo, Raquel. O que me fazia duvidar que seu irmão pudesse ter razão, era te ver tão dependente de mim. Não justificava ter participado de tudo e não levar nenhuma vantagem. — Júlia se pôs diante da cunhada. — Mas você tinha um propósito, não é verdade? Precisava ficar por perto para garantir que eu não me aproximasse da verdade. E agora, teve o seu pagamento. — Raquel permanecia estática e, com a boca trêmula, deixou uma lágrima cair. — Alguma vez se arrependeu de ter compactuado com isso?
Raquel baixou a cabeça, ficou em silêncio por alguns instantes e chorou.
— Todos os dias, todas as horas... — fez uma pausa. — Cada segundo foi de arrependimento!
A confissão!
Júlia quis cair em prantos, mas permaneceu firme. Respirou fundo e lançou a pergunta:
— Esse apartamento, foi o Joel quem te deu?
Raquel fez que sim com a cabeça, desviando o olhar. Júlia continuou:
— Sempre soube que ele estava vivo, não é mesmo?
Mais uma afirmação.
Júlia pôs a mão na boca e cedeu à dor provocada por aquela confissão. Sentiu-se sem forças. Afastou-se um pouco e apoiou-se no braço de uma poltrona para se sentar.
— Então sempre soube que Clara estava com o Joel?
— Sim.
— Nunca foi minha amiga!
— Isso não é verdade, Júlia. — Raquel caminhou até a varanda, como se precisasse de bastante espaço para o que diria a seguir. — Sofri todos esses anos, te vendo lutando para encontrar a Clara, sem nada poder fazer, sem nada dizer.
— Por que não?
— Nunca concordei com essa história, Júlia. Mas o Joel me convenceu de que era o melhor para vocês. E eu não entrei nessa simplesmente porque ele confiava em mim. Nada disso. Flagrei uma conversa dele por telefone e fiquei sabendo de tudo. Naquele dia, nós brigamos feio. Eu disse que ia te contar tudo. Mas ele implorou que eu não o fizesse, falou que tinha entrado num caminho sem volta e que corria risco de vida. Antes do Joel sumir com a Clara, nós tivemos muitas discussões. — Raquel virou-se para Júlia e finalmente a olhou nos olhos. — Sempre fui contra, Júlia! Mas aí um dia, quando fui pegar os meninos na escola, tinha uma mulher estranha conversando com eles na porta do colégio. Ela me chamou e disse que eu ficasse em silêncio sobre o meu irmão, caso contrário, meus filhos pagariam o preço. — Raquel não se controlou, caindo em prantos novamente. — Fui obrigada a ficar em silêncio esse período, Júlia! Por muito tempo, um carro estranho rondou nossa casa. Era uma espécie de aviso para mim, para que eu ficasse calada. Por mais que eu te visse sofrer, não tinha coragem de fazer nada para modificar aquilo. O teu sofrimento aumentava o medo que eu tinha de perder os meus filhos, entende? — Raquel se aproximou e pôs-se de joelhos diante de Júlia. — Eu sei que te traí, mas não tinha como ser diferente. A vida dos meus filhos estava em jogo! E, no fundo, eu sabia que Clara estava bem. Não justifica, eu sei. Mas quem te traiu foi uma mãe desesperada, com medo de perder a única coisa que tinha na vida, seus filhos! É esta mãe que está aqui, diante de você, te pedindo para perdoá-la! Perdão, minha amiga?! Perdão, minha irmã?!
Júlia apoiou os cotovelos nos joelhos e entregou-se ao choro. Ouvir toda aquela história a deixava confusa sobre a índole de Raquel. Nos últimos quatro meses, desde que descobrira a verdade acerca de sua separação de Guel, ela vinha desconstruindo a imagem de amiga fiel a respeito da cunhada, passando a enxergá-la como uma traidora, o que fora se confirmando a cada dia. De repente, a própria Raquel descortinava justificativas e explicações que a tiravam do banco dos réus e a transformavam numa leoa, protegendo sua cria.
Por um momento, Júlia se viu no lugar da cunhada, quando, tomada pelo desespero de encontrar a filha, assumiu a identidade de outra mulher para enganar e roubar. O que uma mãe, diante do perigo, é capaz de fazer para salvar um filho? Aquela pergunta a conduziu ao passado, distanciando-a de todos os valores e princípios existenciais, prezando por conseguir seus objetivos. No final, viu-se perdida de si mesma, tão suja quanto às pessoas que a colocaram naquele jogo. Como Raquel, ajoelhada, implorando seu perdão.
Definitivamente, não sabia no que acreditar. Foram tantas mentiras, afinal! E se fosse mais um jogo para envolvê-la? E se a cunhada estivesse novamente se aproveitando de sua fragilidade?
Sentiu-se exausta de tudo! Pediu forças a Deus, discernimento.
— Preciso de um tempo para digerir isso, Raquel.
— É compreensível que não consiga acreditar em mim, Júlia. Mas esta foi a verdade que me conduziu até hoje. Meu erro foi ter sido fraca!
O celular de Júlia tocou. Ela foi até onde estava a sua bolsa e alcançou-o antes que parasse de chamar. Era Tancredo.
— Pegaram ele?
— Júlia, o sítio estava abandonado. — Tancredo comunicou. — O pessoal do Ricardo vasculhou tudo. Ninguém sabe de nenhuma informação sobre o Joel. Ele fugiu!
Canalha! Mais uma vez me passou a perna...






Júlia desceu a escada rolante com pressa em direção à praça de alimentação do shopping. Há pouco mais de uma hora Tancredo entrara em contato com ela, pedindo que chegasse ao encontro deles antes do horário previsto, por conta de outro compromisso importante. Ao se aproximar do local combinado, ela avistou o repórter sentado a algumas mesas, na companhia de alguém que parecia ser Pedro. Seu corpo respondeu instantaneamente com um tremor que foi dos braços à ponta dos dedos. Quando passou a mão no cabelo levando-o para trás, Júlia teve certeza de se tratava de Pedro. Um gesto que ela havia visto inúmeras vezes, desde que se conheceram.
Será que esse encontro foi proposital?
Tancredo acenou para ela. Os dois se levantaram para cumprimentá-la.
— Encontrei com Pedro há alguns minutos por acaso. — explicou Tancredo.
Pena não ter sido de propósito!
Pedro puxou uma cadeira para que Júlia se sentasse.
— Alguma novidade? — perguntou ela.
— Ricardo está na cola de Joel — Tancredo se antecipou. — Ele e seus homens foram vistos naquele dia, horas depois da fuga, no mesmo posto de gasolina em que se encontrou com você. Pelo que os funcionários do local relataram, eram cinco homens e andavam em duas caminhonetas. O Ricardo descobriu que os dois carros estavam alugados em nome de um dos capangas dele. Um cara que tem várias passagens pela polícia. No dia seguinte, eles devolveram os veículos à locadora. A polícia rastreou todas as empresas que alugam veículos em Fortaleza. É impossível eles alugarem qualquer automóvel sem que saibamos.
— Mas podem comprar — questionou Pedro.
— O Ricardo também pensou nisso. Como a ficha de todos os quatro homens que o acompanharam, é improvável que eles tenham qualquer mobilidade com suas identidades verdadeiras.
— Mas eles podem usar identidades falsas? — Júlia indagou.
— É possível que sim. Pelo menos Joel, sabemos que é praxe. Mas o cerco está se fechando, Júlia. Eles não estão longe. Logo, logo estarão presos.
— Tomara que sim! — Júlia desabafou.
O celular de Tancredo tocou. Ele pediu licença e o atendeu imediatamente.  Enquanto isso, Júlia e Pedro procuraram desviar o olhar um do outro, de um modo um tanto quanto constrangedor. Ela sentiu-se um pouco desconfortável.
— Aconteceu um imprevisto, eu preciso sair — explicou Tancredo, levantando-se. Pediu desculpas aos amigos, despediu-se e saiu.
Júlia e Pedro pareceram desconcertados, sem saber ao certo como proceder na presença um do outro. Ela desejava estar ali com ele, desfrutar mais de sua presença, mas não sabia o que conversar.
— Vou pedir um café — disse ela, meio sem jeito.
Pedro se antecipou, fazendo sinal para o garçom. Os dois pediram um cappuccino e permaneceram em silêncio. Júlia olhou para um lado e outro. Viu Pedro fazendo o mesmo. Constrangedor!
— E o casamento? — Pedro quebrou o silêncio.
Ai, meu Deus, o que responder?
Caminhando.
— Caminhando de modo positivo ou negativo?
— Tem sido difícil a adaptação naquela casa.
— E não era o que desejava?                      
— Não, Pedro. Sabe que não!
— Confesso que não compreendo, Júlia. O que leva uma pessoa a tomar uma decisão tão séria, capaz de mudar completamente a sua vida, sem estar movida por um desejo profundo de vivenciar aquilo?
— Gostaria muito de poder lhe responder, mas não posso.
— Que segredo é esse, Júlia? — insistiu ele.
Os dois foram interrompidos pelo garçom, que trouxe os capuchinos. Aguardaram que o rapaz os servisse e prosseguiram.
— Fiquei um pouco receosa — disparou ela.
— Com o quê?
— Se alguém nos vir aqui... Já saiu comentários de nosso envolvimento nos jornais, lembra? Se algum fotógrafo nos flagra juntos, será um prato cheio.
Pedro tomou um gole do cappuccino, olhou para os lados e propôs:
— Vamos sair daqui?
— Sairmos? Para onde?
— Para um lugar seguro, onde não possamos ser incomodados.
— Tenho um compromisso — justificou.
— Mais importante do que nos entendermos? — retrucou ele.
“Nos entendermos”? O que está querendo dizer?
— Não entendi, Pedro.
— Júlia, acho que nós temos muito o que conversar. Não compreendo muitas coisas e necessito disso para continuar te respeitando. A imagem que tenho hoje de você não é a que gostaria. E certamente, esse não é o melhor local para conversarmos.
Seriam mais explicações? Como justificar aquela situação, sem trair Leonardo e seu segredo? Pedro era o vice-presidente da RTN e se tivesse conhecimento de seu estado de saúde, na certa afetaria diretamente os negócios e a relação entre os dois dentro da emissora. Talvez por causa disso Leonardo não queria que ele ou qualquer outra pessoa soubesse da verdade. Segundo seu marido, estava organizando toda a empresa para funcionar bem quando não estivesse mais lá. Além do mais, não queria que a informação vazasse para a imprensa e que ela o matasse antes mesmo de sua morte.
Insistir num entendimento com Pedro representava um risco à sua lealdade com Leonardo. De contra partida, seria uma forma de estar ao lado do homem que amava e cultivar a oportunidade de limpar sua imagem diante do mesmo. Quem sabe ele a compreendesse, mesmo sem conhecer toda a verdade? O que de mais podia acontecer em aceitar o convite?
Júlia tomou o restante do capuchino, certificou-se que ninguém na praça de alimentação estava lhe vigiando e fez que sim com a cabeça. Pedro deu um leve sorriso e chamou o garçom, acertou a conta e saíram.






Capítulo 55

Pedro acionou o controle. O portão de alumínio começou a se movimentar, tornando possível a visão do jardim e varanda de sua casa de praia. Júlia acompanhou o trajeto de Fortaleza até o Porto das Dunas do assento do passageiro. Por mais que achasse o encontro indevido, preferiu não fazer nenhum comentário e ceder ao próprio desejo de estar ao seu lado, ouvindo-o relatar detalhes de sua investigação secreta dentro da RTN, durante o percurso.
Pedro estava certo de que Donato Pessoa e Maria Eugênia possuíam uma espécie de parceria nos negócios escusos dentro da emissora e que os dois vinham passando a perna em Leonardo há anos. Isso reforçava a ideia de que Maria Eugênia poderia ser a grande mentora daquela trama, envolvendo o sequestro de Clara, para o roubo do dossiê de Alberto Lucena, que provavelmente incriminava Donato e a ela. Mais do que nunca, Júlia achava conveniente sua estadia na mansão das Dunas, por estar perto de Maria Eugênia e pela possibilidade de descobrir algo acerca de sua inimiga.
Pedro estacionou a Toyota prata de frente à casa. Seu Caetano se aproximou para recebê-los com o mesmo sorriso de sempre. Tinha perdido o cabelo grisalho, provavelmente devido o tratamento de quimioterapia. Mas aparentava estar bem de saúde, conforme confirmou para o patrão.  O homem pareceu feliz por vê-los juntos novamente e disse-lhes que sua esposa prepararia o velho bolo de cenoura que Pedro gostava desde menino.
Após a calorosa acolhida, os dois entraram na casa. Alguns livros de economia e administração pareciam esquecidos na mesinha de centro da sala de estar.
— Desculpa a bagunça. Tenho vindo bastante nas últimas semanas — explicou Pedro, arrumando os livros. — Talvez seja uma forma de me sentir mais perto do meu pai.
Ela o olhou e ele trazia um sorriso com um olhar insinuante.
— Acho que não foi uma boa ideia eu ter vindo até aqui.
Pedro se aproximou.
— Por quê?
— Pedro, agora sou uma mulher casada.
Ele pegou em sua mão e a fez sentar.
— Está sofrendo algum tipo de ameaça, Júlia? O que está acontecendo afinal?
— Pedro, ninguém me forçou a nada. Mas existe sim um grande motivo para eu ter me casado com Leonardo. — Ela levantou, deu as costas e continuou: — O que posso dizer é que não será por muito tempo. Talvez alguns meses, não sei. — Júlia virou-se de volta. — Mas quando acabar, com certeza entenderá meus motivos.
— Diante do que houve entre nós, é muito difícil para mim, acreditar que se trata de algo genuíno, sem ter acesso à verdade, entende?
Júlia se prostrou diante de Pedro, apoiando-se em suas pernas.
— Por favor, eu te peço, acredita em mim!
— Já foram tantas mentiras.
Mas nunca foi por mal!
— Ainda me ama? — ela procurou saber.
— Ingratidão apaga afeição.
— Você me ama? — Insistiu.
Ele hesitou por um momento, depois respondeu:
— Por mais que não devesse, amo. — Júlia deitou a cabeça em seu colo de tanta alegria por ouvir aquilo. Pensava que nunca mais fosse escutar algo parecido de Pedro. Sim, havia uma esperança! — Mas tem feito de tudo para acabar com esse amor. — completou ele.
Júlia o olhou novamente e pegou forte em sua mão.
— Eu te peço só um pouco mais de paciência, por favor!
— Está casada com outro homem. É como se colocasse esse amor à prova, até as últimas consequências.
Júlia se ergueu, colocou as mãos na boca. Pensou se contava ou não, pelo menos parte da verdade. Não precisava revelar o que sabia acerca do estado de saúde de Leonardo, bastava falar de si mesma e sua intimidade. Talvez fosse o suficiente para que Pedro lhe concedesse mais aquele voto de confiança. Não tinha como adiar. Além do mais, Leonardo não precisava saber.
E novamente Júlia não estaria sendo desonesta com alguém? Acreditava que a vida a colocava em situações como aquela, repetidas vezes. E sua atitude sempre fora a mesma, de não contar a verdade, acreditando estar fazendo o bem ao outro. O que depois vinha à tona, machucando a todos os envolvidos.
O que faço dessa vez?
— Meu casamento com Leonardo é de aparências, nunca houve nada mais do que amizade entre nós.
— Está querendo me dizer que...
— Exatamente, Pedro. Foi um acordo. E não há nenhum interesse material, acredite! Foi por amizade.
Pedro se levantou. Andou de um lado para o outro, passou a mão no queixo e desabafou:
— Não faz sentido!
— Eu sei. Mas quando souber de tudo, vai entender. — Ela se aproximou dele. — Eu te amo, Pedro!
Ele tocou em seu rosto delicadamente e Júlia fechou os olhos, pousando a face totalmente em sua mão, para sentir aquele toque. Não tinham como negar o que sentiam um pelo outro. Era forte e implacável, ao mesmo tempo, leve e acolhedor.
— Eu te amo! — disse ele, lacrimejando. E a tomou num beijo que a fez viajar em sua alma.
Era intenso e maravilhoso poder senti-lo novamente seu! O toque, o calor, o suor, a maciez de suas mãos, o cheiro, os doces sussurros em seus ouvidos, os lábios molhados deslizando em seu corpo, os músculos se contraindo em movimentos que a tornavam mulher.
Os dois eram novamente um, num sexo que traduzia o amor incontido.






Capítulo 56

Donato saiu do quarto com o paletó no braço. Enquanto ajeitava a gravata, viu Marina sentada à mesa posta com um farto café da manhã. Ela havia deixado a cama no momento em que ele entrara no banho e estava usando um robe de seda por sobre a camisola. Ele beijou-a na testa, como de costume. Ajeitou o paletó na cadeira e sentou-se à cabeceira.
— Por que não me esperou no quarto?
Ela tomou um gole do café e respondeu, sem transparecer empolgação:
— Acordei faminta.
Donato se serviu de suco de laranja e pegou o jornal ao seu lado.
— Provavelmente viajarei à Brasília mais tarde. Mas amanhã cedo estarei de volta.
— Não vou sequer perguntar se posso acompanhá-lo.
— Sabe que se trata de uma viagem rápida, minha querida. Não há necessidade de se cansar.
— Com certeza Luísa irá com você. Ou estou errada?
Ele baixou a cabeça no impulso, fechou os olhos, cerrou os punhos e expulsou com força o ar dos pulmões, mirando o rosto dela novamente.
— Já são tantos anos, Marina. Não há motivos para continuar alimentando esse ciúme tolo de Luísa. Ela é meu braço direito, sabe disso.
— E sei também dos comentários a esse respeito — completou. — Não sou tão idiota o quanto pensa, Donato. Vejo como ela o olha, com admiração de uma mulher apaixonada. Sempre foi assim.
— Bobagem — resmungou, tomando um gole do suco e abrindo a primeira página do jornal.
Marina jogou com força o guardanapo na mesa.
— Estou farta da sua indiferença, Donato! Da vida fútil que tenho levado e desses anos trancada nesse apartamento. Há seis anos, quando acabei retornando, pensei que tudo pudesse ser diferente. No início, algumas coisas mudaram. Mas logo voltou ao seu mundo de trabalho e poder, no qual tem como única parceira fiel a Luísa, o seu cão de guarda.
— Ok. — Ele fechou o jornal e olhou para ela, impaciente. — O que quer? Viajar comigo para Brasília, é isso? Esse é o mimo do dia?
Ela apoiou os braços na mesa e declarou:
— Não sou mais aquele meninazinha tola de dezoito anos que conheceu em Londres e que largou tudo para se casar com você! Nosso casamento chegou ao limite, Donato!
— E o que faremos?
— Quero o divórcio!
Donato tomou um susto e foi tomado por uma raiva imediata. Como ela tinha coragem de enfrentá-lo daquela forma? E de querer acabar com um casamento tão estável, tão perfeito como o deles? Considerava uma grande ousadia aquela e isso lhe deixava enfurecido. No entanto, não precisava dar atenção à mais aquele rompante. 
— Arrume suas coisas. O motorista passará aqui depois do almoço para pegá-la. Irá a Brasília comigo.
— Donato, acredita realmente que vai consertar as coisas dessa forma?
Foi ele quem jogou o guardanapo na mesa.
— O que deseja, afinal? Eu venho tomar café da manhã com a minha esposa, preparando-me para mais um dia difícil, um dia de trabalho duro. Justo no momento em que ela poderia aproveitar a minha presença, cuidar de mim, o que é papel de toda boa esposa, ela resolve discutir a relação. Qual seu objetivo? Acabar com o meu dia?
Marina balançou a cabeça lentamente.
— Não, Donato. Meu objetivo não é acabar com seu dia, mas pôr um ponto final nessa história absurda que devia ter sido encerrada há seis anos. Não aguento mais!
— Está precisando de um tratamento. Um psiquiatra, talvez. Pode ser que isso resolva nossos problemas.
— Com licença — a empregada interrompeu-os com o telefone na mão. — Para o senhor, seu Donato. É dona Maria Eugênia Gondim.
Marina arregalou os olhos para ele. Donato pegou o aparelho rapidamente. Levantou-se da mesa, tomou certa distância e atendeu.
— O que quer?
— Júlia Serrado saiu completamente de seu controle — disse ela, do outro lado da linha.
— Quer dizer, do nosso controle, não é?
— Foi incompetente! Ela não poderia ter se casado com o papai.
— Lamento informar que eles passaram a perna em todos nós, minha cara. Mais de um mês se foi desde o casamento. E o que fez? Nada! Ela está cantando de rainha dentro do seu território.
— Lembre-se de que se ela descobrir a verdade a sua carreira política estará arruinada. A única presidência que poderá assumir é a do sindicato dos presidiários.
— Se eu cair, todo mundo cai junto!
— Não vou discutir sobre isso. Fez o que pedi?
— Tudo pronto. As provas contra Júlia Serrado estão comigo. Depois que nós a separarmos de seu pai, ela ficará frágil. Então nós acabaremos com ela de uma vez por todas.
— Ótimo. E como será?
— Tudo estará em suas mãos em algumas horas. Em seguida, siga com o plano.
Os dois se despediram e ele voltou-se à mesa, onde a mulher continuava sentada, apoiando o queixo com uma mão e dedilhando uma xícara vazia com a outra.
— Nos vemos no aeroporto.
— Não viajarei com você!
Sem nenhum paciência para continuar com aquilo, ele confirmou com a cabeça.
— Conversamos depois.
— Quando retornar dessa viagem, não estarei mais em casa.
— Quem está lhe apoiando nessa loucura? É a sua irmã? Só pode ser ela! Nunca aceitou nosso casamento.
— A Vanessa não tem nada a ver com isso. O cansaço é da minha alma.
Donato não suportava o fato de estar sendo pressionado pela própria mulher. Gostava de despertar medo em todos, sem que ninguém tivesse coragem de enfrentá-lo. E agora ela o fazia, justo Marina, a quem ele deu tudo e fez mulher importante. Mas para ele era inadmissível, qualquer mulher gostaria de estar casada com um homem bem sucedido como ele, hoje conhecido no cenário nacional. Somente uma pessoa burra, jogaria fora aquela oportunidade.
Que faria, nesse caso? Não poderia prendê-la no quarto, como fizera há anos atrás. Se saísse de casa naquele momento, ela poderia cumprir o prometido e deixá-lo. Abandonado pela esposa, um homem em sua posição! Jamais deixaria isso acontecer! Entretanto, Marina sempre fora profundamente apaixonada por ele. Usaria isso a seu favor. Precisava ser estratégico, como sempre fora. Com um pouco mais de tempo, pensaria numa saída perfeita.
Donato pegou o paletó e vestiu. Em seguida, aproximou-se de sua esposa e segurou em sua mão.
— Sei que não tenho sido um marido exemplar. Tenho me dedicado tanto ao trabalho e esquecido de você. Por favor, me ajude! — Marina o olhou como se estivesse pasma. — Acho que estamos precisando de uma férias. Farei essa viagem e amanhã mesmo quando voltar, nós pensaremos em como mudar essa situação.
Em seguida, beijou-lhe os lábios e saiu.






Capítulo 57

Júlia entrou na mansão um pouco tensa, como todos os finais de tarde das últimas quatro semanas, desde que começara a se encontrar com Pedro na casa de praia. Quase esbarrou em Mena, que passou por ela com uma bandeja de chá. A governanta, indagando se estava acontecendo alguma coisa com ela, deixou-a mais atrapalhada e nervosa. Entendeu aquela pergunta como se a senhora desconfiasse do que ela fazia todas as tardes. Na verdade, o medo de ser descoberta em seu romance a estava deixando paranoica. E poderia lhe denunciar.
Ela pensara diversas vezes em contar para Leonardo, a fim de que pudesse se sentir mais livre para viver aquele reencontro com Pedro. Faltava-lhe coragem. Além do mais, o estado de saúde de seu marido vinha se agravando a cada dia, com frequentes dores de cabeça — o que invariavelmente a fazia supor que o fim dele estava próximo. E por mais que quisesse ser honesta, não se sentia no direito de magoá-lo ou até mesmo acelerar o processo da doença com uma notícia como aquela. Seria melhor deixar como estava e continuar se encontrando com Pedro na clandestinidade, até que pudessem assumir definitivamente sua relação.
De frente para a governanta, Júlia desconversou, inventando uma desculpa qualquer e subiu para o quarto. Assim ficaria mais na companhia das doces lembranças daquela tarde.
No momento em que se pôs diante da escada, ouviu seu nome sendo chamado da porta do escritório, do outro lado da sala. Deu meia volta e avistou Maria Eugênia, de braços cruzados, segurando o queixo e um sorriso que parecia sarcástico.
— Podemos conversar um pouco? — antecipou-se a enteada, antes que dissesse qualquer coisa.
Por um instante, Júlia pensou em não lhe dar ouvidos e subir. Temia que ela percebesse qualquer nível de tensão ou ansiedade de sua parte. Sabia que Maria Eugênia era uma mulher perspicaz e que se desconfiasse de algo, certamente estaria perdida. Mas preferiu ficar e descobrir o que ela queria.
Fez um gesto que sim com a cabeça e a acompanhou ao escritório. Maria Eugênia trancou as portas do ambiente e convidou-a a sentar. A enteada estaria sabendo de alguma coisa? A culpa acabava por lhe transformar em ré diante de qualquer olhar ou abordagem das pessoas dentro daquela casa.
Mantenha-se calma. Não há como ela saber.
— O que quer, Maria Eugênia?
— Tem andado ocupada todas as tarde, não é mesmo? — disse ela, ao contornar a mesa até o outro lado.
Ela sabe de alguma coisa!
— Você me chamou aqui para indagar sobre a minha agenda?
Maria Eugênia sorriu e se apoio na poltrona de couro à sua frente.
— Até quando pensava que podia enganar a todos nesta casa, Júlia?
— Desculpe-me — Júlia reagiu, erguendo-se para se retirar. — Não tenho mais tempo para suas acusações infundadas.
— Acho melhor você ficar! — Maria Eugênia rebateu, pegando um envelope amarelo em cima da mesa. Em seguida, abriu-o e retirou uma série de fotografias, jogando-as diante de Júlia, como se dispusesse as cartas de um baralho.
— O que é isso?
— Veja você mesma.
Maria Eugênia a encarava de um modo firme e seguro, sem desviar o olhar. Por mais que Júlia estivesse se sentindo intimidada, não desejava demonstrar qualquer fragilidade, procurando retribuir o mesmo olhar. Mas ao voltar-se para as fotos, viu que a primeira trazia a sua própria imagem, de óculos escuros, no estacionamento de um shopping, diante do carro de Pedro. Um tremor a tomou da cabeça aos pés.
Ela descobriu!
Pegou o bolo de fotografias e começou a analisá-las. Eram imagens diversas dela se encontrando com Pedro, entrando em seu carro, chagando na casa de praia, abraçando-o.
— Considera-se realmente muito esperta, Júlia Serrado — Maria Eugênia ironizou enquanto Júlia passava as fotografias para trás. — Pensava de fato que poderia manter um caso secreto com o vice-presidente da RTN e nunca serem descobertos? Vocês vem se encontrando há praticamente um mês. Todas as tardes sai de nossa casa, vai ao estacionamento de um shopping qualquer, deixa seu carro lá e entra no de Pedro Lucena. O destino de vocês? A casa de praia dele no Porto das Dunas, onde ficam por aproximadamente 2 ou 3 horas.
Júlia encontrou uma sequência de imagens dela com Pedro na cama. Os dois totalmente despidos em momentos variados. A cada fotografia que ia passando, enchia-se de indignação. Sentia-se invadida, exposta, usurpada em sua intimidade.
— Como pode ser tão... — não tinha palavras. — Cre-ti-na! — Ergueu o olhar para ela, com toda a sua fúria.
Maria Eugênia sorria, como se celebrasse uma vitória.
— Disse que se arrependeria de ter me enfrentado.
— Como conseguiu essas fotografias?
— Tenho meus meios, minha querida. — Ela contornou a mesa, indo para trás de Júlia. Depois falou ao seu ouvido. — Isso não vem ao caso. O fato é que não passa de uma vagabunda que está enganando o meu pai.
— Ele não pode saber. O Leonardo morreria, você sabe!
— A única coisa que sei é que vai deixar esta casa em 24 horas.
Júlia virou-se para Maria Eugênia.
— Não pode fazer isso! O Leonardo não suportaria!
— Ou sai ou amanhã mesmo estas fotos estarão em todos os jornais e sites de fofoca do Brasil inteiro. Pensou na manchete? “Leonardo Gondim, um dos maiores empresários do país, é traído por sua esposa e seu vice-presidente!” — Ela abriu as mãos no ar, como se lesse aquilo num letreiro.
— Se fizer isso, o Leonardo não vai resistir!
— Infelizmente concordo com você. Mas é uma escolha sua.
— Trata-se de seu pai! Não estará apenas me atingindo, mas também a ele.
— Ele não pensou duas vezes quando resolveu nos enganar a todos e casar com você às escondidas, impondo sua presença imunda no seio de nossa família. A decisão está tomada. Tem 24 horas para deixar essa casa, caso contrário, todas estas fotos serão divulgas na imprensa, na internet, em todos os lugares. Sua traição será assunto nacional.
— Não tem o direito...
— O aviso está dado. Quero você fora daqui até amanhã, no final da tarde. — Ela aproximou-se novamente de Júlia e concluiu: — Aconselho você a esquecer meu pai e esta família. É melhor continuar focando em encontrar seu marido verdadeiro, o Joel. Senão, não encontrará sua filhinha, minha querida.
Desgraçada! — resmungou.
Maria Eugênia soltou uma gargalhada e saiu, deixando-a com as fotografias nas mãos e totalmente perdida diante de sua indignação. Além disso, misturava-se ao medo de como aquilo afetaria o estado de saúde de seu amigo.
A respiração de Júlia ficou entrecortada. Como alguém poderia ser tão má? Maria Eugênia seria capaz de expor o próprio pai daquela forma? Pior, de por sua vida em risco? Certamente sim. Não tinha como confiar que pudesse ser diferente. Se a enteada era realmente a responsável pelo sequestro de Clara, obrigando-a a passar por tanto sofrimento, não pensaria duas vezes em jogar aquelas fotos na internet e destruir sua reputação, mesmo que aquilo pusesse em risco a vida do próprio pai.
Júlia sentou-se novamente e olhou as imagens, tentando encontrar outra saída, que não causasse nenhum sofrimento a Leonardo. Abandoná-lo àquela altura do campeonato seria maldade. Bem como ver sua reputação e honra destruídas no final de sua vida seria também um grande choque. Sem contar o fato de que Pedro também ficaria exposto. Logo ele, que sempre preservou sua intimidade, visto como desonesto e traidor.
Não! Não permitiria aquilo! A decisão estava tomada.
Ouviu a voz de Guel na porta.
— Júlia?
Ela se virou e procurou esconder as fotos com as mãos.
— Não precisa me esconder. Eu sei do que se trata. — Guel entrou no escritório e fechou a porta. — Maria Eugênia contratou um detetive, ele vinha seguindo você há algumas semanas.
— E por que não avisou? Não temos uma aliança?
— Só descobri hoje. Flagrei uma ligação dos dois.
— Estou perdida.
— Tenho um modo de neutralizar a Maria Eugênia. — Entregou-lhe uma caixa de CD com o nome “Maria Eugênia” escrito a mão.






Capítulo 58

Júlia fechou o chuveiro e parou por um instante, sem conseguir tirar as imagens do vídeo que Guel lhe entregara há pouco de sua cabeça. Talvez nem ele tivesse a real dimensão da importância daquele vídeo. O fato é que dispunha de um grande trunfo contra Maria Eugênia Gondim; não só calaria a boca da enteada acerca de seu romance com Pedro, mas também seria possível conseguir alguma informação sobre Joel.
Se a filha de Leonardo estava mesmo à frente do sequestro de Clara, era chegado o momento de Júlia descobrir a verdade.
Ela terminou de se enxugar, vestiu o roupão e se pôs diante do espelho da pia. Alguém bateu na porta do quarto. Imaginou ser Leonardo.
— Só um instante — pediu, apertando a faixa do roupão.
Abriu a porta. Maria Eugênia nem esperou o convite para entrar, passando para dentro do quarto.
— Já arrumou suas coisas?
— Não tem o direito de entrar no meu quarto dessa forma.
A enteada varreu o ambiente com o olhar.
— Vejo que está querendo me afrontar. Será um clique e todas aquelas imagens estarão todas dispostas na internet. Hoje mesmo seu nome, o de Pedro Lucena e o do meu pai serão citados em todos os sites de fofoca do país. E você será reconhecida em público por aquilo que é, uma vagabunda.
Júlia bateu a porta com força e partiu para cima de Maria Eugênia, segurando-a pelos braços. Estava tomada de indignação e raiva, não apenas pelas suas agressões verbais, mas por imaginá-la responsável pelo sequestro de Clara.
— Não pode brincar com a vida das pessoas dessa maneira! — vociferou, sacudindo-a.
— Tire suas mãos de mim! — retrucou ela, tentando se soltar.
Júlia surpreendeu-a com um tapa. Depois outro, e mais outro. Maria Eugênia caminhou para trás, tentando se defender. Foram vários bofetões até ela tropeçar e cair no chão.
— É isso que merece! — Júlia gritou.
Maria Eugênia exigiu que ela parasse, sem sucesso. Continuou apanhando no chão. Júlia estava transtornada. Parecia despejar toda a raiva pela perda de sua filha naqueles últimos seis anos. Alguém precisa por um limite naquela mulher. E essa seria a sua responsabilidade naquele instante.
Após muitos tapas, Júlia saiu de cima dela, respirou um pouco e ajeitou o roupão, enquanto Maria Eugênia procurava se recompor. Foi até a aparelhagem de mídia num canto do quarto e ligou a TV de plasma.
— Esse é o meu presente para você, Maria Eugênia Gondim.
Júlia apertou o play do controle remoto, liberando as imagens de três rapazes, incluindo Guel, vestidos de cueca, fazendo um brinde com taças de champanhe. Eles riam, bebiam e mostravam os músculos um para o outro, parecendo disputar quem tinha o corpo mais vantajoso. Alguns segundos depois, Maria Eugênia entrou no ângulo da filmagem, usando um conjunto de calcinha e sutiã preto, com movimentos sensuais de uma dança erótica. Os rapazes começaram a derramar bebida em seu corpo e arrancar as peças de roupa que lhe restavam até deixá-la completamente despida.
Júlia olhou para ela no chão. Maria Eugênia parecia chocada ao ver aquelas imagens.
— O que é isso? Onde conseguiu esse vídeo? — tentou saber, apavorada.
— Tenho minhas fontes.
Na tela, prosseguiam algumas imagens. Maria Eugênia arrancando as cuecas dos três rapazes com os dentes. Risos, gemidos...
Júlia baixou o volume e se aproximou da enteada. Ela estava sentada no chão, com os joelhos dobrados e um olhar apavorado.
— Garotos de programa. Já pensou se esse vídeo cai no You Tube? — ironizou Júlia.
— Posso te processar, é a minha privacidade.
— Privacidade? Jura? — Agachou-se diante dela. — Lembra das minhas fotografias? Não ia fazer exatamente o mesmo, colocar na internet? Antecipei-me e resolvi dar a este vídeo o mesmo destino. Assim ficamos as duas famosas. Eu como uma mulher que traiu o marido por estar apaixonada por outro e você como ninfomaníaca, dona de um prostíbulo masculino. “De socialite e executiva a sem vergonha”. O que acha? — Estendeu as mãos no ar, como se apresentasse a manchete.
— O que quer em troca? É dinheiro? Eu pago. Quanto?
Júlia sorriu e se levantou. Caminhou um pouco e se voltou para a enteada.
— Como sempre, está equivocada, Maria Eugênia. Eu não quero dinheiro algum, nunca quis. Para falar a verdade, não sinto prazer nenhum ao apresentar esse vídeo. Não tenho nada a ver com a sua vida, desde que não mexa com a minha. Mas mexeu, profundamente, não foi?
— São as fotografias? Dou o arquivo para você. Pronto, não tem problema.
Júlia se aproximou novamente.
— Cadê a minha filha?
— Que filha? Está louca?
Novamente Júlia segurou com força o braço dela.
— Foi você quem mandou sequestrar a minha filha, não foi?
— Não tenho nada a ver com isso!
— Tem, sim. Sabe do que estou falando. Sempre esteve mancomunada com seu ex-marido, Donato Pessoa. Vocês queriam o dossiê do Alberto Lucena e por isso me colocaram nessa. Tiraram minha filha de mim, para garantir a minha participação nesse jogo imundo!
— Absurdo o que está falando!
— Diga a verdade! — gritou novamente.
— Não tenho nada a ver com isso! O que sei foi o que descobri quando mandei investigar a sua vida. Posso te dar o relatório inteiro elaborado pelo detetive contratado para investigar você. Não sei nada mais do que isso.
— Mentira!
Júlia desejou bater nela novamente, mas se controlou. Fechou os olhos, procurou recuperar o fôlego e manter a calma. Poderia ir até as últimas consequências e forçá-la a falar a verdade, confessar seu envolvimento. Aquele vídeo lhe outorgava poderes plenos sobre Maria Eugênia, por sua cara de pavor ao assistir as imagens. Sabia que poderia conseguir o que quisesse com aquela arma. Mas precisava utilizá-la da melhor forma. Ao mesmo tempo, lembrava-se de Pedro dizendo para que não entrasse naquele jogo. Lançar mão das mesmas armas de Maria Eugênia não faria dela uma igual à sua rival?
Deixou que Maria Eugênia se levantasse do chão.
— Júlia, nós podemos chegar a um acordo.
— Se não me disser aonde está a minha filha, este vídeo será postado na internet e sua imagem de executiva poderosa será totalmente destruída.
— Não pode fazer isso!
— Pense na minha proposta — concluiu, abrindo a porta do quarto. — Deixe-me em paz.






Capítulo 59

O celular tocou no momento em que Donato estacionava o carro na garagem do seu prédio. Ele mostrou o visor do aparelho com o nome da ex-mulher para Luísa, que exibia um olhar de cumplicidade no banco do carona, e ignorou a ligação.  Após um dia cheio de reuniões, queria ficar indisponível para qualquer tipo de problema. Porém, o aparelho tocou novamente ao descerem do veículo.
— Parece grave — comentou Luísa, fazendo um sinal com a cabeça para que ele atendesse a ligação.
Ele acatou a sugestão. Em direção ao elevador, anunciou com tom impaciente:
— Não resolvemos tudo hoje na empresa?
— Sabe o quanto me irrita quando não atende essa droga de telefone! — vociferou Maria Eugênia do outro lado da linha.
— Seu tempo acabou, Maria Eugênia.
Os dois entraram no elevador. Luísa apertou o botão do andar.
— Júlia Serrado passou completamente dos limites. Não podemos fazer nada com as fotografias.
— O que houve? Tínhamos tudo sobre controle.
— Ela descobriu tudo sobre o nosso bar na Praia de Iracema.
— O Mukifu? — falou com os olhos fixos em Luísa para que ela acompanhasse a história. — Que merda!
— Ela está se achando a grande jogadora. E nos tem nas mãos.
— Quer dizer, tem “você” nas mãos? Ela não sabe da minha participação no Mukifu, minha cara.
— Mas vai acabar descobrindo se não colocarmos um limite nela definitivamente.
O elevador finalmente chegou ao seu andar. Os dois saíram e Luísa tratou de abrir a porta enquanto Donato continuava a conversa.
— Acredita que é o melhor momento?
— Toleramos até onde pudemos.
— Mas ela é protegida. — Ele fez um sinal para Luísa, para que ela o servisse de uma dose de bebida.
— Esgotou totalmente a minha paciência. Essa mulher pode por um fim ao esquema se não fizermos nada. Não podemos mais esperar.
Donato recebeu o copo com uísque da secretária, tomou um gole e decretou:
— Ok. Será providenciado para manhã. Júlia Serrado não nos importunará mais — continuava falando de modo que Luísa acompanhasse a conversa. — Mas sabe que sofreremos retaliação.
— Prefiro pagar o preço a ser humilhada por essa mulherzinha.
— A decisão está tomada.
— Nos falamos na sequência.
Donato desligou o aparelho e tomou a bebida num único gole.
— Fique tranquilo, providenciarei tudo, da forma de sempre. — afirmou Luísa, com ar de prazer.
Donato foi até o barzinho para se servir de uma mais uma dose de bebida.
— Seu Donato?
Dona Deise, a empregada, apareceu na porta que dividia a sala para a copa.
— Onde está Marina? — perguntou Donato.
— Era sobre isso que eu gostaria de falar com o senhor. Ela foi embora.
— Embora?
— Ela levou algumas malas e disse que o senhor entenderia.
Mesmo depois das duas doses de uísque, Donato sentiu a garganta secar. Soltou o copo no barzinho e partiu em direção ao quarto. Dona Deise foi explicando atrás dele como tudo havia acontecido e tentando justificar porque não ligara avisando. Todavia, ele parecia não sentir os próprios passos e a voz da mulher nas suas costas foi ficando longe, como se estivesse entrando numa outra dimensão, um mundo paralelo àquele construído por ele com tanto esforço desde que fora deixado no orfanato.
Ele entrou no closet e teve um choque quando viu metade do espaço vazio. Foi girando devagar e trazendo à memória cenas de quando era criança no orfanato, da irmã mais velha indo embora. Novamente, o abandono!
Ela não pode fazer isso comigo!
Marina cumpriu o prometido. Ela havia avisado que iria embora. Mas para onde, afinal? Para a casa de sua irmã? Provavelmente, sim. Não existia outro lugar. O fato era que Donato não estava mais acostumado a fracassar. Passara os últimos trinta anos galgando um caminho de vitórias e prometera a si mesmo que nunca mais perderia, após ter sido esquecido pela irmã naquele orfanato. Por isso, tudo valia no jogo da vida.
Poderia procurá-la imediatamente e forçá-la a voltar para casa, pedir uma nova chance para seu casamento. Ou não. Talvez Marina precisasse de um tempo sozinha, até perceber que não tinha como viver sem ele, sentir sua falta, a dor da separação. Afinal, sabia que ele era o homem de sua vida.
Não deixaria barato!
— Ela disse para onde ia? — perguntou à empregada, voltando para a sala.
— Não. Mas ouvi dona Marina falando no telefone com dona Vanessa.

Ela vai voltar!







Capítulo 60

Júlia parou no semáforo da Av. Engenheiro Santa Júnior com Alberto Sá. Vinha de um encontro com Pedro no Porto das Dunas e passava das 20h. Certamente encontraria Leonardo em casa e estava disposta a conversar com ele, contar toda a verdade sobre seu romance. Não suportava mais esconder, mentir. Pedro tinha razão, chegava o momento de acabar com aquela farsa. Estava decidida a continuar na mansão, mas pelo menos não precisaria enganar ninguém.
A luz verde acendeu e ela entrou na Av. Alberto Sá, percebendo duas motos se aproximando pelo retrovisor, cada uma delas com dois homens em cima. Júlia estranhou, meteu uma quinta marcha e acelerou. Os motoqueiros pareceram fazer o mesmo, um pela direita e o outro pela esquerda.
Imaginou ser um assalto e gelou. Ultrapassou um sinal amarelo. As motos repetiram o movimento, coladas atrás dela.
Meu Deus, o que eu faço?
Lembrou-se do celular no painel do carro e tentou pegar o aparelho. Enquanto isso, dividia a atenção com o retrovisor, para não perder os motoqueiros do seu ângulo de visão. Estava trêmula e com as mãos muito suadas. Sem querer, deixou o telefone cair no chão do veículo.
— Droga!
Quase no final da avenida, pensou se teria como pedir ajuda. Se conseguisse se aproximar de casa, os seguranças da mansão poderiam lhe dar cobertura. Diminuiu um pouco a velocidade, o suficiente para tentar pegar o celular no chão, sem perder o controle do automóvel. Com dificuldade, alcançou o aparelho. Olhou novamente para os retrovisores e não viu mais as duas motocicletas.
De repente, um deles se aproximou de sua janela. A pessoa que estava na garupa mirava o interior do carro. Quando Júlia olhou para o outro lado, constatou que a outra moto também estava paralela a ela. Cercada! Ela acionou a tela do aparelho e se atrapalhou ao selecionar a função “teclado” no touch screen.
Os dois rapazes que estavam na garupa sacaram suas armas.
Eles vão me matar!
Desesperada, Júlia acelerou e conseguiu se distanciar um pouco. Tentou engatar outra marcha, mas o carro estava em seu limite. O ponteiro do velocímetro marcava 140km/h e ela fez a curva do final do Av. Alberto Sá com muito esforço. Percebeu que não seria possível entrar na rua da mansão devido à velocidade em que estava. Se diminuísse, eles a alcançariam. No entanto, percebeu que de nada adiantou, pois logo os homens a cercaram novamente.
Precisava se defender. Seria a vida dela ou a deles! Puxou o volante rapidamente para a esquerda, batendo na moto ao seu lado. Por pouco, não conseguiu retornar. Assistiu a queda os dois homens pelo retrovisor.
A outra moto recuou um pouco, dando a ela uma sensação de vitória. E mais uma vez ela tentou o celular, digitando o número de Pedro.
Estava quase chegando na Av. Dioguinho. Um toque e outro, mais outro.
— Por favor, atenda, Pedro! — Em seguida, caixa postal. — Mas que droga! O que eu faço?
Poderia tentar Leonardo ou até mesmo Guel. Mas aquilo de repente lhe tiraria o foco da estrada à sua frente. E o que os homens poderiam fazer? Tudo dependia dela naquele instante, de mais ninguém!
A moto voltou a se aproximar. Deu para avistar a arma pelo retrovisor. Foi quando ouviu um disparo e no segundo seguinte o vidro traseiro se despedaçou. Júlia se abaixou e acabou perdendo o controle do automóvel. Viu o mundo girar. Sentiu o estrondo, a pancada, a dor em seu tórax e um branco em sua frente.
Tudo apagou.






Capítulo 61

Impaciente, Donato apertou a campainha do apartamento 1802 pela quarta vez. Acreditava que a casa de Vanessa era o único lugar provável onde Marina poderia ter procurado abrigo.
Após alguns toques na campainha, Vanessa abriu a porta. O ódio alimentado em todos aqueles anos, desde que Donato fizera Marina abandonar a carreira de modelo em Londres e a trouxera de volta para o Brasil parecia estampado no rosto daquela mulher, apoiada no umbral, de modo a impedir a visão do interior do apartamento, como se protegesse seu território. Os dois se confrontaram pelas feições, numa rivalidade mútua nascida na época em que Vanessa e Pedro Lucena começaram a namorar. Ela comungava da mesma opinião da maioria das pessoas acerca de Donato, enxergando-o como um mau-caráter aproveitador, e não admitira mais tarde a união dele com a sua irmã.
— Sei que Marina está aqui. Preciso falar com ela — declarou com firmeza.
Os olhos dos dois pareciam entrelaçados pelo ódio, fixados um no outro.
— Por mim, jamais teria subido!
Ele sorriu, ironizando-a.
— Isso não é nenhuma novidade. Não tenho tempo a perder com você, Vanessa. Onde ela está?
— Por favor, Vanessa... — Donato ouviu a voz de Marina por trás da irmã.
 Vanessa virou-se para ela, lançou um último olhar fuzilante para Donato e saiu do meio dos dois, deixando-os a sós. Marina fez um sinal para que ele entrasse e fechou a porta atrás do marido.
— Pensei que estivesse viajando para Brasília — comentou ela.
— Marina, eu estou cansado de suas infantilidades. Por favor, vamos embora!
Ela cruzou os braços e se aproximou de uma janela, de onde se via a luminosidade de muitos prédios da cidade.
— Hoje, mais do que nunca, percebo o grande equívoco que foi a nossa vida, Donato. Passei os últimos onze anos esperando encontrar em você uma pessoa que nunca existiu.
— Um ser i-de-a-li-za-do! — Ele abriu os braços, articulando sílaba por sílaba. — Isso não existe! — Aproximou-se dela. — Tem o que toda mulher gostaria de ter. O que te falta é a fantasia.
— Não! O que me falta é o amor. — Marina enfrentou-o — Para você sou mais uma de suas muitas conquistas materiais, Donato. Não existe cumplicidade, diálogo, nada! O que sempre quis foi me apresentar à sociedade como um troféu. A verdade é que nunca perdoou a Vanessa por ter afastado o Pedro de você e me usou para se vingar dos dois.
— Uma típica história de folhetim, criação da sua cabecinha neurótica. Precisa de ajuda, Marina.
— É verdade. Mas diferente do que pensa, a ajuda de que preciso não é um tratamento psicológico. Preciso apenas viver, só isso. Viver!
— Ok. E o que podemos fazer? Um viagem? Uma nova lua de mel?
Ela balançou a cabeça negativamente e tampou por alguns segundos a boca, parecendo que choraria, mas se conteve.
— Donato, a vida não se resume a questões materiais. Não consegue compreender que existe muito mais além do dinheiro, que entre as pessoas existe uma relação e que cada pessoa tem uma alma? Transformou a sua vida em algo totalmente material, a sua vida e tudo ao seu redor! Não podemos consertar o nosso casamento com uma viagem.
— Como faremos?
— Não há mais nada o que ser feito! — Marina deu as costas e se distanciou um pouco. — Eu... estou apaixonada por outra pessoa.
Donato sentiu o ar faltar em seus pulmões. Era como se não existisse mais chão e ele flutuasse, sustentado por uma dor que parecia atravessar-lhe as costas e impedir o ritmo natural de seu coração. Aquela declaração se repetiu em ecos, num tempo que não parecia o mesmo do ambiente.
Não pode ser verdade! Ela está blefando!
Donato ajeitou o blazer e sorriu. Ela ou qualquer outra pessoa jamais saberia o que ele havia experimentado naquele momento.
— Se não é uma viagem, diz o que podemos fazer.
Marina se voltou para ele e colocou-se à sua frente.
— Ouviu o que disse? Estou apaixonada por outro homem.
Veio uma força incontrolável de suas entranhas e o fez acertar o seu rosto, num tapa que a derrubou. Marina segurou a própria face e cravou seus olhos no marido de uma maneira que o fez sentir o quanto ela o odiava naquele momento. De repente, Donato não conseguia mais enxergar o mesmo encantamento e admiração da mulher para com ele. Estranho vê-la daquela forma. Parecia surreal. Mesmo quando ela o havia deixado há sete anos, ainda existia amor, óbvio. Agora não. Algo mudara.
— Viu o que me fez fazer? — ele lamentou, tentando ajudá-la a levantar.
Marina se afastou dele, colocando um limite com as palmas das mãos.
— Não toque em mim! — disse ela, quase gritando.
— Eu não queria...
— Agora mais do que nunca chegou ao fim! Não faço parte de seu patrimônio e também não tenho mais medo de você!
— Quem é ele? Quem é ele?
— O príncipe encantado se transformou num monstro. Hoje sinto repulsa por você e tudo o que representa!
— É aquele mesmo sujeito com quem fugiu há sete anos? Não disse que eram apenas amigos?
Donato nunca engoliu aquela amizade. Marina e Holanda haviam se conhecido há sete anos, quando ela fugira de casa, depois de passar semanas trancada no próprio quarto, após pedir a separação. Uma relação que, segundo ela se traduzia numa grande amizade. Os dois haviam ficado anos afastados até que o rapaz retornara de seu doutorado na Espanha há alguns meses e finalmente voltaram a se encontrar, conforme a própria Marina vinha lhe falando. Por mais que Donato não suportasse aquela história, acabava consentindo por acreditar que Holanda era homossexual. Teria se enganado tanto assim? Perdia um de seus bens mais preciosos. Pensou em pedir perdão, dizer o que ela precisava ouvir naquele momento, falar o quanto a amava e necessitava de sua presença. Uma grande estratégia que funcionava com todas as mulheres, demonstrar uma fragilidade súbita provocada pela falta delas. Quem não gosta de ter o ego massageado por aquele tipo de declaração? Mas a incerteza veio numa cavalgada assustadora e não sabia se realmente seria a melhor estratégia naquele momento. Marina encontrava-se muito determinada. Talvez calar fosse sua redenção junto a ela.
Donato se aproximou e tocou em seu rosto delicadamente. Novamente ela se afastou, em repulsa.
— Você foi a única pessoa capaz de me lembrar que eu tenho alma. Não me abandone, Marina. Por favor!
Ele caminhou de costas até a porta e antes de sair, deixou cair uma lágrima. Marina parecia chocada demais.
— Não me abandone, por favor! — insistiu. Então, abriu a porta e saiu. No corredor, fez uma promessa a si mesmo. — Isso não vai ficar assim! — balbuciou.






Capítulo 62

— Quebrei o código de segurança! — vibrou o rapaz contratado por Pedro para vasculhar os computadores da RTN.
Pedro deu um último gole na xícara de café e se aproximou por trás, curvando-se por sobre as costas do rapaz, para visualizar melhor a tela de led à frente deles. Dezenas de arquivos foram aparecendo em sequência, fazendo-o vibrar junto depois de várias noites sem conseguir acesso àquelas informações. Uma operação sigilosa realizada pelos dois depois do expediente normal de trabalho, nos departamentos da empresa, por quase todos os dias nas últimas semanas. 
Pedro permanecia no escritório até tarde e aguardava Fred chegar às dependências do prédio pela entrada de serviço. O rapaz, um jovem nerd de 22 anos, usava uns óculos fundo de garrafa e roupas muito frouxas que davam a impressão de serem pelo menos dois números maior que o dele. Tratava-se na verdade de um excelente hacker indicado por um amigo, levantando informações sobre a empresa até então desconhecidas por Pedro.
A ideia era constituir um novo dossiê como o do velho Alberto Lucena. Deste modo, não tinha como Pedro deixar de imaginar o pai fazendo exatamente aquilo há alguns anos e descobrindo tantas verdades.
Fred foi acessando os arquivos e evidenciando na tela do computador centenas de cifras relacionadas à contabilidade da emissora, deixando o vice-presidente boquiaberto. Pedro estava pasmo com o que via.
— Santo Deus! Agora entendo porque meu pai enfartou — desabafou ele. Outro arquivo foi aberto com cópias de contratos de anunciantes duplicados com datas e números diferentes. E mais outro, com contratos de empréstimos bancários. — Imprime isso, por favor — solicitou ao rapaz.
— Vou colocar em rede — informou Fred, apontando para outro micro na mesa ao lado.
Pedro se direcionou à outra máquina e acessou os mesmo arquivos de lá. Em seguida, clicou numa pasta nomeada de “Balanço Semestral 2012”. Tratava-se de centenas de páginas com números e indicações de entradas e saídas. No final, uma cifra que ultrapassava quinhentos milhões como déficit. Aquela era uma informação que ele já conhecia — a dívida da RTN. Na sequência, minimizou aquela tela e clicou em cima de outra pasta com o nome de “Balanço Semestral 2012 (2)”. Do mesmo modo, teve acesso a centenas de páginas. Mas agora, com outras cifras, totalmente desconhecidas por ele. Em algumas delas, voltava à tela anterior e comparava os dois números que dizia respeito à mesma indicação, constatando uma diferença de quarenta, cinquenta e até setenta por cento a mais no segundo arquivo em relação ao primeiro. No final do documento, o valor do déficit ultrapassava um bilhão e duzentos milhões.
Pedro copiou os dois valores finais, de um documento e outro, colocou na calculadora do computador e calculou a diferença.
Ele suspirou, pôs o cotovelo na mesa e apoio a testa.
Um balancete forjado!
— Tem muita falsificação aqui, chefe — declarou Fred da outra mesa.
Pedro se levantou e foi novamente até o rapaz. Ele visualizava contratos de anunciantes em que definia o pagamento antecipado de cotas publicitárias, nos quais a RTN garantia uma pontuação específica de audiência. Em outra pasta, os mesmo contratos em que o pagamento seria efetuado conforme o desenvolvimento do programa. Estes últimos contratos era a forma conhecida por Pedro dentro da empresa.
Fred minimizou a tela e apresentou em outra o resultado de dívidas da RTN com diversos anunciantes, por não conseguir alcançar a audiência garantida em contrato. — Olha só. — Mostrou um exemplo de um contrato de R$ 45.000.000,00 em que a emissora garantia vinte pontos de audiência para uma novela, outra tela denunciava a referida produção com apenas doze pontos, gerando uma dívida de pelo menos quarenta por cento do valor. — É um esquema suicida! — comentou o hacker.
— O Donato é o diretor comercial da RTN, ele é o responsável por isso! — Pedro lembrou.
Fred abriu um novo arquivo, com contratos de diversos empréstimos bancários, nos anos de 1995 até os dias atuais. Isto é, desde a fundação da emissora. Em outras pastas estavam a atualização dessas dívidas.
— Mas esses empréstimos foram pagos! — comentou Pedro.
— Tem certeza? Esses documentos aqui indicam a ordem de pagamento. Na verdade, não foram efetuados. — Fred apontava para a tela do computador, mostrando os arquivos abertos. Depois, maximizou outra tela. — Segundo os extratos bancários desse mesmo período, o dinheiro era transferido para estas contas. — Em seguida, copiou o número das contas e acessou outra página, colando-os numa janela. Aguardou alguns segundos enquanto a o computador indicava o processamento na internet e na sequência o resultado da pesquisa.

CONTA 2345-3 — TITULAR: LEONARDO GONDIM
CONTA 2445-3 — TITULAR: LEONARDO GONDIM
CONTA 2545-3 — TITULAR: LEONARDO GONDIM
CONTA 2645-3 –TITULAR LEONARDO GONDIM

— Então Leonardo sabe dessas transações?! — questionou Pedro.
— É provável que sim — respondeu o rapaz. — Os extratos comprovam transferências dessas mesmas contas para as contas da emissora, dias depois. Isso quer dizer que o dinheiro saía da RTN num dia e voltava no outro. Nenhuma dessas dívidas foi paga. Na verdade, de todos os empréstimos realizados até hoje, nenhum deles foi quitado. A sua empresa é uma bomba relógio e pode explodir a qualquer momento, chefe.
Pedro se afastou. Passou a mão na cabeça, caminhou de um lado para o outro, totalmente confuso, sem conseguir compreender muita coisa. Era como se não estivesse tratando da emissora da qual respondia pela vice-presidência há sete anos, desde a morte de seu pai. O velho Alberto Lucena, que provavelmente tivera acesso àquelas mesmas informações antes de morrer, de posse do dossiê que ele mesmo havia elaborado. Os mesmos documentos que foram roubados de Pedro sem que ele tivesse tido como conhecê-los a fundo.
— É possível que o Leonardo esteja sendo enganado? — perguntou ao rapaz.
— Olha, acho difícil, mas é possível. Desde que estas contas tenham sido movimentas por alguém de sua mais alta confiança.
— Maria Eugênia!
— A diretora financeira? Talvez.
Nesse momento o celular de Pedro anunciou o recebimento de um torpedo.

MENSAGEM DE TANCREDO

Ele deslizou o dedo na tela touch screen imediatamente.

Estive com Romualdo e descobri quem o mandou, para que Júlia perdesse o emprego na Mirage. Precisamos conversar urgentemente!

— Ótimo! – Pedro guardou o aparelho e voltou a atenção ao rapaz. – Maria Eugênia e o Donato estão nessa juntos, só pode ser. Embora o esquema pareça ter sido criado para a manutenção da própria emissora, nos documentos que tive acesso, do dossiê do meu pai, havia comprovações de desvios para a conta de Donato.
— Bom, podemos continuar procurando aqui. Se esses desvios existem, nós vamos descobrir — afirmou Fred, voltando-se à tela do computador.
Para o rapaz, aquilo era uma diversão. Pedro permaneceu de longe acompanhando o trabalho do hacker e pensou em ligar para Tancredo, chamá-lo ali e partilhar com ele todas aquelas descobertas. Achava que fosse importante o amigo saber para tentar solucionar o caso de Clara, já que tudo estava ligado. Como um bom repórter que era, certamente enxergaria o que provavelmente ele não conseguia ver. Mas não considerava justo com Leonardo. Não poderia colocar outra pessoa na jogada sem que seu amigo e presidente da RTN soubesse de tudo primeiramente. Melhor seria reunir todas as provas, depois pensar em como proceder diante das descobertas.
Seu pai havia morrido após ter elaborado um dossiê como aquele. Precisava agir com cautela. Não era o momento de envolver outras pessoas.
O telefone tocou. Viu o nome de Júlia aparecer no visor do aparelho.
— Pedro? — a voz dela do outro lado da linha parecia aflita.
— Oi, Júlia. Aconteceu alguma coisa?
— Tentaram me matar!
— Como? Onde está? — tentou saber, assustado.
— No hospital. Fui perseguida por motoqueiros no caminho de casa. Acabei capotando o carro.
— Meu Deus! Você está bem? — foi ficando mais aflito.
— Sofri algumas pancadas. Tentei te ligar e não consegui. O Guel me socorreu.
— E o Leonardo, já sabe?
— Preferi não contar. Inventei uma história por telefone, disse que estava na casa de Raquel.
Ele agradeceu a Deus e declarou:
— Estou indo ao seu encontro. Peça a Guel que permaneça com você. Eles estão desesperados, Julia. Dispostos a tudo. Estamos fechando o novo dossiê. Tenho certeza que, em breve, os responsáveis pelo sequestro de Clara e a morte do meu pai estarão presos!






Capítulo 63

— Você está liberada — disse o médico depois de analisar o resultado de uma tomografia.
Júlia sentiu um pouco de alívio, embora estivesse sob efeito do susto e da sensação terrível de ver seu carro capotar. Se não fosse pelo sistema airbag do veículo, ela poderia não ter escapado daquele acidente. Dava graças a Deus ter conseguido falar com Guel, após ter tentado falar com Pedro durante a perseguição e caíra na caixa postal. 
— Alguma observação, doutor? — Guel quis saber.
— Nada demais, apenas repouso.
Ele entregou os exames para ela. Os dois agradeceram ao médico e saíram da sala de atendimento.
— Não pode voltar para aquela casa hoje, Júlia — observou Guel, ajudando-a com a bolsa.
— O Pedro está vindo me buscar.
Ela percebeu o incômodo nos olhos do cunhado.
— Não suporto esse cara! — desabafou em tom impaciente.
A recepção do hospital estava bastante barulhenta, com muitas pessoas circulando. Júlia olhou atentamente para todos os lados, pois temia que estivessem sendo observados.
— Guel, não tenho como te agradecer neste momento.
Ele tocou seu rosto com carinho.
— Eu te amo, Júlia! Quando me ligou dizendo que tinha sofrido um acidente, não sei nem o que senti. Mas foi terrível o medo que tive de te perder!
Depois de tantas provas, finalmente ela enxergava seu amor, sua sinceridade. Por um instante, sentiu-se segura ao lado de Guel e ao mesmo tempo embaraçada. Não sabia como reagir diante de seu cuidado, apenas agradeceu.
— Júlia? — era a voz de Pedro, entrando na recepção.
Os dois foram ao encontro um do outro e se abraçaram fortemente. Como era bom vê-lo novamente.
— Tinha toda razão, Pedro! Não deveria ter entrado neste jogo.
— Do que está falando?
— Da chantagem da Maria Eugênia. O Guel me trouxe um vídeo que comprovava o envolvimento dela com garotos de programa.
— E usou contra ela?
— Exatamente.
— Tanto que te pedi!
— Era a única forma — Guel interrompeu.
Pedro o encarou, mas permaneceu em silêncio. Em seguida, varreu o ambiente com o olhar e a puxou para uma área mais restrita no corredor do hospital. Guel os seguiu.
— Nós estamos lidando com gente muito perigosa, não temos mais como não tomarmos certas precauções. Acabei de deixar a RTN com cuidado para não estar sendo seguido. Hoje vamos passar a noite num hotel. O Ricardo foi avisado, foi ele quem sugeriu.
— E quanto ao Leonardo? Ele ligou algumas vezes. Deve estar preocupado.
— Pode ligar para ele e dizer que vai passar a noite com Raquel, que um dos meninos está doente e precisou ajudá-la — sugeriu Guel.
— Bem pensado — observou Pedro. — Pelo menos teremos como decidir o que fazer.
— Meu Deus! Amanhã é o aniversário da Celina, será uma grande festa na mansão.
— Não volta para lá! — afirmou Pedro.
— Calma, gente — pediu Guel. — Vamos pensar melhor no que fazer. Não podemos também por tudo a perder. Estamos muito perto de pegar a Maria Eugênia e o Donato Pessoa.
Júlia temeu pela reação de Pedro.
— Ele só quer ajudar — declarou ela, tentando evitar um confronto entre os dois.
— Obrigado por tudo, Guel — finalmente disse Pedro, com a mão estendida ao rival, para a surpresa de todos.
Júlia sorriu aliviada.
Os dois deram um firme aperto de mãos. Nesse momento, o celular de Júlia tocou. Era o nome de Raquel no visor do aparelho. Talvez Leonardo já tivesse entrado em contato com ela, preocupado, sem notícias de Júlia.
— Oi, Raquel.
— Júlia, preste atenção — disse a cunhada do outro lado da linha. — O Joel está chegando ao aeroporto amanhã cedo. Ele está sendo ameaçado pelo mandante do sequestro de Clara. Pelo que eu entendi, o tráfico lhe dará proteção.
Inevitavelmente, Julia desconfiou que pudesse ser algum tipo de armadilha.
— Como sabe disso?
— Ele precisa que eu o ajude.
— E por que está me dizendo isso?
Houve um suspiro do outro lado. Depois ela respondeu:
— Devo isso a você.
Júlia não sabia se era verdade, se acreditava ou não naquela mulher que tanto a enganara nos últimos anos, mas pelo menos havia surgido uma esperança de encontrar Joel novamente. Segundo Guel, ele havia mentido e estava com a sua filha. Julia sorriu e desligou o telefone. Podia fazer tudo silenciosamente e flagrar o ex-marido no aeroporto sem que ninguém soubesse. Temia que pedindo ajuda à polícia, Joel ficasse sabendo da emboscada através de algum informante, como da última vez e fugisse de algum modo. Mas o que podia fazer sozinha contra ele? Certamente, ele lhe passaria a perna de novo.
Pedro interrompeu seus pensamentos e perguntou o que Raquel desejava. Julia se absteve por alguns segundos. Deveria partilhar ou não a nova informação? Contar para Pedro significava acionar a equipe de Ricardo Rosendo imediatamente. E se dentro do grupo existisse algum informante? Tudo estaria perdido.
Não cairia no mesmo erro, Ricardo Rosendo precisava saber.






Capítulo 64

Júlia mirou o telão de led do aeroporto Pinto Martins. e constatou que a aeronave de Joel já havia aterrissado. Provavelmente, os passageiros estavam desembarcando. Ela experimentou um frio na espinha e segurou firme na mão de Pedro. A equipe de policiais de Ricardo Rosendo estava espalhada pelo saguão do aeroporto, a espera do seu ex-marido. Desta vez, ele teria uma grande surpresa.
Os minutos pareciam uma eternidade. Segundo as últimas informações da polícia, Joel embarcara em São Paulo usando a identidade falsa de Michel Soares. De longe, a figura de Rosendo se confundia com as pessoas que aguardavam a saída de passageiros. 
— E as investigações na RTN? — ela perguntou a Pedro, na tentativa de enganar o tempo.
— Está terminada.
— Então o novo dossiê está pronto?
— Entregarei hoje à polícia. Agora compreendo porque meu pai não suportou a verdade. Não se trata apenas de Donato, mas de...
Nesse momento, Júlia viu um dos policiais de Rosendo sair bruscamente de seu posto e voltar-se imediatamente ao portão de desembarque. Algumas pessoas passaram com suas bagagens e em seguida, um homem loiro, alto, de óculos escuros, calça jeans, camisa vermelha e uma jaqueta preta, segurando a mão de uma menina, recebeu um pacote amarelo das mãos de um homem que parecia aguardá-lo.
De repente, Júlia pareceu perder a noção dos sons do ambiente, ouvindo o pulsar do próprio coração. A imagem das pessoas foi se dissolvendo à sua frente, enxergando somente aquele homem e a criança. Nada poderia ser pronunciado, nenhuma palavra existia. Restava-lhe a boca seca e uma dormência no restante do corpo.
Uma menina linda, de aproximadamente oito anos, cachos ruivos, trajando uma calça branca e casaco rosa pink por cima de uma camisa florida. Trazia nos braços um grande cachorro de pelúcia marrom e bege. Era ela! Sete anos de espera e Clara estava diante de seus olhos. Júlia sabia! A visão foi ficando turva, pelas lágrimas que transbordavam uma alegria avassaladora, parecendo não caber em seu coração. Podia sentir o calor da mão de Pedro, pressionando a sua, o que lhe proporcionava toda a segurança necessária para viver aquilo.
Um filme foi passando em sua mente. A proposta de Guel para venderem Clara a um casal de holandeses; a noite em que chegou em casa, deparando-se com o berço da filha vazio; a notícia da morte de Joel; o encontro com a falsa criança que pensavam ser ela, depois a mãe verdadeira levando-a de volta; por fim, a imagem de São Miguel e a decisão de procurar pelo cunhado novamente.
Júlia pôs a mão na boca e não resistiu ao choro, misturado ao riso de felicidade. Em seguida, a imagem das pessoas e do ambiente foi se reconstituindo, enquanto ela acompanhava Rosendo e os demais policiais cercarem o homem loiro. Uma outra aparência, mas era Joel. Ele agarrou a menina, possivelmente para tentar escapar.
— MINHA FILHA! — Júlia gritou, correndo na direção deles.
— Júlia! — Pedro tentou impedi-la, sem sucesso.
Joel sacou uma arma de dentro do pacote amarelo recebido há pouco e apontou para a cabeça da criança. A menina parecia aterrorizada com tudo. As pessoas gritaram e corriam no aeroporto para todos os lados.
— Não se aproximem! Eu atiro! Eu atiro! — disse Joel, no susto.
Rosendo fez um sinal para sua equipe e os policiais se afastarem, todos armados.
— Joel! — aproximou-se Júlia.
— Vou atirar!
— Pelo amor de Deus, é nossa filha!
A menina apertava os olhos, como se quisesse desaparecer dali, pressionando o bicho de pelúcia contra o peito.
— Foi você, não foi? — perguntou Joel a Júlia.
— Larga ela, por favor! Pode me levar como refém! 
— Deixa a menina livre, está cercado. — anunciou Rosendo.
— Não existe saída, Joel. — acrescentou Pedro.
— Sabia que podia tentar me atrapalhar! — revelou Joel com um olhar de fúria, referindo-se a Júlia.
— Pelo amor de Deus, Joel, não faça nada contra nossa filha!
— Afastem-se todos! Afastem-se! — ordenou ele, segurando a menina firmemente.
Rosendo abriu os braços, fazendo sinal para que os policiais obedecessem.
Mas Júlia não precisava obedecer. A vida de sua filha estava em risco. E ela queria poder fazer algo para impedir, tirá-la daquele sofrimento. Como devia estar sendo horrível para uma criança de oito anos, ter o próprio pai ameaçando sua vida! Tinha que protegê-la, por um fim àquela atrocidade. Compreendia porque Joel nunca havia devolvido a filha. Clara representava para ele uma segurança, como se Joel esperasse que um dia aquele momento pudesse acontecer e a menina o salvaria. Ela era o seu passaporte para a liberdade quando aquilo acontecesse. E finalmente chegou o dia. 
Júlia pensou em se aproximar um pouco mais ou partir para cima dele. Mas e se Joel atirasse em Clara? Ela nunca se perdoaria.
Pedro tentava segurá-la pelos ombros. Rosendo revezava o olhar entre Joel, Júlia e os demais policiais.
Meu Deus, o que eu faço?
— Vamos, Joel! Renda-se, não há como escapar! — insistiu Rosendo, com a arma em punho.
— Baixa a arma, senão eu atiro! — gritou ele.
São Miguel Arcanjo, defendei-me no combate, sede o meu refúgio contra as maldades e ciladas do demônio!
Júlia partiu para cima de Joel como uma leoa defendendo sua cria! Chegava o momento de por um ponto final em toda aquela história e tirar sua filha das mãos daquele monstro!
Num impulso, ele mirou a arma para Júlia. Rosendo não perdeu tempo. Jogou-se e o dominou com uma chave de pescoço. Um descuido e Joel estava imobilizado. A arma, porém, disparou. Gritos tomaram conta do aeroporto Pinto Martins. Felizmente, Júlia havia conseguido arrancar Clara dali, deixando-a fora da mira da arma.
Júlia abraçou a filha com o fervor dos sete anos em que passaram separadas. Finalmente Clara estava em seus braços! Chorava e ria ao mesmo tempo. Foram tantos anos, tanta saudade! A dor de terem lhe negado a oportunidade de ver a própria filha crescer deu lugar a uma alegria profunda.
Pedro a puxou dali, enquanto Rosendo declarava a prisão de Joel.
— Joel Serrado, está preso — o som foi se fazendo distante.
Ela esperou até ter certeza de que era o fim da linha para Joel. Em seguida, deixou o saguão do aeroporto, carregando a filha nos braços, acompanhada de Pedro e um policial. 







Capítulo 65

Júlia pegou um copo com água. Antes de levá-lo até a sala do apartamento de Pedro, parou na porta da cozinha por um instante, de onde tinha uma visão perfeita da menina sentada a alguns metros no sofá, agarrada com força a um cachorro de pelúcia, como se tentasse se proteger. Lembrou-se do quanto desejou aquele momento. Experimentava uma sensação de alívio e medo, sem saber como seria aquela relação dali para frente. O fato era que Clara não a conhecia, não sabia nada a seu respeito. E temia que ela quisesse continuar assim.
Mas o susto havia passado. Joel estava preso e ela com sua filha, junto do homem que amava. Deste modo, respirou fundo, adquiriu coragem e se deslocou até a sala, oferecendo o copo com água à filha.
A menina a observou de modo desconfiado; depois pegou o copo, sem soltar o bicho de pelúcia.
— Onde está meu pai?
Júlia hesitou. Em seguida, sentou na mesa de centro, colocando-se de frente para Clara.
— Filha, seu pai precisa explicar algumas coisas à polícia.
Clara olhou para um lado e para o outro. Depois bebeu a água de um só gole.
— Sabe por que ele fez aquilo comigo? — perguntou.
Júlia estava nervosa, com o coração batendo forte e a voz um pouco trêmula.
— Talvez ele estivesse assustado... com medo, não sei.
— Vão fazer algum mal para ele?
— Não, filha. Não se preocupe. Não farão nenhum mal ao seu pai.
— Então ele virá me buscar?
Doeu ouvir aquilo. Júlia esperou tanto por esse momento, para ver a filha desejando a presença do pai. Isso a magoava profundamente.
Seu pai é um bandido!
— Filha, infelizmente ele não poderá vir buscá-la. Seu pai tem muito que prestar contas à polícia, por isso ficará com eles.
— Por que me chama de filha?
— Porque sou sua mãe.
Houve um silêncio. O vento que entrava pela porta da varanda se fazia presente no ambiente. Por mais que tentasse segurar a emoção para não assustá-la, Júlia não conteve as lágrimas.
— Você é a minha mãe de verdade? 
— Sim, sou eu — falou com ternura.
— Meu pai disse que estava viajando. Por que nunca nos procurou?
— Talvez ele tivesse razão. Viajei por todos os lugares, procurei por todos os cantos desse mundo e nunca os encontrei. A solidão e a saudade foram minhas companheiras nessa viagem. Filha, passei os últimos sete anos da minha vida lutando para encontrá-la.
Júlia aproximou a mão de seu rosto, mas ela se afastou. A menina a olhava ressabiada.
— Não sabia onde nós estávamos?
Júlia fez que não com a cabeça. Seu rosto estava banhado em lágrimas.
— Quis muito encontrá-la, filha. Minha vida parou esses anos, por estar longe de você.
Clara pareceu que ia dizendo algo e parou. Depois declarou:
— Sempre tive muita vontade de conhecer a minha mãe.
Júlia sorriu.
— Seu pai nunca lhe mostrou nenhuma foto minha?
— Uma vez. Mas depois ele disse que a perdeu.
— E não se parecia comigo?
— Não me lembro.
Júlia baixou a cabeça, triste pela resposta.
— Mas era bonita — Clara completou.
Júlia se projetou para perto da filha e tocou em suas pernas.
— Clara, sei que está sendo difícil para você, que foi assustador o que houve há pouco no aeroporto. Mas sou sua mãe e amei você em cada um dos dias em que estivemos separadas. E mesmo longe, levava você comigo aqui dentro. — Ela tocou no peito, na altura do coração. — Eu te amo muito, filha! — Em seguida, precipitou-se um pouco mais e finalmente a abraçou e chorou com a filha no colo.
— O que meu pai fez de errado? — Clara indagou no meio do abraço.
Ela poderia contar a verdade, dizer que Joel havia a roubado e fugido, para que a filha soubesse que seu pai não passava de um bandido. Seria uma forma de afastá-la daquele crápula e aniquilar com a saudade que sua ausência de repente pudesse lhe causar. Joel nunca amou a própria filha, sempre a considerou uma moeda de troca. Não tinha o direito de provocar-lhe mais nenhuma dor. No entanto, sabia que aquilo a magoaria profundamente e a faria sofrer. Era cedo para Clara conhecer da verdade.
Júlia se afastou um pouco e respondeu:
— Ele cometeu alguns equívocos na vida dele e terá de pagar por isso, filha. O que escolhemos tem consequências.
— É como quando fico de castigo?
— É, sim.
— Não vou mais vê-lo?
— Claro que vai, querida.
— Preso?
— Isso.
— Como um bandido?
— Como disse, seu pai errou. Ele precisa pagar, só isso. Mas nós vamos visitá-lo, está bem?
— E como vou ficar?
— Comigo. Sua mãe está aqui para cuidar de você, querida. — Sorriu, conseguindo dessa vez tocar com ternura em seu rosto.
E depois a abraçou.






Capítulo 66

Donato desceu do carro desviando das poças d’águas. Havia chovido bastante naquela tarde e o tempo continuava nublado e frio. Ele ajeitou o colarinho da camisa e o blazer para ter a certeza de que estava impecável. Olhou ao redor e viu poucas pessoas na Rua Romeu Martins. Há tantos anos que não pisava naquele lugar. O bairro do Montese ficou em seu passado, enterrado junto com sua historia de criança. Esquecer os primeiros anos de vida tinha sido uma forma de sobrevivência.
A casa de muro baixo e jardim na frente continuava do mesmo jeito. O amarelo claro da época em que morara ali dera lugar a uma cor envelhecida, quase mostarda. Mas a sua essência continuava como há 40 anos. Donato se pôs diante do portão que separava a calçada da varanda da casa e bateu palmas. Nem imaginava quem poderia encontrar, mas sabia que a mulher que o criara morava ali. E somente ela poderia fazer algo para impedir que Marina o deixasse.
A porta foi aberta e a figura de cabelos grisalhos presos num toque no alto da cabeça, um rosto marcado pelo tempo e traços bonitos surgiu na frente dele, usando um vestido estampado e chinelos de dedos, simples como quando a viu pela última vez. Uma mulher sofrida. Tinha um olhar terno e passava perplexidade, colando a mão no peito, como se tentasse conter a emoção. Imediatamente as lágrimas rolaram no rosto dela, denunciando o quanto aquela mulher ficara mexida com sua visita. Certamente ela jamais imaginaria ser procurada por Donato.
— Posso entrar, dona Clarinda de Holanda?
Ela demorou para responder.
— Sim. Claro, entre. — E abriu o portão.
Ao entrar naquele lugar, Donato viu um filme passar em sua cabeça, brincando quando criança, correndo por aqueles cômodos. Os móveis não eram os mesmos, o cenário fora modificado. Mas toda a atmosfera lhe remetia ao seu passado. Aquilo lhe encheu de um sentimento que ele não conseguia definir. Algo que lhe pressionava o estômago e arrepiava completamente, provocando-lhe uma ânsia de choro, controlada perfeitamente por seu objetivo. Não tinha ido ali para relembrar sua infância e rever aquela mulher, apenas tentar salvar seu casamento. E isso o colocava novamente no prumo.
— Aceita um café? — perguntou a mulher, meio sem jeito.
Ele pensou em aceitar. Sentia saudade de seu café. O gosto veio à boca, mas não queria aceitar. Sua vingança era a indiferença, a distância, o silêncio.
— Não, obrigado. Não tenho tempo para isso.
— Quer sentar?
— Não — respondeu com a rispidez de sempre, desde a época do orfanato.
Ela parecia nervosa e ao mesmo tempo feliz, como se tentasse fazer o melhor para ele. Mas nada faria Donato sentir-se bem naquele lugar.
— Minha presença aqui não é uma visita cordial — Donato disse. — Estou aqui por conta de seu filho.
Donato achava que a vida tivesse tentando lhe dar uma rasteira, fazendo-o reaproximar-se de forma desastrosa daquela família novamente , já que o amigo de Marina, por quem ela acabara se apaixonando era justamente Holanda, o filho do meio de Clarinda, sua irmã de criação.
— Vim aqui para lhe dar um recado. Veja uma forma de afastar seu filho de Marina. — Chegou perto dela. — Caso contrário, eu o mato!
— Donato, eles são apenas amigos — tentou amenizar.
— Nós dois sabemos que não. Como pode ser tão covarde? Sempre se escondendo da verdade. Não cansa de ser falsa, mentirosa?
Clarinda caiu em prantos.
— Nunca fui falsa com você.
— Mentira! Sua vida é uma grande mentira. Cadê o maridinho? Continua te batendo? É o que você merece, sabia?
Tanto ódio represado e finalmente podia colocar para fora.
— Não sabe o que passei por você. Por que tanto ódio? O que é mentira para você?
Donato finalmente foi vencido pela emoção e encheu os olhos de lágrimas.
— Mentira é dizer para um garoto que ele vai ter que ficar num orfanato, longe de sua família porque é o melhor para ele! — Uma dor consumia-o na alma. — Mentira é visitar esse mesmo garotinho uma vez por mês dizendo que um dia vai tirá-lo dali! Mentira é abraçar esse menino inocente, dizendo que ele está sozinho, abandonado, sendo agredido pelos colegas maiores, porque assim ele vai ser mais feliz! Mentira é negar amor a uma criança dizendo a ela que será por pouco tempo e deixá-la lá, trancada, por anos a fio! Mentira é dizer que ama e proteger seu casamento, seus filhos, sem se preocupar com a dor causada ao irmão! — Experimentava a mesma dor presente em sua vida inteira. A dor do abandono. — Isso é mentira! Conhece essa história, dona Clarinda de Holanda?
— Não tive culpa.
— Nunca fez nada. Seu marido me batia diariamente. Sabe o que mais ele fazia comigo? Pedia para eu colocar a mão no bolso dele e ficar acarinhando o “presente”.
— Pare com isso, Donato. Não quero ouvir! — ela colocou as mãos nos ouvidos.
— Ele abusou de mim, forçou-me a fazer sexo oral nele. — Donato sentou-se finalmente no sofá, colocando as mãos na cabeça. Chegava a soluçar. — Sabe quantas vezes aquilo aconteceu?
— PARE COM ISSO! — gritou ela com as mãos nos ouvidos.
— Eu mesmo não sei — ergueu a cabeça e continuou falando — Dezenas de vezes. E o que fez? Jogou-me num orfanato e ia me visitar uma vez por mês.
— Foi a forma que encontrei de te salvar dele.  Sabe por que continuei com o Alceu depois daquilo? Fiz uma promessa. Pedi que Deus te protegesse, encontrasse um caminho de luz para você, pessoas que te recebessem como uma família, que te dessem oportunidade, a possibilidade de crescer, de ser um homem de bem. E para isso acontecer, permaneceria casada com Alceu, suportando as surras, a prisão que foi minha vida inteira. Por você levei uma vida de miséria existencial. Por você, abri mão de minha felicidade, de estar na presença de meus filhos, de ser uma mulher feliz. Tudo para que tivesse a vida que tem hoje, Donato. E Ele me atendeu.
— Não foi por mim que fez isso. Foi por você mesma, pela culpa que sentia por meu abandono. Para você seria mais fácil cumprir essa promessa, mesmo diante de todo sofrimento, que carregar a culpa de não fazer a vontade de seu pai. Foram esses os seus ensinamentos. Essa foi uma falsa promessa, dona Clarinda. Também enganou seu Deus. O que consegui, não devo nada a você, nem a seu Deus. Devo tudo ao meu próprio esforço, ao meu suor, à minha inteligência. — Parou um pouco, coçou o queixo, depois perguntou: — Cadê ele? Onde está aquele monstro?
— Morreu recentemente na prisão. Nossos filhos nunca aceitaram que eu continuasse casada com Alceu diante de tanta violência. Por conta disso a relação dele com Holanda sempre foi muito delicada. Depois de uma grande briga com o filho, Alceu foi preso e espalharam um boato no presídio de que ele era um estuprador. Mataram-no lá.
— Foi pouco! — declarou com o ódio alimentado naqueles anos.
— Donato, perdoe-me!
Perdão?
Desejou tanto ouvir aquilo durante os últimos 40 anos. Abalado, sentiu vontade de tocá-la, experimentar seu abraço, seu apoio, seu colo, seu afeto perdido. Ainda tinha o cheiro de seus cabelos em sua memória, de quando ela o colocava para dormir. Clarinda fora para Donato, como irmã mais velha, a referência de mãe. E isso, nem o tempo, nem o ódio conseguiram apagar. Perdoá-la, significava perdoar a si mesmo. Seria sua chance de redenção. Mas e sua vingança? Ela merecia sofrer, como ele sofrera.
De repente, Donato viu-se perdido, sem saber o que fazer. Muito mudaria em sua vida se a perdoasse, caso a trouxesse de volta ao seu universo.
— De jeito nenhum. Vai morrer com essa culpa. Seca de tanta culpa! — Donato direcionou-se à porta, parou, voltou-se e completou. — Afaste seu filho da minha mulher. Caso contrário faço com ele pior do que o Alceu fez comigo. Entendeu, não é?
Saiu, batendo a porta, encerrando qualquer possibilidade de uma reaproximação. Precisava seguir seu coração e ele lhe dizia para prosseguir seu caminho, longe daqueles sentimentos idiotas, típico de pessoas fracas.
Considerava-se grande demais para perdoá-la!






Capítulo 67

Donato voltou para casa exausto. O encontro com a mulher que o criara havia exaurido todas as suas forças. No fundo, sempre desejou aquele confronto, mas adiara o quanto pode. Ele jogou o blazer no sofá, desabotoou um botão da camisa e foi direto ao barzinho pegar uma dose de bebida. A campainha tocou. Continuou se servindo de uma vodca, aguardando que dona Deise atendesse a porta e nada. Após vários toques, ele mesmo decidiu fazê-lo, resmungando.
Ao abrir a porta, deparou-se com a figura de Pedro a sua frente.
— Podemos conversar? — indagou Pedro.
Donato abriu passagem para que o rival entrasse. Não fazia a menor ideia do que ele poderia querer.
— Aceita uma dose de bebida? — ofereceu despretensiosamente.
— Quero estar sóbrio para ter esta conversa com você — respondeu Pedro , olhando para ele como se quisesse fuzilá-lo.
Donato notou uma pasta de couro nas mãos dele.
— Não estou com disposição para tratar de nenhum assunto da empresa neste momento, Pedro.
— Dê uma olhada nisso. — Pedro estendeu-lhe a pasta.
— O que significa isso?
— Veja com seus próprios olhos.
Donato recebeu-a com desconfiança. Ele hesitou um pouco e abriu a pasta. Eram cópias de documentos da RTN.
Um novo dossiê.
Tudo fora descoberto! Donato sentiu como se estivesse perdendo uma guerra. Uma sensação de fracasso e raiva o dominou instantaneamente.
— Como conseguiu isto? — foi a única pergunta que lhe veio no momento.
— Do mesmo modo que o meu pai.
Donato jogou a pasta aberta com as centenas de documentos em cima da mesa. A pasta se abriu e algumas folhas caíram no chão. Ele deu as costas e olhou para o alto. Com uma das mãos limpou o suor da testa.
— O que pretende fazer com isto? — disse de costas.
— O que meu pai certamente tentou fazer e não teve tempo. Uma cópia desses documentos já está com a Polícia Federal. Eles vão investigar a RTN, Donato. Além da dívida bilionária e do calote aos bancos, existem comprovações de propinas, transações ilícitas envolvendo partidos políticos, beneficiando a emissora em troca de favores, tráfico de influências, desvio de dinheiro, falsificação de documentos junto a Receita Federal e uma série de outras fraudes apontando você como chefe dessa quadrilha. A farra acabou, meu amigo!
— É muito tolo, Pedro. — Donato começou a rir, voltando-se para ele. — Acha mesmo que estou sozinho nessa?
— Claro que não. Por isso falei “quadrilha”. Sei que tem muita gente envolvida nesse jogo sujo, Donato, mas ele chegou ao fim.
— Idiota! Você é um idiota! — Aproximou-se de Pedro, encarando-o. — Um esquema milionário como esse não se destrói assim, Pedro. Você é igualzinho ao seu pai. — Começou a sorrir ironicamente ao falar de Alberto Lucena. Vingar-se e atingi-lo.
— Quer dizer ético? — questionou Pedro.
— Não. Ingênuo, por acreditar nas pessoas.
— Talvez tenha razão. Fomos ingênuos quando o trouxemos para dentro de nossa família e demos a você a oportunidade de estar onde está hoje. Fui ingênuo ao acreditar em nossa amizade, quando se dizia o irmão que nunca tive. Fui ingênuo ao sofrer quando te vi se afastar do caminho que dizia acreditar. E mais irônico disso é que o mundo inteiro nos avisou. Todos diziam que era interesseiro. Mas para mim, era como um irmão mais velho!
As feições de Pedro traduziam toda a sua indignação ao pronunciar aquilo. Donato não tinha como evitar a dor diante de mais aquele confronto. Depois de Clarinda, Pedro fora a única pessoa que amara em sua vida, sua única referência de família por muitos anos. Nunca o perdoara por ter se afastado após seu casamento com Vanessa. Desse modo, transformou-o em seu principal inimigo. Queria que ele sofresse como ele sofria.
— Sim, você e seu pai foram dois idiotas! — gritou.
— Mentira! Ele o amou profundamente.
— E por isso o velho Alberto Lucena morreu!
Pedro pareceu fuzilá-lo com o olhar.
— Meu pai morreu por acreditar em você!
— Ele morreu porque era um velho estúpido! — gritou. Pedro fechou o punho e respirou fundo, engolindo a seco aquela fala. Era assim que Donato desejava vê-lo, sofrendo, com raiva. Isso que ele merecia. — Organizou aquele dossiê e não suportou a dor da verdade. Passou mal na minha frente — revelou com um tom zombeteiro.
— E você o deixou morrer!
— Isso mesmo! Ele tentou pegar a droga do remédio e eu o impedi. Depois joguei fora!
Pedro estava como ele desejava. Encarava-o de uma forma desprezível, com os olhos transbordando em lágrimas e punhos fechados, como se quisesse matá-lo por aquilo.
— Você o matou! — Pedro balbuciou.
— O que eu devia ter feito com você também quando mandei aqueles homens pegarem o dossiê!
— Meu pai te amou como a um filho!
— MENTIRA! — gritou. — Nunca passei de um capacho do filhinho dele! Ele sempre teve um amor cego por você. Qualquer um que considerasse como amigo ele acolheria do mesmo modo. Velho idiota!
Pedro partiu para cima dele. Donato experimentou o peso da fúria do homem. Tentou se defender, mas ele parecia transtornado. Cada soco fazia estremecer seus ossos e escurecer sua vista. Conseguiu reagir e acertar o rosto de Pedro, fazendo-o cair por cima do sofá. Mas ele logo se reequilibrou e voltou para cima de Donato, repetindo algo como “Isso é pelo meu pai!”.
Por fim, Pedro o segurou no chão pelo colarinho e o olhou fundo nos olhos.
— Bandido! Tenho nojo de você! — desabafou Pedro, empurrando-o contra o chão. Finalmente saiu de cima dele.
— Cansou? Cansou de tentar acabar com seu capacho?
— Não vale a pena!
— Acredita mesmo que sou eu o chefe da quadrilha?
Poderia revelar a verdade, como fez com o velho Alberto Lucena. A dor do pai de Pedro não residia somente na decepção acerca de Donato, mas de quem verdadeiramente estava à frente daquele esquema fraudulento. E quando descobriu, não suportou o choque, enfartando. Quem sabe se não aconteceria o mesmo com Pedro? Assim tudo estaria resolvido. Não era justo que levasse a culpa sozinho! Mas se revelasse a verdade, teria que prestar contas com o chefe depois.
— Não sei como não vi isso! — Pedro pensou alto.
— Conseguiu finalmente descobrir o que estava diante de seus olhos? Tudo o que foi feito, o sequestro da menina, a Júlia se passando por Mirela, o roubo do dossiê, a morte de seu pai... tudo! Tudo foi para proteger a identidade de quem realmente é o mentor desse esquema. Vocês foram enganados!
— Santo Deus!
Donato se ergueu e começou a rir. Estava sangrando e limpou o nariz com a manga da camisa.
— Vocês foram muito idiotas pensando que era eu ou a Maria Eugênia.
— A vida te deu todas as chances, Donato. Não aproveitou nenhuma delas.
— Pelo contrário, veja onde hoje estou. — abriu os braços mostrando a luxuosa cobertura.
— Pessoas morreram por conta disso. A Aldenora foi assassinada.
— Foi preciso, ela sabia demais.
— A sua maior necessidade nunca foi isso. O poder material nada mais é que uma tentativa frustrada de preencher o vazio da alma. Nunca foi feliz, essa é a verdade. Os cargos, as coisas, as pessoas, o dinheiro, nada vai te trazer aquilo que falta aí dentro. Nada! — Pedro se aproximou da porta, mas antes de sair, tirou o aparelho celular do bolso do blazer. — Ah, só para você saber. Tudo isso foi gravado. A polícia também terá acesso a essa nossa conversa. — E saiu.
Donato pôs as mãos na cabeça. Perdera todas as pessoas que amara. Sentiu-se só, com vontade de chorar. Mas já havia chorado naquele orfanato imundo pela vida inteira, e não podia mais fraquejar. Precisava ficar bem para enfrentar o que estava por vir.
Ele ajeitou o cabelo depois da surra de Pedro e olhou para um espelho na sala, passando a mão na boca machucada.
— Nada destruirá Donato Pessoa!






Capítulo 68

Júlia entrou na sala das espadas de Leonardo e o encontrou lacrimejando ao lado de Pedro. Ela estava vestida para a festa de aniversário de Celina. Seria sua última noite na mansão. Leonardo também estava a caráter, trajando um elegante smoking. Somente Pedro destoava do momento, com a mesma roupa da manhã no aeroporto. Júlia não havia compreendido sua ligação há pouco, pedindo que os encontrasse ali. 
— Os convidados começaram a chegar — comentou ela, sem entender direito o que estava acontecendo. — O que houve, Leonardo? — assustou-se, percebendo-o emocionado.
— Você mesmo vai contar ou prefere que eu conte? — questionou Pedro, de um modo implacável.
Leonardo baixou a cabeça. Pedro estendeu a mão para ela, entregando-lhe uns papeis.
— O que é isso?
— Uma cópia dos exames de Leonardo. Tancredo as conseguiu junto ao médico que o acompanhava. Leonardo está curado, Júlia.
— Curado? — Júlia verificou os exames, perplexa e ao mesmo tempo feliz. Mas estranhou ao ver os documentos datados do ano de 2007. — O que isso quer dizer?
— Que nosso amigo goza da mais plena saúde há mais de cinco anos.
— Deve haver algum erro — Júlia supôs.
— Pedro está certo, Júlia. Estou curado há muitos anos — confirmou Leonardo.
— Mas você disse...
— Eu menti! — ele a interrompeu. — Foi uma forma de mantê-la por perto.
— E conseguir se casar com você — Pedro completou.
— Isso mesmo. Nunca uma mulher me apaixonou tanto. Quando a conheci, Júlia, minha vida mudou completamente.
Ela estava chocada.
— Mentiu para mim. Meu Deus, como pôde?!
— Por amor. Foi por amor que menti, Júlia. Eu te amo e me vi desesperado, com medo de perdê-la.
— Também foi por amor que mandou sequestrar a filha dela? — ironizou Pedro.
Júlia não compreendeu o que ouvira.
— O quê?
— Isso mesmo, Júlia. É Leonardo quem está por trás do esquema poderoso dentro da RTN, responsável por sequestrar Clara e garantir que assumiria a identidade de Mirela para tentar roubar de mim o dossiê que o incriminava.
— Não pode ser!
— Eu não sabia do plano do Donato no início — alegou Leonardo. — Ele disse que estava tudo sob controle e que conseguiria o dossiê. Soube de você, do sequestro, muito depois.
— Foi meu melhor amigo, com você eu chorei a dor pelo desaparecimento da minha filha. E era você o tempo todo!
— Só a conheci meses depois. Tudo já havia acontecido.
— E por que não devolveu minha filha? Testemunhou meu sofrimento esses anos!
— Ela estava com o pai e ele não queria.
— Mentira — Pedro interviu. — Manter Clara longe era uma forma de ter controle sobre você. Inicialmente por conta do dossiê, mas depois por uma questão pessoal, uma obsessão. Como Romualdo, o homem que a levou para o motel, dizendo que desmascararia o Guel. Foi Leonardo quem o contratou para que você perdesse o emprego, saísse da Mirage e ficasse nas mãos dele. Tancredo conseguiu finalmente encontrar esse homem agora e arrancou dele a verdade. Leonardo não sabe perder.
— Foi por amor que fiz isso, Júlia!
Júlia olhou para aquele homem e não o reconheceu. Uma amizade de oito anos, fundamentada em mentiras?  Experimentava uma sensação terrível de traição, como um vazio, substituindo o amor construído ao longo dos anos por um amigo que não mais existia. Esteve ao lado de seu algoz o tempo todo sem saber. Recordou-se de quantas vezes chorou em seu ombro e foi acalentada por ele, uma dor causada pela mesma mão que lhe enxugava as lágrimas e acariciava seu rosto.
— JUDAS! — transformou o pensamento num grito. Sentia o tremor nas próprias mãos, a fúria pela traição varar seu peito de modo cortante. Num impulso, pegou uma esfera de cristal em cima da mesa à sua frente e com um ruivo de uma fera, atirou-a contra o imenso vitral atrás de Leonardo, sem se lembrar que se tratava da imagem de São Miguel Arcanjo. Um estrondo e centenas de pedaços de vidro coloridos e reluzentes caíram diante de seus olhos. O tilintar dos cacos contra o chão tomou conta do ambiente. Em segundos, teve a figura do demônio destruída por sua raiva. A maior parte do anjo permanecia intacta.  Parecia um sinal! Os dois homens pareciam chocados, com os olhos cravados nela. Júlia assustou-se consigo mesma.
— Não sabe o quanto sofri, o quanto desejei contar a verdade, o quanto me arrependi por tudo! – antecipou-se Leonardo.
— A Júlia nunca passou de um brinquedo nas suas mãos, Leonardo. Como meu pai, como todas as pessoas. Casou sua própria filha com um cretino para tirá-la de seu caminho e fazê-lo pensar que o casamento era um ato de rebeldia — acusou Pedro.
— Está falando da Maria Eugênia? — Júlia procurou saber.
— Exatamente. Enquanto todos pensavam que ela casava com Donato contra a vontade do pai, Leonardo comemorava seu plano ao lado de seu mais novo aliado. Donato Pessoa foi o grande comparsa no esquema milionário de construção de seu império.
Júlia olhou novamente para aquele homem, completamente perplexa. Monstro!
— Como alguém pode ser tão sórdido?
— Não é com discursos bonitos que se constrói um império. Transformei um canal local fora do eixo Rio-São Paulo numa das maiores redes de televisão do país. Isso não é fácil! — disse Leonardo.
— Certamente que não — concordou Pedro. — Tudo a base de conchavos sórdidos, empréstimos e calotes milionários, numa administração irresponsável que está levando a RTN à falência. Está apenas adiando o pedido de concordata.
— Está enganado.
— Reconheça, Leonardo... É a derrocada de um império mentiroso. Isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Sua riqueza, seu poder, voltará para os verdadeiros donos.
— Não, não, Pedro! Está equivocado. Sou a representação do poder no Estado, um dos homens mais importantes do país. Muitas pessoas precisam de mim. Tenho em minhas mãos um grande instrumento de manipulação de massa. Não consegue compreender, não é verdade? Não concebe o tamanho do meu poder.
Definitivamente, Júlia não sabia quem era aquele homem em sua frente, falando aquilo. Conhecera em Leonardo uma pessoa simples, humilde por trás do empresário importante. Não via nada de familiar naquele discurso materialista. Foi quando se deu conta do ambiente em que estavam — um salão construído para abrigar sua coleção de espadas, um museu particular, agregando um arsenal milionário que para ele representava exatamente o poder, como o próprio Leonardo lhe explicara quando a levara ali pela primeira vez. Aquele lugar traduzia especificamente quem ele era.
Júlia mirou o vitral gigante atrás de Leonardo, que se elevava até o teto. A imagem belíssima de São Miguel Arcanjo se fazia imponente, agora com sua base dilacerada, sem a figura do demônio. E recordou-se da estatueta recebida há alguns meses e da oração.
São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate, sede o nosso refúgio contra as maldades e ciladas do demônio. Assim seja.”
Pensava ter sido Leonardo quem lhe enviara a estatueta do anjo, a inspiração para que ela retomasse as buscas por Clara. Mas estava enganada. Ele era o próprio demônio!
Por um instante, desejou agredi-lo, fazê-lo pagar de algum modo por seu sofrimento. Era o que ele merecia. Mas a própria vida estava se encarregando de fazer justiça. O esquema de Leonardo fora descoberto e logo viria a público, tornando-o alvo de uma investigação por fraudes milionárias. Pedro tinha razão, o império de Leonardo Gondim começava a desmoronar. Assim ela não precisava sujar as mãos e nada fazer contra ele.
Júlia saiu daquele lugar, sentindo-se mais confusa do que nunca.


Júlia se pôs diante do espelho de seu quarto e se deparou com a imagem de uma mulher sofrida, marcada pela dor por ter sido enganada. A noite que seria de celebração do aniversário de Celina, em um instante se transformou num universo de mágoa e decepção. Sentia-se sem forças, sucumbida pela traição de seu melhor amigo. O choro desfizera a maquiagem feita minutos antes para a festa e trouxera com ele a expressão de uma tristeza profunda, numa confusão de sentimentos.
Nem sabia ao certo o quanto ficou ali, remoendo a dor que parecia ter deixado sua alma em pedaços. Tempo suficiente, no entanto, para se fortalecer, recompor-se e definir seu futuro. Mais do que nunca, desejava sair daquele lugar, deixar aquelas pessoas, aquele mundo fictício criado por Leonardo Gondim para envolvê-la e garantir sua presença. E por um instante sentiu-se aliviada, por saber de toda a verdade, de não precisar mais continuar com aquele casamento. Não era mais necessária a privação de meu grande amor. Naquele exato momento, veio uma sensação de total liberdade, livre para amar, para viver sua vida da forma que quisesse, onde e com quem quisesse. Tudo estava terminado. O choro deu lugar a um sorriso despretensioso que tentava encontrar seu lugar.
Estava prestes a outorgar sua libertação quando o celular tocou. Ela enxugou as lágrimas e pegou o aparelho em cima de sua cama. No visor, o nome de Pedro. Ele a acompanhou no momento em que saiu da sala das espadas, mas Júlia insistiu para ficar um pouco sozinha e organizar as ideias enquanto pegava algumas coisas para irem embora da mansão.
Ela atendeu, antes que a ligação terminasse.
— Oi, Pedro.
— Como você está? — a voz dele tinha um tom de aflição do outro lado da linha.
— Como se um trator tivesse passado por cima de mim. O Leonardo e eu éramos amigos há muitos anos. Não sei mais quem ele é. — Colocou a mão na boca e tentou conter o choro. — Confiei e abri mão de muita coisa por um homem que na verdade era uma grande mentira.
— Compreendo sua dor. Meu pai sempre o considerou como um irmão. Para mim também não está sendo fácil, como não deve ter sido para ele. Passa uma vida pensando que conhece alguém e de repente descobre que esta pessoa mentiu. E aí nos deparamos com um vazio. O vazio deixado pela ausência de quem pensava existir.
— O Leonardo acompanhou meu sofrimento e não apenas sabia do paradeiro de Clara, como foi ele o responsável pelo sequestro. E ainda diz que me ama. Isso é monstruoso, Pedro!
— Júlia, eu sei que é difícil, mas tudo ficará bem, não se preocupe.
— Onde você está?
— Dentro do carro, no estacionamento. Quase não consegui sair sem ser notado. A casa está lotada de gente.
— Meu Deus, a festa da Celina...
— Desça pela escada que vai para a cozinha e correrá menos risco de ser percebida. Foi o que fiz.
— Chego aí em alguns minutos.
Os dois se despediram e ela desligou o telefone. Júlia voltou para o espelho e procurou retocar a maquiagem rapidamente. Em seguida, varreu o quarto com o olhar. Tratava-se de um cenário completamente sem sentido para ela. Depois, deixou o ambiente e bateu a porta. Do corredor, podia ouvir a música e burburinho das pessoas que vinha do andar inferior. Ao passar em frente à porta da sala das espadas, ela parou por um instante. Tinha decidido sair, deixar tudo para trás sem ouvir mais nenhuma explicação ou correr o risco de se deparar com outras mentiras. Mas era provável que Leonardo estivesse ali, talvez sem clima de enfrentar todas as pessoas da festa, após ser desmascarado por Pedro. A oportunidade que Júlia teria de tentar saber quem era aquele homem afinal com quem esteve casada nos últimos meses. Que justificativas ele teria para tamanha atrocidade? Não conseguiria ficar sem aquelas respostas! O momento seria aquele.
Seu corpo parecia adormecido ao empurrar a porta da sala das espadas de Leonardo. Pareceu levar horas para entrar naquele lugar novamente. A melodia triste de uma ópera tomava conta do ambiente isolado acusticamente do restante da casa. Ele adorava ouvir música ali, dizia ser a melhor forma de meditar.
Júlia, no entanto, não viu ninguém. 
— Leonardo? — Ela foi andando por entre os balcões de vidro que guardavam as peças da coleção de Leonardo, em direção ao fundo da sala, onde ficava sua mesa. Nenhuma resposta ou sinal da presença de alguém. Ela caminhou até esbarrar com o pé em algo macio e esticado no chão. Foi quando percebeu. Havia sim, uma pessoa. O corpo de um homem.
Neste instante, tudo se fez silêncio em sua mente. Seu impulso foi agachar-se. Era Leonardo Gondim, inerte, com a camisa banhada em sangue, segurando com as suas mãos uma pequena espada de prata, cravada no próprio peito.
— LEONARDO! — gritou no desespero de percebê-lo sem vida.
Ele estava morto!
Júlia segurava o corpo do amigo no colo e se deu conta da imagem de São Miguel Arcanjo no vitral quebrado à sua frente. Por um instante mirou a espada cravada no coração de Leonardo e em seguida a grande figura do anjo soberano sobre aquele lugar.
Foi sua vontade?
Em pouco mais de um minuto, as pessoas foram chegando, aquela sala foi se enchendo de gente, primeiro Maria Eugênia, depois seus dois filhos, em seguida Celina e por fim, muito dos amigos que estavam na festa. Todos testemunhando o final de Leonardo, em meio ao seu arsenal milionário, símbolo do poder que tanto lutou para construir.






Capítulo 69

Júlia se aproximou de Pedro e entregou a ele um colar de pérolas. Em seguida, deu meio giro segurando o cabelo no alto da cabeça para que ele o colocasse em seu pescoço. Depois ela tocou delicadamente na peça e se recordou de quando Leonardo a presenteou com aquele colar. Apesar de tudo, sentia falta do amigo que ele foi. Dois dias haviam se passado desde o momento em que o flagrara sem vida, mas não conseguira superar o choque provocado por aquela imagem macabra de Leonardo morto em seus braços.
Os dois sentaram à mesa com um farto café da manhã, no apartamento de Pedro. Ele tocou em sua mão e lançou sobre ela um olhar de ternura.
— E Clara, como passou a noite na casa de Raquel? — Pedro procurou saber.
— Falei com ela há pouco, está adorando brincar com os primos. Eu queria que ela ficasse essa noite longe disso.
— Que bom. Fez bem em deixá-la lá ontem. A pegamos na volta do velório.
— Não acredito nisso! — referia-se à morte do amigo.
— Leonardo não suportara a dor de se ver exposto, de ver destruída a imagem imaculada a qual construíra acerca de si mesmo, com tanto esforço. Era capaz de qualquer coisa para preservá-la.
— Até mesmo de tirar a própria vida. Foi seu último golpe.
— Ele não admitiria jamais a derrocada de seu império. — Pedro mostrou-lhe o jornal com a manchete: “O ADEUS AO DESBRAVADOR DA CULTURA CEARENSE”. — Ele foi aclamado publicamente, por todos os jornais escritos e televisionados do país inteiro como o grande empresário cearense, inovador, ousado, que levou o nome de nosso Estado ao mundo. Tivera em sua morte as honras que tanto sonhara e se esforçara em vida para construir.
— A imprensa não falou sobre a causa da morte?
— Nada, nenhuma nota nessa perspectiva. O Donato e a Maria Eugênia providenciaram para que não acontecesse. Pela importância do Leonardo à própria imprensa, não foi muito difícil.
— E o que vai acontecer com Donato Pessoa?
— O dossiê e a gravação estão com a Polícia Federal e muitos dos documentos foram entregues à imprensa, o suficiente para promover um grande estrago em sua imagem. Como Senador, ele goza de imunidade parlamentar, poderá responder o processo em liberdade. Mas a casa caiu. O crime de sequestro certamente fará com que o Partido o obrigue a renunciar.
— Quero vê-lo atrás das grades.
— Donato pagará pelos seus crimes, acredite.
— E a RTN?
— É provável que sofra uma auditoria do Estado, mas por enquanto ficará nas mãos da Maria Eugênia e do Donato. Mas os dois estão sendo indiciados. — Ele tomou um gole de café e completou: — Formalizei ontem meu pedido de demissão. Em alguns dias viajarei a São Paulo, aceitei o convite para assumir a superintendência do Canal Paulistano.
Aquela última informação chegou como uma granada. Pedro havia recebido o convite da emissora paulista há algumas semanas e vinha protelando uma resposta. Apesar de querer o melhor para ele, torcia para que não aceitasse. Finalmente tinham a oportunidade de ficarem juntos e temia que aquele novo trabalho consolidasse uma separação. Procurou, contudo, disfarçar para que ele não percebesse sua tristeza.
— Que bom! — Nem acreditava que dissera aquilo — Felipe já sabe?
— Não. Hoje mesmo passo no apartamento de Vanessa e converso com ele.
— Vanessa vai adorar — comentou, sem conseguir esconder a despeita. A ex-mulher de Pedro vibrara ao saber da possibilidade desse novo trabalho, antecipando-se em dizer que se mudaria para São Paulo imediatamente, caso o aceitasse. Agora ela certamente o faria. Não tinha como Júlia esconder os ciúmes, já que a companhia de dança que estava montando a impedia de viajar e acompanhá-lo naquele instante.  
Pedro sorriu, como se tivesse matado a charada.
— Júlia, sabe que não há mais nenhuma chance entre Vanessa e eu.
— Não estou com ciúmes. Acho mesmo bom que ela vá e você não ficará longe de Felipe  — retrucou, sem convencer a ele e a si mesma.
Pedro não conseguiu conter o sorriso e se levantou, tomando-a nos braços.
— Tola! Eu amo você! — justificou num tom afetuoso.
Se a amava como dizia, podia esquecer aquela proposta e não se mudar para São Paulo, justo quando tudo tinha acabado. Júlia quis pegá-lo pela palavra e pedir que ele voltasse atrás e não aceitasse o trabalho. Sentia-se frágil e temia ficar sem sua presença.
Puro egoísmo!
Não era justo para Pedro. Ao mesmo tempo que o desejava por perto, sabia da importância de seu trabalho para ele e o quanto estava entusiasmado com o novo desafio. O Canal Paulistano era uma emissora em ascensão e Pedro pensava num grande projeto para transformá-lo numa das maiores redes de televisões do país. Júlia não se sentia no direito de pedir aquilo. Mas por muito pouco, não o fez.
— Eu também te amo! E acredito no sucesso desse seu novo trabalho! — respondeu ela, perdendo-se naquele abraço.






Capítulo 70

Júlia e Pedro chegaram à mansão das Dunas em carros separados. Preferiram permanecer distantes um do outro naquele dia, para não chamarem a atenção de ninguém. O caso tivera muita repercussão na imprensa de todo o país, pela importância de Leonardo no cenário empresarial. Aparecerem juntos seria um prato cheio para os fofoqueiros de plantão.
O caixão de Leonardo estava sendo conduzido ao túmulo por ele construído, no jardim atrás da mansão, ao lado de onde fora enterrada sua primeira esposa. Júlia achara aquele dia desolador, nostálgico. Como se a cidade chorasse a morte de Leonardo. Amanhecera chovendo forte e o sepultamento parecia velado por um sereno triste e ameno. Foi uma celebração íntima, com a família e alguns amigos mais próximos. O clima frio, escuro, de aspecto chuvoso daquela manhã parecia contribuir para a saudade.
Durante o cortejo, Júlia se aproximou de Celina e a abraçou.
— A maior traição de papai foi com ele mesmo, Júlia — comentou a filha de Leonardo, num choro contido. — Eu havia descoberto tudo há algumas semanas. E o flagrei chorando diversas vezes, lamentando as proporções que seus planos haviam tomado, fugindo de seu controle. Dizia ele ter escolhido um caminho sem volta.
Ouvir aquilo apertou o coração de Júlia. Ela chorou junto com Celina, lamentou por Leonardo, por ela mesma. Era uma alma boa, perdida no cuidado com a imagem e no desejo de provar a si mesmo que podia ser grande. Um impasse interno o qual vivia solitariamente, levantando ao mundo a bandeira da determinação, da competência, da coragem, da solidariedade e cuidado ao próximo. Qualidades ressaltadas pelo padre pouco antes do caixão ser colocado no túmulo. Sim, Leonardo Gondim era realmente tudo aquilo, além de sua grande fraqueza. Por isso, sua morte causara tanta dor e lamentação no povo de Fortaleza.
Leonardo Gondim deixou saudades!
Pedro encontrava-se visivelmente abatido ao lado de Tancredo. Tratava-se afinal do grande amigo de seu pai. Júlia desejou se aproximar, oferecer-lhe cuidado, continente. Mas não devia. Seria uma afronta a toda a família. Precisava conter-se e deixar para depois. Por mais que quisesse estar perto dele, não era o melhor momento. Deste modo, contentou-se em fitá-lo de longe e suportar vê-lo sendo abraçado por Vanessa. 
— Preciso falar com você — disse-lhe Guel baixinho em seu ouvido.
— Podemos conversar depois — Júlia respondeu prontamente no mesmo tom.
— Pela primeira vez, não sei o que eu faço da minha vida.
Ela se surpreendeu com aquela declaração.
— Vai continuar com Maria Eugênia? — permaneceu um pouco a sua frente, para que ninguém percebesse que conversavam.
— Não. Continuar lutando por você. — Ele apertou a mão de Júlia, como se aquele gesto testemunhasse seu amor.
— Nossa história agora é outra, Guel. — Ela se desvencilhou de modo cuidadoso.
— Não acredito nisso. Você me conhece, sabe que não desisto fácil.
— Obrigado por tudo, Guel. — Júlia se afastou.
Chegara o momento de ir embora definitivamente daquela casa e reconstruir sua vida ao lado de sua filha, embora que distante de Pedro. Deu as costas ao local do sepultamento e caminhou para o estacionamento do outro lado da casa. Virava aquela página em sua vida.
Júlia se aproximou do carro e destravou as portas com o controle. E antes de entrar no veículo, ouviu seu nome. Era Maria Eugênia, a alguns metros. A filha de Leonardo se aproximou e tirou os óculos escuros, olhando profundamente em seus olhos.
— Matou o meu pai, destruiu a nossa família, acabou com tudo o que ele construiu a vida inteira — acusou ela.
— Maria Eugênia, esse não é o momento.
— Foi um demônio na vida dele.
— O Leonardo cavou a própria destruição no momento em que ele mandou sequestrar a minha filha. Vocês estão acostumados a acabar com a vida das pessoas sem que ninguém possa reagir. O que me diferenciou nesta história é que eu reagi, lutei contra vocês. E venci.
— Vai pagar, nem que seja a última coisa que eu faça na vida. Vou dedicar cada segundo da minha vida em destruir você. Sempre que tentar construir alguma coisa, estarei lá para garantir o seu fracasso.
— Não tenho medo de você, Maria Eugênia. É uma pena que não tenha aprendido nada! Mas todas as vezes que tentar puxar o meu tapete, reagirei, como fiz, incansavelmente, até que aprenda.
— Sei que foi você quem matou o meu pai. Não engoli essa história de suicídio. E vou provar que é uma assassina.
— Você é uma louca!
Júlia entrou no carro e a deixou com o seu ódio, vendo aquele lugar que lhe trouxera tanta infelicidade ficar para trás, cada vez menor no retrovisor do veículo, até perder completamente a visão da mansão das Dunas.






Capítulo 71

Júlia e Pedro se abraçaram no aeroporto Pinto Martins, em frente ao portão de embarque, enquanto Felipe e Clara dividiam um sorvete na sacada a alguns metros dali. Finalmente chegou o dia de sua partida. Apesar da falta que sentiriam um do outro, viviam um momento importante em sua vida profissional. Ele também se mostrava agitado naquele início de tarde e até se atrapalhara com os bolsos da mala, sem lembrar onde havia colocado as passagens.
Julia sempre odiara despedidas e vê-lo emocionado a fizera chorar.
— Eu havia prometido que não me emocionaria. — Chorava e ria ao mesmo tempo, um pouco envergonhada de não conseguir cumprir a promessa. E ele, na mesma situação, procurou enxugar suas lágrimas.
— E eu não posso ver mulher chorar — brincou, emocionado.
— Tolice a nossa.
— É verdade. Acho que a gente tem mais motivo para rir do que para chorar.
— Tem razão.
— É... — Pedro baixou a cabeça. E quando a ergueu, expunha-se novamente na emoção vencedora do riso puro e opressor. — Não queria que fosse assim!
— Como você mesmo diz, é nosso apego. 
— Hummm... aprendeu, hein?
— Só podia, depois de tanta cabeçada.
— É bom te ver mais solta, menos vigilante, sem nada a esconder.
— É bom “estar” assim, Pedro.
— Júlia, torço que seja sempre deste modo daqui para frente, que as pessoas com quem interagir possam saborear mais de você, saber mais de você, sentir mais você, o que está aqui dentro. — Sorria, tocando seu peito.
— Ainda tenho medo. Muitas coisas se perderam, outras não fazem mais sentido. E às vezes, não me reconheço. Sendo esse ser anônimo que orienta o que faço, o que digo, sem que eu esteja atenta, sabe? Foi o que nos separou e ainda me amedronta, faz de mim frágil, insegura. Mas que me dá coragem de seguir.
— Agarre-se nessa coragem. Foi ela que me encantou em você. Esse ser anônimo que conhece tão bem, te esconde do mundo. É dele que quero distância.
— Eu sei. Vou continuar tentando.
— Bom ouvir você falar assim. — Tocou-lhe o rosto, deslizando a mão por seu cabelo. E sorriu novamente. — Desculpa por não ter acreditado mais em você.
— Desculpa por não me fazer acreditar.
Júlia olhou para Felipe, a alguns metros, perto da sacada do aeroporto, mostrando alguma coisa lá embaixo para Clara. Ela aproveitou o momento e surpreendeu Pedro com um beijo. Um beijo leve, doce, solto. Sentia o próprio corpo tremer ao envolver-se em desejo, num amor que não se acabaria ali, mas livre, sem expectativas. Poderia ser o último beijo, ou não. O que aconteceria dali para frente, ou como aconteceria, não importava. Como se a única coisa a qual se fazia importante fosse aquele instante.
 — Vamos, papai? — A fala de Felipe os trouxera de volta de seu universo. Os dois se desvencilharam do beijo. Rir e chorar eram as duas faces da mesma moeda naquela despedida.
Júlia tomou a mão da filha.
— Fique bem. — A frase de Pedro parecia carregada de significados.
— Pode deixar. — Ela olhou para Felipe e pediu: — Cuida bem dele.
Eles se despediram. Antes que Pedro e Felipe se dirigissem para a sala de embarque, Júlia teve vontade de pedir que fosse diferente, que não a deixasse, que desistisse de tudo, que ficasse com ela. Por um instante, achou que era isso que ele esperava ouvir para não deixar Fortaleza. Depois de tudo o que passaram, por que não poderiam continuar juntos? Bastava que ela tivesse coragem e disparasse o pedido egoísta.
Não vá embora! Por favor, Pedro, fica comigo! Eu te amo!
Faltava transformar o pensamento em palavras. E a coragem para fazê-lo? Temia ser considerada como uma tola imatura e egoísta. Não, não se sentia no direito de propor que ele abrisse mão de seu trabalho por ela.
Júlia respirou fundo e falou:
— Bom, então, até breve.
Em seguida, experimentou a eternidade de um longo abraço com Pedro, no qual ele disse baixinho tudo que esperou ouvir naqueles últimos seis anos. Aproveitou cada segundo de sua presença, até vê-los desaparecer pela sala de embarque, e Pedro, voltando-se à sua figura, parada ali, lembrando em segundos de tantas coisas pelas quais passaram, de quando o conheceu num salão de Biodança, quando ele pensava tratar-se de Mirela. Recordou-se do primeiro beijo, de quando ele a pediu em casamento, de tantos momentos partilhados. Experimentava uma saudade que parecia consumir-lhe a alma.
Júlia se abaixou e pôs-se diante de Clara, com os olhos cheios de lágrimas.
— Agora somos só nós duas, minha querida.
A menina lhe enxugou uma lágrima que escorrera pelo rosto e a abraçou.






Capítulo 72

Júlia agradeceu ao profissional do Teatro José de Alencar, por levá-la ao palco. Varreu o ambiente com o olhar e deslumbrou-se com a beleza do lugar. Estar ali lhe enchia de orgulho e alegria, não cabia em si de tanta felicidade.
— Quando teremos nossa bailarina de volta? — Ouviu a voz de Tancredo, por trás das cadeiras vazia na plateia.
— Tancredo?
— Disseram que estaria aqui. — respondeu, aproximando-se.
— Fechamos um contrato há pouco para a estreia do primeiro espetáculo promovido por nossa companhia de dança.
— Companhia de Dança Animu! Do latim, o que anima. Ou melhor, alma. – Definiu Tancredo, estampando um largo sorriso. – Fiquei feliz quando soube. Afinal sempre foi seu maior sonho profissional e ele começa a se tornar realidade. – Ele já estava diante do palco, no corredor da plateia. Devia ser umas 16h30 e a luz do sol que vinha das portas de vidro no fundo do teatro não permitia que ela visse o rosto dele nitidamente.
— É. O casamento com Leonardo me abriu as portas para bons patrocínios. Finalmente consegui montar uma equipe de peso, com ótimos bailarinos. A Animu será um grande desafio.
— E como se chama o primeiro espetáculo? — ele subiu, pela escada lateral do palco.
Avenida da Luz. — Respondeu orgulhosa. — Teremos como pano de fundo a vida na Av. Beira Mar de Fortaleza. Estrearemos daqui a alguns meses.
 — Que bom que acabou tudo bem, Júlia.
— Obrigada, Tancredo! Nem sei como te agradecer...
— A felicidade de uma amiga é o maior agradecimento. Além do mais este caso estava engasgado na minha garganta há seis anos. Precisava resolvê-lo.
— E o que vai fazer?
— O Pedro me convidou para mudar de canal. Foi uma proposta interessante. — o sorriso traduzia o quanto estava feliz.
— Está indo para São Paulo?
Ele fez que sim com a cabeça.
— Viajo à tarde. Por isso estava te procurando. Queria me despedir.
Júlia o abraçou.
— Obrigada mesmo, meu amigo! Tenho uma dívida da alma com você. — a única forma de tentar representar aquilo que sentia por ele.
— Nos vemos em breve.
Os dois se despediram e ele a deixou. Ela o observou saindo, até que sumisse definitivamente atrás das cadeiras da plateia. Júlia sentiria muito a sua falta!
Em seguida, ela apreciou aquele lugar, cenários que recebera tantos artistas. As cadeiras vazias a sua frente deram lugar à imagem de uma plateia lotada aguardando sua estreia em êxtase. Ela ergueu o braço, num movimento leve de coreografia. Aquela imagem se fundiu à voz de Pedro falando ao seu ouvido no aeroporto:

Que São Miguel Arcanjo possa continuar lhe defendendo no combate, sendo seu refúgio contra as maldades e ciladas do demônio. Foi isso que quis lhe dizer quando lhe enviei aquela imagem no final do ano. Você já encontrou a verdade tão procurada. Ela está e sempre esteve em você. E torna-se mais clara em sua dança. Quando a vejo assim, sou tomado pela certeza de que será para sempre. O que alegra o meu coração, em total sintonia com o seu. É neste momento que experimento o sentimento de sermos mais do que somos, quando nossas almas se encontram. Dance a vida como no palco, sentindo Deus no silêncio que habita em você. Seja! E assim, estaremos um para o outro, sempre. Espero você, com todo o amor que há no meu coração.

Sim, fora Pedro quem lhe enviara a estátua de São Miguel Arcanjo, despertando-lhe, sem que soubesse, a grande inspiração para voltar a procurar por Clara. Júlia estava certa de que ele havia sido seu grande anjo protetor, o tempo todo.
— Eu vou te encontrar! — afirmou aquilo para si mesma, com largo sorriso e a mesma certeza do amor que a acompanhou por todos aqueles anos. 




Resenha por Andréia Regina Nogueira Cruz


Qual é a sua casa dos Anjos?
Essa pergunta aparece quase no fim do livro, mas te faz pensar muito...
O livro conta o drama de quatro mulheres que tem suas vidas, de certa forma, interligadas, apesar de uma e outra não se conhecerem.
Júlia é a personagem "central", que tem a filha de 1 ano desaparecida. Marina é uma mulher apaixonada e submissa. Celina, uma tetraplégica que não aceita sua condição e Clarinda, uma mulher que não se permite viver seu grande amor.
No começo foi meio difícil acompanhar as quatro histórias, porque quando voltava na personagem, eu tinha esquecido onde tinha parado, então voltava um pedacinho para acompanhar (eu tenho esse probleminha, eu esqueço as coisas muito rápido...). mas conforme as histórias vão se entrelaçando e você vai conhecendo-as melhor, você só quer saber mais e mais o que vai "rolar".
Basicamente, uma história de encontros, principalmente o de si mesmo. E vou te falar que fiquei com a maior vontade de conhecer um pouco mais sobre Biodança e praticá-la.
Quanto ao nome do livro, ele se deve a uma "casa" que Celina ganhou ainda na infância, onde guardava seus desejos, mas também...(leia o livro...rsrsrs...).
Eu acabei descobrindo, acho, a minha. Eu queria muito ler esse livro, mas acabei "enrolando", demorando a ler e acredito que acabei lendo-o na hora certa. Sabe quando você lê algo que parece ter sido escrito pra você? Pois é, eu me vi em determinados "sentimentos" e pela primeira vez, depois de muito tempo, resolvi exprimi-los e OMG, foi tão bom, me senti tão mais leve e feliz...
Então só posso dizer que gostei muito do livro...
Fica a dica...
Bjos!!!

Resenha por Jailson Batista


Quando eu comecei a ler o livro “A Casa dos Anjos” eu me deparei com o seguinte: 4 histórias sendo contadas por 4 narradoras diferentes. A princípio eu achei que isso atrapalharia a leitura e até mesmo o desenrolar da história. Porém o que aconteceu foi exatamente o contrario, na verdade ajudou. As historias se cruzam e é isso o que dá o algo mais a trama. A maneira que elas se encaixam é importante para entender melhor o enredo. Quando terminei de ler o livro e vim fazer a resenham relembrando fatos, me senti como se não fosse um livro que eu tivesse lido, mas sim uma novela que eu tivesse assistido. Original, essa é a palavra. Acredito que o Autor Antonio Rondinell quis mostrar os conflitos que temos, conflitos que nos mostra nossa verdadeira face. Lembro que li em algum lugar a frase: “A dor é suportável, exceto para quem a sente” e o livro mostra um pouco disso, um pouco de como lidamos com nossos sofrimentos. No aspecto físico dou destaque à capa, suave e encantadora, assim como a história.

Agradeço ao Autor Antonio Rondinell (Que mora aqui do lado :]) por ter cedido um exemplar do livro para resenha, espero que ele continue escrevendo (já estou sabendo de novos projetos :D) e nos agraciado com suas histórias.

Abraço e boa leitura.

Comentério do Leitor


A leitura de A Casa dos Anjos foi perfeita, o conteudo maravilhoso, me fez resgatar o habito que havia perdido. Estamos esperando ansiosamente pela segunda edição, deixou um gosto de quero mais. São historias que nos envolvem vivenciando as alegrias, tristezas e força de vontade de superar os problemas que surgem no decorrer de nossa caminhada como ser humano. Pra mim foi perfeito, e que venham logo as proximas ediçoes.

Vanessa - Leitora

Comentário do Leitor


"O livro é escrito com uma riqueza de detalhes que em muitos momentos me sentia sugada pelas cenas descritas. Era como se presenciasse aquele momento narrado, sentisse o que era dito pelas personagens. Ele envolve, seduz de uma forma tão sutil que quando você menos espera não consegue se separar querendo saber o desfecho da história. Vale a pena comprar e aceitar este convite a leitura."

Ticiana Otoch Moura - Psicóloga


Comentário do Leitor


Gostaria de parabenizá-lo pelo seu sucesso nacional. Li todo o livro e realmente é muito bom. Para quem tem sensibilidade, ao ler um livro como A Casa dos Anjos, descobre os valores de sua vida e da vida do próximo, avalia sua posição diante das dificuldades e porque não das facilidades, passando a valorizar a vida independente de sermos apreciados pelo outro. Descobri a importancia do ser, independente do ter. Nos convida a fazer uma reflexão dos nossos valores, atitudes e escolhas. Minha nota é 10. Parabens, um forte abraço.

Odília Gondim - Economista Doméstica e Educadora.



Comentário do Leitor


"A leitura de A casa dos anjos foi deveras prazerosa para mim, sobretudo pelas peculiaridades que me levaram ao livro: ter no escritor um amigo querido; a estória ambientada em Fortaleza; a narrativa de cada uma das quatro mulheres que me remetem a situações vividas em algum momento da vida. De fato, nunca levei a termo uma leitura de forma tão determinada como fiz com este livro, e o motivo era muito simples, a cada página que folheava sentia-me convidada, mais que isso, sentia-me instigada a continuar e continuar e continuar, e lia avidamente. No dia que conclui a leitura percebi que jamais havia lido um livro com tamanha empolgação e curiosidade que me acompanharam desde a primeira até a última página, foi uma experiência realmente fascinante e única para mim. Percebi também que, inexplicavelmente, sentia-me ligada aos personagens como se em algum lugar eles me aguardassem para continuarem suas vidas, como se eu fizesse parte da história deles ou quem sabe eles da minha... Já havia ouvido falar em “depressão pós livro”, mas só agora pude compreender do que se trata isso, não só porque chorei na leitura das últimas páginas, mas em especial pela enorme saudade que sinto de Júlia, Marina, Celina e Clarinda."

Norma Sampaio - Economista e Facilitadora de Grupos

Comentário do Leitor


"A Casa dos Anjos é um livro fascinante que nos instiga a mergulhar no universo de quatro mulheres, seus conflitos, sentimentos, numa busca que nos convida a refletir e a dialogar sobre felicidade, ética, valores, esperança, verdade, vida, amor. È um livro fantástico, emocionante que nos convida a ser,a sonhar e a viver quando sentimos a força, a dor, o vôo de liberdade, a doação, o amor de cada uma das personagens. Convido você a ler este livro e dialogar com cada uma destas mulheres."

Luciana Nogueira - Educadora / Licenciada em Letras


Comentário do Leitor


"Nunca tinha lido uma síntese da vida e do seu sentido, do nosso destino e das nossas possiblidades, permeado de cautela em relação aos nossos erros e acertos que podemos cometer nesse emaranhado que a vida e os nossos relacionamentos como A Casa dos Anjos. O livro tem passagens marcantes e tocantes. Júlia Serrado, Marina Pessoa, Celina Gondim e Clarinda de Holanda são mulheres que me habitam. Muitas vezes me sinto "tetraplégica", pelo medo de enfrentar a minha essência. Júlia Serrado me remete à Deusa grega Perséfone, ao ter sua filha sequestrada para o mundo avernal de Hades, o mundo do inconsciente e também da sombra, que muitas vezes me impedem de ver a luz. Perséfone é muito intuitiva e tem muita sabedoria, mas é preciso vigilância... Enfim, este livro é um convite a buscar a nossa essência, e vai além do Ter e Ser. Quem tiver oportunidade de ler, com certeza vai abrigar este espírito, a mente e o coração.
Obrigada, Rond."

Maria do Rozário de Oliveira - Psicóloga e Educadora.

 
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