A Casa dos Anjos - Continuação: A História de Clarinda de Holanda
Antonio Rondinell - 2011 / 2012
CAPÍTULO 01
Parei
diante do espelho e vi a figura de uma mulher machucada, não somente pelo
hematoma no olho esquerdo, mas uma ferida não cicatrizada na alma. Nem me via
mais no direito de chorar, de lamentar a dor por me sentida nos trinta e nove
anos de meu casamento com Alceu. Nos últimos tempos o castanho escuro de meu
cabelo cedeu lugar a inúmeras mexas brancas, e incontáveis marcas de expressão
se acentuavam em meu rosto, firmando meus sessenta e dois anos. Já não
enxergava mais a beleza presente em meus tempos de juventude, que me abandonara
em tantos anos de sofrimento naquele matrimônio violento. Há meia hora eu
estava sendo agredida brutalmente pelo pai de meus três filhos, e o motivo
banal eu nem lembra qual era. Na verdade, Alceu dispensava qualquer motivo,
como se precisasse apenas despejar uma raiva incontida, uma agressividade
monstruosa em meu corpo. Um ritual recorrente a cada dia, e em algumas ocasiões
mais de uma vez por dia.
Dos meus três filhos, apenas Nando, o
mais velho, morava conosco. Professor universitário, passava o dia fora de
casa, propiciando o ambiente adequado à violência do pai. Cabia a mim esconder,
mentir, negar, evitar conflitos ou confrontos entre pai e filho. Sabíamos que
ele nunca saíra de casa como forma de me proteger. O que não se fazia suficiente,
entretanto, por seus inúmeros compromissos acadêmicos. Meu filho não tinha como
dedicar-se exclusivamente a me proteger do próprio pai.
Com o passar dos anos, acostumei-me a
ser indagada pelos meninos ou pelos poucos amigos que consegui manter diante
daquela relação opressora, acerca dos motivos que me forçavam a permanecer no
inferno contínuo do casamento com Alceu. Depois de ver meus três filhos adultos,
as agressões antes dispensadas a toda a família, voltaram-se apenas a mim, como
se me culpasse por aquela conjuntura familiar.
Francisco, conhecido por todos como Holanda,
foi o primeiro a sair de casa, logo que completou dezoito anos, cansado da
violência do pai e por vê-lo me agredir frequentemente. Diferente do irmão mais
velho, vivia uma difícil relação com o pai, tanto por conta de sua opção
sexual, quanto por não admitir seus maus tratos para comigo. O Próprio Alceu
acabou por proibir sua aproximação, afastando-nos ainda mais. Limitávamo-nos a
raros encontros clandestinos ou curtas ligações telefônicas, para não agravar a
minha situação. O que nem sempre conseguíamos evitar. A maioria das agressões,
das surras que eu levava era por causa de Holanda, de algum de nossos encontros
descoberto ou de nossas conversas pelo telefone. Alceu parecia alimentar um
grande ódio ou rancor pelo filho, talvez por ter sido ele quem mais o
confrontou. Mesmo quando era um garotinho, por diversas ocasiões tentou me
defender. Mantínhamos uma forte ligação. O que explicava a imensa saudade que
nós sentíamos um do outro naqueles dezoito anos em vivíamos separados. Uma mãe
nunca se acostuma com a dor da distância de um filho, ela vive cada dia como se
fosse o primeiro, com o coração despedaçado, embora que maquiado pelas
banalidades do cotidiano viver.
Primeiramente foi a saída de Holanda,
depois Ronie, o caçula nos deixou. E logo em seguida, foi a vez de Tony, a
sobrinha que eu criei sair de casa. Vi minha família se desestruturando aos
poucos, marcada pela violência de Alceu. A casa em que morávamos há tantos
anos, na rua Romeu Martins, no Montese, foi perdendo a sua vitalidade, típica
de um ambiente habitado por tantos jovens, com suas descobertas, seus namoros,
suas alegrias, a cede de conquistar o mundo, tão presente nesta fase da vida.
Da convivência com os meninos só me
sobrara a de Nando, o nosso primogênito. Ainda assim, somente pela manhã cedo,
antes de sair para a faculdade, e tarde da noite, após retornar do trabalho.
Deste modo, Alceu dispunha de tempo mais do que suficiente para suas agressões.
A mim, restava o alento de minha fé.
Deus e Nossa Senhora me davam forças para suportar o calvário de meu casamento.
Orava com fervor diariamente, rogava uma transformação por parte de meu marido,
que um dia caísse em si e tomasse consciência da devastação causada por ele
mesmo à própria família. E foi esta crença que me ajudou a suportar a dor, a
humilhação permanente a cada agressão, trazendo tranquilidade ao meu coração. E
me ajudando a conviver melhor com a saudade, a ansiedade e preocupação à distância
pelo bem estar de Holanda, Ronie e Tony. Acreditava sim que um dia estaríamos
todos juntos e felizes.
Mas o que de fato me mantinha presa
àquele casamento infeliz e absurdo? Um questionamento feito por todas as
pessoas que conheciam a minha história, que desejavam me ver um dia feliz. Não,
ninguém jamais compreenderia os motivos, a decisão de aceitar o próprio marido
como algoz durante tantos anos de casamento. Um segredo que pertencia ao meu
passado, tão bem guardado por meu sofrimento e total entrega de minha alma, que
me deixava cada vez mais convicta de que tratava-se de um convite de Deus.
Uma promessa envolvendo a vida de muitas
pessoas!
Aquilo era o motivo pelo qual eu me
mantinha ao lado de Alceu por quase quarenta anos. Uma promessa que ele mesmo
não tinha conhecimento. Ninguém tinha, somente eu sabia do que se tratava e de
quem se tratava. Revelar aquele segredo significava mexer com a vida de muitas
pessoas inocentes, pessoas que já haviam sofrido muito por causa de minha
covardia.
Mais uma vez estava eu diante de mim
mesma, machucada, pensando que desculpa criar para meu filho quando visse o
hematoma em meu rosto. Foram tantas mentiras em todos aqueles anos. Nem sabia
ao certo por que procurava esconder. Meus filhos Nando e Holanda já não
acreditavam e nenhuma desculpa.
O som da campainha cortou o silêncio de
mais aquela tarde violenta. Quem poderia ser? Um amigo de jogo de Alceu? Na
certa. Eles passavam o dia jogando damas ou baralho, ouvido forró e bebendo no
bar da esquina. Abri a porta desejando fuzilar quem estivesse procurando por
ele. Era minha amiga, no entanto.
- Júlia? – Desejei me esconder de
vergonha, pelo hematoma.
- Precisava falar com você. O que foi
isso no seu olho? – Referia-se ao machucado.
- Nada, bati com o rosto, só. –
Procurava esconder com as mãos.
- Clarinda, minha amiga, o que houve?
- Nada demais, já falei. – Abri espaço
para que entrasse, por mais que Alceu não aprovasse sua presença em nossa casa.
Para ele Júlia Serrado não era uma boa companhia. Nossa vizinha fazia quatro
anos, havíamos nos tornado grandes amigas, desde que viera morar no Montese, em
frente a nossa casa. Pude acompanhar de perto sua história tentando reencontrar
a filha sequestrada e seu envolvimento com o empresário Pedro Lucena. Fato que
nos aproximou bastante uma da outra.
- Ele te machucou novamente, não foi?
Não tinha como esconder de Júlia. Ela
sabia de tudo. Caí em prantos, sendo acolhida em seus braços. Cena comum nos
últimos anos.
- Foi horrível. – Lembrava de cada
pancada, de cada palavra desrespeitosa.
- E por que foi desta vez? – Tentou
saber.
- Me pegou falando ao celular com o
Holanda novamente.
Minha amiga se indignava com aquilo.
- Clarinda, você precisa fazer alguma
coisa. Ele não pode te impedir de falar com os seus filhos. São filhos dele
também.
- Já tem tanto tempo que o Holanda saiu
de casa. Acho que Alceu nem o considera mais como filho. Nem mesmo o Ronie, o
nosso caçula, de quem ele gostava tanto.
- E o Nando, o que você vai dizer pra
ele?
- Não sei ainda. Quero evitar mais
conflitos. O Alceu falou que se o Nando ficar sabendo, depois nós vamos nos
entender novamente.
- Absurdo! – Foi quase um grito de
Júlia. – Quem ele pensa que é? Clarinda, você não pode permitir que atrocidades
continuem acontecendo. Você não merece. Ninguém merece isso. Ele não tem o
direito.
- Eu não quero pensar nisso agora,
Júlia. Daqui a pouco meu filho está chegando e ele não pode me ver assim.
- Quer saber? Vai ser muito bom que ele
veja. O Nando é a única pessoa que o Alceu ainda respeita. Talvez pela mesada
que ele recebe.
- Por favor, Júlia. Isso vai só piorar
as coisas. Depois ele vai acabar me batendo novamente. Eu preciso inventar uma
desculpa.
- Isso é o que mais me indigna. Esse
homem te machuca o tempo inteiro e você ainda o protege.
- Não é isso, minha amiga. Já tentei te
explicar.
- Definitivamente eu não compreendo.
Você é uma mulher jovem, bonita. Tem uma profissão, é uma costureira respeitada,
com uma grande clientela, e pessoas influentes, que poderiam te ajudar. Por que
se sujeitar a uma vida dessas?
- Fazemos escolhas que muitas vezes não
temos como voltar atrás.
- Sempre tem como voltar. A história pode
ser reescrita, o caminho reaprendido e a vida retomada. Mas para isso,
precisamos querer, minha amiga. É isso que eu não entendo. Você age muitas
vezes como se gostasse dessa vida, como se isso te alimentasse de algum modo. São
quase quarenta anos de sofrimento.
- Casamento é para sempre.
- Sofrimento não!
- Deus quis assim.
- Sinto muito, mas Deus não tem
participação nisso, tenho certeza.
- Tudo vai ficar bem, Júlia. Eu tenho
fé.
- Você tem que fazer a sua parte. Talvez
seja isso que esteja faltando. Deus quer te ver feliz, como a todos nós. Mas
você precisa dar algum passo.
- Foi um passo errado, há muitos anos.
- Que pode ser consertado. Clarinda,
pelo amor de Deus. Você fala como se fosse uma punição.
E era! O que eu havia feito não tinha
perdão. Viver aquele casamento seria uma forma de eu pagar por meu pecado.
Restava-me rezar, pedir que Deus me desse conformação e forças para superar a
dor, a violência, a humilhação constante de Alceu. Júlia nem ninguém
compreenderiam ou aceitariam meus motivos. A promessa!
Escondi o hematoma por aquela noite e na
manhã seguinte, evitando encontrar com Nando. Como minha amiga, ele jamais
acreditaria na inocência do pai.
CAPÍTULO 02
Alceu
me procurou logo ao amanhecer. Queria garantir que eu não sujasse sua imagem
perante o filho, a fim de não comprometer sua mesada. Uma lição que eu já havia
aprendido fazia tempo, depois de tantos anos.
- Desculpa, mulher.
Perdi as contas de quantas vezes eu
havia escutado aquele discurso nos últimos trinta e nove anos. Sempre o mesmo
texto, depois que passava seu surto.
- Qual sua preocupação, Alceu? Está com
medo de Nando descobrir e cortar novamente sua mesada? – Coisa que já havia
acontecido inúmeras vezes.
- Que é isso, Clarinda? Você sabe que eu
me arrependo.
- De que exatamente você se arrepende,
Alceu?
- Não quero te machucar. Mas você faz
por onde.
- Trata-se do meu filho.
- Ele é uma mariquinha.
- É nosso filho. E já fazia tempo que
não nos falávamos.
- Ele torce contra o nosso casamento.
Sempre quis que a nossa separação. Então é meu inimigo. – Falava baixo, para
não que Nando não acordasse no quarto ao lado.
- Como pode falar assim do próprio
filho?
- Vê como é perigoso? Um filho que
deseja a separação dos pais não presta, Clarinda. E esse baitola, sempre quis
me ver pelas costas.
- Isso não e verdade. Ele sofria
apanhando aqui dentro de casa e vendo você me bater. Apenas quer me proteger.
- De mim? Eu sou seu marido. Ele não
pode querer te proteger de mim.
- Me proteger da sua violência, das suas
agressões. – Falava com receio de que aquilo pudesse ser usado contra mim. Minha
proteção era Nando, do lado.
- Eu não faço por mal, mulher.
Ele realmente parecia acreditar naquele
absurdo.
- Não se preocupe. O Nando não ficará
sabendo.
Conviver com Alceu e sua doença era uma
escolha minha. Sabia que eu havia me casado sem amor, e por isso parecia querer
me punir pelo resto da minha vida. Adriano Cordeiro ficara guardado em meu
coração durante todos aqueles anos, desde que fora violentada por Alceu e
forçada por meu pai a me casar com ele. O sonho de viver o grande amor com o
namorado da época do colegial ficara preso a um passado distante. Um romance
impedido inicialmente pela gravidez de uma ex-namorada de Adriano, com quem
acabou se casando. Depois, mesmo com a separação dos dois, papai jamais
aceitaria meu relacionamento com um homem desquitado. E por fim, meu matrimônio
forçado com Alceu nos afastou de vez. Durante anos ele pensou que eu o havia
traído, por não saber de minha honra roubada.
Adriano se fez presente por muito tempo
ainda em nossas vidas. Por isso acompanhei o crescimento de sua única filha, Olívia,
por quem tenho um carinho todo especial. Até reconhecer os ciúmes doentios de
Alceu, e que estes me eram nocivos, optando por se afastar de vez. Passamos a
nos encontrar causalmente em intervalos de alguns anos, como da última vez,
após a chegada de Júlia Serrado à Rua Romeu Martins. Adriano era o grande amigo
de Pedro Lucena, o empresário por quem minha vizinha acabou se apaixonando. O
que nos reaproximou.
Um grande amor não vivido poderia ser
transformado numa profunda amizade. E por mais que eu insistisse em manter
distância, a fim de evitar as desconfianças infundadas de meu marido, Adriano prometera
nunca mais se afastar, mantendo-se presente mesmo que de longe. Para isso
ganhara uma grande aliada, Júlia Serrado.
Meu celular tocou logo após a saída de
Alceu, depois do café. Perfeita sintonia!
- Clarinda? – Confirmava, feliz, do
outro lado da linha.
- Bom dia. O Alceu acabou de sair.
- Eu sei.
- Como sabe?
- Os astros me mandaram ligar. – Sabia
que eu não gostava daquelas conversas de astros, era contra a minha crença
religiosa. Falava com ar provocativo. Podia imaginar o sorriso no rosto.
- Espirituoso você, logo cedo.
- É sério. Só você não acredita. Mas sou
bruxo.
- Preciso rezar muito então. – Respondia
com o aparelho preso no ombro para estar com as mãos livres nos trabalhos da
máquina de costuras. Podíamos passar horas falando. – E a Olívia? Vocês
conversaram?
- Tentei mais uma vez.
- E ela?
- Irredutível.
- Ela vai acabar aceitando.
- São tantos anos, Clarinda. O Alexandre
já tem mais de vinte anos.
- A Olívia te ama.
- Já não sei mais.
- Posso tentar falar com ela novamente.
- Não sei se vai adiantar. Você tentou
inúmeras vezes. Ela nunca quis te ouvir. A impressão que eu tenho é que ela
nunca vai conseguir me perdoar.
- Não podemos perder as esperanças.
- Você tem razão. Na verdade, você me
trouxe de volta a esperança de me reconciliar com a minha filha.
- O sangue fala mais alto. Família é
tudo.
- Acredito em você.
Acreditava também que eles pudessem se
entender um dia.
Foi doloroso para Adriano ver sua filha
de apenas dezesseis anos completamente apaixonada pelo jovem mais cobiçado e
mulherengo da escola, sofrendo por ser apenas mais uma de suas muitas
namoradas. Noites em claro chorando, sumiços de finais de semana inteiros em
farras intermináveis. Viu a filha inocente transformar-se numa jovem rebelde,
capaz das maiores loucuras para estar ao lado de um rapaz que não a amava. A
gravidez de Olívia foi o golpe de misericórdia, impulsionando Adriano a
expulsá-la de casa. O maior erro de sua vida! Uma atitude de desespero jamais
perdoada por ela.
Quantos erros cometemos desejando
acertar? Alguns deles tão nocivos capazes de desestruturar uma vida, de fazer
sofrer aqueles que mais amamos. Recordo-me dos motivos que me levaram a firmar
a minha promessa, a permanecer casada por tantos anos com Alceu e ficar longe
de meus próprios filhos, e de Adriano.
- Depois conversamos então. – Disse-lhe
ao final da ligação.
Ao desligar o celular, Alceu estava bem
diante de mim.
- Quem era no telefone?
Gelei com aquela pergunta. Foram tantas
surras por conta dos ciúmes que meu marido sentia de Adriano, que pensar em
responder me vinha todos os horrores já vivenciados em todos aqueles anos.
Mentir era a saída.
- Uma cliente. – A resposta que me veio.
- Uma cliente? – Aproximou-se com olhar
desconfiado. Parecia ter ouvido alguma coisa do telefonema. Nem me dei conta do
momento em que entrou. – Quem era essa cliente, Clarinda?
- Você não conhece, Alceu.
- Tem certeza? – Estava por trás de mim,
e certamente desconfiado. – Clarinda, não brinque comigo. Sabe muito bem do que
sou capaz quando estou com raiva. Você não estava falando com nenhuma cliente.
Era Adriano Cordeiro.
Sim, com certeza Alceu ouvira o
telefonema. E mais uma vez eu estava em
suas mãos.
CAPÍTULO 03
Nando
acabou viajando com uma turma de amigos no réveillon de 2010 e eu ficaria
sozinha em casa com Alceu. Já não sentia o peso de sua mão há algumas semanas,
desde que ele flagrara uma ligação minha com Adriano Cordeiro. Tudo o que me
fazia bem era vivido às escondidas, como as conversas com meu grande amigo e os
raros encontros com meus filhos Holanda e Ronie, que não suportavam o pai.
Na
tarde do dia 31 fui surpreendida com a figura de Adriano saindo da casa de
Júlia, em frente ao nosso portão.
-
Clarinda... – Acenou, chamando minha atenção. Ainda tentei disfarçar, fingir
que não o tinha visto. Mas fora em vão. Ele ousou atravessar a rua e se
aproximar. – Clarinda, pensei que não a veria antes da passagem do ano. Tentei
ligar várias vezes no natal, seu celular estava sempre desligado.
-
Tenho andado ocupada. – Respondi, averiguando se Alceu não estaria por ali.
-
Encontrei com o Holanda ontem.
-
Nos falamos por telefone, ele me disse que havia lhe visto.
-
O que aconteceu? Você está bem?
Temia
que Alceu nos visse ali. Adriano estava em nossa calçada, segurando o portão.
Se fôssemos flagrados, eu pagaria caro.
-
Com licença, Adriano, tenho que ir.
-
Mas tão rápido?
-
Tenho muita costura para entregar.
-
Parecia estar de saída.
-
É, mas esqueci de uma coisa lá dentro. – Precisava sair, deixá-lo.
-
Queria falar com você de forma decente. – Sorriu, referindo ao portão que nos
separava. – Posso entrar?
Não!
-
Estou com pressa, Adriano.
-
Clarinda, o que está acontecendo? Você está com medo que o Alceu nos veja aqui?
-
Sabe como ele é.
-
Ora, ora, se não é meu velho amigo Adriano Cordeiro... – Era a fala de Alceu, do
outro lado da rua.
-
Alceu de Holanda. – Voltou-se a meu marido, estendendo a mão para
cumprimentá-lo. Pronto, o encontro acontecera. Depois seria acusada de lhe dar
cabimento, liberdade e pagaria com dor.
-
O que faz por essas bandas do Montese? – Procurou saber Alceu. Nem parecia já
terem sido tão amigos na juventude. Nada restara da velha amizade, desde o
nosso casamento.
Creio
que o maior incômodo de meu marido era em relação ao sentimento que ele sabia
existir entre Adriano e eu depois do término de nosso namoro. Nós nos amávamos,
e findamos nossa relação por sua ex-namorada ter engravidado. Depois de sua
separação relâmpago, logo após o nascimento de Olívia, meus pais não admitiam a
união de sua filha com um homem desquitado. Aquilo era uma afronta aos seus
preceitos morais. Deste modo, Alceu, que alimentava uma paixão avassaladora por
mim, pediu minha mão em noivado para meu pai.
-
Estive com Júlia, sua vizinha. Somos amigos.
-
Sei, a dançarina de boate. – Adriano percebera a insinuação.
-
É, Júlia é bailarina. – Procurou naturalizar.
-
E o que faz aqui com Clarinda?
-
Falava que há tempos não nos víamos. – Respondeu normalmente Adriano. O medo
pertencia apenas a mim, a mais ninguém.
Conversaram
algumas amenidades. Adriano percebeu que a presença de meu marido ali,
representava um empecilho. Despediu-se e foi embora. Alceu, aguardou que ele
entrasse no carro estacionado logo em frente, desse partida e saísse, como
garantia que nosso encontro não se prolongaria. Só então entrou.
Eu
estava na máquina de costuras, procurava me concentrar, tirar o foco do medo de
uma represália. Meu marido foi até a cozinha, abriu a geladeira e encheu um
copo de água, tomou e voltou à sala.
-
Ele tem vindo sempre aí? – O silêncio foi cortado pela pergunta de Alceu.
-
Quem? – Fingi não compreender, como se não soubesse de quem falava.
-
Seu amiguinho Adriano Cordeiro.
-
Júlia e ele são amigos.
-
Por isso você está sempre lá?
-
Alceu, por favor!
Ele
já estava debruçado por sobre minha máquina.
-
Você pensa que eu sou algum otário, Clarinda? – O cheiro forte de bebida
avançava em meu rosto.
-
Alceu, como ele mesmo disse, há tempos não nos víamos. – Expliquei com o
coração acelerado. Eu nunca me acostumei com aquilo. Sem que eu pudesse prever,
veio o primeiro tapa. Senti apenas meu rosto esquentar. E depois outro, e mais
outro, quando dei por mim, já estava no chão.
-
Vagabunda!
-
Alceu, por favor...
-
Vagabunda!
-
Para, Alceu, por favor, para!
-
Vagabunda, vagabunda! – Continuou com chutes.
-
Pare com isso! – Era um grito de Júlia, minha vizinha. Ela entrara quando eu
era espancada. Fora atraída pelos gritos.
-
O que você quer aqui? – Ele voltou-se a ela.
-
Se você não acabar com isso agora eu chamo a polícia. – Júlia o enfrentou.
-
Ponha-se daqui pra fora agora! – Gritava sem conseguir intimidá-la. Quanto a
mim, procurava me encolher no canto da sala, resguardando-me das dores
provocadas pelos chutes tomados há pouco.
-
De jeito nenhum! Não vou deixar minha amiga sozinha com você.
-
Sai daqui, sua vagabunda! – Alceu partiu para cima de Júlia, com toda a sua
fúria.
-
Isso, venha, eu quero que você me bata. – Ela o enfrentou, sem receio.
E quando Alceu ergueu a mão eu gritei.
- Por favor, Alceu, não!
- Deixa, Clarinda. – Provocou ainda
mais. – É bom que ele tente alguma coisa contra mim. Você não tem coragem, mas
eu tenho. – Olhou profundamente em seus olhos. – Encoste a mão em mim e você
vai se arrepender do dia em que nasceu, seu covarde! A Clarinda não lhe
denuncia não sei porque, mas eu vou te colocar atrás das grades e de lá você
não sai.
- Você está dentro da minha casa. –
declarou Alceu.
- E não vou sair enquanto você a deixar
em paz. – Júlia o enfrentava de igual para igual, sem medo algum. Diferente de
minha postura em todos aqueles anos. – Vamos, encoste sua mão em mim! –
Provocava-o ainda mais.
- Você é muito atrevida. – Disse-lhe,
baixando a mão finalmente.
- E você é um covarde.
- Júlia, eu estou bem. Pode deixar. –
Queria protegê-la.
- Não está nada bem, Clarinda. – Saiu da
frente de Alceu e foi me ajudar a levantar. – Vamos embora daqui.
- Você está invadido a minha casa. Eu
posso chamar a polícia. – Tentou ele.
- Isso, chama. Chama que você dará
muitas explicações.
- Júlia, pode ir, minha amiga, eu estou
bem.
- Se você não vier comigo, eu não saio
daqui, Clarinda. – Ela estava decidida.
Olhei para Alceu. Não havia outra saída.
E ele nada pudera fazer para impedir.
- Ela passa esta noite na minha casa. –
Disparou Júlia na saída. Eu estava completamente surpresa. – Só volta para cá
agora quando o Nando retornar.
Finalmente alguém com coragem para
enfrentar aquele monstro. Ao passarmos pela rua, todos estavam nos olhando.
Sabiam do que se tratava, todos na rua sempre souberam. Uma vergonha
indescritível tomou conta de mim. Senti-me tão exposta, tão invadida. A
violência de Alceu não se fazia tão dolorosa quanto à exposição de minha
fragilidade. Desejava me esconder e nunca mais aparecer ou encarar o olhar das
pessoas.
Júlia entrou em casa, procurou fazer com
que eu me sentasse de modo confortável no sofá, pediu que Raquel trouxesse um
copo de água.
- Não sinta pena de você, Clarinda. –
Era vergonha! – É uma escolha sua. – Como uma escolha? – O que eu fiz você
também pode fazer. – Não podia!
- Ninguém nunca vai entender. – Deixei
apenas que as lágrimas caíssem. A escolha de que ela falava eu havia feito há
muitos anos, no ato de minha promessa. Uma promessa que mexia com muitas vidas,
não tinha como ser quebrada. E findar com aquela situação significava quebrar
com a promessa.
- Posso até entender, se você me contar
do que se trata. Há quatro anos que eu vejo você sendo espancada por esse
homem, sem nada fazer. Teve um momento em que eu odiei o Alceu. Mas hoje a
coisa começa a me chegar de outra forma. – E Júlia realmente me olhava
diferente, como se não me reconhecesse. – Hoje eu vi que você quer isso.
- Não, eu não quero!
- Quer. Essa sua promessa define isso
para você. Como se fosse um autoflagelo.
- É muito difícil, Júlia.
Ninguém compreenderia meu pacto com
Deus.
- Realmente é difícil entender uma
pessoa vivida, experiente, inteligente se deixar escravizar por um casamento
como esse. O que você tem feito da sua vida, Clarinda? Cadê seus filhos? Cadê a
família que você tanto preza.
Desejei chorar a saudade de Holanda, a
distância de Ronie, a vontade de estar mais próxima de Tony, de desfrutar mais
da amizade de Adriano. Pela primeira vez Júlia fora dura, seca, como se tomada
de raiva.
- Eu estou em paz com Deus, Júlia.
- A sua paz é uma grande mentira. Paz é
tranquilidade no coração. Você não sabe o que é isso. Vive sobressaltada, com
medo de ver os próprios filhos, de fazer qualquer coisa fora de um eixo
estipulado por Alceu. Escrava de uma promessa.
- Aliança com Deus não é escravidão, é
abnegação.
- Tudo tem limite, Clarinda. E Deus não
quer ver nenhum filho sofrer. Se você se sente presa a esta promessa, vá então
a uma igreja, peça que um padre possa mudá-la, substituí-la, sei lá. É desumano
que você faz com você mesma.
- Desta forma você desrespeita a minha
fé.
- Desculpe-me! Não tenho como ver uma
amiga, uma pessoa que amo se matando e ficar calada. Você sofre e faz seus
filhos sofrer. Nada justifica isso, Clarinda. O que pode ser tão forte para
fazer com que você viva separada de quem ama? O que fez de tão grave para se
punir de modo tão severo?
Punição! Adriano já havia me dito aquilo
no passado.
- Não estou me punido. Apenas sou
honesta com Deus. É uma promessa. Não se negocia esse tipo de coisa, Júlia.
Apenas se vive, aceita-se. Faz parte da minha fé. Meus pais me ensinaram assim.
- A sua fé é o seu martírio.
- Chega, Júlia! Você não tem o direito. Isso
é desrespeito.
- Eu me preocupo com você, quero seu
bem. Não adianta, porque eu na vou desistir de você, Clarinda. Responda-me
apenas uma coisa: Você é feliz?
Feliz? Adriano também já me fizera
aquela pergunta inúmeras vezes. E feliz eu não era. Doía só de pensar em minha
vida, do quanto perdi longe de meus filhos. Mas todos nós temos uma cruz, como
minha mãe dizia, e a minha era aquela. A escolha não pertencia mais a mim. Deus
me conduzia desde a promessa. Resolvi entregar-me por inteira, de corpo e alma
naquele dia, há muitos anos.
- A felicidade é a desculpa do demônio
para a perda de muitas almas, Júlia.
- Sabe, às vezes eu me pergunto se esse
demônio de que você fala não se reveste de princípios tão rígidos para nos
enganar, afastando-nos do caminho do bem, da felicidade. Usando exatamente dos
instrumentos responsáveis por nossa proximidade com Deus. – Parou um pouco e
completou. – Você se sente amando nessa promessa?
- A Deus. – Respondi de pronto.
- E a você?
- Devemos amar a Deus em primeiro lugar.
- Deus está em cada um de nós. Quando
nos fazemos sofrer, estamos provocando o Seu sofrimento. É isso que você tem
feito com sua promessa, Clarinda.
Se Júlia soubesse, talvez compreendesse.
Sim, Júlia poderia ser a pessoa certa para dividir aquele fardo de tantos anos.
No fundo, tudo o que dizia era por seu amor, por sua amizade. Talvez fosse o
momento de partilhar a dor, o segredo que me movia por tanto tempo. Entraria o
ano de 2010 de modo diferente, mais leve, podendo falar abertamente a respeito daquilo
com alguém. Era chegado o momento de revelar a verdade.
CAPÍTULO 04
Foi
difícil para mim, descobrir que o homem por quem minha sobrinha Tony estava
apaixonada era Guel Serrado, o cunhado de Júlia, provável responsável pelo
sequestro de Clara.
Tony era ainda menina quando perdeu os
pais e ficara sob a minha guarda. Tivera uma adolescência complicada, por
renegar a ideia de ser criada pela tia, a costureira das mães de suas amigas.
Fiz de tudo para que estudasse nas melhores escolas, recebesse a melhor educação,
mesmo contra a vontade de Alceu. Ainda assim, saíra de casa logo após completar
a maior idade, motivada pelos maus tratos de meu marido, bem como pela vergonha
de nossa condição financeira. Sonhava em ser rica desde menina e mentia para
suas amigas sobre seus pais, embora todas soubessem da verdade, fingiam não
saber.
Minha sobrinha jamais havia me perdoado
por impor a sua convivência com Alceu. Sofrera na pele a violência do tio, até
o dia em que nos deixara. No fundo, eu tinha consciência de sua mágoa e
compreendia todas as sua mentiras e armações, o quanto me maltratava. Tudo
acontecia como um código silencioso só nosso.
Mas agora a minha menina já era uma
mulher, e vinha percorrendo caminhos tortuosos para conquistar seus objetivos. Depois
de passar um tempo no Rio, num relacionamento suspeito com um rico empresário,
voltara para Fortaleza, mancomunando-se com o cunhado de minha amiga Júlia num
golpe contra Olívia Cordeiro. Tudo indicava que eles haviam roubado algo em
torno de quinhentos mil reais da filha de Adriano, embora Guel Serrado alegasse
ter sido enganado pelo terceiro sócio do suposto negócio a ser implementado com
a namorada. Segundo ele, o rapaz teria fugido com todo o valor do
empreendimento. O fato é que meses mais tarde Holanda descobrira que o
apartamento em que Tony encontrava-se morando estava em seu nome. Como era
possível comprar um imóvel por mais de duzentos mil reais com o salário de
bailarina que recebia na Mirage?
Desde que Tony fora trabalhar na boate
de Olívia meu coração não me deixara tranquila, algo me dizia existir uma trama
por trás daquela atitude, por mais que eu mesma quisesse acreditar em sua
regeneração.
Finalmente os golpes de minha sobrinha
eram desmascarados, e justo por seu comparsa, na tentativa de conseguir a
confiança de Júlia. Os dois pareciam ter rompido a parceria de anos, por ele se
confessar apaixonado e disposto a lutar pelo amor da cunhada.
Por fim, Tony tudo fizera para tirar
Júlia de seu caminho na boate e conseguir o cargo de diretora artística nos
espetáculos da casa de shows mais famosa de Fortaleza. Envolvera minha amiga
numa trama sórdida, fazendo com que Olívia acreditasse que ela estaria se
prostituindo com clientes da Mirage. Pronto, assim superaria sua própria
coreógrafa e ao mesmo tempo destruiria a mulher por quem Guel estaria
apaixonado. Diante do exposto, eu jamais poderia calar. Tony passara totalmente
dos limites da falta de escrúpulos e merecia um freio. Dei a ela todo o afeto,
todo o amor que uma mãe poderia lhe dar. De nada adiantou! Transformara-se numa
mulher fria e calculista. Alguma coisa precisava ser feita para que parasse.
Seria eu a dar a ela o limite que necessitava naquele momento.
Ao chegar nos jardins do prédio em que
minha sobrinha morava, deparei-me com algumas crianças brincando de roda. Por
segundos, vi a menina criada por mim como uma filha brincando nas ruas do
Montese, inocente, carente pela perda dos pais, sofrendo com o duro tratamento
de Alceu. Não pude conter as lágrimas. A vida não fora fácil para ela,
obrigando-a a vestir a carcaça de uma pessoa implacável com todos aqueles que
porventura estivessem em seu caminho.
Tony passara a vida sonhando em sair de
casa, deixar para trás aquele sofrimento, o bairro que representava o seu
calvário e as pessoas responsável por todas as suas angústias, dentre as quais
eu estava incluída. Para ela, tudo seria diferente se eu tivesse tido coragem
de enfrentar e me separar de Alceu. E seria, para a vida não só dela, mas de
toda a minha família. Não pude, no entanto, pela minha crença, por minha
promessa.
Bom, certamente morar naquele lugar já
representava muito para Tony. Um edifício de classe média alta, de dois
apartamentos por andar, situado à Rua Monsenhor Catão, esquina com a Avenida
Padre Antônio Tomás e próximo ao prédio em que meu filho Holanda morara por
anos com Renato Brandão. Cruzei com duas elegantes senhoras no elevador social
conversando sobre a viagem que uma delas supostamente teria feito ao Caribe,
dando-me a noção do perfil das pessoas que ali moravam. Parecia gente bem
sucedida, confortáveis financeiramente, próximas da realidade sonhada por minha
sobrinha.
O elevador parou no décimo terceiro
andar, conforme indicação de Holanda. Meu coração disparou. Pela primeira vez
eu a procurava ali. Na verdade, fazia meses que Tony e eu não nos víamos. Ela
se distanciava cada vez mais, e ultimamente até mesmo as ligações eram
escassas. Meu filho havia me garantido que eu a encontraria em casa diariamente
no final da manhã.
Toquei três vezes a campainha até que a
porta fosse aberta. Ela estava de roupão, parecia ter acabado de tomar banho. Continuava
linda, morena de beleza agressiva. Recebia-me com o mesmo olhar impaciente de
sempre, como se invadisse seu território, o que acontecia desde a sua
adolescência.
- Eu não acreditei quando o porteiro me
avisou. – Foi sua frase de recepção.
- Eu diria que quem é vivo sempre
aparece. – Respondi de pronto.
- O que você quer aqui, tia? Eu estou
atrasada, vou sair daqui a pouco para a Mirage.
- Não vai me convidar para entrar?
Ela soltou um grande suspiro de
impaciência abrindo caminho para que entrasse.
- Espero que seja breve, tia. Estou sem
tempo, sabe? – Deixou claro, fechando a porta atrás dela.
Seu apartamento era lindo. Um
confortável jogo de sofás à minha frente em um dos ambientes da ampla sala de
estar. Duas poltronas um pouco depois, próximas à porta que dava para a
varanda, desbravando a belíssima paisagem do Parque do Cocó. Quadros
requintados e finas peças decorativas, desenhavam o bom gosto do ambiente nem
um pouco condizente com o salário que Tony recebia na boate.
- Seu apartamento é lindo!
- Gostou? Totalmente diferente daquela
pocilga onde vocês moram.
- Onde você foi criada.
- Onde você me obrigou a morar por uma
boa parte da minha vida! – Seu tom trazia uma agressividade cortante. – Mas de
onde eu saí e jamais voltarei! – Concluiu com grande sorriso.
A conversa já não havia iniciado bem. Precisava
manter o foco e não me deixar ferir por sua mágoa e ingratidão.
- Tony, eu não vim aqui para discutir
sobre o que foi ou o que deveria ter sido a nossa vida. Estou preocupada com
seu futuro.
- Era só o que me faltava! – Sentou no
sofá, demonstrando sua intolerância. – O que é que você quer afinal? Tirar
minha paciência?
Tratei de sentar também, já que o
convite não me fora feito.
- De onde está vindo o dinheiro para
você manter esse padrão de vida aqui, Tony? – Procurei ser o mais objetiva
possível, com ela não poderia ir com rodeios.
- Como assim?
- Com o salário que você ganha na Mirage
não tem como estar morando aqui. Eu quero saber de onde está vindo esse
dinheiro?
- Foi o que me restou do meu casamento
no Rio.
- Um caso com um homem casado que já
acabou há quatro anos. Você quer que eu acredite nisso?
- Eu tinha meus direitos.
- O que você anda fazendo da sua vida,
Tony? – Levantei, aproximando-me um pouco mais. – Em que golpes você está
metida agora?
Ela levantou, voltando-se para a
paisagem do Parque do Cocó.
- Sempre foi assim, a senhora nunca
acreditou em mim.
Chantagem! Mas eu estava farta de ser
enganada, ludibriada por suas lamentações. Comumente o fazia quando se via
cobrada, desde criança, e eu sempre cedia. Daquela vez seria diferente. Tony
precisava de limites.
- Esse apartamento, você comprou com o
dinheiro da Olívia?
- Como assim? A Olivia é a minha patroa,
ela não me daria tanto dinheiro. – Ironizou.
- Tony, você não me faça perder a
paciência! – Elevei o tom de voz pela primeira vez. – Eu sei que você e o Guel
Serrado deram um golpe na Olívia, com a história de uma academia que eles
abririam. Foi com o dinheiro desse golpe que você comprou esse apartamento?
- Já disse que não.
- Claro que você não me diria a verdade,
não é mesmo?
- Você não acreditaria, nunca acreditou.
- Eu não caio mais nas suas chantagens,
Tony.
- Viu? Tá vendo como é. Nada do que eu
fale você acredita, nada!
- E o dinheiro para manter seu padrão de
vida?
- Que padrão? Do que a senhora está
falando?
- Que eu saiba é bem caro morar aqui,
decorar um apartamento desta forma. – Olhava para todo o requinte dos móveis à
nossa volta. – Estar com um carro novo como o seu, e caro! Embora esteja agora
com o salário de diretora artística da Mirage. É muito pouco para vida que você
está levando, Tony!
- Agora eu entendi. Você está aqui por
causa da sua amiguinha JÚLIA SERRADO. – Pronunciou o nome de minha vizinha com
ênfase e desdém. – Ela foi chorar no seu ombro?
- Não. Júlia me disse o que aconteceu.
- A Júlia é uma prostituta! – Falou
quase gritando. E eu não me contive, dando-lhe um tapa.
- Se e tivesse feito isso desde quando
você era uma menina, talvez não fosse uma pessoa tão suja! – Expressei toda uma
indignação incontida. Minha voz estava trêmula.
Tony procurou se recompor, sem entender
de onde viera tamanha coragem de lhe enfrentar, o que nunca havia acontecido em
tantos anos.
- Você não tem o direito! – Tentava
conter o choro, sem sucesso.
- É aí que você se engana, filha. Eu
poderia te dar uma surra agora e ainda assim estaria dentro dos meus direitos,
por tudo o que eu já ouvi de você, por todas as agressões, por todas as
humilhações, por todas as preocupações, por todas as vergonhas, por todo sofrimento
trazido por você! – Já era eu quem chorava. Doía pensar em minha relação com
Tony.
- Se você sofreu por minha causa, ainda
foi pouco. Muito pouco! Pouco demais! Demais! – Aumentava o tom a cada
colocação. – Você devia ter sofrido mais, muito mais!
Vi tanto ódio em suas palavras, sem
reconhecer sua origem.
- Tudo o que eu fiz foi por amor.
- Aquele monstro me bateu todos os dias
em que morei com vocês. – Aproximou-se novamente da varanda, como se amenizasse
sua dor com aquelas recordações. – E você nada fez. A minha vida ali foi um
inferno, não só pela pobreza que você me submeteu, mas violência sofrida
diariamente. E você nada fez!
- Eu não podia.
- Podia sim. Podia! Por que você não se
separava? Por quê?
- Eu não tinha coragem.
- Mentira!
- Não era só você que sofria, Tony. Os
meninos também sofriam, eu sofro há quase quarenta anos.
- E ainda é pouco para os seus pecados.
- Você é má. – Era difícil reconhecer
aquilo.
- Você me fez assim!
- A culpa é minha por você viver
alimentando esse ódio do mundo?
- Tudo poderia ter sido diferente.
- Se eu fosse rica, se eu morasse num
apartamento como esse, se eu não fosse a costureira Clarinda de Holanda, aí sim
tudo seria diferente. Ora, Tony, não venha com essa. Você já é uma adulta. É
ora de deixar de colocar a culpa nos outros e se responsabilizar por sua vida.
Chaga de infantilidades!
- Eu fui violentada por seu marido com
apenas nove anos! – Podia sentir toda a sua dor naquela revelação, toda a
violência sofrida em sua alma, toda a crueldade revivida em cada lembrança. – E
depois da primeira vez, ele passou a me violentar dia após dia, até finalmente
eu conseguir sair daquele inferno.
Pus as mãos em meu rosto, horrorizada
com aquela revelação. Submeti a minha menina por anos ao mesmo sofrimento por
mim experimentado em minha juventude.
- Eu não sabia... – Falei baixinho, quase
sem me fazer ouvir.
- Sério? Você não sabia? – Ela
ironizava. – Ou era mais cômodo não saber?
- Eu não sabia, Tony.
- Pois eu tenho certeza que você sabia.
- Juro que não!
- Ele fez isso durante nove anos e você
não sabia? Nunca viu ou desconfiou de nada?
- Não.
- E você quer que eu acredite nisso?
- Espero que sim.
- Pois não conte com isso, nunca. É
impossível que você não soubesse, não desconfiasse de nada. Eu não sou nenhuma
idiota, tia. E a cada dia que eu lembro daquele velho asqueroso em cima de mim
ou me fazendo chupar ele, eu tenho mais
ódio de você. É um ódio tão grande, tão grande, que às vezes eu penso que não
cabe no meu coração! Eu penso que meu coração vai explodir de tanto ódio.
Por um instante, senti medo daquelas
palavras, eram fortes e pareciam penetrar a minha alma. Não reconhecia a menina
a quem dediquei tanto afeto e amor, a minha filha de coração. Eu tinha ido ali
movida por uma intenção e me via bombardeada por mais aquela verdade escondida
de nosso passado. Tudo agora fazia sentido.
Saí daquele encontro completamente
transtornada, preenchida pelo ódio de minha sobrinha e decidida a acertar as
contas com o monstro com quem fui casada a maior parte de minha vida. Não
existia mais medo ou qualquer sentimento que me impedisse. A fé em Deus, a
minha promessa, nada era tão grande quanto à ira que me dominava.
CAPÍTULO 05
Voltei
para casa decidida a prestar contas com Alceu depois de quarenta anos de
sofrimento. Um casamento marcado pela fúria de um homem transtornado pelo
fantasma de meus sentimentos por Adriano Cordeiro. Para meu marido eu nunca o
havia esquecido, por isso resolvera transformar minha vida num calvário, como
uma forma de punição. O que não era afirmado por ele com todas as letras, mas
eu conseguia deduzir por suas inúmeras acusações reticentes e infundadas ao
longo de todos aqueles anos, durante as agressões.
Além do inferno que foi a minha vida
presa àquele casamento infeliz e violento por tanto tempo, assisti Alceu
destruir também a nossa família, destilando toda a sua ira nos meninos, em
Tony. Mas daí, violentar minha sobrinha, assassinar a sua inocência assim como
fez com a minha, eu não poderia calar! Mesmo depois de sete anos, desde que ela
havia conseguido se libertar daquele castigo, alguém precisava colocar um
limite nas atrocidades daquele homem. Naquele momento eu o faria!
Já estava anoitecendo quando entrei em
casa. Alceu, como de costume, sentado diante do aparelho de televisão na sala
assistindo todos os canais de jornais sensacionalistas que ressaltavam a
violência e criminalidade nas grandes capitais. Chagava a pensar que ele se
inspirava ali para fomentar sua arrogância, autoritarismos e agressividade.
- Pensei que não voltaria mais! –
Disparou Alceu, grosseiramente, ao me ver entrar.
- Pois voltei, e preciso falar com você.
– Pela primeira vez o respondia com a mesma entonação autoritária. – Desliguei
o aparelho de televisão e me coloquei bem diante dele.
- Que é isso, mulher? Enlouqueceu? Não
tem mais amor à vida? – Estava chocado com a minha atitude decidida. – Liga
essa televisão agora! – Ordenou.
- Nós agora precisamos conversar.
- Eu mandei você ligar essa merda! –
Ergueu-se diante de mim, num só grito.
- Eu sei o que você fez com a Tony! –
Gritei pela primeira vez com aquele homem, deixando-o sem palavras.
- O quê? Do que você está falando? –
Parecia meio desnorteado com a minha afirmativa.
- Ela tinha apenas nove anos. – Tremi ao
falar aquilo, como se uma dor tomasse conta de mim. Culpa! Precisava continuar.
–Você acabou com a vida dela... – Fechei os olhos, retomei o fôlego e
prossegui. – assim como fez com a minha vida. – E ele atônito diante de mim.
- Que historia é essa, mulher? – Hesitou
pela primeira vez, saindo de onde estava. Deu as costas, como se pensasse no
que dizer ou em seu passado, no que havia feito. – Eu não sei do que está
falando.
- Sabe sim. – Hesitei novamente e
continuei. – Você tirou a inocência da minha sobrinha assim como fez comigo. –
Não pude mais conter as lágrimas e manter a postura de super mulher e
justiceira como desejava. Todavia, não podia fraquejar. – Você acabou com a
vida dela, Alceu.
- Ela te falou isso? – Procurou saber,
voltando-se novamente a mim. – Foi ela que disse? É mentira! Mentira dessa
vagabunda da sua sobrinha. Essa menina não presta, eu sempre falei. Nunca
passou de uma ordinária.
- Você fez dela o que ela é hoje.
- Uma prostituta? Sim, porque ela é uma
meretriz. Quem fez dela uma vagabunda foi você, mimando ela, não eu.
Como poderia dizer aquilo? Dei todo o
amor que era possível a Tony, cuidei como uma filha. Ele a violentou por nove
anos e ainda tinha coragem de jogar a culpa em mim. E talvez fosse minha
realmente, mas por nunca ter posto um limite nas atrocidades de meu marido. Por
aquilo eu me responsabilizava sim.
- Não foi apenas com a minha vida e a da
Tony que você destruiu, mas acabou também com a nossa família. Nunca fomos
felizes por tudo o que fez e faz comigo.
- O que é isso agora? Voltou louca da
rua?
- Consciente.
- Consciente de quê?
- Da falta de sentido em tudo o que eu vivo,
do absurdo que é a minha vida. É desnecessário insistir em tudo isso. – Sentia
repugnância de mim mesma. – Quanto sofrimento, infelicidade eu causei a pessoas
que eu amo em nome desse casamento monstruoso que eu vivo! – Meu tom era de
profunda lamentação.
- Clarinda, o que a merda dessa menina
te disse? – Referia-se a Tony.
- Nada mais que a verdade. O que ela fez
foi apenas tirar um cortina da frente dos meus olhos, só isso.
- Você não enxerga que ela está querendo
destruir a nossa união? – Sua postura era mesma tão conhecida por mim nos
momentos pós-surras, quando pedia perdão e procurava me convencer que aquilo
nunca mais aconteceria.
União? Será que Alceu acreditava
verdadeiramente no que falava?
- Nossa união não passa de uma velha
peça, já sem graça, desgastada com o tempo.
- Não, é aí que você se engana,
Clarinda. – Falava com um tom manso, totalmente oposto às grosserias
corriqueiras. – São quase quarenta anos de casamento. Isso é muita história,
sabe? O que acontece somente com pessoas que se amam muito.
- Você acredita realmente nisso? – Não
resisti em tentar saber.
- Se não fosse assim, não tínhamos
passados tantos anos juntos, Clarinda. – Estava bem perto e podia sentir seu
hálito carregando o cheiro forte de cachaça, tão comum em seu cotidiano. – Todo
casal briga, têm seus desentendimentos, mas isso é normal. Depois fazem as
pazes e pronto, problema resolvido.
Desentendimento? Ele me fazia de louca,
o que acontecia todas as incontáveis vezes em que prometera nunca mais levantar
a mão para mim. Aquele mesmo ato se repetia por quase quarenta anos. Se alguém
visse a cena, jamais imaginaria que talvez horas depois a promessa fosse
desfeita, e cordeiro autor de tais afirmativas cordiais se transformasse num lobo
violento e sanguinário.
- Isso parece uma doença, Alceu. É como
se você se alimentasse dessa tortura a todas as pessoas que em tese deveria
amar.
- Eu confesso que às vezes passo do
limite e acabo sendo grosseiro.
- Você realmente não enxerga ou prefere
não assumir, negar para si mesmo? Torna-se mais fácil assim?
- A minha família me odeia. O que você
quer que eu faça?
- A sua família lhe odeia exatamente por
agir assim.
Juro que ainda alimentava a esperança de
uma mudança em meu marido, que ele fosse ou agisse de modo diferente, que de
algum modo aquilo o tocasse.
- Serve se eu pedir desculpas?
- Como as inúmeras vezes em que fez
isso?
- Viu? Não adianta ser bonzinho. A gente
acaba só lavando patada.
Vítima, egoísta e dissimulado, o típico
comportamento de um psicopata.
- Confesso estar cansada de tudo isso.
- Olha, pode ser diferente daqui para
frente. – Disse, sorrindo. E lembrei de Tony.
- O que você fez não tem mais volta,
Alceu.
- Chega dessa ladainha, mulher! – Voltei
finalmente a alterar o tom de voz, visto que a encenação não surtira efeito. –
Agora quem cansou foi eu.
- Você não vai mais fazer isso com
ninguém.
- Isso o quê?
- O que fez comigo, com a Tony.
- Chega! – Gritou, erguendo a mão para
um tapa.
- Isso, bate e você vai se arrepender
para o resto da sua vida! – Enfrentei num impulso. E ele hesitou, como sempre
fazia diante de qualquer confronto. Mas nunca pensei que pudesse acontecer
comigo também, que me temesse de alguma forma. – Bate! – Insisti. Alceu baixou
a mão.
- Eu disse que pode ser diferente. –
Explicou, como um meio de não perder as rédeas. Mas esse controle já não tinha
mais. Aprendi com Júlia, no dia em que o enfrentara. Alceu recuava diante de
qualquer enfrentamento.
- E vai ser diferente sim. Aproximei-me
dele até poder até chegar bem perto, para que sentisse minha coragem. – Sabe
quantas vezes você ainda vai levantar a mão para mim? Nem uma! Nunca mais,
nunca mais,você ouviu? Nunca mais você vai ousar encostar a mão em mim. Caso
contrário, eu acabo com a sua raça, entrego você à polícia. E eu posso garantir
que da cadeia, você não sai nunca mais!
Alceu engoliu a seco. Não me enfrentou,
como eu pensava. Senti uma imensa felicidade por vê-lo chocado, sem chão,
encobrindo sua raiva pelo medo de voltar para a cadeia. Finalmente eu conseguia
lhe impor um limite, quarenta anos depois.
Deixei-o sentado em sua velha poltrona,
completamente estarrecido, sem palavras, experimentando a estranheza de lidar
com uma mulher diferente, determinada a acabar com seu martírio, movida por uma
força proveniente do ódio que sentira por si mesma devido à própria submissão a
ele e sua psicopatia. Cheguei em meu quarto, postei-me diante de Nossa Senhora,
em meu altar, ascendi uma vela e orei.
- Obrigada por me fazer enxergar, Minha
Mãe! – Deixei escapar em meio ao choro e gargalhadas ao mesmo tempo. Pela
primeira vez, senti-me livre, mesmo casada com Alceu.
CAPÍTULO 06
Minha
amiga Júlia havia rompido com Pedro Lucena há algumas semanas e eu vinha
procurando estar mais presente nos momentos em que ela se encontrava em casa. Fui
deixá-la um pedaço de torta de banana com canela que eu tinha feito logo após o
almoço. Sabia que ela adorava aquela receita. Foi Raquel quem abriu a porta,
feliz com a minha visita.
- Olha quem está aqui... – Celebrou a
cunhada de Júlia, abrindo espaço para que eu visse Adriano sentado logo atrás,
na companhia de minha vizinha.
- Clarinda, que surpresa boa! –
Recebeu-me Júlia, sorridente, levantando para me cumprimentar juntamente com
Adriano.
- Falamos agora de você. – Revelou
Adriano, visivelmente feliz com a minha chegada. – Parece ter adivinhado.
- Falaram mal? – Procurei saber,
brincando.
- Como falar mal de uma pessoa como a
senhora, dona Clarinda? – Corrigiu Raquel.
- Raquel tem toda razão. – Concordou
Júlia. – Adriano falava aqui da possibilidade de convidarmos você para um café.
- E eu acabei de passar. – Completou a
cunhada de Júlia.
Sentia-me feliz também por estar ali, em
revê-lo. Os filhos de Raquel corriam pela casa, nas algazarras que me lembravam
meus filhos, quando crianças. Falamos sobre aquilo.
Adriano
partilhara da falta que sentia de Olívia, dizendo também lembrá-la alegre,
saltitante, brincando pelo meio da casa. Sabia de seu grande erro ao expulsá-la
de casa, quando descobriu de sua gravidez. Mas achava injusto ser punido até
então, depois de tantos anos passados. Procurava o perdão da filha há mais de
vinte anos e ela o desprezava. Recentemente pareciam ter se encontrado, numa
festa. E mais uma vez, ousou aproximar-se, pedir seu perdão. Olívia guardava
tanta mágoa em seu coração. Tratou de se retirar da festa, por não suportar a
presença do pai.
E
quanto a Alexandre, o neto, acontecia o mesmo. Ela tratara de incutir na cabeça
do filho o mesmo ódio alimentado em seu coração. Embora o rapaz, não
experimentasse aquele sentimento, procurava não permitir sua aproximação, em
respeito à mãe e sua mágoa, por mais que desejasse se aproximar do avô.
-
Tenho certeza que um dia Olívia ainda o perdoará. – Procurei confortá-lo.
-
Já não sei, Clarinda. – Balançou a cabeça, numa negativa. – Passaram-se tantos
anos e nada. Todas as tentativas foram em vão.
-
Mas a Olívia sofre muito com tudo isso. – Afirmou Júlia.
-
Tenho certeza que sim. – Concordei. – E é esse sofrimento que os reaproximarão.
No fundo ela deseja perdoar, só não tem coragem. É como se tivesse traindo a si
mesma e tudo o que passou, o que enfrentou para ter esse filho sozinha.
-
O fato é que já não sei mais como tentar uma aproximação. – Lamentou.
-
A misericórdia é uma das maiores virtudes do ser humano. – Pensei em voz alta.
-
E uma das mais difíceis a serem vivenciadas. – Arrematou minha amiga.
-
Mamãe sempre dizia que conhecemos alguém com Deus nos coração se enxergamos sua
capacidade de perdoar. – Completou Raquel, servindo-nos de seu maravilhoso
café.
-
Algo me diz que essa história se resolverá em muito breve, tenho certeza.
E
eu tinha realmente. Afirmei-lhe aquilo, segurando sua mão macia entre as minhas.
Senti tanto prazer naquele feito. Não apenas de poder sentir seu toque delicado
mais uma vez, ou o perfume gostoso deixado em minhas mãos, mas de fitá-lo, como
nos velhos tempos em que namorávamos e poder trazer uma palavra de conforto a
seu coração. Em muitos anos, era a primeira vez que estávamos tão perto um do
outro. E me vi trêmula novamente, como quando ele me pedira em namoro, há mais
quarenta anos. Por um instante, parecíamos estar sozinhos naquela sala, como se
Júlia e Raquel não existissem. Tantas coisas me vieram à mente, tantos
momentos. Meu coração disparou e me fez voltar ao mundo real. O que estava
acontecendo? Ele certamente percebera meu embaraço, o tremor em minhas mãos.
Mas eu podia jurar também sentir o mesmo de sua parte. E o jeito que ele me
olhava, como se penetrasse a minha alma.
Tive
tanta vontade de perguntar sobre sua vida amorosa, se estava sozinho. Mas por
que o faria? Que absurdo! Uma mulher casada como eu, especulando a vida de um
ex-namorado. Jamais o faria.
-
Mas me fale, Adriano, você não casou novamente, tem alguma namorada? – Levantei
sorrindo e lancei a pergunta, de forma artificial, nem um pouco natural. Pronto,
cometi o pecado, o qual temia e desejava. Meu Deus, que situação! E ele
simplesmente me respondeu com um curto “não”.
-
Já conheci muitas pessoas. Afinal tenho uma idade um pouco avançada. – Riu e
complementou: - Mas espero a pessoa certa em minha vida.
Soava-me
como uma declaração. A mim? Que Deus me perdoasse por desejar aquilo. Claro que
não. Um homem ainda tão bonito, rico, com tantas possibilidades, jamais se
interessaria por alguém como eu. Velha, acabada, tomada pelas rugas, com
algumas madeixas brancas já se fazendo presentes nas têmporas. Uma mulher tão
feia como eu jamais chamaria a atenção de um homem daqueles. Embora não fosse,
parecia bem mais velha. O sofrimento e os anos, roubaram-me a beleza, a mesma
beleza tão apreciada por ele, tantos anos antes.
Nos
últimos anos, foi o maior tempo em que estivemos juntos. Aquele encontro
deveria ter durado mais de uma hora. Falamos de tantas coisas, de meus filhos,
da vitalidade de dona Norma Mesquita, viúva com quase noventa anos, a dona da
fortuna administrada por Adriano, da esperança de Júlia em encontrar a pequena
Clara, do amor de Raquel pelo marido tão ausente. Rimos muito e saboreamos a
deliciosa torta que eu havia preparado, e até esqueci o tempo passar.
Foi
difícil a despedida, por mim passaria a tarde inteira conversando. Adriano
ainda se ofereceu para me acompanhar até a porta de casa, como se não
conhecesse o velho amigo Alceu. Ou talvez fosse ousado exatamente por
conhecê-lo tão bem. A covardia diante de um enfrentamento se configurava no
movimento do meu marido e eu só havia percebido há pouco tempo, quando Júlia o
enfrentara, e recentemente eu mesma. Todavia, poderia ser sim do conhecimento
de Adriano, tendo em vista terem sido amigos de infância. Isso! Só então
entendia sua tranquilidade diante de um homem tão violento, como se fosse imune
àquela agressividade de Alceu. Na verdade, sabia que ele nunca o faria nenhum
mal, bastava um grito para que recuasse.
Para
sorte minha Alceu não estava ainda em casa, quando cheguei. O que me deixou
ainda tempo para lembrar, e desfrutar da sensação maravilhosa proporcionada por
aquele momento com Adriano e minhas amigas. Parecia-me uma vida normal,
visitando vizinhos, conversando sobre coisas gostosas, sonhos e esperanças,
saboreando um bom pedaço de torta de banana, rindo de nós mesmos e nossos
desejos. Uma vida que parecia distante de mim ali, dentro daquelas paredes. E
ainda, a presença de Adriano. Uma figura encantadora, desde a juventude.
Cobiçado por muitas e apaixonado por mim. Os anos pareciam ter lhe atribuído
ainda mais beleza, diferente de mim.
Desejei
me livrar daquela imagem maltrapilha encontrada no espelho, sempre que eu me
aproximava. E depois de um demorado banho, desenterrei um velho estojo de
maquiagens no fundo de meu guarda-roupa. Queria me ver bela, como antes de me
casar. E aos poucos, as rugas foram se deixando encobrir e se escondiam por
trás das bases e cores. Há muitos anos, meus lábios não sentiam o gosto de um
batom, nem meus olhos se faziam ressaltar por nenhuma pintura. Eu poderia até
ter perdido a prática, mas ainda sabia os feitos de uma boa maquiagem. E mais
uma vez me vi bela, sorridente diante de mim mesma. Ainda existia um pouco de
beleza sim por trás da flacidez de minha pele. Precisava apenas que eu a
enxergasse. Eu estava com sessenta e dois anos, e completamente infeliz.
Tudo
o que eu havia feito de minha vida, tinha sido em nome de um ideal. Em nome do
que eu havia aprendido que era o certo, para não me sentir culpada. Sempre a
culpa se fez presente em minha vida, de uma forma ou outra. Fosse por achar que
estava pecando ou por causar qualquer sofrimento ou incômodo a alguém. Abrir
mão do meus desejos, de meus sonhos, era a minha maior virtude para o mundo e
desgraça para mim.
Valia
realmente a pena estar velha e infeliz, a fim de nunca sair da linha? O sabor
do beijo de Adriano ficara guardado em minhas lembranças e vinha me acalentar o
coração sempre diante de algum sofrimento, por todos aqueles anos. As
lembranças eram o que me restavam. E isso valia a pena? Poderia não ter me
casado, ter enfrentado meu pai e a falsa moral de uma sociedade usurpadora de
sonhos, ter me entregado ao grande amor da minha vida e ter sido realmente
feliz. Mas feliz eu não seria. Mesmo nos braços de Adriano. A culpa. Ela me
perseguiria por toda a vida. Certamente ele teria feito comigo pior que meu
próprio amor fizera com a filha. E aquilo, eu jamais suportaria. Fui criada
para obedecer, seguir regras, fossem sociais ou religiosas. Várias vezes na
semana estava na igreja, inebriada nos sermões do padre, não muito longe de
casa. Temia um castigo, por desobedecer. Sentia-me culpada só de pensar em
quebrar qualquer regra que fosse. E casamento era para sempre. Mesmo com um
traste, como Alceu.
As
lágrimas deram lugar ao inusitado sorriso diante daquele velho espelho. E
rapidamente, as cores bem definidas da maquiagem, foram se misturando e
escorrendo por meu rosto. Transformando-me numa figura bizarra. Tratei de tirar
o restante daquela mentira em meu rosto. Uma raiva movia-me, chegando a me
machucar. Não, aquilo não me pertencia! Somente as lembranças faziam realmente
parte de minha vida. E infelizmente delas eu não poderia me desfazer. Elas me
acompanhariam até o túmulo, por mais que eu quisesse esquecer.
CAPÍTULO 07
Minha
amiga Júlia estava prestes a viajar para Los Angeles na companhia de seu amigo
Leonardo, e eu já me enchia de saudade. Muita coisa havia mudado em minha vida
desde sua chegada à Rua Romeu Martins, no Montese. Jovem, corajosa, incansável
na luta por suas crenças. Uma figura destemida que me invadia involuntariamente
na forma recatada com a qual fui criada, despertando-me o desejo de ousar, de
ser como ela e enfrentar sem medo, nem culpa os muros de minha prisão existencial.
Aos poucos, Júlia deixara de ser para mim como uma filha, e passara a ser como
uma irmã mais nova, em quem eu me espelhava e pedia conselhos, ou mesmo deitava
a cabeça em seu colo, esperando um afago. Coisa que nunca antes vivi com
ninguém. Com ela aprendi a deixar-me ser cuidada. E em quatro anos de amizade,
seria a primeira vez que passaríamos tanto tempo longe. O que me apertou o
coração.
Júlia adorava as broas que eu fazia de
vez em quando, receita de minha mãe. Perto de sua viagem, fiz uma quantidade
exagerada para lhe compensar os muitos meses em que eu não lembrava de lhe
prestar aquele mimo. Ela me recebeu com os olhos de uma criança ao ver a cesta
repleta de broas.
- Lembrei que gostava. Então resolvi
fazer uma surpresa para a minha vizinha querida.
Júlia me abraçou saltitante.
- Clarinda, é muita broa!
- Você divide com os meninos e a Raquel.
- Dividir? – Ela olhou para a cesta com
um sorriso preso e um jeito de quem não pensava em ser politicamente correta. –
Talvez sobre alguma para eles. – E rimos.
Enquanto Júlia se deliciava com as
broas, procurou saber sobre nossa última conversa alguns dias antes.
- Pensou no que lhe falei? – Perguntou
ela.
- Ainda não, Júlia.
- Como não? É muito tempo perdido.
- Já falamos sobre isso. Para mim, não
se trata de tempo perdido.
- Clarinda, você tem negado a sua vida
desde que tudo aconteceu. Como se não tivesse mais o direito de ser feliz.
- E não tenho.
- Todos nós temos! – Olhou-me
firmemente. – Por mais que erremos, que machuquemos pessoas, que nos percamos
de nós mesmos, sempre temos o direito de revermos nossas erros, virarmos a
página, escrevermos um novo conto e sermos felizes. Eu bem sei do que estou
falando, Clarinda. Veja o quanto errei nos últimos anos, mas tudo procurando
acertar.
- O que eu fiz não tem perdão, Júlia. –
Tentei conter o choro que me assaltava a calma de outrora. – Acabei com a vida
de muita gente, de pessoas inocentes, pessoas que eu amava, que dependiam de
mim.
- Ainda assim, o que fez, fez por amor.
- Por amor, não temos o direito de
matar.
- Você não matou ninguém.
- Matei sonhos, alegrias, inocência.
- Por isso você se pune?
- Não é uma punição.
- Sim, é uma punição, só você não
enxerga. O próprio Adriano me falou isso com todas as letras.
Será que Adriano sabia do que se
tratava? Sabia de meu segredo? Como podia? E se sabia, nada falou por todos
aqueles anos.
- O que Adriano lhe disse, Júlia? –
Indaguei preocupada.
- Falou-me apenas de você, de suas
escolhas, de seu sofrimento. Na verdade, ele não compreende. Mas acredita
também que você se pune por algum motivo.
Fiquei mais aliviada. E por um instante,
decepcionada. Se ele soubesse da verdade seria mais alguém com quem poderia
partilhar o fardo. Uma montanha de culpa carregada em minhas costas, que fora
crescendo e se retroalimentando em todos aqueles anos. Trinta e quatro, trinta
e cinco anos, nem lembro ao certo quando a promessa nascera. O que Júlia
chamava de punição, eu considerava uma redenção, um meio de transformar tantos
pecados e tentar consertar a vida daqueles ou daquele a quem prejudiquei.
- É chagado o momento de mudar tudo
isso, Clarinda. Conte a verdade a toda a sua família. Tenho aprendido que por
pior que possa parecer, a verdade é sempre o melhor caminho.
- Não nesse caso. A verdade pode trazer
ainda mais dor e sofrimento às pessoas que sofreram por minha causa. Não tenho
o direito de interferir assim na vida de alguém.
- Mas e a sua vida? E essa promessa que
tem feito de você uma prisioneira dentro de um casamento mentiroso, cruel? Qual
o sentido de tudo isso, Clarinda?
- Prometi a Deus que seria assim.
Promessa é para sempre. Pedi e Ele me
atendeu quando necessitava. Aquela era a minha parte, o meu sacrifício.
- Tenho certeza que Ele não quer isso de
você.
- Se não quisesse não teria me atendido.
- Deus não pode ser tão cruel!
- Isso é blasfêmia, Júlia! – Fiz o sinal
da cruz.
- Isso é fé em Deus. – Arrematou ela.
- Você não sabe o que diz. – Respondi.
- Talvez Deus esteja me usando para lhe
abrir os olhos. – Completou. – Clarinda, a promessa não é uma troca.
- Mas é sacrifício. A pessoa sacrifica
algo que para ela seja importante, e oferece a Deus. Uma promessa tem duas vias,
a realização do pedido e o nosso sacrifício.
- Clarinda, em nome de Deus as pessoas
sacrificam e chegam a matar. Elas não percebem que o que deveria unir ao
Divino, na verdade as distancia cada vez mais. A nossa vida é algo sagrado dado
por Ele, não podemos simplesmente abolir esta sacralidade em função de uma fé
que castiga, que faz sofrer, e que nada tem a ver Deus, que é amor e
misericórdia.
Recordei-me de Adriano, falando coisa
parecida há algum tempo atrás. Aprendi, no entanto, que as regras, as doutrinas
varrem as sujeiras de nossas vidas e nos aproximam de Deus, fazendo de nós
seres melhores aqui na Terra, para a vida eterna. Fala de meu pai, o mesmo pai
que me obrigou a me separar do homem que eu amava e casar com meu algoz. O pai
que me repreendia, que me castigava e me fazia temente a Deus. O mesmo pai que
me amava.
E se Júlia tivesse razão? E se fosse um
recado de Deus? Quantos recados Ele já teria me dado e eu nunca os ouvi? Ou
não, poderia ser para mim apenas uma provação. A promessa era para sempre.
- Júlia, Deus me deu muitas provas de
que esta era a escolha correta. Não posso agora simplesmente voltar atrás e por
um capricho, um desejo, um cansaço de meu sacrifício, quebrar a minha promessa.
- Capricho?! – Ela parecia indignada. –
Trata-se da sua vida e da vida de outra pessoa. Quem sabe ela não espera isso
de você?
- Quem?
- O pivô dessa promessa absurda, que
certamente também deve ter sofrido muito por conta desse sacrifício.
- Jamais. Esta pessoa finalmente tem
tudo o que sempre sonhou, graças a essa promessa. Além do mais, eu fiz o que
ela me pediu.
- Sofrer?
- Não. Afastar-me.
- Momentos de raiva, mágoas todos nós
temos. Pode ser que essa pessoa espere até hoje uma atitude diferente de sua
parte, que você volte atrás e não desista dela assim tão fácil.
Desistir? Jamais! Em nenhum dia, em
todos aqueles anos, nunca esqueci e tirei do meu coração o que me levava a
viver aquele casamento infernal com Alceu. A promessa fora uma forma de me
fazer presente, de não desistir.
- Hoje, com certeza eu sou apenas um
fantasma para esta pessoa, Júlia.
- Você pode mudar isso.
- Iria contra todos os meus princípios,
tudo o que eu acredito, o que eu aprendi.
- O que a gente aprende é para fazer da
gente mais feliz, e não prisioneiros de nós mesmos.
- Júlia, a fé não é uma prisão.
- Não mesmo, o que fazemos dela é que
pode ser.
- Você vem conversando muito com
Adriano. – Referi-me ao discurso dele, eram muito parecidos.
- Temos trocado algumas ideias. Mas não
precisei ouvi-lo para pensar assim. Bastou ser sua amiga, vê-la sofrer e em que
a sua vida se transformou.
- De qualquer modo, obrigado, Júlia.
- Ficarei fora pouco mais de um mês,
brevemente estarei de volta, aqui com você.
- Sentirei saudade.
- Eu também.
E nos abraçamos. Em tantos anos, era a
única amiga de verdade, com quem podia falar daquilo sem medo ou culpa. Amizade
verdadeira a gente sente o sentimento do outro, como se vivêssemos a vida da
outra pessoa, no ímpeto de poupá-la e fazê-la feliz. Para isso, muitas vezes,
questionamos, impúnhamos interrogações e transformamos a paz acomodada na
inquietude do espírito sedento de verdade em constante modificação.
Seria então um recado de Deus através de
Júlia?
Ajoelhei-me diante de Nossa Senhora, no
altar de meu quarto, rogando por uma resposta. E ela falou aos meus ouvidos!
CAPÍTULO 08
Senti
muita a falta de minha amiga Júlia durante as semanas em que esteve nos Estados
Unidos, na companhia de Leonardo Gondim. Todavia, sua presença fazia-se forte
em meu coração, por conta das palavras proferidas pouco antes de sua partida.
Ela havia me feito questionar profundamente a minha posição acerca da promessa
que me impunha a dura realidade a qual eu me submetia nos últimos trinta e
cinco anos no que dizia respeito ao meu casamento com Alceu. Aquilo reverberou
dentro de mim por muitas noites, em várias orações, onde eu procurava ouvir de
Deus as suas orientações.
Nada
nem ninguém me tiraram de meu estado de introspecção e questionamentos
existenciais. As preocupações de meu filho Nando, percebendo-me mais calada, o
próprio Alceu chegou a me abordar, com seu jeito grosseiro, tentando saber o
que estava acontecendo. Era um momento só meu, no entanto. Meu e de contato
profundo com Deus, buscando escutar qual seria o chamado. Nunca, em tantos
anos, eu havia duvidado tanto de minha decisão e o que era o correto. O que
Deus queria de mim afinal? Por que enviara Júlia com aquelas interrogações
tantos anos depois, depois de uma vida inteira de sofrimentos? E se ela
estivesse correta? E se a pessoa a quem eu mais prejudiquei sentia realmente a
minha falta e esperava por meu retorno? E se a vida estivesse me dando uma nova
chance, uma chance de rever meus erros e voltar a ser boa?
Voltar
a ser boa!
Pensar
em tudo aquilo mexia completamente com meu equilíbrio. E por diversas vezes pensei
em voltar atrás e mudar tudo, procurar a pessoa que mais sofreu por minha
causa, pedir perdão e revelar a verdade a todos, pagar por meus erros. Sim,
talvez somente então eu pagaria pelo que fiz, com o desprezo daqueles que amo.
Pois certamente eles me desprezariam quando soubessem da verdade.
Numa
manhã, logo que Alceu saiu do quarto, fui até meu altar, e diante de Nossa
Senhora, pedi que Deus me dissesse definitivamente o que fazer.
-
O que significa essa promessa para o Senhor, Pai? Responde, por favor! –
Supliquei que Deus me desse uma luz.
Creio
que a pergunta fora mal formulada. O que ela significava na verdade para mim?
Essa seria a pergunta correta. Talvez fosse isso que Deus estivesse querendo me
dizer com as interrogações trazidas por Júlia e tantas vezes, anos antes, por
Adriano. Ergui-me decidida, fui até o armário, procurei minha melhor roupa e a
coloquei depois de um banho demorado.
Finalmente
sabia o que Deus queria de mim!
O
celular tocou exatamente no momento em que me preparava para sair. Era o nome
de Adriano Cordeiro piscando no visor do aparelho. Como sempre, sentia meu
coração vibrar junto com a ligação. Fazia tempo que não nos falávamos. Ele
parecia ter estado ocupado viajando a negócios na companhia de dona Norma
Mesquita. E por mais que eu soubesse que era melhor ficarmos sem nos falar,
sentia saudade de nossas conversas.
-
Alô.
-
Clarinda?
-
Sim, quem é? – Fingi não saber de quem se tratava. Tolice! Por que eu fazia
aquilo? Só para depois poder me arrepender. Chegava a me sentir uma garotinha,
logo uma velha da minha idade...
-
Adriano. – Senti que ele sorriu do outro lado da linha. Certamente havia
percebido que eu mentira sobre não saber quem era. – Pode falar agora?
Lembrei
de meu destino naquele momento. Finalmente faria o que deveria ter feito há
mais de trinta anos, e precisava aproveitar a ausência de Alceu para sair sem
que ele me impedisse ou necessitar inventar alguma desculpa a fim de justificar
meu compromisso.
-
Desculpa, é que estou de saída agora. – Foi o que me veio à cabeça, antes que
eu perdesse a coragem de resolver a minha vida.
-
De saída? Então não pode falar? – Notei seu constrangimento. Fazia tanto tempo
que não nos falávamos, e justo quando pudera ligar eu não o atenderia?
-
Acho que posso. Posso sim. – Respondi no impulso.
-
Precisei acompanhar a dona Norma a uma viagem para resolver algumas coisas em
Paris. Isso tem me roubado muito tempo. Por esse motivo não tenho ligado, dado
notícias.
-
Não se preocupe, Adriano. Compreendi. Deve estar muito ocupado.
-
Mas senti muito a sua falta.
Será
que minha colocação pareceu uma cobrança?
-
Adriano, não quero que se preocupe comigo ou se sinta obrigado a me ligar.
-
Jamais me sentiria assim, Clarinda. Ligar para você não é uma obrigação, é uma
necessidade, compreende? O tom no final de suas palavras era mais cuidadoso,
insinuativo. E eu corei. Ainda bem que ele não estava ali para me ver
completamente sem graça, nervosa e contendo o sorrido de contentamento por
ouvir aquilo, como uma travessura.
-
E dona Norma, como está? – Procurei desconversar.
-
Está bem, com uma energia que movimentaria uma cidade inteira. Nem parece que
há pouco completou oitenta e cinco anos. Está mais jovial do que nunca, com
aquele bom humor que você já conhece, desde a nossa adolescência. Tem sentido a
sua falta.
Há
muito tempo dona Norma Mesquita e eu não nos encontrávamos. Ela considerava
Adriano como um filho e fazia gosto de nosso namoro na juventude. Recordo-me de
sua elegância e simplicidade, nem parecia ser uma milionária, na época uma
mulher de meia idade, casada há quase trinta anos com o grande empresário
cearense Antenor Mesquita.
-
Também sinto saudade dela.
-
Fala de marcar um chá para lhe reencontrar, logo ao voltar para o Brasil.
-
Irei com muito gosto.
-
Clarinda?
-
Sim...
-
Precisamos conversar seriamente.
-
Sobre o quê?
-
Sobre nós.
-
Nós? – Tremi ao ouvir aquilo.
-
Pensei muito sobre nós nas últimas semanas.
-
Do que exatamente está falando? – Na verdade, temia a resposta, mas precisava
dizer algo.
-
Dos nossos sentimentos.
Pronto,
era exatamente disso que não podíamos falar. Não cabia mais, depois de tantos
anos. Valeria apena recordar, trazer à tona uma história já resolvida quarenta
anos mais tarde? Existe um limite, uma época para amar ou tentar viver um
grande amor? E meu casamento, os votos de fidelidade para o resto da vida? E
minha promessa? Ah, a promessa... Eu estava de saída para resolver, voltar
atrás, procurar a pessoa que mais fiz sofrer com a minha decisão, reencontrar
meu passado e enfrentá-lo.
-
Adriano, não sei exatamente o que você pretende falar, mas...
-
De tudo o que está guardado aqui em meu peito. – Interrompeu-me, prontamente. –
E tenha certeza que também está no seu.
-
Adriano, por favor!
-
Clarinda, nós não somos mais nenhuma criança. A maturidade nos pesa em chamados
para vivermos a verdade de nossas almas. Não temos mais como jogar o que é tão
forte e profundo para baixo do tapete como aquilo que não queremos enxergar ou
entrar em contato, fingir que não existe. Pois existe, é latente e grita dentro
de nós! – Seu tom era mais grave. – Nem lembro quando da última vez em que
falamos disso, vinte ou vinte e cinco anos, numa festa de réveillon em que nos
encontramos, se não me falhe a memória. Mas agora, chega de mentiras!
-
É tarde para nós. – Minha colocação trouxe toda a lamentação de todos aqueles
anos sem vivermos o que se fazia tão forte em nós.
-
Hoje mais do que nunca sei que isso não é verdade.
-
Sou uma mulher casada.
-
Você deveria ser casada comigo.
-
Mas Deus não quis assim.
-
Deus não tem nada a ver com nossos erros, Clarinda. O seu casamento com Alceu
foi um grande equívoco. E equívoco maior ainda é sua continuidade.
-
Hoje eu sou uma velha.
-
Ontem, hoje e amanhã você é a mulher que eu amo!
Aquilo
me fez recordar todo o sentimento de nossa juventude, o amor eterno ao qual nos
prometíamos a cada beijo roubado na varanda da casa de meus pais. Tudo era vivo
novamente em meu peito, pulsava e me arrepiava, enchendo os meus olhos de
lágrimas. Senti-me feliz por ouvir aquilo novamente.
“Ontem,
hoje e amanhã você é a mulher que eu amo!”
Tirei
o fone do ouvido por um instante, pressionando-o contra meu peito, pus a mão na
boca, como que para conter o riso, o choro, a felicidade. Experimentava-me viva
novamente! Um momento mágico e eterno ao mesmo tempo.
“Ontem,
hoje e amanhã você é a mulher que eu amo!”
Foi
a frase mais linda que eu ouvi nos últimos quarenta anos. Daria tudo para ouvir
novamente.
-
Como? – Pronto, criei coragem e perguntei.
-
Você é a mulher que eu amo, Clarinda! Eu te amei por todos esses anos, cada
data especial, cada dia, cada minuto, cada segundo sem você, aumentava esse
amor dentro de mim. Foi um amor silenciado, judiado, massacrado por suas
crenças, suas escolhas as quais eu nunca compreendi. – Ouvi cada palavra sentindo
todo aquele amor em minha alma, chorando a saudade de tanta coisa não vivida.
-
Por que isso agora, Adriano? – Falei com dificuldade, pelo choro intenso que me
fragilizava. – Por quê? – Percebi que ele também chorava do outro lado da
linha.
-
Por que eu cansei de fingir, de mentir não amar. Para isso sim eu me sinto
velho, não tenho mais idade para esconder sentimentos, Clarinda. A maturidade
me permite ser verdadeiro sem medo das conseqüências. Hoje eu só quero uma
coisa.
-
O quê?
-
Te amar.
Chorava
a sorria ao mesmo tempo de tanta felicidade. Era como se a vida estive me dando
uma nova chance. E a promessa? E meu casamento?
-
Sinto muito, Adriano... não podemos mais!
-
Eu te amo, Clarinda!
-
Eu sou uma mulher casada!
-
Eu te amo, Clarinda!
-
Eu tenho uma família!
-
Eu te amo, Clarinda!
-
Nós não podemos!
-
Eu te amo, Clarinda!
-
Desculpe-me! – Desliguei. Fui até o sofá, tremendo de tanta emoção. Uma mistura
de choro e riso, de alegria e dúvida, de peso e leveza, invadiam-me,
desordenando todo e qualquer pensamento. Recordações de nossa juventude, e
falas recentes daquela ligação reverberavam em mim. Como seria possível tantos
anos depois? Um sonho? Um sonho interrompido pelo toque do aparelho celular em
minha bolsa. Era o aviso do recebimento de uma mensagem de texto.
MENSAGEM
DE ADRIANO CORDEIRO
Minhas
mãos estavam trêmulas, sem conseguir acertar a tecla correta para visualização
da mensagem.
“Era
para termos falado pessoalmente, mas o destino nos reservou o momento de hoje
para finalizarmos a nossa infelicidade. Nunca tive tanta certeza, por isso
lutarei com todas as minhas forças. Eu te amo! Adriano.”
Segurei
o aparelho em meu coração como se o abraçasse o fizesse sentir a intensidade do
que experimentava naquele momento. E como eu também o amava!
Meu
Deus, como seria dali para frente? Há coisas que fazemos ou dizemos que não tem
como passarmos uma borracha, fingir que não aconteceram, voltar atrás. Adriano
havia declarado todo o seu amor, após quarenta anos.
E
outra mensagem de texto:
“Retorno
próxima semana. Nosso amor não pode mais esperar. Farei o que deveria ter feito
há quarenta anos. Prepare seu coração para vivermos o que Deus guardou para nós.
Com todo o amor da minha alma, Adriano.”
E
agora, o que seria de mim? Como enfrentar Alceu caso Adriano tive coragem de me
procurar realmente? E ele teria? Seria eu uma adúltera por sentir-me feliz de
ouvir tudo aquilo, de sonhar em viver aquele grande amor? Anos de solidão
encarcerada num casamento violento justificavam uma traição?
Separar-me
de Alceu representava tudo o que eu não acreditava. Aprendi que casamento era
para sempre, independente de como fosse e do que acontecesse.
O
que Deus une o homem não separa.
Mas
o que realmente Deus havia unido?
Deus,
perdoe-me! O matrimônio é um santo sacramento. Não há o que duvidar. Pensar em
viver aquele amor com Adriano seria uma traição à minha crença, à minha fé, à
Deus. Precisava pensar em como dissuadi-lo daquela loucura. Sentia que ele me
procuraria sim e tudo faria para por um fim a meu casamento.
Tentação!
Poderia ter continuado como estava, sem mexermos nas feridas adormecidas, sem
reacendermos o fogo do amor em nós.
Se
é pecado, Senhor, por que então permitistes que ele voltasse? Provação?
E
mais uma mensagem:
“O
tempo nos reservou o hoje para vivermos todo amor contido desses quarenta anos.
E agora, temos apenas o resto de nossos vidas para sermos felizes. Eu te amo! Adriano.”
Um
pecado que fazia de mim a mulher mais feliz do mundo naquele momento!
CAPÍTULO 09
Mantive-me
ansiosa a espera da volta de Adriano, desde nossa última ligação. O que
aconteceria? Teria ele coragem de enfrentar Alceu e lutar por mim como disse
que faria? Minha vida estaria arruinada, talvez meu casamento se tornasse ainda
pior, se é que isso seria possível. Para que tudo acontecesse de outra forma,
eu precisava acatar a atitude de Adriano, e finalmente por um ponto final em
meu casamento. E minha promessa, meu segredo, minha crença em Deus? Horas me
enchia de coragem e permanecia-me firme na decisão de mudar o rumo daquela
história, no momento seguinte me perdia na culpa pelo pecado, sentindo-me uma
adúltera, além da quebra de minha promessa, o que poderia acarretar uma total
devastação na vida de pessoas inocentes. Senti-me abandonada por Deus em minhas
dúvidas.
Fazia
o acabamento na roupa de uma cliente importante, quando a campainha tocou. Atendi
de forma despretensiosa ao me deparar com Adriano diante de mim. Gelei ao vê-lo
me minha casa. Sim, estava disposto a cumprir o prometido.
-
Olá, Clarinda.
-
Adriano?
-
Não ficou feliz ao me ver?
Eu
estava sem palavras, na verdade amedrontada.
-
Não é isso. Eu não esperava você agora.
-
Posso entrar?
-
Claro. – Não tinha outra alternativa.
-
Com licença. – Entrou, certificando-se da presença ou ausência de Alceu.
-
Alceu não está, saiu cedo para jogar. – Tratei de avisá-lo.
-
Ótimo, assim conversamos antes.
-
Como se foi de viagem? – Tentei mudar de assunto, indicando para que sentasse.
-
Depois que nos falamos ao telefone tudo ficou bem. – Deixava claro o seu foco.
-
E dona Norma, como está? – Mais uma tentativa.
-
Bem. Deixei-a em casa depois do aeroporto e vim direto para cá. Ela espera que
finalmente nos entendamos.
Não
tinha mais como esconder minha apreensão.
-
Adriano, por favor, não levemos essa história adiante!
-
Estou decidido a mudar tudo isso, Clarinda. Chega de sofrer.
-
Por favor, eu sou uma mulher casada!
-
Infelizmente, e com um homem que nunca a mereceu.
-
Mas foi o que eu mereci.
-
Isso não é verdade.
-
Temos a sorte que merecemos.
-
Não, temos a sorte que buscamos. Para mim a sorte nada mais é que as
consequências de nossas escolhas. Se você sofre, é porque escolheu assim.
-
Não tive escolhas.
-
Sempre temos, como agora.
-
Adriano, por favor, o Alceu pode voltar a qualquer momento!
-
Ótimo. Assim resolvemos logo isso. – Ele se levantou e aproximou-se de mim. –
Clarinda, eu não estou brincando. Não temos mais idade para aventuras.
-
Estivemos afastados por tantos anos. Por que não continuamos assim?
-
Por termos dado outro passo em nossa relação. As coisas não funcionam desse
modo, Clarinda. Não se trata de um botão que liga e desliga quando se quer. Não
temos como voltar atrás. Agora será diferente.
-
Diferente em quê? Somos pessoas maduras, Adriano.
-
Antes a lembrança era apenas uma lembrança, amenizada com o tempo. Agora será
dor. E eu não estou disposto a viver isso.
Senti
raiva da vida, de minha religião, de meu pai, de mim, por minha covardia. Mais
uma vez eu queria abandonar alguém a quem amava por conta de um modelo de vida
que eu havia escolhido, mesmo fazendo de mim a pessoa mais infeliz desse mundo.
-
Eu converso com o Alceu. Não será fácil, eu sei. Mas é o que temos que fazer.
-
Adriano, trata-se de um casamento de quarenta anos. Não se pode acabar com as
coisas desse modo.
-
Não é simples, você me entende mal. Seu casamento vem se acabando há quarenta
anos. Esse momento é apenas a culminância do que devia ter acontecido há muito
tempo, Clarinda. Nós temos o direito de ser felizes.
-
Eu não tenho.
-
Por quê? O que você fez de tão grave para ser punida a vida inteira?
Meu
segredo, minha promessa!
-
Você não compreenderia.
-
Eu lhe compreenderia com todo o meu coração, com todo o meu amor.
Como
Júlia me apoiara ao saber da verdade, talvez Adriano também o fizesse. E aos
poucos eu teria coragem de mudar aquela história.
-
Adriano, por favor, vá embora!
-
O que você sente por mim?
-
Por favor, vá embora!
-
O que você sente por mim, Clarinda?
Temia
que Alceu chegasse a qualquer momento.
-
Por favor, pare!
-
Diga o que sente, e vou embora.
Baixei
a cabeça e respondi.
-
Você é um grande amigo.
-
Olhe nos meus olhos.
-
Adriano, vamos acabar com isso!
-
Você não tem coragem, por que sente o mesmo que eu.
-
Está bem. – Disse no susto.
-
Está bem o quê? Você sente o mesmo por mim? – Insistiu.
-
Sim, eu sinto. – Sentia-me uma pecadora ao dizer aquilo.
E
ele sorriu, comemorando.
-
Clarinda, eu te amo! Você sente o mesmo por mim?
Hesitei
a responder.
-
Sinto.
Simplesmente
me abraçou. E ficamos ali por algum tempo, silenciosos. Depois de quarenta
anos, eu novamente assumia meu amor, até mesmo para mim. Choramos a dor pela
distância, a saudade do que não vivemos.
-
O que você quer que eu faça? – Procurou saber.
-
Preciso de um tempo.
-
Quanto tempo?
-
Não sei, o suficiente para ter coragem de tomar a decisão.
-
Podemos fazer isso juntos.
-
Não, Adriano. Essa é uma decisão que cabe a mim.
-
Temo por você e sua segurança.
-
Hoje sei como lidar com Alceu, acredite.
-
Darei todo o tempo que precisa. Agora já tenho a certeza do seu coração.
-
Precisamos ter cuidado até lá.
-
Tudo do jeito que você quiser. Eu te amo, Clarinda!
Restava-me
então enfrentar os fantasmas de minha vida e acabar de uma vez por todas com
aquele casamento infeliz!
CAPÍTULO 10
Pensei que minha
conversa com Adriano o tivesse demovido da ideia de procurar meu marido para
uma conversa, um enfrentamento. Engano meu, ele estava decidido ao feito. Pedi
que fosse embora de minha casa antes da volta de Alceu, não queria que
acontecesse o dito encontro naquele dia, preferia evitar. Só de pensar na
possibilidade de Adriano desconfiar da verdade, do que me fizera casar já me fazia
entrar em desespero. Vergonha!
-
Estou bem, Adriano. Por favor, vá embora. Alceu pode chegar e...
-
Quero mesmo que venha. Temos muito a conversar.
-
Não!
Voltei-me
então a ele. Precisava protegê-lo. E se meu marido lhe fizesse algum mal? Isso
eu não poderia permitir. Jamais me perdoaria.
-
Por favor, Adriano! Vá embora.
-
O que precisa mais acontecer para você cair em si e tomar as rédeas de sua
vida, minha querida? São tantos anos de sofrimento, de miséria existencial. Nos
primeiros anos, a vi perder totalmente a alegria de viver. Não sabe o quanto me
doeu. Talvez até mais que nossa separação.
-
Foi a vida que Deus me deu.
-
Não. Foi a vida que você escolheu.
-
Não podia ser diferente.
-
Claro que podia.
-
Eu não tive alternativa.
-
Inúmeras. Sempre as temos. Seus motivos nunca foram seu pai, sua família, as
pessoas, Alceu ou, depois, as crianças. Mas você mesma. Sua motivação está
dentro de você, sempre esteve. É o modelo de vida que aprendeu. Você se faz
escrava das próprias regras. É uma pessoa que faz o bem a todos e o mal a si
mesma.
-
Sou uma pessoa temente a Deus.
-
Os seus temores são de um Deus fictício. Clarinda, Deus é misericórdia,
princípio que você não conhece em sua vida.
-
Que absurdo.
-
Digo, para você. São quase quarenta anos de martírio. Existe misericórdia em
sua vida? O que tem feito por sua felicidade?
-
Sou feliz quando vejo meus filhos bem, meus amigos, as pessoas de que gosto.
Isso me deixa feliz.
-
Fica feliz pelos outros e infeliz ao lembrar-se de você e sua vida.
Deu-me
uma ânsia de choro, a qual não pude conter. Caí em seus braços, ao prantos, num
choro compulsivo, como se expulsasse de mim a dor esmagadora daqueles últimos
quarenta anos. As humilhações, as abnegações, as saudades, tudo o que fizera
parte de minha vida e eu verdadeiramente odiava. Adriano me recebia em seus
braços de forma tão carinhosa, como a uma criança, precisando de colo. Devo ter
chorado por uns dez minutos, sem parar. E ele ali, pacientemente,
acalentando-me. Prosseguindo somente, ao me ouvir calar.
-
Minha querida, como todas as pessoas, errei muito. Mas também procurei acertar.
Vivo em busca daquilo que me faz feliz. Cuidando para não magoar os outros.
Tentando amar. Contudo, jamais amaremos intensamente enquanto não soubermos
amar a nós mesmos.
-
Eu sempre procurei amar.
Minha
voz quase não se fazia ouvir.
-
O amor começa de dentro, não de fora. Abriu mão de sua vida inteira em função
das pessoas, de situações consideradas corretas, de um modelo de vida. E veja
no que se transformou, numa pessoa sedenta de amor.
Ergui-me,
fitando-lhe os olhos.
-
Eu me doei pro mundo, fiz tudo o que era certo.
-
Fez para os outros ou para você mesma?
-
Claro que foi para os outros!
Era
evidente o meu tom de indignação frente aquela pergunta absurda. Passei minha
vida inteira pensando nas pessoas, no bem-estar dos outros. Nunca quis nada
para mim, e quando quis, não o fiz. Senti-me injustiçada.
-
E fez por que, Clarinda?
-
Ora por quê? Porque era o certo.
-
E se não o fizesse?
Por
um momento não sabia o que lhe responder.
-
O que está querendo dizer, Adriano?
-
Se não o fizesse, como se sentiria?
-
Mal. Péssima, sei lá... infeliz...
-
Culpada?
-
Infeliz...
-
Iria se sentir culpada também?
Hesitei
em lhe responder, por medo de uma represália. O que a final aquilo significava?
O que estava querendo dizer com aquilo? Bem, logo saberia.
-
Sim. Talvez me sentisse culpada sim. Mas isso é normal.
-
A culpa provém da transgressão de alguma regra a qual consideramos importante
ou acreditamos. Abriu mão se sua vida, de sua felicidade, pela culpa de não o
fazer, e se sente infeliz. A infelicidade será sempre o apogeu daqueles que se
manifestam movidos pela culpa e não pelo simples desejo de amar.
Levantei-me
do sofá onde estávamos sentados, repudiando aquela afirmativa. Era como se
menosprezasse a minha vida, meu sacrifício, meu sofrimento. Fazia pouco caso de
mim.
-
Quer dizer que não fiz por amor?
-
Fez?
-
Claro!
-
E a culpa?
-
E agora, essa de culpa... Tudo o que fiz foi por amor a meu pai, aos meus
filhos, a Deus.
Definitivamente
não compreendia o que Adriano tentava me dizer. Era óbvio, contudo, meu
incômodo. Não gostei nada naquelas afirmativas, daquelas perguntas, que
diminuíam a minha atitude frente à vida. Amei como ninguém amou, e isso, jamais
poderiam tirar de mim.
Movida
pela culpa? Não! Pelo amor. O amor movera todos os meus paços até então.
Cheguei a ter vontade de lembrar aquele homem de seu abandono à própria filha.
Ele nada sabia de amor. Eu sim, havia passado quarenta anos de minha vida
casada com um homem que eu não amava, aterrorizada por sua força brutal, seus
ciúmes, dedicando-me à educação de meus filhos, a proporcionar-lhes uma vida
digna, a ajudar as pessoas, a viver dentro dos preceitos religiosos, temendo a
Deus. Isso sim era amor.
Adriano
Cordeiro estava, no entanto, decidido a lutar por minha felicidade, a procurar
finalmente meu marido para uma conversa, a qual ele desejava há muito. Tinham
sido amigos de infância, adolescência e juventude, até o dia em que fui
violentada. A partir dali, Alceu riscara o nome de Adriano de sua vida, como
forma de proteção, talvez. O amigo o lembraria permanentemente de seu feito, de
sua traição. Meu marido preferia acreditar que Adriano não o respeitara em seus
sentimentos. Pois ele já se dizia apaixonado por mim, antes mesmo de meu namoro
com o outro.
Não
soube muito daquela conversa, embora tenha sentido seu efeito na pele. Alceu
passara dias calado, dentro de casa. Olhava-me de forma interrogativa, como se
avaliasse todos aqueles anos pela primeira vez, ou a sua própria vida. Era um
homem também infeliz, solitário. Conseguira o desprezo dos filhos, a minha
aversão, o nojo das pessoas as quais conhecíamos. Transformara-se completamente
numa pessoa abominável desde aquele dia em que se aproveitou da ausência de
papai. Parecia ter se deparado com uma bola de neve, um caminho sem volta. Por
achar que nunca obteria meu perdão, decidira então assumir uma postura
ditadora, fugindo da necessidade de aceitação, punindo-me como a si mesmo.
Adriano
e eu passamos algum tempo sem nos falar. Talvez fosse melhor assim. Deste modo,
não provocaríamos a fera. Alceu estava quieto, já fazia algum tempo que não me
agredia. E eu não queria lhe dar motivos. Embora não precisasse deles para o
fazer.
Certa
tarde, recebi mais uma ligação de Adriano. Conversamos por muito tempo, o
suficiente para esquecer de minha situação. Queria entender melhor a questão da
“culpa”, de que ele havia me falado. A diferença realmente era tênue.
“Minha
querida, quando fazemos algo por culpa, nosso objetivo é sempre atingir a
expectativa do mundo, como se tivéssemos a obrigação de encarnar um papel. A
culpa vem por não conseguirmos, ou corrermos o risco de não conseguir alcançar
este papel e sermos desprezados ou não sermos aceitos pelo mundo. Seria esta a
diferença de fazermos algo de coração, pelo amor, pelo bem do outro. Mas se
deixássemos de fazer, não haveria problema. Nem sempre podemos ser perfeitos. E
quando agimos em prol de uma satisfação para o mundo, seremos sempre infelizes,
por nunca fazermos o que realmente desejamos fazer. Não podemos amar o outro
quando não amamos a nós mesmos. Se não me amo, não me cuido, é mentira pensar
amar alguém. Tudo não passa de culpa e proteção de uma imagem.” Disse ele.
Mas
e os ensinamentos de minha família? O que eu havia aprendido de minha religião?
Meu verdadeiro medo se configurava na ação de pecar ou não. Segundo Adriano,
meu maior pecado era agir em nome do amor, matando a mim mesma. Isso sim fazia
de mim uma grande pecadora.
Tudo
estranho e novo! Adriano era eloqüente em sua fala. Mas o medo existente dentro
de mim me fazia hesitar.
-
E Deus?
-
Deus quer a nossa felicidade. - Retrucava ele naturalmente.
Aquela
conversa fora interrompida por uma pancada em minha cabeça, que me trouxera um
zumbido e me levara ao chão. Depois de alguns segundos, dei por mim e entendi o
que havia acontecido. Alceu entrara, sem que eu percebesse e flagrara parte do
diálogo. Pronto, agora tinha motivos!
- Por favor, Alceu!
Ele nem me dera tempo de falar.
- Traidora! Vagabunda!
Vi-me tentando, sem êxito, defender-me, evitar os
chutes em minha barriga. Sentia meus órgãos sendo esmagados pelas pancadas que
me deixavam sem fala.
- Por favor, Alceu!
- Cala a boca, desgraçada! Toma! – E mais chutes.
- Por favor!
- Cala a boca, vagabunda! – Foi um grito.
Quantas surras como aquela eu já havia sido vítima?
Em quarenta anos de casamento, seria impossível enumerá-las.
Quase não compreendi direito o que o arrancou de
minha frente. O vi cair por cima da mezinha de centro da sala. E então a imagem
de Nando, com um rosto transfigurado. Um empurrão do próprio filho.
CAPÍTULO 11
Minha relação
com Adriano Cordeiro vinha ficando insustentável, e eu estava certa de que
precisávamos colocar um ponto final.
-
O que fazemos de errado, afinal, Clarinda? Somos duas pessoas descobrindo a
beleza de um sentimento puro um pelo outro. Que tem demais isso?
-
Uma mulher casada não pode ter amigos homens, exceto que seja uma relação comum
a seu marido. Isso não é direito. Não está certo.
-
E o que está correto? Você viver obrigada a uma união, infeliz, desrespeitada?
Isso está correto? Deus quer realmente isso de você?
-
Casamento é para sempre.
-
Não, errado. Não há casamento quando não se tem amor, respeito. “Ainda que eu
fale a língua dos homens e dos anjos, senão tiver amor, de nada adiantará”. Meu
coração não está nessa relação, nunca esteve.
-
Isso não importa.
-
Sim, importa. Não adiantam as regras, as palavra certas, quando não se tem
alma. Pecado é nos distanciarmos do que é essencial em função daquilo que nós
mesmos criamos para nos orientar.
-
Mas é o que Deus espera de mim.
-
Quem falou isso?
-
Não gosto quando você fala assim, Adriano. Está blasfemando.
-
Por quê? Por falar de sentimento, de coração? Clarinda, as regras não têm
importância alguma se são desprovidas de amor.
Como
desprovidas de amor? E o que eu tinha feito minha vida inteira? Procurei sempre
fazer o bem, o que era certo, o que uma mulher temente a Deus deveria como
cristã. Não. Falávamos em línguas diferentes. Por isso, ficávamos muitas vezes,
algum tempo sem nos comunicar. Um tempo estabelecido por mim mesma, até ceder
às inúmeras tentativas de Adriano a nos reaproximarmos.
E
meu coração? Ah, meu coração parecia explodir cada vez que nós, Adriano e eu,
nos encontrávamos ou nos falávamos, mesmo que por telefone. Uma sensação de
alegria, de pureza, como ele mesmo definia. Um amor que parecia crescer a cada
dia. Mais de quarenta anos haviam se passado, desde nosso primeiro beijo, na
época em que namoramos, e paixão parecia ainda mais viva. Desejávamos a boca um
do outro, assim como o corpo, o calor.
Pecado!
Rezava
incessantemente após aqueles pensamentos pecaminosos. É coisa do demônio. Só
pode. Além de aturar o porco do meu marido em casa, vivia, no último ano,
acometida daqueles desejos, como uma obsessão, rogando a Deus por me livrar de
tais tentações. No fundo, achava que os tapas ou quaisquer agressões por parte
de meu marido a mim eram uma resposta do Senhor à sujeira de meus pensamentos.
E
quanto a todos os anos os quais passei ao lado de Alceu, vivendo o mesmo
inferno isenta de qualquer pensamento ou desejo que não fosse o bem de minha
família, de meus filhos? Por que então eu havia sido tão castigada? Quando me
vinham essas perguntas, chegava a considerar os questionamentos de Adriano
acerca do sentido de minha vida, das regras às quais eu me fazia orientar desde
a minha infância. Lembrava então de mamãe dizendo que uma mulher precisa seguir
seu marido, como manda a Bíblia. E quando não o fazemos enfrentaremos a fúria
do Senhor.
“Fúria
do Senhor”.
Deus
seria realmente um Ser furioso?
Para
Adriano Cordeiro não. Como ele mesmo dizia: “Deus é amor, misericórdia.” E se
Ele tudo perdoa, não haveriam então castigos. Minha vida não seria um grande
castigo, como a considerava muitas vezes. Seria sim uma escolha. E Adriano me
dissera aquilo em diversos momentos.
Seria
eu então a grande culpada?
“Não
há culpados, Clarinda.” Insistia Adriano. “Há sim um responsável por nossas
escolhas. E somos nós mesmos. Nunca os outros. Por mais que pareça ser. Eles
podem até nos influenciar. Mas no final, somos sempre nós quem escolhemos.”
Sentia-me
confusa. Estando certa somente de que uma escolha de quarenta anos, não se
podia definir daquela forma, assim tão rápido. Necessitava de tempo para
maturar.
-
E o que pode nos orientar para termos certeza de que estamos no caminho certo?
– Questionava eu a Adriano, procurando compreender sua filosofia.
-
De qual caminho você fala? – perguntava ele.
-
De onde pode estar Deus nessa escolha.
-
A paz no coração.
-
Como?
-
A paz. Quando fazemos uma escolha, podemos observar o sentimento presente em
nosso coração. Se sentimos paz de espírito, ali estará Deus. Caso contrário,
foi uma escolha morta, de nossa mente.
-
Mas dessa forma não faríamos nunca sacrifícios.
-
Pelo contrário. Não falo de não sofrermos por nossas escolhas, mas de sentirmos
paz de espírito por fazê-las. E aí, depois pode até vir algum sofrimento em sua
conseqüência. Mas estaremos com nosso coração tranquilo, em paz. Ali, está
Deus.
Procurava
observar se essa paz de que Adriano falara se fizera presente em minha vida, em
todos aqueles anos. Não! Não fizera. O que não confirmava sua tese, ao meu ver.
Quem poderia realmente comprar a veracidade daquele raciocínio?
O
fato é que havia passado aquele último ano procurando esconder de meus filhos,
como de costume, as mais diversas agressões sofridas de Alceu. Sentia-me
envergonhada, pelas inúmeras tentativas dos mesmos de pôr fim àquele absurdo o
qual se resumira os últimos trinta e oito anos de minha vida, e eu nada fazer.
O
que ainda me segurava naquela vida, era a promessa. Aquela altura da minha
vida, nem sabia mais se valia à pena continuar com tal propósito. Temia que
Deus não me perdoasse por quebrá-la e acabasse por quebrar também a graça
alcançada. Se isso acontecesse eu jamais me perdoaria. Minha covardia já havia
causado muito sofrimento, não somente a mim, mas principalmente à pessoa centro
daquela promessa. Era o mínimo que eu poderia fazer por ela.
Meus
filhos, assim como ninguém, nunca entenderam o porquê de eu me permitir viver
uma vida em meio à total falta de dignidade. Mas eu sabia bem por que. Não era
somente pelo cumprimento de um dogma religioso, como afirmava Adriano, o que
tinha realmente grande peso para mim sim, mas fundamentalmente pela lealdade a
um acordo com Deus, cuja essência não definia pelo “sim” no ato de meu
casamento, mas pela proteção a um ente querido, anos depois. Talvez uma forma
de redenção por minha fraqueza, pelo medo então presente em minha vida.
O
fato é que passei mais aquele último ano assombrada com a figura de Alceu em
casa o dia inteiro. O cenário de suas jogatinas mudara da bodega da esquina
para nossa sala. E com ele, aquele asqueroso do Quaresma, com cheiro de cachaça
misturado a perfume barato e sarro de cigarro. Não muito diferente dos demais
colegas de jogo de meu marido que passaram a frequentar nossa casa, nos últimos
tempos.
Quanto
a mim, precisava me multiplicar em várias Clarindas, tentando dar conta da
enorme quantidade de costuras, cuja renda alimentaria a manutenção do próprio
inferno no qual eu vivia, assim como cuidar para que nada faltasse ao lazer de
meu marido e seus amigos, a exemplo de bebida e tira-gostos.
Já
fazia alguns dias e eu havia sido agredida por Alceu, na frente de todos
aqueles porcos vagabundos que lhe faziam companhia na mesa de jogo. E tudo por
pedir-lhe um pouco de paciência e aguardar mais um tira-gosto até que eu
pudesse concluir uma costura, a qual a cliente chegaria para receber dali a
menos de uma hora. Foram tapas e empurrões, levando-me até o fogão. Acabei por
sofrer uma queimadura no braço, por cair por cima de uma frigideira que estava
no fogo. Podia ouvir as risadas de seus amigos, na sala.
“Isso,
Alceu. É assim que se trata uma mulher.”
“Elas
gostam. Bate, bate!”
“Acho
que por isso que a minha não me dá valor.”
Aqueles
comentários me davam asco. Um bando de vagabundos, a plateia de mais uma cena
grotesca de homem batendo em sua mulher. Era um misto de nojo, raiva e ao mesmo
tempo, vergonha. Minha vida, minha intimidade, minha fragilidade exposta a
pessoas totalmente desprovidas de moral. Nem chorar eu podia. Não queria piorar
as coisas, provocar ainda mais as loucuras de meu marido, nem muito menos dar
àqueles idiotas mais motivos para diversão. Engoli o choro e tratei de agilizar
a comida, fingindo não sentir a dor da queimadura que roubava minha atenção
para meu braço.
Depois,
mais tarde, em meu quarto, pus-me diante da imagem de Nossa Senhora, aos
prantos. Eu merecia? Por quê? Tudo fazia para agradar aquele homem e de nada
adiantava. Bastava um deslize e ele lembrava-me o peso de sua mão. Quarenta e
um anos de desrespeito e dor.
Sina
ou castigo, era o preço pelo abandono, pela negligência, por fazer sofrer um
inocente, indefeso. De qualquer modo, as surras estavam no pacote de meu
acordo, minha promessa. Não que eu quisesse, mas fora uma escolha, e eu já
sabia.
A
única coisa que eu queria era deixar meus filhos fora daquilo de minha história
com Alceu. Até porque seria perigoso. Temia que algo de ruim pudesse acontecer.
Como no ano anterior, quando Nando agrediu o próprio pai por minha causa. Não
estava certo. “Um filho não pode partir contra um pai, por mais errado que ele
esteja.” Lembrava de mamãe, dizendo aquilo. Bastava a distância de Alceu e os
meninos. Por isso, para evitar um confronto entre ambos, escondia as
atrocidades sofridas por meu marido, além da vergonha.
Em
relação à queimadura não tive como esconder. Nando a viu, e sem que nada
dissesse, percebi que ele sabia do que se tratava. Segurou meu braço com
cuidado, analisando a ferida, como se pudesse enxergar a cena dos empurrões até
o fogão. Talvez tivesse vendo-a através de meus olhos.
-
Bati na frigideira quente. – Tentei convencê-lo.
-
Isso não pode continuar, mãezinha! – Havia um ar de lamentação e revolta em sua
fala. – Foi o papai, não foi?
-
Não. – Puxei meu braço e virei o rosto. – Ele não tem nada a ver com isso.
-
Por que o protege?
-
Do que está falando, Nando? – Eu estava com tanta vergonha. – Eu queimei na
cozinha. Só.
-
Eu sei que foi ele.
-
Paranóia sua.
-
Já está na hora de dar um basta nisso.
Nem
sei o que Nando faria. Apenas rezei muito para que Nossa Senhora protegesse meu
filho e o iluminasse, afastando-o daquela história. O que não aconteceu. À
noite mesmo Holanda bateu à porta. Eles haviam conversado sobre o assunto
durante a tarde, pensando em como procederiam a meu respeito e de seu pai.
Estavam realmente convencidos de que chegava a hora de resolver aquela
história. E resolver significava o fim de meu casamento. E até uma punição para
Alceu.
Por
mim não teria problema, caso não envolvesse outra pessoa. Mas e a promessa? Se
eu quebrasse, poria em risco sua graça alcançada. Seria pior para mim. Meu
sofrimento, pela culpa, matar-me-ia.
-
Se não quer dar um basta a este absurdo, terá que revelar, pelo menos, por quê.
– Holanda fora categórico.
-
Não há o que revelar, meu filho.
-
Não somos idiotas, mãezinha. Qualquer banalidade é motivo para uma surra. Estamos
carecas de saber que a senhora não o ama. Existe algo por trás de tudo isso.
-
Coisa minha.
-
Fugiu de seu controle.
-
Esqueça, meu filho.
-
Teria que esquecer que sou seu filho. Não há como, mãezinha! Por favor, nos
conte. O que leva a senhora permanecer nesse casamento há tantos anos?
-
Já disse. Nada!
-
Pois saiba que não ficará mais assim.
-
Holanda, pelo amor de Deus, esqueça essa história!
-
Como disse, mãezinha, fugiu de seu controle.
O
que eles fariam?
Estávamos na sala, meu filho e eu,
quando Alceu entrou. Meu coração disparou. E eu rezei silenciosamente, pedindo
que Deus protegesse meu filho e não permitisse que nada de ruim acontecesse.
CAPÍTULO 12
O
que consegui evitar por anos estava prestes a acontecer, um confronto entre meu
filho Holanda e o pai. Rezava silenciosamente para que Deus intercedesse.
-
Ora, ora, se não é um viado da família... – Alceu tinha bebido, como de
costume, mas encontrava-se bem sóbrio para provocar o filho.
-
Péssima noite para você também. – Revidou Holanda, cheio de indignação.
-
O que está fazendo em “minha” casa, seu baitola?
-
Não é de sua conta, seu bêbado idiota. – Holanda respondeu, voltando-se a mim.
-
Filho duma puta! – Alceu puxou o filho, acertando-o com um soco.
-
Meu Deus, não! – Gritei, sem nada poder fazer.
-
Desgraçado! – Holanda ergueu-se, devolvendo o soco. – Agora você vai ter o que
merece! – Mais outro soco e outro, mais outro e outro.
Tentei
segurar meu filho.
-
Pare, Holanda! Por favor, pare! É seu pai! Pare!
-
Isso é por todas as surras que você deu na mãezinha, seu desgraçado!
Foram
muitos socos. Alceu mal tinha condições de se defender. Acabou correndo para
trás da mesa, tentando fugir.
-
Batendo num velho, filho da puta? É? – Mal conseguia falar, desequilibrando-se,
cansado.
-
Agora você é um velho? Na hora de espancar a mãezinha não é. – Os dois
contornavam a mesa. Meu filho estava disposto realmente a prestar contas.
-
Viado covarde! – Provocava ainda, mesmo com medo, fugindo.
-
Você sabe bem o que é covardia, né?
-
Você vai me pagar!
-
É? Por que então não vem cobrar agora? Vem!
-
Por favor, parem com isso! Vocês são pai e filho! Parem! – Eu segurava meu
filho, do outro lado da mesa, quase contornando-a, seguindo o ritmo de Alceu,
que procurava a distância certa.
-
Escuta bem o que eu vou dizer, seu velho covarde! Você nunca mais, entendeu?
Nunca mais vai encostar um dedo na mãezinha!
-
Tá vendo o que você criou, Clarinda? Esse maricas vai me pagar!
-
Vocês são pai e filho. Por favor, parem com isso! – Encontrava-me transtornada.
-
Chega, mãezinha! – Vi então me filho voltar-se a mim. – A senhora está vendo
que não dá mais pra continuar. Vai ser daqui para pior, entendeu?
-
Está certo. Eu vou ver então. Mas vá embora, por favor! – Valia dizer qualquer
coisa, para evitar o pior.
-
Embora? De jeito nenhum. Não sem a senhora.
-
Holanda, por favor! – Insisti.
-
A senhora parece que não entendeu, mãezinha. Eu não vou sair daqui sem a
senhora. Hoje acabou esse inferno!
-
Não é assim, Francisco! – Não tinha como lhe explicar ali.
-
Se eu sair daqui sem a senhora, eu vou direto pra uma delegacia, entendeu?
-
Toma, seu viado, desgraçado! – Alceu aproveitou o momento para atacar.
Vi
meu filho cair em meus braços. E Alceu com uma faca suja de sangue na mão. No
rosto, a mesma expressão de mais de quarenta anos antes, quando me violentou
pela primeira vez.
-
Francisco! Francisco! – Tentei ajudá-lo, até reerguê-lo. – Holanda!
-
Ele me atingiu! – Meu filho pressionava as costas, no local perfurado,
voltando-se ao pai. – Covarde!
-
Vem, valentão! Vem agora, seu broinha! Fela da gaita! – Uma expressão antiga
que há muito não ouvia, referindo-se à homossexualidade.
Coloquei-me
bem diante dos dois.
-
Parem, por favor!
Foi
Holanda quem me afastou.
-
Sai disso, mãezinha. Ele pode te machucar.
-
Meu Deus! Parem com isso!
Pai
e filho bem diante um do outro, como dois inimigos, numa luta de vida ou morte.
Alceu segurando a faca, procurando um ângulo no qual pudesse usá-la novamente.
E Holanda procurando se defender, talvez tomar a arma, não sei. Mas vi que um
dos dois poderia se acabar ali.
Uma
tragédia!
Holanda
conseguiu derrubar a faca da mão do pai, cobrindo-o com mais socos.
-
Socorro! Alguém me ajude! – Eu gritava, esperando que qualquer pessoa pudesse
evitar o pior.
Pai
e filho rolando no chão, um por cima do outro, trocando socos. Cena horrível
aquela. Alceu conseguiu pegar a faca novamente, atingindo também o ombro do
filho. Dando certa vantagem a ele, que ficara por cima então. Pulei nas costas
de Alceu, tentando impedi-lo de cometer mais loucuras. Acabei no chão, também
cortada, meio zonza, por bater a cabeça numa cadeira, ao cair. Pelo menos
ajudei me filho, distraindo o pai o suficiente para que pudesse tomar-lhe a
arma e atingi-lo com mais um soco.
Dali
a pouco vi Nando entrar aflito, acompanhado de Dorival, policial filho de
Ceiça, com outros colegas policiais, e o delegado Ricardo Rosendo, dando ordem
de prisão a Alceu.
-
Deve haver um engano, delegado. – Disse Alceu, bem nervoso. – Eu fui agredido
por esse moleque. – Já estava de mão para o alto.
-
O senhor está preso, seu Alceu de Holanda, por tentativa de assassinato. –
Respondeu o delegado Ricardo, olhando para Holanda com a roupa suja de sangue e
para mim com o corte no braço.
Nando
procurava me ajudar a levantar. Nem entendia ao certo o que estava acontecendo.
Encontrava-me ainda um pouco confusa, por conta do tombo ao cair. Dorival
ajudava Holanda.
Vi
as algemas sendo colocadas em meu marido.
-
Diz pra eles, Clarinda. Diz pra eles que há um engano. – Pedia Alceu, entrando
em desespero. – Diz, Clarinda!
Eu
nada poderia falar em seu favor. Quase matara meu filho. Desta vez não. Alceu
não poderia ficar impune. Permiti que me machucasse por quarenta e um anos, mas
daí matar o próprio filho... a loucura de Alceu chegara ao extremo. E eu não
poderia compactuar com aquilo. Não havia promessa que me fizesse mudar de ideia,
de ficar do lado daquele monstro e ir contra a vida do meu próprio filho. Tudo
tem limites, e minha promessa chegava ao fim.
Olhei
para o delegado e falei simplesmente:
-
Pode levá-lo, doutor!
Pronto!
Finalmente Alceu pagaria por tudo o que me fizera todos aqueles anos.
Principalmente, por tentar matar o próprio filho.
Certa
vez Ceiça me dissera que aquela história não acabaria bem. Ela estava coberta
de razão. O que eu acabei provocando? Se não fosse por minha teimosia a
permanecer convivendo com os desatinos de meu marido, nada daquilo teria
acontecido, meu filho não teria corrido risco de vida.
“O
que a senhora está esperando que aconteça, mãezinha?”
Aquela
fala de Nando ainda estremecia em minha cabeça. Talvez esperasse que uma
tragédia acontecesse para me convencer que não poderia continuar. E aconteceu!
Não o pior. Mas aconteceu. Fora horrível ver pai e filho se enfrentando feito
dois animais! Graças a Deus, não fora tão grave os ferimentos de Holanda, nem o
meu.
Eu
era a culpada!
Teimosa!
Alceu
tentara reagir à prisão ao entrar na viatura da polícia. Gritava por minha
ajuda, como anos antes, quando também fora preso. Agora seria diferente.
Agredira uma cria minha. E isso eu não permitiria jamais.
Fiz
todos os procedimentos orientados pelo delegado Ricardo Rosendo, desde o exame
de corpo de delito até a queixa oficial contra meu marido. Alceu de Holanda não
ficaria mais impune. Não por minha covardia, meu medo, minha teimosia. Não mais
pelas regras que me aprisionavam, como dizia Adriano Cordeiro.
Foram
difíceis os meses que se seguiram, após aquele incidente lamentável. A cena de
pai e filho brigando como dois animais selvagens não saía de minha cabeça.
Total responsabilidade minha. Passei a duvidar e não entender o que realmente
Deus queria de mim. Fui uma mulher temente durante toda a minha vida,
procurando fazer o que era certo, cuidando das pessoas, de minha família,
pagando alto preço por minha fraqueza, e de repente, aquela situação
abominável. Sem falar no falatório no Montese. Passei tempos sem sair de casa.
Com vergonha de enfrentar o rosto das pessoas. Que tipo de família afinal era a
nossa? As pessoas comentavam, eu tinha certeza, embora nunca tivesse sabido de
nenhuma fofoca.
Adriano
me apoiara em toda aquela situação. Seria ainda mais complicado sem um ombro
amigo.
-
Não importa nesse momento o que pensam as pessoas, minha querida. – Dizia ele,
procurando me aliviar a dor.
-
Todos sabem. Eu não tenho coragem de pôr a cara na rua.
-
Qual a sua preocupação?
-
Os comentários. Sempre sonhei com uma família normal.
-
Clarinda, essa é a sua família. Assim como todas as família do mundo, acontecem
coisas inesperadas, indesejadas. Isso é o normal de todos os núcleos
familiares. Agora “esse normal” de que você fala, só existe em nível de imagem,
de utopia. No fundo, todas as pessoas vivem dramas parecidos, as mesmas coisas,
conflitos semelhantes.
-
Se papai estivesse vivo...
-
Se seu pai estivesse vivo certamente viria no que ele contribuiu para a sua
família chegar aonde chegou.
-
Não é culpa dele!
-
Não é culpa sua. Não é culpa de ninguém. É como se a sua vida fosse alicerçada
fundamentalmente pela culpa, pelo pecado, pelo medo de errar, de sair de uma
linha pré-estabelecida como a certa. A vida não é isso, minha querida! – Falava
com um tom afetuoso e ao mesmo tempo de lamentação. – Você se priva de tantas
coisas boas.
-
Nem todas as coisas do mundo são de Deus.
-
Pelo contrário. Tudo é parte de sua criação. Ele nos deu o livre-arbítrio. É
nisso que muitos se perdem. Mas para sabermos o caminho da luz, basta sentirmos
a paz. Onde ela estiver, estará a luz. Quantas vezes você sentiu essa paz em
sua vida?
Poucas!
Mas isso não significava que Adriano estava com a razão. E os sacrifícios? Bem,
segundo ele, não significava autopunição. Como classificava a minha vida.
-
E se está em paz com Deus, por que então o medo de encarar as pessoas? –
Insistia Adriano. – Não acha que tem feito o que é certo?
-
Mas as pessoas não sabem disso.
-
Elas só sabem da vida delas, cada uma. Assim como você só sabe da sua vida. Não
adianta divulgar. Tudo pode ser mentira. E se for, qual o sentido?
-
Não é assim tão fácil, Adriano!
-
Eu sei que não. Mas também não é impossível. O que você acha que Deus quer de
você realmente? Ou seja, qual o sentido de sua vida?
-
Que eu faça o bem, que eu ame.
-
Tem feito o bem a você? Você tem se amado?
Definitivamente
não!
“Amai
a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo.”
Acho
que esqueci de viver a segunda parte deste mandamento. De certa forma, Adriano
tinha razão sim.
-
Se não cuida de você mesma, que referência tem para cuidar de alguém? –
Insistia ainda ele. – Vive as regras como se elas tivesses vida própria!
-
Claro!
-
Você acredita em Cristo?
-
Que pergunta....
-
Pois então. Cristo veio e questionou muito das regras existentes, chegando a
sua morte. As regras são criadas por nós dentro de um tempo histórico, de uma
necessidade cultural.
-
Não somente as regras, mas a fé.
-
A fé desprovida de amor, é morta.
-
Mas eu amo.
-
Olhe o que tem feito com você, com a sua vida. E repita isso mil vezes para ver
se consegue realmente acreditar.
Sempre
amei. Talvez os outros em primeiro lugar. Mas amei sim!
E
por conta desse amor, preocupava-me tanto com Alceu e seu destino.
Alceu
fora preso em meados de setembro de 2011, e quatro dias depois, fora
transferido da delegacia, da qual Ricardo Rosendo era responsável, para um
presídio em Itaitinga. Lá passara a conviver com todo tipo de bandido. Isso me
tirava o sono e a tão sonhada paz de espírito de que Adriano tanto falava.
Decidimos, os meninos e eu, que somente Nando se faria presente nos dias de
visita ao pai. Não seria bom para mim, nem muito menos para o próprio Alceu a
minha presença lá, por estar ainda tomado de revolta. Sentia-se ele abandonado
pela família. Por isso, seu comportamento alternava em agressividade, choro e
lamentação.
A
mim, cabia apenas rezar e procurar não saber nada mais a respeito. A culpa
dominava ainda meu universo, e parecia se multiplicar, ao ver meu filho
chegando do dia de visitas, tristonho, trancando-se no quarto diversas vezes
para chorar. Apesar de tudo, era seu pai.
CAPÍTULO 13
Outras
grandes preocupações tiraram-me o peso da culpa pela quebra de minha promessa
na prisão de Alceu. Alexandre, o filho de Olívia acabara em como por overdose
de cocaína, reaproximando finalmente Adriano Cordeiro de sua filha. Momentos de
dor, muitas vezes, aniquilam a distância de nossos corações e nos faz mais
próximos de Deus.
Quando Adriano chegou à sala de espera
da clínica para a qual o jovem fora levado às pressas, quase sem vida,
aproximou-se de Olívia ainda com receio. Afinal, foram tantos anos de mágoas e
desprezo. Ele a tocou delicadamente, como sonhara tantas vezes e chorou por
todos os anos em que estiveram separados. E ela, simplesmente se deixou
abraçar, sentir o afeto do pai, a segurança tão desejada quando descobrira
estar grávida. Expulsara-a de casa num rompante, arrependendo-se minutos
depois. Era coisa de impulso apenas, num contexto de conflito em que não
sabemos o que dizemos e depois podemos nos arrepender por toda a vida. E assim
o foi!
A outra presença marcante naquele dia
ali na clínica foi a do delegado Ricardo Rosendo. Há mais de um ano vinha, sem
êxito, tentando uma reaproximação de Olívia. Fora embora de Fortaleza na
juventude, sem saber que deixava a namorada grávida. E agora descobria ter um
filho com mais de vinte anos. Por mais que ela não aceitasse aquela
proximidade, a situação fugia totalmente de seu controle. Ricardo estava
disposto a reconquistá-la e lutar para assumir o filho. Uma jornada que não
seria fácil.
Pelo menos tudo estava se encaminhando
na família de Adriano. Agora restava somente esperar pela recuperação de
Alexandre, e iniciar a segunda parte da batalha, sua desintoxicação e
tratamento contra o vício.
Presenciar aquele momento de reencontro
e reestruturação familiar fazia-me recordar os destroços em que se encontrava a
minha família. Alceu na cadeia; Ronie perdido de si mesmo, numa vida de
acompanhante de luxo de mulheres solitárias, depois de perder as mordomias
proporcionadas pela relação com Maria Eugênia Gondim, após o escândalo na festa
de aniversário de Celina; Sem falar em minha sobrinha Tony, que após ser
desmascarada por Júlia no episódio de estreia de sua companhia de dança, tenta
roubar o cofre de Olívia Cordeiro na boate e acaba sendo presa em flagrante. Não
fosse por Guel Serrado pagar-lhe um advogado e conseguir sua soltura, teria
sido transferida para o presídio. Os anos de cumplicidade com aquele gigolô
afinal lhe deram algum proveito. A lição, no entanto, de nada adiantou.
Permanecia com a mesma empáfia, movida pelos mesmos desejos que a fizeram
começar aquela história. Mas pelo menos voltara a morar comigo, mesmo que
provisoriamente, como fazia questão de afirmar.
Minha paz fora ainda abalada ao saber do
envolvimento de meu filho Nando com a neta do grande empresário Leonardo
Gondim. Transformando a conturbada relação de conflitos ideológicos de
professor e aluna na faculdade, numa grande paixão, fazendo-os assumi-la e
optarem por ficar juntos. Nunca acreditei no sucesso de um relacionamento com
universos tão diferentes, a exemplo de Júlia Serrado e o próprio avô da jovem.
De tudo, a maior preocupação veio
realmente com Holanda e seu envolvimento com Marina Pessoa. Resultando numa
visita inesperada.
Numa
tarde daquele início de dezembro de 2011, abri minha porta e ele estava ali.
Haviam se passado quantos anos? Quase quarenta anos? Não sei bem. Era melhor
nem contar.
-
Posso entrar?
Quase
não tive voz para responder.
-
Sim. Claro, entre.
-
O que eu tenho para falar é rápido.
Como
poderia ser rápido depois de tantos anos? Fazia muito tempo que não o via assim
tão de perto. Diversas vezes me escondia para vê-lo, estar por perto, mesmo que
não quisesse. Mas bem diante dele, poder sentir seu cheiro, não.
-
Aceita um café?
Ele
pensou em aceitar. Sentia saudade de meu café. E o gosto até lhe veio à boca.
Mas não poderia aceitar. Sua vingança era a indiferença, a distância, o
silêncio.
-
Não, obrigado. Não tenho tempo para isso.
Transformara-se
num homem lindo. Os traços de maturidade lhe caíram muito bem. Orgulhava-me
sempre que o via nos jornais, na televisão ou colunas sociais. Minha promessa
tinha valido a pena!
-
Quer sentar?
-
Não. – Respondeu com a rispidez de sempre, desde a época do orfanato.
Eu
estava nervosa, sem saber por que ele estava ali em minha casa. Mas ao mesmo
tempo feliz de revê-lo.
-
Donato, eu...
-
Minha presença aqui não é uma visita cordial. – Nem me deixou concluir. – Eu
estou aqui por conta de seu filho.
Holanda.
Só podia ser. Aquela história dele com Marina não daria certo.
-
É de seu conhecimento a amizade dele com minha mulher? – Fiquei sem saber o que
dizer. – Também não importa. – Continuou. – Vim aqui para lhe dar um recado.
Veja uma forma de afastar seu filhinho de minha mulher o mais rápido possível.
Eu não sei o que eu faço se eles continuarem essa amizade.
-
Donato, eles são apenas amigos.
-
Nós dois sabemos que não. Como pode ser tão covarde? Sempre se escondendo da
verdade! – Ele tinha toda razão. – Você não cansa de ser falsa, mentirosa?
Não
pude mais conter o choro que me entalava.
-
Eu nunca fui falsa com você.
-
Mentira! Sua vida é uma grande mentira. Sua vida é uma grande fantasia. Sempre
com uma capa de boazinha, ajudando todo mundo, mas com medo da verdade, para
não ficar mal diante das pessoas. Cadê o maridinho? Ainda continua te batendo?
É o que você merece, sabia?
Tanto
ódio! Doía-me na alma.
-
Você não sabe o que eu passei por você.
-
Por mim? – Deu uma grande gargalhada. – Que piada é essa? Vai concorrer a algum
prêmio num programa de televisão? Avise-me em qual canal será. Se for em algum
programa da minha rede de televisão, estará censurado. As pessoas não merecem
tanta mentira, tanta falsidade, tanta palhaçada.
-
O que é mentira para você? – Finalmente tive coragem de perguntar.
-
Mentira? – Encheu os olhos de lágrimas. – Mentira é dizer para um garoto que
ele vai ter que ficar num orfanato, longe de sua família porque é o melhor para
ele! – Uma dor consumia-o na alma. – Mentira é visitar esse mesmo garotinho uma
vez por mês dizendo que um dia vai tirá-lo dali! Mentira é abraçar esse menino
inocente, dizendo que ele está sozinho, abandonado, sendo agredido pelos
“amiguinho” maiores, porque assim ele vai ser mais feliz! Mentira é negar amor
a uma criança dizendo a ela que será por pouco tempo e deixá-la lá, trancada,
por anos a fio! Mentira é dizer que ama e proteger seu casamento, seus filhos,
sem se preocupar com a dor causada ao irmão! – Já tinha o rosto banhado em
lágrimas. Experimentava a mesma dor presente em sua vida inteira. A dor do
abandono. – Isso é mentira! Você conhece essa história, dona Clarinda de
Holanda?
Eu
podia sentir a sua dor e aquilo me fazia muito mal.
-
Eu não tive culpa.
-
Quem teve então? Ah, espere aí. Acho que a culpa era minha. Um pobre menino
abandonado na porta de sua mãe, um estorvo para você depois da morte de seus
pais.
-
Isso não é verdade! – Gritei, como se tentasse me libertar de uma prisão de
anos. Da culpa que me acompanhava a vida inteira. – Você nunca me foi um
estorvo. Sempre te amei.
Sim,
Donato fora deixado ainda bebê por sua mãe biológica na porta de nossa casa,
quando eu era mocinha. Meus pais o assumiram como filho antes de morrerem,
deixando-o comigo, então já casada com Alceu. Este, por sua vez, não admitia
sua presença em nossa casa, forçando-me a colocá-lo num orfanato.
-
Mentira!
-
Verdade. Acredite, Donato. Sofri muito por ter que lhe colocar naquele
orfanato. Mas foi preciso. O Alceu ia te matar se não o fizesse.
-
Você nunca fez nada. Ele me batia diariamente.
-
Eu não podia, meu querido!
-
Não me chama assim! – Gritou. – Você não tem o direito de me chamar assim. Você
não sabe o quanto eu sofri cada vez que aquele porco encostava a mão em mim e
você ficava somente olhando.
-
Eu não podia ir contra o Alceu. Você não entende?
-
Ele me odiava e você também.
-
Não, eu não te odiava, não! Queria te proteger, mas não sabia como.
-
Um dia, uma vizinha te disse para denunciar, para dizer à polícia o que ele
fazia comigo e com você. Lembra do que você falou?
-
Não.
-
Pois eu lembro. Você disse que ele era seu marido.
-
Eu tinha medo dele.
-
Eu também. A diferença era que eu tinha apenas oito anos. Sabe o que mais ele
fazia comigo? – Eu não queria ouvir! – - Ele pedia para eu colocar a mão no
bolso dele e ficar acarinhando o “presente”.
-
Pare com isso, Donato. Eu não quero ouvir! Coloquei as mãos nos ouvidos, como
que para não sentir tanta dor. Mas não pude deixar de escutar.
-
Um dia ele disse que o “presente” seria meu. Tirou o pau para fora, duro, e me
fez pegar. – Sentou-se finalmente no sofá, colocando as mãos na cabeça. Chegava
a soluçar. – Depois, forçou-me a chupar. Ele gozou na minha boca e me fez
engolir todo aquele nojo. Eu vomitei e ele me bateu, me bateu, me bateu tanto.
Esfregou meu rosto no vômito. – Ergueu-se, respirando fundo. – Sabe quantas
vezes aquilo aconteceu?
Aquela
era a vingança de Donato contra mim. Tive vontade de morrer.
-
Nãããããão! – Gritei aos prantos. – Pare cm isso, por favor! – Não tinha como
continuar ouvindo.
-
Eu mesmo não sei quantas vezes foram. – Respondeu ele mesmo. – Diversas vezes.
Dezenas de vezes. Umas cem, ou duzentas?
-
Pare com isso!
-
É ruim? Pois era eu que tinha o pau dele na minha boca diariamente. E o que
você fez? Me jogou num orfanato e ia me visitar uma vez por mês.
-
Foi a forma que eu encontrei de te salvar dele.
-
Haviam outros caminhos.
-
Mas eu não conhecia.
-
Conhecia sim. A sua covardia não permitia que você os trilhasse.
-
Eu pensava que era o certo.
-
O certo era você ter me amado.
-
Eu te amei.
-
Da forma errada. O que ficou foi o abandono, a negligência, a falta de amor.
-
Isso não é verdade.
-
Para mim sim.
-
Sabe por que eu continuei com o Alceu todos esses anos, depois daquilo?
-
Não me interessa.
-
Mas eu vou te falar assim mesmo. Eu fiz uma promessa. Pedi que Deus te
protegesse, encontrasse um caminho de luz para você, pessoas que te recebessem
como uma família, que te dessem oportunidade, a possibilidade de crescer, de
ser um homem de bem. Pedi que Ele cuidasse para que você tivesse toda a dignidade
que a vida havia te roubado em menino. E para isso acontecer, eu permaneceria
casada com Alceu, suportando as surras, a prisão que foi minha vida inteira.
Por você eu levei uma vida de miséria existencial. Por você abri mão de minha
felicidade, de estar na presença de meus filhos, de ser uma mulher feliz. Tudo
para que você tivesse a vida que tem hoje, Donato. E Ele me atendeu.
-
Agora você quer que eu acredite que foi a sua fé que fez de mim o Donato Pessoa
que sou hoje, é isso?
-
Você pode até não acreditar. Não importa. Eu acredito por nós dois.
-
Você é uma louca. Você é pior do que eu pensava!
-
Talvez eu seja realmente.
-
Não foi por mim que você fez isso. Foi por você mesma, pela culpa que sentia
por meu abandono.
-
Foi por amor.
-
Errado! Foi por culpa e medo. Para você seria mais fácil cumprir essa promessa,
mesmo diante de todo sofrimento, que carregar a culpa de não fazer a vontade de
seu pai. Foram esses os seus ensinamentos. Essa foi uma falsa promessa, dona
Clarinda. Você também enganou seu Deus.
-
Isso é loucura.
-
Sua. O que eu consegui, não devo nada a você, nem a seu Deus. Devo tudo ao meu
próprio esforço, ao meu suor, à minha inteligência. Só devo a mim, a mais
ninguém.
-
Me perdoe!
-
De jeito nenhum. Você vai morrer com essa culpa. Seca de tanta culpa! – Donato
direcionou-se á porta, parou, voltou-se ainda a mim e completou. – Afaste seu
filho da minha mulher. Caso contrário eu faço com ele pior do que o Alceu fez
comigo. Você entendeu, não é?
Saiu,
batendo a porta, como se fechasse qualquer possibilidade de uma reaproximação.
Meu
irmão!
Foi
aquela dor que me acompanhou a vida inteira.
CAPÍTULO 14
Eu, Clarinda
Pessoa de Holanda, afastei-me de Donato, de meus filhos, de Adriano. Tudo por
conta do que considerava ser o certo. O que era o certo afinal? Continuar num
casamento mentiroso, tendo como marido um presidiário, o qual nunca fui
visitar, por exemplo? Isso seria o certo, o que Deus queria de mim?
Passei
aqueles últimos meses sofrendo por Alceu, por não conseguir cumprir minha
promessa. A falsa promessa de que Donato falara. Falsa? Seria realmente falsa
aquela promessa? E se ele estivesse com razão? E se eu apenas arranjei uma
forma de me sentir menos culpada e continuar cumprindo o formato de vida no
qual fui ensinada? E para quê? Para não me sentir culpada, nem por Donato, nem
pelo fim de uma escolha de meu pai, que era para a vida toda, aos olhos de
Deus, a meu ver.
Perto
do natal recebemos a notícia.
Havia
sido espalhado um boato no presídio que Alceu era um estuprador, autor de
vários crimes de pedofilia e agressões a crianças. Meu marido foi encontrado
agonizando em sua sela, muito machucado, o pênis arrancado e o anus entupido com
pedaços de cabo de vassoura.
Uma
dor profunda tomou-me a alma.
Alceu
e eu fomos grandes amigos antes de ele ter me violentado. Era um homem alegre,
diferente, irreverente. Uma pessoa que se escondeu por trás da violência, com
medo de se mostrar e não ser aceito. Seria então aceito a força!
Doeu-me
ver Holanda aos prantos, sentado em nossa sala, abraçado aos outros irmãos,
lamentando a distância do pai, a falta de seu amor. Um amor que eu um dia
conheci.
Dali
a algumas horas, trancada em meu quarto, enfrentei o medo e abri a carta
encontrada nas coisas de Alceu, escrita a mim.
Itaitinga, 20 de
dezembro de 2011
Clarinda,
Só
agora tive coragem de lhe escrever. Na verdade passei os últimos três meses
esperando que não fosse preciso, que um dia o carcereiro viesse me chamar, e na
sala do diretor, eu visse seu rosto, com medo, talvez, como de costume, mas
cheia de certeza de estar fazendo a coisa certa. Esperei que tivesse compaixão,
a mesma compaixão que não tive por você.
Mas
hoje percebo que somente agora vocês experimentaram essa compaixão. Eu
precisava estar aqui para perceber o que fiz de minha vida.
Sinto
saudade das flores que não te dei, do carinho que te neguei, das brincadeiras
das crianças que não curti, do sorriso de vocês ao me ver entrar em casa que
nunca vi. Sinto saudade dos amigos que perdi, das conversas gostosas que deixei
de ter, de uma vida alegre que me privei. Sinto saudade dos lugares que não
conheci, da maturidade que deveria hoje ter. Sinto saudade de mim, de bem com a
vida, alegre, curtindo os amigos, tomando um simples chope para comemorar
qualquer coisa que fosse, mas de forma saudável, com uma turma gostosa, de
pessoas como eu, como você. Sinto saudade dos meus filhos, lindos. Sinto saudade
do Nando e sua inteligência, seu cuidado amoroso mesmo com um pai como eu.
Sinto saudade do Francisco que desde menino quis ser chamado Holanda, meu
sobrenome, talvez querendo estar mais perto de mim. Sinto saudade do Ronie e
sua liberdade, sua graciosidade com as mulheres. Sinto muita saudade dos meus
filhos! Sinto saudade de você me olhando com alegria e muita amizade, com
vontade de estar junto de mim, como amigo sim, mas com vontade de estar junto.
Sinto
saudade de Deus em mim, por abandono meu!
Cada
dia que nasce aqui dentro, lembro-me dos anos que perdi.
Minha
vida parou desde aquele dia em que lhe machuquei e roubei de você a sua
verdade. Passei todos esses anos me culpando e querendo me punir em você, por
pura covardia. Eu sabia que a cada vez que eu lhe machucasse me sentiria ainda
pior. E assim o fiz. Cumprindo minha própria penitência em todas às vezes nas
quais encostei em você, ano após ano. Uma bola de neve, como um vício. Acumulei
em mim a amargura, a culpa, o desamor, a descrença, o ódio de mim mesmo sempre
que lhe tocava. Era como se quisesse morrer, e um dia, bêbado de tanto ódio por
mim mesmo, eu chegaria lá. Cheguei!
Agora,
em alguns instantes, consigo sentir a presença de Deus, como neste momento. É
como se tivesse estado cego e voltasse a enxergar. Mas o demônio em mim é ainda
muito forte. A cada dia que passo aqui dentro, alimento ainda mais o ódio por
mim mesmo. E assim, a certeza que nunca mais nos veremos. Mas isso dói.
Sinto
uma dor profunda cravada em meu coração!
Liberte-se
da culpa, ela nos faz mal, nos entorpece, nos faz sentir grandes, brincar de
Deus e nos cega diante do que Ele verdadeiramente quer para nós.
Veja
o que fiz de minha vida.
Ah,
sinto saudade de seu rosto e das crianças!
Com
todo o amor que eu deixei de sentir nos últimos quarenta anos.
Alceu de Holanda
Nada
mais tinha a fazer. Apenas Alceu sabia daquelas histórias sobre sua vida.
Bastou espalhar o boato e pronto, punha um fim em seu sofrimento.
Preferi
não ir ao enterro. Queria alimentar então a imagem que tinha dele em minha
memória, anos antes de nosso casamento. A imagem de uma pessoa boa, amiga. A
imagem com a qual ele morrera certamente em sua mente.
Alceu
e eu nos falamos ainda em sonhos. Mas é ele jovem, sorrindo para mim,
dizendo-me para seguir.
O
que fiz de minha vida?
~
Após
me maquiar e colocar a melhor roupa, olhei no espelho e vi a imagem de uma
mulher ainda bonita, cheia de vida. Voltei-me a Nossa Senhora ali do lado, em
meu altar, e agradeci. Atendi a campainha momentos depois, e Adriano estava a
minha espera.
-
Aceita um convite a um passeio? – Disse-me sorridente, com a mão estendida em
minha direção. A ponte para a liberdade de uma prisão construída por mim mesma
durante toda a minha vida. Pela primeira vez consegui sentir-me em paz numa
decisão, sem peso e nem culpa.
-
Passeio? – Sorri e levei minha mão à sua, livre.
Deus
me dava uma nova chance!
Clarinda de Holanda
Fortaleza, 10 de fevereiro de 2012, 22h41.