Continuação
53
Diogo estacionou o carro numa
rua esburacada da periferia de Maracanaú, quando pareceu ver alguém que ele
conhecia.
— Meu Deus, é ele! — disse,
sem explicar direito a Laura, do seu lado. Simplesmente desceu do carro no
impulso e foi atrás da tal pessoa.
— De quem está falando? Diogo!
— procurou saber, sem compreender o que estava acontecendo.
— LUCAS! LUCAS! — Diogo gritou
por um rapaz, que passava de bicicleta.
Laura constatou que o jovem
tinha a mesma estatura e condição física de Lucas. Aquela agonia de não saber
por onde o sobrinho andava já durava quinze dias. Diariamente, ela e Diogo
falavam com Cândida, em busca de notícias e sempre encerravam a ligação mais
preocupados do que estavam.
Saltou também do veículo,
enquanto Diogo já o estava abordando. Contudo, tratava-se apenas de um rapaz da
comunidade que lembrava vagamente o sobrinho.
— Desculpa! — Diogo pediu,
visivelmente decepcionado.
— Pensou que era ele, não é?
— Por um instante, pensei ter
encontrado meu sobrinho.
— Parecia realmente.
Os dois voltaram e encostaram-se
no automóvel.
— Às vezes tento visualizá-lo,
mas é como se ele não quisesse ser encontrado. — partilhou Diogo, num tom de
lamentação. — Algumas imagens começam a se formar na minha frente e logo
desaparecem. A impressão que eu tenho é que ele criou uma espécie de campo de
força para não ser encontrado.
— E por que ele faria isso?
— A gente não sabe como foi
para ele receber a notícia da morte do Edgar. O Lucas amava muito aquele pai.
Além do mais, a Cândida confidenciou-me que naquele dia ele ficou sabendo da
verdade sobre sua paternidade da pior forma. O próprio Edgar contou a ele num
surto de raiva, entende?
— Coitado! Ninguém pode
imaginar como estava a cabeça dele. — comentou Laura.
— Em alguns momentos sinto uma
angústia, que eu tenho certeza que não é minha. É dele, do Lucas, sabe? É a
única forma de conexão que eu consigo estabelecer com ele.
— E como é isso?
— Sinto como se vagasse
perdido, sem rumo, estando em muitos lugares diferentes e ao mesmo tempo em
lugar algum. — o olhar de Diogo estava perdido, como se naquele instante ele
conseguisse sentir exatamente o que descrevia. — Não enxergo formas, apenas
sensações. É como se ele conhecesse bem o lugar onde está e ali experimentasse
a proteção.
— Proteção de quê?
— Da vida que deixou para
trás.
— E como sabe que realmente se
trata do Lucas?
— Vem muito fortemente
sentimentos em relação ao Edgar, Cândida, Salomão, enfim. Mas sentimentos que
não são meus. Consigo sentir exatamente o que ele sente.
— Uma outra vertente do seu dom?
Diogo fez que sim com a
cabeça.
— Empatia profunda.
— Você não havia me contado
sobre isso.
— Quando não verbalizamos é
como se não existisse. Quando isso acontece, é uma mistura de muitos
sentimentos, meus e dos outros. A impressão que tenho é que não vou suportar.
Não é bom, acredite.
Só de pensar em sentir tudo o
que as outras pessoas sentiam, causava-lhe angústia. Laura compreendia porque
tanta resistência de Diogo em aceitar o próprio dom. Muitas vezes acabava
atormentado pela simples responsabilidade de tê-lo, bem como pelas
consequências enfrentadas, a exemplo da overdose de sentimentos não-seus pelo
dom da empatia.
— Acredito que logo vai
conseguir quebrar essa barreira e descobrir onde o Lucas está.
— Vou continuar tentando! — afirmou
ele. Em seguida, Diogo se antecipou até a casa em frente.
Precisavam permanecer no foco.
Haviam descoberto, através de um missionário do Chiamare, o endereço de Vera,
irmã da prostituta encontrada morta na cama de Thomás, há doze anos. Estavam
ali pra encontrá-la. Eles bateram palma e um adolescente os recebeu, dizendo
que a mãe não se encontrava. Diogo, no entanto, pareceu visualizá-la dentro de
casa e concentrou-se para que ela viesse ao seu encontro. Para a surpresa de
Laura, em alguns instantes a mulher apareceu por trás do menino. Inicialmente,
tratou-os de modo hostil ao reconhecer Diogo ou confundi-lo com os irmãos. Porém
tão logo este concentrou-se nela, a mesma os convidou a entrar, ofereceu-lhes
um café e contou-lhes tudo o que sabia.
Laura e Diogo se entreolhavam
a cada revelação, partilhando do mesmo espanto. Segundo Vera, a irmã tinha sim
um caso com alguém de grande posto dentro da comunidade, embora não soubesse
quem. Dias antes de sua morte, Eliane dizia estar sendo ameaçada de morte.
O que realmente deixou Laura
de cabelo em pé foi a última revelação da mulher. Ela afirmou que no dia do
crime, Eliane ligou para ela contando que um padre italiano estava lá naquela
noite e acabaria com seu sonho.
Pe. Giuseppe Giordano, só pode
ser!
Ao ser indagada do porquê de
não ter contado à polícia, Vera disse que tivera medo, bem como havia recebido
um bom dinheiro para permanecer em silêncio.
A missão ali estava concluída.
Os dois agradeceram e voltaram para o carro.
Trabalhar com Diogo era
perfeito! Ele conseguia todos os furos jamais alcançados por um jornalista.
— Pensou na mesma pessoa que
eu? — Laura procurou saber, atracando o cinto.
— Pe. Giuseppe? — confirmou,
dando a partida no motor. — Com certeza. Ele dormiu naquela noite na
comunidade, foi uma das testemunhas de acusação.
— Acha que pode ter sido ele?
— Acho que tudo é possível. — respondeu,
voltado para trás, em marcha ré.
— Bom, tendo sido ou não, Pe.
Giuseppe tem muito a nos explicar. — arrematou ela.
54
Saulo despertou com o ranger
do portão do velho galpão. Certamente uns dos capangas de Thomás para deixar o
café com pão seco de todas as manhãs. No entanto, o som provocado pelo caminhar
da pessoa, chegava-lhe aos ouvidos, diferente do habitual. Parecia saltos
femininos. Quando ergueu a cabeça, teve a visão de Guilhermina à sua frente.
— Saulo? — disse ela
assustada, olhando para todos os lados, como se se certificasse que ninguém a
via. Em seguida, antecipou-se a ele, tocando-lhe o rosto. — Meu Deus, como você
está?
Experimentou uma raiva descomunal
da mulher que estivera ao seu lado nos últimos anos. Já haviam se passado duas
semanas desde o sequestro e ela nada fizera para ajudá-lo. Sentia-se traído.
— O que quer? Veio ver com
seus próprios olhos que sou prisioneiro dele?
— Não sabe como venho sofrendo
nessas últimas semanas.
— Mentira! — procurou afastar-se
dela. — Vocês estão juntos.
— Não, não! Isso não é
verdade! O Thomás me tem em suas mãos.
— Por causa dos dez milhões
roubados? Você é uma cretina!
Ela deu as costas, talvez
fingindo vergonha, pensou ele.
— Então você já sabe?
— O Thomás me contou.
— CANALHA! — desabafou ela num
grito.
— Passou todos esses anos me
roubando, roubando a comunidade! Guilhermina, você era a minha pessoa de
confiança.
— Fiz isso por nós dois! — afirmou
ela, voltando para junto dele.
Falsa!
— NÃO ENCOSTA EM MIM! — Saulo
gritou, afastando-se o quanto pôde.
Ela parecia surpresa.
— Sempre fiz tudo por você! — insistiu
ela.
— Por mim? Nunca vi tamanho
cinismo!
— Esse dinheiro era para nos
resguardar. Nunca senti segurança com o Dr. Juca na presidência do conselho.
Por isso o desviei, entende?
— Não, não entendo! Roubou
esse dinheiro em segredo...
— Você não concordaria!
— Claro que não!
— Então. Por esse motivo não
contei.
— Vai querer me convencer que
fez certo?
— Tudo o que fiz até hoje vai
para te proteger, você não entende?
— Você me traiu.
— Isso não é verdade! Eu nunca
o trairia! — aproximou-se mais. Saulo não tinha como escapar, por causa das
correntes. — Saulo, eu te amo! Sempre te amei! E sempre vou te amar!
Ele virou o rosto.
— Nós já falamos sobre isso. —
relembrou-a.
— E a jornalista? Pensa que
não sei? Está apaixonado por ela.
— Você está louca!
— Não me engana, Saulo.
Observava como a olhava, o jeito como a tratava. Depois as fotos dela no seu
celular. Coisa de paixão recolhida. Uma mulher sabe quando um homem está
apaixonado, principalmente se não for por ela.
— E se eu estivesse?
— Isso sim seria traição.
— Dediquei a minha vida a
você.
— Nunca te prometi nada. Além
do mais você melhor que ninguém sabe que existem os votos. Mesmo que fosse
verdade, que estivesse realmente apaixonado por Laura, nunca aconteceria nada.
O Chiamare está sempre em primeiro lugar.
— Ainda assim foi doloroso
quando me dei conta dos seus sentimentos por ela. — Guilhermina caminhou de um
lado para o outro. — Por que não eu? Não sou uma mulher atraente, interessante?
Não tenho nada que possa fazer com você se apaixone por mim?
— Sempre foi uma grande amiga.
— DANE-SE AMIZADE! — voltou-se
a ele, ajoelhando-se em sua frente. — Eu o amo, como nunca amei ninguém! É por
isso que estou há tantos anos do seu lado, esperando por alguma migalha de
afeto que possa respingar em mim. Saulo, eu fiquei casta junto com você. Para
mim não importa ser tocada por nenhum outro homem!
Guilhermina levou a mão de
Saulo ao rosto dela, como se procurasse sentir aquele afeto de que falara. Ele
sentiu pena daquela mulher. Jamais conseguiria retribuir o sentimento
partilhado. O voto de castidade, a comunidade eram mais importantes que
qualquer coisa.
— Sou fiel a Deus, aos
princípios, você sabe. — explicou Saulo.
— E eu a você!
— Nunca me falaria desse
dinheiro.
— Quando fosse necessário. O
silêncio era também uma forma de te proteger.
— Tire-me daqui!
— Você me perdoa?
Por mais que não devesse, acreditava
nela. Guilhermina sempre fora leal e podia contar com seu apoio incondicional
em qualquer situação. Embora estivesse com raiva, não era justo desconsiderar
tudo o que já fizera por ele. Se estava ali, correndo o risco de ser descoberta
por Thomás, provava mais uma vez a lealdade cega, capaz de qualquer coisa para
vê-lo feliz. Sim, talvez estivesse certa também em relação ao dinheiro. Além do
mais, Guilhermina era a única pessoa naquele momento que podia ajudá-lo a sair
dali.
— Acredito em você, não tem o
que ser perdoado. — afirmou Saulo.
Guilhermina o abraçou e
encheu-o de beijos.
— Agora tire-me daqui. — exigiu.
— Calma. Preciso pensar num
plano.
— Plano nada. Tire-me daqui!
— O sítio está cercado de
capangas. Eles pensam que eu vim por ordem do Thomás. Não pode ser assim. Não
se preocupe, vou pensar numa forma de te tirar daqui o mais rápido possível.
Nesse momento eles ouviram
palmas. Em seguida a figura de Thomás surgindo do fundo escuro do galpão,
sorridente por flagrá-los.
— Que bonito, a cena ética dos
dois bandidos. — ironizou.
— Thomás? — surpreendeu-se
Guilhermina.
— Pensaram realmente que iam
me enganar? — Thomás os provocou.
Saulo sentiu tanto ódio
daquele psicopata. Se pudesse seria capaz de matá-lo com as próprias mãos. Como
alguém podia mudar tanto? Inacreditável que o fundador de uma obra como o
Chiamare, que já havia feito tanto bem às pessoas tivesse se transformado num
demônio! Loucura, a única explicação! O fato é que não estava mais diante do
irmão que conhecera no passado, mas de um homem desprovido de qualquer afeto ou
temor a Deus.
— Seus dias de glória estão
contados, seu desgraçado! — Saulo anunciou. Não podia demonstrar fraqueza.
— E o que vão fazer? Matar-me
como fizeram com a Eliane e puseram a culpa em mim? Os dias de mentiras de
vocês é que estão contados. Laura e Diogo começaram a investigar o passado. Em
breve todos saberão quem é Saulo Sobreira.
Saulo e Guilhermina
entreolharam-se.
— O que vai fazer, criar
provas contra mim? — perguntou Saulo.
— Como fez comigo? — arrematou
Thomás.
— Você é pior do que eu
pensava! — Saulo desabafou.
— Não pior do que você, meu
irmão, acredite. — respondeu. — Vamos, Guilhermina, não temos mais nada a fazer
aqui. — Segurou-a pelo braço e a conduziu à saída.
— Ai, está me machucando! — Guilhermina
reclamou.
— SOLTA ELA, SEU DESGRAÇADO!
VOLTA AQUI! — gritou, sem sucesso.
Precisava sair daquele lugar
antes que fosse tarde demais. Aquele louco estava disposto a acabar com ele e a
imagem construída em todos aqueles anos. Já tinha um plano em mente e era hora
de executá-lo.
Não! Ele não destruiria tão
fácil o Pescador de Vidas.
55
Cândida terminou de rezar o
terço e continuou olhando fixamente o ícone da Santíssima Trindade na parede
frontal da capela principal da comunidade. Pedia incansavelmente que Deus a
perdoasse e trouxesse seu filho de volta. Procurava, sem êxito, não imaginar
por onde e como ele estaria naquele momento, se com fome ou sede, se em algum
lugar seguro. O que poderia ter acontecido a Lucas? Uma angústia injusta a uma
mãe! Daria a própria vida para vê-lo em segurança.
Pensou no filho em cada
segundo daquelas últimas duas semanas e não sabia mais dormir sem a ajuda de
remédios. O coração saltava a cada mensagem ou ligação recebida, na esperança
de receber alguma notícia. Porém era como Diogo afirmava, Lucas não queria ser
encontrado e aquilo a matava aos poucos, por culpa de tudo o que havia
acontecido. Se não tivesse sido fraca, entregando-se à paixão, talvez tivesse
evitado a tragédia que tirou a vida de Edgar e jogou seu filho no mundo.
Sim, era a única culpada por
tudo!
Perdão,
Senhor! Perdão!
— Cândida? — A voz grave veio
do banco de trás.
— Dr. Juca?
— Acabei de vir da delegacia.
Ela se encheu de esperanças
mais uma vez.
— Nada ainda. — disse ele, com
pesar.
Cândida afogou o rosto nas
duas mãos em concha e chorou. O sogro saiu de onde estava e veio ao seu
encontro, acolhendo-a.
— Calma, filha. A polícia está
trabalhando duro para descobrir alguma coisa sobre o paradeiro dele.
— E se tiver acontecido algo
de grave com meu filho, Dr. Juca?
— Não se preocupe, ele está
bem.
— É tudo culpa minha!
— Não tem culpa de nada.
— Sim, tenho. O Edgar contou
toda a verdade a ele.
— Isso um dia teria que
acontecer. Nós fizemos tudo o que foi possível para que ele não descobrisse.
Cândida, você já se arrependeu há muito tempo. Deus já lhe perdoou. Agora
precisa se perdoar, minha filha.
Nem imaginava ele que
novamente caíra em tentação e havia traído Edgar justo com seu filho. Se
soubesse, certamente não a trataria daquela forma, com tanto carinho. Dr. Juca
sempre dissera que Cândida era para ele uma nova filha.
— Se acontecer algo ao Lucas,
aí sim nunca vou me perdoar!
— Nós vamos encontrá-lo, não
se preocupe. Vim aqui também porque precisava conversar com você.
O que teria Dr. Juca a falar
além do sumiço de Lucas? Cândida enxugou as lágrimas, procurou se recompor.
— É sobre Delano. — anunciou
ele.
Cândida assustou-se. Será que
ele havia descoberto sobre o romance dos dois? Mas como era possível? Se Lucas
tinha desaparecido e Edgar estava morto, só se o próprio Delano tivesse lhe
contado. Ele seria capaz, para prosseguir com a vingança e destruir a família
Rebelo.
Cafajeste!
— O que tem ele? — perguntou,
com voz trêmula.
— Cândida, Delano é meu neto.
Ele foi o que me restou do meu filho. Por isso o convidei a morar conosco.
Como se seu chão tivesse
desaparecido. Depois de tudo teria que conviver com ele de baixo do mesmo teto?
Não, impossível!
— Dr. Juca, não sabemos nada
sobre esse rapaz.
— Como não? É o melhor amigo do
Lucas, seu personal. Todos na comunidade gostaram dele. “Você” parecia gostar
dele.
— Isso antes de descobrir a
verdade. Ele se aproximou do Lucas, de nós sorrateiramente, sem revelar quem
verdadeiramente era.
— Qualquer um de nós em seu
lugar faria o mesmo. — contra-argumentou o médico. — Depois de tudo o que ele e
a mãe passaram, precisava saber onde estava pisando.
— Ele lhe disse isto?
— Cândida, sei que anda com os
nervos à flor da pele, que você e Edgar brigaram naquele dia. Mas não pode
descontar nesse rapaz.
Descontar?!
Delano queria vingança, acabar
com o pai e o fez! Mentiu, envolveu-a num jogo sujo de sedução e provocou a
morte de Edgar. O que Cândida tinha contra aquele homem era legítimo, nada
passional como Dr. Juca insinuava.
— Dr. Juca, esse rapaz não
presta!
— Cândida, está passando dos
limites. Delano vai morar conosco, assunto encerrado! — ordenou o implacável
Dr. Juca Rebelo, com toda a sua autoridade.
A menos que ela contasse a
verdade, o que de fato tinha ocorrido naquele dia, que ela e Delano tiveram um
caso e Edgar havia descoberto tudo. Além da vingança anunciada pelo próprio
rapaz ao pai. Talvez o velho turrão mudasse de ideia e revisse a decisão de
levar aquele cafajeste para dentro de casa. Seria também uma forma de
libertação, estaria definitivamente banida da família Rebelo, da comunidade, de
toda a farsa vivida naqueles últimos doze anos.
E seus filhos? E Lucas? Aquela
revelação poderia também afastá-la de tudo o que mais amava. Seria obrigada a
sair de casa justo no momento em que Lucas estava desaparecido. Correria o
risco de perder o filho para sempre. Não, jamais pagaria esse preço. Se para
permanecer com seus filhos deveria conviver também com Delano, assim o faria.
— Faça como achar melhor, Dr. Juca.
— encerrou a história e saiu pisando firme.
Suportou as mentiras de um
casamento fracassado por tantos anos. Aguentaria um pouco mais, até que Lucas
estivesse a salvo. Esse era o dever de uma mãe.
56
O homem de terno e sapatos
italianos saltou de sua caminhonete e caminhou alguns metros, até a calçada do
Banco Central, na Rua Rodrigues Júnior, quase esquina com a Av. Heráclito
Graça, onde dormia um grupo de mendigos em cima de papelões. Homens, mulheres,
crianças e jovens. Contou treze pessoas ao todo.
Não sabia se o tremor se dava
por conta do frio daquela noite, havia chovido mais cedo, ou se pela emoção de
estar de volta às ruas, onde tudo começara. A primeira vez que Thomás saía em
missão após reassumir a liderança do Chiamare. Procurou o quanto pôde evitar
todo e qualquer compromisso religioso que o cargo lhe exigia naquele primeiro
mês, até ficar impossível negar.
Em seguida, chegaram os demais
missionários que vinham em outros carros e juntaram-se a ele. Aos poucos as
pessoas foram despertando e pondo-se de pé. Logo um círculo fora constituído na
calçada e todos acompanharam, atentos, de mãos dadas, a leitura do evangelho
realizada por um dos missionários. Há muitos anos não ouvia a parábola do filho
pródigo e, na primeira parte do texto de Lucas, nada foi tocado. De repente, um
arrepio.
Depressa,
tragam a melhor túnica para vestir meu filho. E coloquem um anel no seu dedo e
sandália nos pés. Peguem o novilho gordo e o matem. Vamos fazer um banquete.
Porque este meu filho estava morto, e tornou a viver; estava perdido, e foi
encontrado.
Considerava um dos textos mais
belos do evangelho e pela primeira vez em muitos anos, encheu-se de emoção com
a palavra de Deus. Como se falasse dele, que voltara à vida, que fora
encontrado de novo! Sentindo cada uma daquelas palavras se materializarem
quando distribuíram o pão e a sopa àquele povo sedento de amor, perdido da
sociedade, à margem da dignidade humana. O sorriso, a gratidão de cada uma
daquelas pessoas por um gesto tão simples o fizeram bom novamente.
Por um instante, esqueceu
tudo. Não havia espaço para mágoas, sofrimentos, nem para a dor que se fez
companheira naqueles doze anos. Sentiu-se feliz por estar ali simplesmente e
entregar a vida àquela gente.
Sentiu-se gente!
Thomás Sobreira voltou a ser o
Pescador de Vidas.
Avistou dois outros mendigos
que dormiam na calçada do outro lado, e se antecipou a eles. Contudo, um dos
homens, ao percebê-lo se aproximar, levantou e correu. Magro, alto, parecia
jovem.
— EI, ESPERE! — levava uma
caixa de sopa numa mão e o pão na outra.
Não deu para ver o rosto do
rapaz, estava no escuro, mas tinha algo de familiar. Infelizmente, viu-o
desaparecer pela noite fria. Ao chegar do outro lado da rua, entregou a comida
ao homem que permanecia deitado em cima de um papelão.
— Por que ele correu? — procurou
saber do mendigo.
— Sei lá, moço. Deve estar com
medo. — respondeu o homem abocanhando o pão.
— Sabe como se chama?
— Não. Chegou hoje e perguntou
se podia dormir aqui. Disse o nome não.
Thomás ergueu-se e mirou o
escuro da rua para onde o rapaz havia corrido. Pensou em pegar o carro e ir
atrás dele. Não sabia porque, mas alguma coisa o movia a procurá-lo. Talvez
resgatá-lo. Era assim que funcionava com as pessoas que saiam das ruas e
passavam a fazer parte do Chiamare. Uma espécie de intuição do missionário em
relação ao outro. Na verdade, uma conexão entre ambos. A fuga repentina do
rapaz podia representar o medo por aquela empatia estabelecida no olhar. Por
isso, no passado, utilizavam-se do dom de Diogo para fazê-los se aproximar e
proporcionar-lhe uma nova vida.
Sim, aquele homem precisava de
ajuda.
Conferiu se as chaves da
caminhonete estavam no bolso e caminhou em direção ao veículo.
— Thomás?
Ouviu alguém chamá-lo pelo
nome, logo que destravou as portas do carro com o controle. Como assim Thomás?
Para todos era Saulo Sobreira.
Quando se virou, estava diante
do Dr. Juca Rebelo.
Finalmente tivera a identidade
descoberta. Como procederia agora?
— O que o senhor disse? — perguntou,
disfarçando.
— Por um instante pensei estar
diante do Thomás. — explicou o médico, com ar desconfiado.
Thomás alinhou o paletó e
ajeitou o cabelo, como Saulo fazia.
— O senhor deve estar muito
tocado pela morte do Edgar.
— Telefone para você. — disse
o homem, sorrindo de um jeito irônico e estendendo o celular em sua direção.
Para
mim?
— Tome. — insistiu Dr. Juca.
Thomás pegou o aparelho e o
colocou no ouvido. Estava mudo. Depois mirou o visor e constatou que estava
desligado.
— O senhor esta brincando
comigo?
— Desligaram o telefone? — permanecia
com o mesmo sorriso irônico.
Thomás devolveu o aparelho a
ele e travou as portas do carro de volta.
— O senhor se enganou.
— Deve ter sido.
Os dois voltaram ao grupo.
Aquele velho devia estar
louco. No entanto, precisava ter cuidado e se preparar para enfrentá-lo. Alguma
ele estava armando.
~
O mendigo caminhou firme pela
Rua Costa Barros em direção ao Centro da cidade. Havia acabado de fugir dos
missionários pescadores de vidas. Não queria ser invadido no novo mundo o qual
escolhera para viver, nem muito menos reencontrar aquelas pessoas escravizadas
pelo ego, por uma sociedade injusta e egoísta, e sua necessidade mórbida de
manutenção da mesma. Nas ruas, sentia-se livre e seguro, pela insegurança que
sua figura suja e maltrapilha gerava nos demais.
O frio nas costelas nuas, a
humidade do chão nos pés descalços e o odor de urina nos pontos de apoio já não
o incomodavam mais depois de tanto tempo, um tempo que não se fazia mais contar
e tornara-se etéreo nas conjugações verbais resistentes da vida deixada pra
trás.
Optou por ser livre de todos,
dos condicionamentos, da rejeição, do desamor. Agora se via do outro lado, num
universo perdido para muitos e achado por poucos. Vez por outra, questionava-se
acerca de sua atitude passada em invadir aquele mundo e sequestrar pessoas de
escolhas firmadas. Muitas sabiam o que queriam e tinham o direito a
permanecerem onde quisessem estar, equivocadas em seus acertos e acertadas em
seus equívocos existenciais. Escolhiam a não ter direitos, a agregarem um
conjunto de elementos marginalizados pelos seus, mas importantes para o próprio
egoísmo inóspito, contraditório, contudo, necessário.
Seguiu até o semáforo da Rua
João Cordeiro e aguardou que o mesmo abrisse. Apesar do trânsito calmo, alguns
veículos arriscavam velocidade. Em seguida, autorizado pelo verde à sua frente,
antecipou-se à faixa de pedestres, quando ouviu o cantar dos pneus. A
caminhonete não conseguiria parar a tempo, não fosse por seu dom. Tão rápido
quanto tudo aconteceu, o mendigo concentrou-se no veículo e o mesmo arrastou-se
até poucos centímetros diante dele. Podia sentir o calor do motor em seu
abdômen. Os olhos dos dois rapazes pelo pára-brisa do carro estavam
arregalados. Foi quando cruzou o olhar com o do motorista. Jamais o esqueceria!
O irmão que tanto amou e por ele fora desprezado a vida inteira. Agora o
universo se encarregava de fazê-los novamente se encontrar.
Conseguiu ler claramente nos
lábios do rapaz dentro do carro o que ele dissera.
Você?
Sim, ele também o havia
reconhecido. Por um instante, ensaiou um sorriso. Talvez depois daquele tempo
distante os dois pudessem finalmente se encontrar de verdade no amor nunca
vivido entre irmãos. Como desejou aquele encontro! O momento de exílio e
solidão poderia acabar. Seria um sinal, o convite a voltar? A possibilidade se
fazia presente diante dele e justo por quem mais o motivara a desaparecer e
deixar tudo para trás.
Os dentes brancos contrastaram
com a sujeira do rosto barbado, num sorriso reconciliador.
O motorista, por sua vez,
fez-se entender novamente em leitura labial.
Some
da minha vida, aberração!
Estava errado mais uma vez. A
vida o convidava a viver o desprendimento pleno de todos. O sorriso se fez
lágrima e ele prosseguiu, atravessando a rua. Em seguida, o carro se foi com o
seu passado a bordo.
Jesus também havia sido
tentado pelo demônio no deserto.
A saudade era sua única
companheira, em quem podia confiar, e fazia-o manter-se de pé, a lutar pela
própria sobrevivência e seguir apartado de um passado que o impulsionava para
longe.
Caminhou até o abrigo da
parada de ônibus mais próxima. Ali sentou, trouxe as pernas para junto do
corpo, a fim de se proteger do frio, e abraçou-as em posição fetal.
Provavelmente o tremor proveniente da noite fria o acompanharia por toda a
madrugada. Aquilo era tudo. Fechou os olhos, com a cabeça apoiadas nos joelhos,
e agradeceu por mais um dia, por estar vivo, por não ter sido encontrado, por
continuar pássaro livre, guiado por Deus.
A vida nas ruas o tinha
aproximado mais de Deus. Era um homem feliz.
57
Pe. Giuseppe serviu café na
louça italiana e depois entregou uma xícara a Laura e outra a Diogo. O homem se
vangloriou pelo inconfundível sabor reconhecido por todos que experimentavam
seu café. Haviam se passado duas semanas
desde que conversaram com Vera, irmã de Eliane, a prostituta encontrada morta
na cama de Thomás. Eles preferiam espera mais um pouco, a fim de descobrirem
outras pistas, antes de procurá-lo e ouvir sua versão da história. Acabaram por
saber através de alguns missionários que o mesmo era visto frequentemente ao
lado de Eliane, nos meses que antecederam sua morte.
O padre discorreu sobre alguns assuntos
corriqueiros da paróquia, até que Laura o abordou com o que verdadeiramente os
interessava.
— Pe. Giuseppe, viemos aqui
para falar com o senhor sobre o dia em o Thomás cometeu aquele crime. — anunciou
sem rodeios. Preliminares não era seu forte. Pousou a xícara vazia no pires em
cima da mesinha de centro da sala de estar e observou atenta a reação do homem
revezando o olhar surpreso entre ela e Diogo.
O padre tomou um último gole
de café e pronunciou-se. — Por que remexer no passado, meus filhos?
— Pe. Giuseppe, isso é muito
importante para mim. — justificou Diogo, desafazendo-se também de sua xícara. —
Nunca falamos sobre esse assunto, talvez por medo de enfrentar os detalhes. Agora
sinto necessidade em saber o que de fato aconteceu naquele dia.
— Ora o que aconteceu... — o
padre impacientou-se. — Não há nada a ser dito além do que todos já sabem, do
que foi arrolado no processo.
— Naquele dia o senhor estava
presente na comunidade, correto? — perguntou Laura, sem se importar com a
reação anterior do homem.
— Sim. Quer dizer, cheguei bem
cedo e flagrei seu irmão com a mulher morta em sua cama. — explicou, focando
Diogo.
— E o senhor tinha o costume
de acordá-lo? — Laura lançou outra pergunta.
O velho parecia não ter
compreendido e ela procurou ser mais clara.
— Ou melhor, o senhor costumava
ir até seu quarto de manhã logo cedo?
— Que pergunta mais sem
cabimento! — o padre desviou o olhar, nitidamente incomodado.
— Por favor, Pe. Giuseppe, é
importante. — insistiu Diogo.
— Thomás era como um filho,
como você e seu irmão. — novamente voltou-se a Diogo. — Não vejo mal algum em
acordá-lo.
Laura tinha certeza que estava
mentindo.
— Não estamos julgando sua
atitude, apenas querendo saber. — explicou.
— Vocês estão especulando. — o
velho levantou-se. — Não vejo mais porque retomar esse assunto. Tudo já passou,
Thomás está morto.
É
hora de ser mais assertiva!
— O senhor realmente chegou
naquela manhã ou dormiu no Chiamare desde a noite anterior? — foi Laura quem
perguntou.
— Que insistência, menina! — resmungou
o velho.
— Pe. Giuseppe, por favor. — Diogo
interviu mais uma vez.
— Cheguei pela manhã. Isso
está nos autos do processo. — respondeu. — Por que esse interrogatório? O que
pretendem?
Diogo foi ao encontro do
padre.
— Há algumas semanas estivemos
com Vera, irmã de Eliane. Ela nos contou que na noite do crime recebeu uma
ligação da irmã, dizendo que sentia-se ameaçada, e que um padre italiano estava
ali, podendo acabar com seu sonho. Não tenho conhecimento de nenhum outro padre
italiano na comunidade a não ser o senhor, Pe. Giuseppe.
— Essa mulher deve estar
enganada. — sugeriu ele.
— Não acredito que estivesse —
comentou Laura, aproximando-se também do padre. O mesmo estava encurralado e
visivelmente abalado com o interrogatório.
— E por que eu mentiria? — o
velho questionou.
— Usei meu dom para
convencê-la a falar. — Diogo revelou. — Diante disso, não há equívocos, o
senhor sabe melhor que ninguém.
— Já fazem muitos anos, não
lembro direito. — disse ele, passando pelos dois, como se fugisse de um
tribunal.
Laura estava certa de que
lembrava.
— Mas o que o senhor confirmou
no processo foi exatamente isso. — ela arrematou. — Isto é, o senhor mentiu
para a justiça.
— Não vejo em que isso pode
modificar o que houve naquela noite. O Thomás matou aquela mulher e pronto. Por
que mexer no que está quieto, meus filhos?
— Porque tenho motivos para
acreditar que meu irmão pagou por um crime que não cometeu. — respondeu-lhe
Diogo, deixando-o mais abalado. Pe. Giuseppe demonstrava nervosismo na voz
trêmula e nos gestos agitados.
— Isso é loucura, meu filho! A
justiça o condenou.
— Que tipo de relação o senhor
mantinha com Eliane naquela época? — disparou Diogo.
Isso,
ele está mordendo a isca.
— O senhor era visto o tempo
inteiro com ela, desde que fora resgatada das ruas. — complementou Laura.
— O que estão insinuando?
— O Thomás gritou aos quatro
cantos que nunca teve nada com ela. — Diogo explicou. — Realmente ninguém nunca
o viu ao seu lado, mas Vera afirma que a irmã tinha sim um caso com alguém
dentro da comunidade. Já o senhor estava sempre ao lado de Eliane.
— Acham que eu tinha um caso
com Eliane? Nunca fui tão desrespeitado em toda a minha vida! — Pe. Giuseppe se
alterou. — Eu o criei como a um filho, Diogo! Como ousa me ultrajar dessa
forma?
— O senhor mentiu para a
justiça. — Diogo justificou. — Estamos procurando a verdade.
— Saiam daqui já! — exigiu,
apontando à porta.
— Se não tem nada a ver com
isso, por que não nos ajuda a descobrir a verdade? — Laura questionou-o
novamente. Não queria perder a oportunidade de descobrir mais alguma coisa
naquelas falas contraditórias, o que ele pudesse deixar escapar através do não
dito. Se insistisse um pouco mais, talvez Pe. Giuseppe revelasse algo
pressionado pelo desespero do momento. Do contrário, podia lhe assustar e
motivá-lo a procurar outras saídas para continuar esconder a verdade de todos.
Melhor seria deixá-lo em paz
por enquanto.
— Saia daqui com suas
conjecturas infundadas, menina! — foi irredutível. — Vocês não tem o direito!
— Nem o senhor de mentir para
a justiça. — Diogo completou. — Nós vamos descobrir a verdade, Pe. Giuseppe,
quer o senhor queira ou não!
— SAIAM! — gritou o velho
padre.
Laura e Diogo trocaram
olhares, como que acertando o passo. Ela pegou sua bolsa e seguiu o amigo. Os
dois saíram da casa paroquial e foram para o carro, estacionado em frente, sem
nada falar. Foi Laura quem quebrou o silêncio, ao entrar no veículo.
— O que você achou?
— Ele está mentindo.
— Foi o que pensei. Se não
estivesse, não teria ficado tão abalado. Pe. Giuseppe sabe muito mais sobre
aquela noite do que contou a justiça. Acha que eles eram amantes, que foi ele
quem a matou?
— Isso nós vamos descobrir. — disse
Diogo, ligando o carro.
— Só mais uma pergunta — anunciou
Laura.
— O que é?
— Por que não usou seu dom
para fazê-lo falar a verdade?
Diogo sorriu.
— Não consigo com aqueles com
quem sou envolvido emocionalmente.
Mas
pode ler minha mente!
— Sim, leio, — afirmou ele. —
mas nunca consegui fazer o mesmo com Pe. Giuseppe. Talvez por ter sido meu
mentor espiritual, não sei explicar.
— Ok.
O importante era que estavam
muito perto. Agora investigariam as demais testemunhas do caso.
~
Pe. Giuseppe digitou uma
mensagem no celular.
Más
notícias! Laura e Diogo estão juntos, investigando a morte de Eliane. Saíram
daqui tem pouco tempo e sabem mais do que deviam. Temo o que eles possam
descobrir.
Depois, enviou.
Encontrava-se num alto nível
de tensão após a visita. Sabia que um dia aquela história poderia voltar-se
contra ele. Finalmente aquele dia havia chegado. Nem todos os segredos podiam
ser guardados para sempre. O que provocava-lhe taquicardia.
Foi até a gaveta do armário,
pegou o envelope de comprimidos para a pressão e sacou um deles, tomando-o em
seguida. Voltou à sala, juntou a louça usada há pouco e a levou para a cozinha,
quando o som de notificação do aparelho anunciou o recebimento de uma mensagem.
Como
chegaram até você? O que disse a eles?
Respondeu em sequência.
Estiveram
com Vera, a irmã de Eliane. Mantive-me firme, mas sabem que há algo errado.
Pensam que era comigo que ela mantinha o caso. Estão determinados a descobrir a
verdade. E pelo visto, acontecerá brevemente.
Enviou. Segundos depois, outra
mensagem recebida.
Sinto que está fraquejando. A vida de
muita gente está em jogo. Não pode voltar atrás!
Pe.
Giuseppe puxou o ar para os pulmões com toda a força que dispunha e respondeu.
Sei de minha responsabilidade. Mas não
acredito que podemos levar essa história adiante por muito tempo. O cerco está
se fechando.
MENSAGEM
ENVIADA
MENSAGEM
RECEBIDA
Não se preocupe, providenciarei para que
nada descubram. O passado continuará em seu devido lugar.
Tomara que não!
Surpreendeu-se
consigo mesmo torcendo para que tudo fosse descoberto. Estava farto de omitir
ou mentir por uma boa causa. Sentia-se sujo e em dívida com Deus. Até hoje não
se perdoava por não ter contado toda a verdade em juízo. E se Diogo tivesse
razão e Thomás fosse realmente inocente? Que barbárie teria cometido com seu
depoimento capenga! Fazer alguém pagar por um crime que não havia cometido. Justo
o filho de coração. Monstruosidade! Pensar naquela possibilidade foi o que de
fato mais o perturbou na conversa com Laura e Diogo, não o medo de ser flagrado
em suas contradições, como certamente eles imaginavam que fosse, mas cogitar a
ideia de ter colaborado com uma injustiça gigantesca, destruindo a vida de uma
pessoa que tanto amava.
No
passado, acreditou piamente na culpa de Thomás. Tudo levava a crer que havia
sido ele realmente o criminoso, embora houvesse outros fatos ocorridos naquela
noite, mantidos em segredo. Um segredo de confissão que lhe roubou a paz de
espírito por anos e voltava a atormentá-lo.
Questionou-se
incontáveis vezes se violaria um sacramento em nome da verdade e justiça. Se
estivesse compactuando para a destruição de um inocente? Até onde ia o limite
entre a ética canônica, as leis dos homens e a verdade de seu coração? Como um
pastor deveria se comportar diante desse dilema, cumprindo rigorosamente a
missão por Deus confiada?
Novamente
se viu tomado de interrogações.
Não me abandona nesse momento, Senhor!
Mais do que nunca este humilde servo precisa de Ti!
— O que eu faço, Pai?
Limpou o suor da testa com uma
das mãos, empurrou os óculos da ponta do nariz até seu devido lugar com o
indicador, e mais uma vez respondeu a mensagem.
Prepare-se! Mais cedo do que nunca a
verdade virá à tona. É hora de soltarmos as rédeas e permitirmos que Deus haja.
MENSAGEM
ENVIADA
Sentou-se
à mesa da cozinha, colocando o celular à sua frente, e aguardou até outro bip.
MENSAGEM
RECEBIDA
Deus nos usa como anjos para implementar
Seus feitos. Farei tudo para salvar o Chiamare! Tudo! Boa noite.
Pois
ele estava decidido, não moveria mais uma palha em favor da manutenção daquele
segredo. Pelo contrário, chegava o momento de também saber a verdade. Talvez
pudesse ajudar nas investigações de Laura e Diogo.
58
— Padre, eu pequei! — anunciou
Thomás, diante do confessionário.
Fazia parte de seu plano de
justiça aquele encontro com Pe. Giuseppe, no qual, passando-se pelo irmão,
confessaria um suposto crime de pedofilia. A ideia seria começar a destruir a
imagem construída por Saulo, minando a confiança dos mais próximos, para só
depois tornar o caso público. Sentiria ele na pele o que era ser acusado de um
crime que não cometeu.
Perfeito seria, não fosse pela
dúvida corrosiva dos últimos dois dias, desde a missão às ruas. Encontrava-se
atormentado pelo que sentira naquela noite ao vivenciar novamente o carisma
criado por ele há vinte anos. Uma força descomunal o movia a deixar tudo para
trás e seguir com o chamado esquecido nos escombros das próprias mágoas.
Como se Deus quisesse mais uma
vez estabelecer um diálogo.
Está
brincando de ser Deus, Thomás. Esse é seu verdadeiro plano. Vingar-se Daquele
que te abandonou, assumindo seu lugar. As palavras de Juscelino pareciam piche em sua mente,
repetindo-se numa frequência estúpida que o fazia hesitar.
Vingar-me
de Deus?
O maior absurdo que já ouvira.
Saulo sempre fora seu foco principal. O objetivo era livrar a sociedade de um
assassino frio, capaz de destruir a vida do próprio irmão por conta de sua
ambição.
A
tua maior dor não foi o abandono daqueles que te amavam ou as mentiras do
Saulo, mas o suposto silêncio de Deus diante de tudo isso.
Para Thomás, puro equívoco de
Juscelino.
Não
tenho mais nenhuma relação com Deus! Nenhuma!
Por que não conseguia
simplesmente prosseguir? Aquele caminho lhe dera fôlego e um motivo para viver
dentro daquele inferno nos últimos doze anos. Na verdade, o plano de justiça o
mantivera vivo, alimentando sua alma.
Contudo, a sensação
inexplicável de felicidade ao alimentar aquela gente nas ruas, de sentir-se
como eles e ao mesmo tempo, proporcionar-lhes a vida, consumia-o em fortes
labaredas, capazes de ruir as piores dores.
É possível a justiça com
mentiras?
Sentiu-se tão infame quanto o
próprio irmão.
— Qual seu pecado, filho?
A pergunta do Pe. Giuseppe o
silenciou.
Fingir-me
de morto, sequestrar meu irmão, passar-me por ele e enganar a todos!
— Ser quem não sou, para
voltar a ser quem sou. — a única resposta capaz de traduzir o turbilhão de
sentimentos que o chafurdava naquele momento.
— Thomás?!
Viu o rosto do padre,
procurá-lo através da tela do confessionário. De repente, o homem que o criou
como a um filho saiu de onde estava e se pôs diante de Thomás, com olhos
arregalados e um nervosismo aparente.
— É você mesmo?! — insistiu
ele, visivelmente chocado, permitindo que uma lágrima lhe banhasse a face.
— A gente só enxerga aquilo
que deseja enxergar. — sua fala vinha carregada de mágoas e significados, pela
traição sofrida.
— Você havia morrido! — aproximou-se,
tocando-lhe o rosto.
— Foi melhor para todos nós.
— Onde está o Saulo? — puxou a
mão num impulso, como se por medo de queimar-se. — O que fez com ele?
— Vivendo algo parecido com o
que vivi. — levantou e deu as costas ao homem. — Só parecido. Fui preso
injustamente. Ele não!
— Meu Deus, você sequestrou o
Saulo!
— Ele roubou a minha vida! — girou,
encarando o padre. — Estamos quites.
Quites?
Nem ele mesmo acreditava no
que dizia.
— Está se vingando?
— Não, buscando justiça.
— A justiça só existe na
relação, meu filho. — disse Pe. Giuseppe. — Quando feita pelas próprias mãos,
sem levar em conta um acordo comum, é vingança.
Juscelino já havia lhe dito
isso.
— E quando esse acordo é
corrompido, devastando a vida de quem estiver pela frente? — Thomás questionou.
— O que fazer?
— Como agora?
— Fui vítima de uma mentira
sórdida que acabou com a minha vida! É justo deixar as coisas como estão?
— Não, não é. Também não é
justo usar o mesmo caminho que supostamente lhe feriu. Olho por olho, dente por
dente, isso só traz dores, meu filho! Onde está o Pescador de Vidas que eu
conheci?
Thomás sucumbiu à emoção e
deixou escapar uma lágrima.
— Vocês o mataram!
— Jesus foi traído,
perseguido, crucificado, e permaneceu firme na fé.
— Bela desculpa para vocês que
continuaram livres.
— Não sabe o quanto sofri, meu
filho!
— Por que o senhor me abandonou?
— aquela pergunta estava engasgada há doze anos.
— Por uma causa maior. — o
velho pôs a mão no rosto e caiu em prantos. — Foi o pior erro da minha vida,
meu filho!
Pe. Giuseppe ajoelhou-se
diante de Thomás.
— Perdão, meu filho! Perdão!
Ele permaneceu imóvel, sem
conseguir mexer um músculo, caindo num choro de doze anos. Desejava ouvir
aquilo de quem amava, de quem o havia abandonado. Novamente experimentou o
afeto do homem que para ele fora um pai. Quis abraçá-lo, deitar a cabeça em seu
colo, como quando menino e gozar do carinho que lhe era peculiar.
Thomás se viu garotinho,
correndo igreja adentro, em prantos, com a perna lavada de sangue, abraçando-se
com Pe. Giuseppe que vinha apreensivo ao seu encontro.
—
O que foi isso, meu filho?
—
Eu caí, padre! Está doendo muito!
—
Calma, filho, calma. Estou aqui. — falou ele com um jeito terno, abaixando-se
para verificar o local do machucado. — Não é nada demais. Vamos fazer um
curativo.
—
Vai doer!
—
Confie em mim. Nada de mal vai lhe acontecer. Estou aqui pra protegê-lo.
Não, não o protegeu! Pe.
Giuseppe foi a principal testemunha de acusação contra ele no tribunal.
— Perdoe-me, meu filho! — insistiu
o velho, de joelho.
Por
uma causa maior.
Se estivesse mancomunado com
Saulo?
— Não cabe a mim, perdoar a
monstruosidade que vocês me fizeram! — sentenciou Thomás, saindo diante dele. —
Mas ao seu Deus.
— Sempre o amei, meu filho! — afirmou
o padre, permanecendo onde estava, como se numa penitência.
Queria acreditar, mas eles
também haviam lhe roubado a capacidade de perdoar.
— Vou cuidar para que o senhor
não conte nada a ninguém! — prometeu, deixando aquele lugar que lhe trazia de
volta uma certeza até então aniquilada no mais profundo de seus sentimentos.
59
Cândida pôs uma roupa simples
e finalmente resolveu deixar o quarto, depois de um tempo de exílio nas
próprias amarguras. Procurou estar distante de todos naquele último mês, desde
que tudo havia acontecido, como forma, talvez, de suportar a culpa e não
precisar encarar ninguém da família. Cada olhar, cada palavra chegava-lhe como
sentença, por mais que não soubessem da verdade, o que de fato tinha tirado a
vida de Edgar. Se descobrissem, certamente a excomungariam de suas vidas. O que
não seria de todo o mal. Por Lucas e Salomão, permanecia em martírio. Na
verdade, cuidaria para que nada mudasse, pelo menos até que tivesse alguma
notícia de seu filho.
Ao descer as escadas, viu a
figura de Delano, de costas, escorado na porta que dava para uma das varandas
do apartamento. Por um instante, sentiu uma alegria que encheu-lhe de vida, o
mesmo quando o via no Chiamare, antes de descobrir a verdade. Tão logo se
animou, a força vital se desfez, oprimida pela traição.
Não passou de um instrumento
nas mãos de Delano para se vingar do próprio pai. Como alguém poderia ter o
poder de fazer com que o outro se sentisse tão pequeno, insignificante?
Sentia-se desprezível! Primeiramente apaixonada por um homem que nunca a amou.
Depois, casada por quase vinte anos com uma pessoa que a odiou. Por fim,
envolveu-se com um rapaz, quinze anos mais jovem, que a usou simplesmente. O
que mais podia sentir senão pena de si mesma?
Cândida pensou em subir de
volta ao quarto, mas precisaria enfrentar aquela situação mais cedo ou mais
tarde. Afinal, Delano agora fazia parte daquela família e estava morando
debaixo do mesmo teto que ela, há alguns dias. Não tinha mais como evitar
aquele encontro.
Ao perceber sua presença, ele
girou o corpo de uma vez.
— Cândida?
— Como tem coragem de vir
morar aqui depois de tudo o que houve?
— Esta é a única família que
me resta. — justificou o rapaz.
Cândida se certificou que
ninguém os estava vendo e se aproximou.
— Uma família que quer
destruir. É por isso que está aqui? Para dar continuidade à sua vingança?
— Muita coisa mudou despois da
morte do Edgar.
— Mentira! Você é ardiloso,
arquitetou a ruína de nossa família.
— Não planejei a morte de
ninguém!
— Talvez não, mas foi
conveniente para seus planos.
— Acha que sou um monstro, não
é?
— O que eu acho não vai mudar
em nada o que houve, nem trazer o Edgar de volta.
— Queria sim me vingar, mas
não que ele tivesse morrido.
— O que pretende? Qual o
plano?
Ele olhou todo o ambiente,
passou a língua no lábio superior e o mordeu em seguida.
— Não há mais plano algum! — anunciou.
— A vingança morreu junto com meu pai.
— Pai? Agora o chama de pai?
Nós matamos o Edgar!
— Não! — ele a segurou pelos
ombros. — Nós não tivemos como evitar!
Cândida tomou distância.
— O Edgar saiu dirigindo
daquela forma porque estava transtornado depois de descobrir que o traíamos.
Somos sim os culpados!
— Não se cansa de se culpar
por tudo?
O que aquele menino sabia da
vida, de sua vida? Nada! Como podia julgá-la, enquadrá-la em seus parâmetros?
Não tinha o direito.
— Olha o que fez da sua vida
até hoje... — chamou ele sua atenção.
— Quem pensa que é para
questionar a minha vida? — disse ela, com todo o ódio que cabia a uma mulher
usada, traída.
— O homem que está apaixonado
por você! — Delano respondeu, tentando uma aproximação.
Mas Cândida se afastou
novamente.
Apaixonado?!
Esse era o plano? Continuar a
envolvê-la para destruir o que restava da família? Como alguém podia ser tão
cruel? Desejou voar nele, esmagá-lo, demonstrar toda a ira e indignação de
mulher ferida. Talvez matá-lo a fizesse sentir-se melhor. Qualquer loucura que
cometesse seria justificada perante todos pela dor da perda de seu marido.
Conferiu mais uma vez se
estavam realmente a sós.
Temia que alguém soubesse ou
desconfiasse do que houve entre eles. Como reagiria Salomão? Melhor aquietar o
juízo e evitar mais escândalos.
— Você é um doente! — foi o
que conseguiu pronunciar ao ouvir a declaração estúpida.
— Eu me apaixonei realmente
por você, Cândida. — insistiu.
— Acha mesmo que depois de
tudo, pode continuar com essa farsa?
— Foi por isso que eu vim para
cá.
— Para terminar o que começou?
— A vida foi muito difícil
para mim. Após a morte de minha mãe só tinha um motivo para continuar vivo.
Vingá-la!
— Não conheci sua mãe, mas
certamente ela estaria triste se soubesse o que fez.
— Como estou.
Uma lágrima despontou no rosto
de Delano.
Lágrima
de crocodilo!
— Chega de mentiras! Vai
embora daqui! — exigiu.
Ele se aproximou e segurou-a
firmemente.
— Me perdoa, Cândida!
Como seria bom se fosse
verdade! Fechou os olhos e imaginou que seria.
É
mentira, tola!
Mais uma vez teve a imagem de
Delano em sua frente.
— Saia da minha vida para
sempre! — ordenou ela.
— Eu te amo, Cândida!
— Você é pior do que eu
pensava!
Ele a beijou. Cândida
resistiu, mas logo sucumbiu ao calor, ao cheiro, à força envolvente daquele
homem. Por um instante o mundo poderia acabar! Foi assustadoramente maravilhoso
aquele beijo. Até que ela conseguiu se desvencilhar e o acertou com um tapa.
— FICA LONGE DE MIM E DA MINHA
FAMÍLIA! — gritou, para que ela mesma ouvisse e se convencesse daquilo.
Delano tocou no local da
agressão e parecia tentar reequilibrar o fluxo respiratório. Cândida verificou
novamente se não havia mais ninguém no ambiente e subiu as escadas em passos
largos.
Não havia mais lugar para ela
naquela casa!
60
Thomás estacionou a
caminhonete em frente ao galpão do sítio em Maranguape. Desligou o motor e
saltou do carro em direção à entrada do prédio. Fez um sinal de cabeça para os
dois homens de guarda nas laterais da construção e afastou o grande portão, o
suficiente para passar. Vinha determinado a por um fim àquela farsa. Pelo que
sabia Laura e Diogo já estavam investigando o crime que o tinha levado à prisão
no passado. Bastava!
Depois da morte de Edgar, do
sumiço de Lucas, do sofrimento de Laura estava certo de que não havia como
fazer justiça com as próprias mãos e não se sujar ou arriscar no caminho
estúpido da injustiça, interferindo diretamente e de um uma forma desastrosa na
vida daqueles ao seu entorno, fazendo-o igualar-se em medida e proporção aos
responsáveis à sua condição de vítima.
Sentia-se tão culpado quanto
eles! De que adiantava continuar se aquilo não traria sua vida de volta?
Justiça maior seria provar a própria inocência, embora já tivesse pagado por um
crime que não cometeu. Desejava o emergir da verdade, a fim de se livrar das
correntes que lhe aprisionavam a alma.
Thomás se aproximou do local
onde o irmão parecia estar dormindo.
— Saulo?
Estranhou que ele não desse
sinal de vida.
— Saulo? — insistiu.
O outro continuou imóvel,
desacordado. Chegou mais perto e viu que, mesmo acorrentado, ele tinha uma
barra de ferro entre as mãos. Como o bote de uma cobra, Saulo partiu de sua
aparente quietude e o atacou. Antes que pudesse pensar em qualquer atitude de
defesa, sentiu uma dormência na lateral da cabeça e tudo escureceu.
De repente, era novamente um
garoto de nove anos, disputando o melhor pulo e mergulho da parede do açude com
Diogo. Ao cair na água, sentiu uma força estranha puxá-lo para o fundo. As mãos
de alguém estavam agarradas ao seu tornozelo, e por mais que lutasse, não
conseguia se desvencilhar, tomando muita água. O ar já não se fazia mais o
suficiente para mantê-lo vivo e em meio ao desespero, viu o próprio reflexo
conduzindo-o à morte.
Saulo!
Uma dor de cabeça descomunal o
fez emergir. Sentiu um calor escorrendo pelo rosto e percebeu que o braço
direito e o peito nu estavam lavados de sangue. As água do açude haviam se
transformado nas paredes do velho galpão alugado, cativeiro do irmão. A imagem
turva de Saulo terminando de se vestir, desenhava-se, à sua frente.
— Acordou, irmãozinho?
Sentia-se zonzo, sem
compreender direito o que estava acontecendo. O frio e umidade do chão de
cimento queimado o fizeram perceber que se encontrava descalço, vestindo a
velha calça suja que outrora cobria o corpo magro do irmão. As correntes
pesavam em seu pulso.
Saulo balançou as chaves e
sorriu.
— Estavam no seu bolso. — zombou
ele.
— O que você fez? — perguntou
com dificuldade.
A cabeça latejava de uma forma
insuportável.
— Agora está no canto que é
seu. — explicou Saulo, alinhando o paletó.
Saulo o havia acertado com a
barra de ferro.
— Vim conversar com você para
acabarmos com isso.
— Mentira! Você é um psicopata
e eu não caio mais nas suas armações. Daqui mesmo vou direto para a polícia.
Vai apodrecer atrás das grades, Thomás. Aliás, de onde nunca devia ter saído.
Loucos como você precisam estar longe da sociedade!
Chegara ali decidido a por um
fim ao seu plano de justiça ou vingança, como Juscelino o considerava, a
ressignificar o caminho, propondo ao irmão uma trégua. Mas estava prestes a ver
tudo ser dissolvido de outra forma, do mesmo modo que Saulo conseguiu acabar
com sua vida, provavelmente enganando a todos e transformando-o mais uma vez
num monstro implacável. Por um instante, teve uma estranha sensação de
fracasso. Tudo em vão!
Temo
por você, de acabar voltando para cá. O receio de Juscelino fora
quase uma previsão.
Era justo deixá-lo vencer mais
uma vez? Temia que Saulo a solta e ele preso, o irmão impedisse de algum modo a
descoberta da verdade, como havia feito nos últimos doze anos. Certamente o
líder do Chiamare e sua fiel secretária inescrupulosa fariam de tudo para que
aquela promessa maldita fosse cumprida e Thomás apodreceria na cadeia, como ele
havia planejado desde o princípio.
Infelizmente precisava usar a
mesmas armas que ele.
— Isso, vai para a polícia. — Thomás
o incentivou. — Conta que não estou morto, que você forjou tudo isso e me tirou
de circulação. Esta é a versão que será exposta a todos. Se voltar agora, a
Laura e o Diogo receberão todas as informações necessárias para acreditarem
nisso e te entregarem à polícia.
— CANALHA, DESGRAÇADO! — Saulo
partiu novamente para ele, sacudindo-o pelos ombros. — Acha que vai manter esta
farsa até quando, hein?
— Não quero mantê-la. Vim aqui
para te fazer uma proposta.
— Proposta? Que proposta?
— Tirá-lo daqui e levá-lo para
um local seguro, até que a verdade seja descoberta.
— E por que acreditaria em
você, um criminoso capaz de sequestrar o próprio irmão?
Cretino!
— Não há escolhas. — expôs
simplesmente.
— Há sim! — retrucou, correndo
em direção à saída.
— VOCÊ NÃO VAI MUITO LONGE! — advertiu.
Mas Saulo sumiu pelo portão.
Sentia-se meio zonzo, mas
lembrou dos homens, fora do galpão.
— SOCORRO! SOCORRO! SOCORRO!
Ouviu o motor da caminhonete e
em seguida o cantar de pneus. Só depois os dois homens entraram no galpão.
— Rápido, me tirem daqui!
Os capangas se entreolharam
certamente em dúvida. Foi quando lembrou que provavelmente estava a cara de
Saulo no cativeiro. O irmão havia saído com suas roupas.
— Sou eu, Thomás! Aconteceu o
que disse que podia acontecer, ele me atacou e se fez passar por mim!
Os homens ainda hesitaram.
— Thomás Sobreira, o
verdadeiro Pescador de Vidas! — anunciou o código, caso aquilo acontecesse.
De qualquer modo, com Saulo
fora do cativeiro, aquela história estava chegando ao fim.
~
Saulo pisou firme na
aceleração e em poucos minutos estava na CE-065, em direção a Fortaleza. Focou
no retrovisor interno da caminhonete e deparou-se com o reflexo de um homem com
cabelo desgrenhado, rosto sujo e uma expressão de tensão por receio de não
conseguir chegar ou ser pego pelos homens de Thomás.
Bem
que a explosão podia tê-lo matado realmente!
Estaria livre do fantasma
daquele assassino.
Precisava proteger-se, ganhar
tempo e destruir o plano de vingança de Thomás.
O
celular dele, se não estava com ele deve estar aqui.
Dividiu a atenção entre a
estrada e o ambiente interno do veículo, passando a vista rapidamente pelo
painel e o porta-trecos logo abaixo. Em seguida, abriu o porta-luvas com uma
das mãos, enquanto permanecia com a mesma velocidade. Derrubou um bloco de
papel, caixa de lenço, carteira com os documentos do carro. Nada, nenhum
celular.
Um som forte de buzina.
A desatenção o fizera entrar
na outra faixa.
— MEU DEUS! — gritou, girando
o volante a tempo de evitar o acidente.
Depois passou a mão pela
testa, limpando o suor que insistia em escorrer, embora o ar condicionado
estivesse ligado no volume máximo.
Ouviu um bipe de notificação
de celular. Quando olhou o compartimento da porta do veículo, avistou o
aparelho com a tela acesa.
— Graças a Deus!
Dessa vez, procurando manter o
foco na estrada, pegou o celular cheio de esperança. A ideia era ligar para
Guilhermina, a fim de que ela agilizasse a polícia contra Thomás, e deste modo,
antecipar-se na tomada do poder. Ao acionar o desbloqueio de tela pelo touch screen, deparou-se com um fundo
preto e nove pontos brancos a serem ligados pelo usuário. — código de
desbloqueio através de desenho.
— QUE DROGA É ESSA!
Ligou o primeiro ponto
inferior esquerdo ao último superior direito, traçando uma linha diagonal. A
mesma mudou para a cor vermelha e apareceu uma notificação acima da tela:
DESENHO INCORRETO
— Desgraçado! Eu não vou
conseguir!
Tentou mais uma vez,
desenhando um L. Novamente, a mesma mensagem. Em seguida, respirou fundo,
procurou se concentrar e fez um U.
DESENHO INCORRETO
— DROGA! — Jogou o aparelho
com toda a força que dispunha no assoalho do veículo. Não conseguiria nunca.
Foi quando percebeu estar
sendo seguido por um carro preto. Se mudasse de faixa, ele também mudava, se
acelerava, o outro também o fazia.
Deve
ser o Thomás!
Pisou firme. Desta vez seria
diferente, ele não o impediria de chegar primeiro. Ultrapassou alguns veículo,
mas o carro preto permanecia em sua cola, aproximando-se cada vez mais. Avistou
o emblema da empresa através do retrovisor. Tratava-se da firma de segurança
que prestava serviços para o Chiamare.
Meu
Deus, o que devo fazer?
Temia que eles estivessem em
sua cola a mando de Thomás. Se parasse, poderia estar perdido e voltar ao
cativeiro, deixando o louco do irmão acabar com sua vida e a comunidade. Do
contrário, eles o pegariam de qualquer forma. Detestava dirigir e não dispunha
de nenhuma intimidade com o volante e a estrada. Na verdade, não tinha a menor
chance contra aquela gente preparada para enfrentar uma crise daquela dimensão.
Talvez pudesse barganhar? Era
velho conhecido da empresa. Sim, havia uma possibilidade.
Ligou a sinaleira e guiou a
caminhonete para o acostamento. O outro carro fez o mesmo.
Seja
o que Deus quiser!
Estava tão nervoso quanto no
dia do sequestro. Saulo acompanhou pelo retrovisor, dois homens saírem do
carro, atrás dele e virem até sua janela. Abaixou o vidro e os cumprimentou.
— Boa tarde, senhor. — responderam
os homens. — Recebemos uma denúncia de que este veículo havia sido roubado. O
senhor pode nos mostrar os documentos?
Se ele mexesse um músculo que
fosse, certamente iam perceber o quanto tremia e podiam desconfiar. Desviou o
olhar para o painel do carro à frente e viu sua carteira. Em seguida, com
esforço para não tremer e aparentar nervosismo estendeu a mão e a entregou aos
homens. Depois, abaixou-se até o piso do passageiro ao seu lado e pegou os
documentos do veículo, jogados por ele há pouco.
Os dois homens foram até a
traseira do carro e pareceram conferir a placa com a descrição nos documentos
entregues a eles. A inspeção demorou mais que o esperado. Pensou em questionar,
mas temia qualquer reação por parte deles.
Me
ajuda, Pai! Faz com que dê tudo certo!
Os homens voltaram,
entregam-lhe os documentos, desculparam-se e disseram para seguir viagem.
Obrigado,
Senhor!
O Chiamare seria seu destino.
Estava prestes a desmascarar o bandido do irmão.
~
Thomás entrou impecável no escritório
de Saulo no Chiamare. Acabara de tomar um bom banho, vestiu-se como o irmão e
fez um pequeno curativo na cabeça, pouco acima da orelha direita, onde havia
sido acertado com a barra de ferro. Abriu a primeira gaveta da mesa e retirou
de lá uma pasta preta. Ali continha sua segurança.
Recordou-se de quando voltava
de Maranguape pela CE-065, no carro dos homens que havia contratado para vigiar
o irmão, há pouco mais de uma hora, e passou pela caminhonete de Saulo, parada
no acostamento, vendo este ser abordado pela empresa de segurança da
comunidade, após a denúncia que fizera.
Tempo suficiente para voltar
ao controle.
Thomás sentou na poltrona
destinada ao líder do Chiamare, com uma ampla visão do ambiente, girou devagar
de um lado para o outro, imaginando como seria mais aquele encontro, e aguardou
pelo irmão.
Minutos mais tarde, Saulo
abriu as portas do escritório e invadiu o local. Trazia uma tensão nociva no
semblante.
— O que você fez? Aprendeu a
se teletransportar nesses doze anos? — inqueriu ele, caminhando firme em
direção à mesa onde Thomás estava.
— Não. A me defender. — respondeu
com a naturalidade que a vantagem da situação lhe proporcionava.
— O que faz aqui? Não tem como
me impedir de tomar meu lugar!
Irônico!
— Seu lugar? — pôs-se de pé, a
fim de enfrenta-lo de igual para igual. — Você o roubou de mim!
Ficaram cara a cara mais uma
vez, separados por uma mesa.
— Não o roubei. Você o perdeu
quando matou aquela mulher.
Cretino,
inescrupuloso!
— Não há mais tempo para isso,
Saulo.
— Vou chamar a polícia e te
mandar de novo para onde nunca devia ter saído!
— Aproveite e chame também o
conselho administrativo, o representante da entidade italiana doadora dos
fundos para a construção do templo do Chiamare.
— Do que está falando?
Thomás pegou a pasta preta em
cima da mesa e a entregou ao irmão.
— O que é isto? — perguntou
ele, desconfiado.
— Veja você mesmo.
Saulo tomou a pasta, deu as
costas para Thomás e a abriu, folheando os papéis que lá estavam. Em seguida,
voltou-se a ele com um olhar que poderia matá-lo.
— O que pretende com isso,
Thomás?
— Que aceite a condição que te
ofereço.
— E se eu não aceitar?
— Aí todos vão saber que você
desviou vinte milhões de reais dos fundos para a construção do templo do
Chiamare. Não apenas terá que prestar explicações ao conselho, mas, sobretudo à
entidade italiana, responsável pela doação. Pelas regras do contrato, o mesmo
será quebrado. Terão de devolver cada centavo empregado na obra.
— Nós já investimos mais da
metade do valor, as obras do templo estão a todo vapor. Trata-se de cento e
sessenta milhões, isso levaria o Chiamare à falência! — largou a pasta aberta
com os documentos em cima da mesa.
— Dos quais roubou vinte
milhões.
— Esse dinheiro foi para você,
para fazê-lo sumir!
— Para a entidade doadora não
interessa o objetivo. Você os roubou e pronto. — Thomás caminhou até a vidraça
atrás dele que dava para o jardim, colocou a mão no bolso e sorriu. — Além do
mais, precisará também explicar ao conselho esse valor de dez milhões depositados
em sua conta pessoal.
— Mas esse valor não é meu!
— Exatamente. Também pertence
à comunidade. Sua fiel secretária o desviou e transferiu-o recentemente para
sua conta.
Saulo parecia completamente
chocado.
— Você deve tê-la forçado.
— As únicas provas existentes
são contra vocês e estão dentro desta pasta. A propósito, pode levá-la de
lembrança. Isto é uma cópia. Os originais estão muito bem guardados.
— CANALHA!
O grito de Saulo não o
surpreendeu, nem roubou-llhe o sorriso. Gostou de vê-lo encurralado, tenso,
pagando de algum modo por seus crimes.
Este era o momento. Thomás
aproximou-se da mesa mais uma vez e tirou um envelope branco da gaveta,
estendendo-o ao irmão.
— O que isso?
— As coordenadas de como deve
proceder daqui em diante. Meu motorista o levará a um lugar seguro, onde deverá
aguardar por notícias.
— E o que vai fazer?
— Nada que não seja justo, não
se preocupe.
— E como posso confiar?
— Não pode. Apenas obedeça.
Saulo olhou-o profundamente
por um tempo, com um ódio aparente, depois guardou o envelope no bolso interno
do paletó e deu as costas.
— Você é um monstro, Thomás! —
disse, de costas.
— Digo o mesmo de você, Saulo.
A diferença é que agora estou no controle.
— Essa história não acabou,
meu irmão. Vou destruí-lo definitivamente e retomar o que é meu!
— Estou ansioso por isso, meu
irmão.
Saulo deixou o escritório e
Thomás despencou na poltrona, exausto. No fundo, não queria que fosse daquele
jeito. Procurava o irmão na face daquele homem que refletia a própria imagem, e
só enxergava ódio, ambição e mentiras.
Em seguida pegou o telefone e
ligou. Aguardou alguns instantes até que atendessem do outro lado da linha.
— E então, o caso do Pe.
Giuseppe está resolvido? — perguntou Thomás ao telefone. — Ótimo. Vamos acabar
logo com isso!
Precisava consertar aquilo que
havia saído de seu controle.
61
O mendigo guardou no bolso
algumas moedas que havia recebido há pouco de uma senhora e pensou em comprar
um caldo de cana pra saciar a fome que o havia perseguido o dia inteiro.
Caminhando pela Praça do Ferreira em direção ao Leão do Sul naquele final de
tarde, viu que os bancos estavam todos lotados e muitas pessoas cumpriam seu
destino, passando por ali em meio ao movimento intenso do centro de Fortaleza.
Sentiu uma alegria imensa por ninguém reconhecê-lo, e poder seguir, sem um
passado para tolher a liberdade que levara uma vida inteira para conquistar. O
tempo, outrora algoz, agora fazia-se escravo das próprias vontades. Senhor de
si mesmo, livre para experimentar aquilo que desejava, sem condições ou
amarras, direcionado por seus próprios sonhos, simples, de um andarilho em
busca de si mesmo, de Deus, em todos os lugares pelos quais passava.
De repente, uma dor. A velha
conhecida e traiçoeira latência na cabeça, trazendo de volta um passado que
desejava esquecer. Imagens foram materializando-se em sua frente, confundindo-o
com a realidade em seu entorno.
Flores e um véu.
Mais dor.
Uma pá sendo erguida.
O mendigo desequilibrou-se e
despencou por sobre as grades protetoras do relógio, no centro da praça. A
imagem do poço emergindo das pedras, lá em baixo se confundiam com muito
sangue. Seus músculos contraiam-se e não conseguia manter-se de pé. Olhou para
todos os lados e as pessoas continuavam em seus mundos normais, na agitação
típica que o cotidiano lhes convidava.
Pessoas chorando.
O mundo girou e o fez sentar
no chão, escorado na grade.
Uma ânsia de vômito.
Golpes de pá desferidos com um
rosto. O horror que o fez encolher-se, como se protegesse a si mesmo daquela
violência. Podia sentir a mesma dor dilacerando seu crânio. Procurou esconder o
rosto entre os próprios joelhos dobrados, a fim de evitar as visões, a cena
macabra. Tudo em vão! Um homem estava morto em sua frente. Reconheceu o corpo,
as roupas. Aquilo fez doer-lhe a alma.
— NÃO!
Seu grito pôde ser ouvido
certamente em toda a praça.
A pessoa que o ajudou a
enxergar naturalidade onde não havia, fazendo-o se sentir verdadeiramente filho
de Deus e não uma aberração acabara de morrer diante dele.
Assassinado!
Talvez fosse hora de voltar e
juntar-se aos seus, acolher e ser acolhido em sua dor, viver o luto que lhe
cabia na presença de quem amava. Foi praticamente consumido por aquele desejo.
Então, de que adiantaria? Voltaria a fazer parte do circo dos horrores,
perderia a liberdade tão cara conquistada e compactuaria a escravidão da alma
de milhares de pessoas.
Melhor permanecer sem nome,
sem um passado, longe daqueles que o fizeram sofrer.
Abraçou os joelhos e chorou a
perda de seu grande amigo.
62
Enquanto Diogo estacionou o
carro, Laura acompanhou atentamente, do banco do passageiro, o aglomerado de
pessoas que se formava em frente à Paróquia Santo Antônio de Pádua, naquele
início de manhã.
— Você está preparado? — procurou
saber cuidadosamente de Diogo, antes de saírem do veículo. O amigo estava
visivelmente abalado desde que recebera a ligação da polícia há menos de uma
hora, avisando sobre o crime. Ele até havia chorado algumas vezes no percurso
de casa até a igreja.
O corpo de Pe. Giuseppe
Giordano fora encontrado logo cedo pelo sacristão no jardim da casa paroquial.
Até o momento não sabiam de muitos detalhes, apenas que tinha sido vítima de um
crime bárbaro.
Diogo mordeu o lábio inferior
e fez que sim com a cabeça.
Queria de algum modo
transmitir a ele a mesma segurança experimentada ao seu lado. Tomou-lhe a mão e
segurou-a com força. Não tinha muito a ser dito. Sabia da importância daquele
homem na vida de Diogo, não apenas como um mentor espiritual, mas quase como
pai.
Ele pareceu esforçar-se para
sair do carro e Laura o seguiu. Em seguida, precisaram atravessar a multidão
para chegarem à frente da casa paroquial, pessoas comentando o caso com
diversas versões, as mais absurdas, outras lamentando, algumas chorando e
certamente muitos curiosos.
O local estava cercado, vários
carros com luzes de alerta ligadas.
Diogo aproximou-se de um
policial e apresentou-se como amigo próximo, procurando saber de detalhes. O
rapaz contou com frieza que Pe. Giuseppe havia sido morto com uma pá, tivera o
rosto desfigurado e provavelmente fora vítima de um assalto. Segundo o
sacristão, ele gostava de aguar o jardim à noite, quando fora atacado pelo
bandido, que entrou na casa, roubando celular, dinheiro e várias peças de
valor.
Em seguida, o policial
permitiu que eles entrassem.
O jardim estava repleto de
homens da polícia e o corpo já coberto com um lençol branco. Ao se aproximarem,
um dos policiais descobriu o cadáver até a altura da cintura para que o vissem.
Meu
Deus, que horror!
O rosto estava irreconhecível.
Diogo parecia ter tido uma
rápida vertigem e Laura o apoiou. Depois, deram as costas à cena macabra.
— Quer ir embora? — Laura
perguntou.
— Quem pode ter feito isso? — ele
questionou.
— Há dois dias nós conversamos
com ele. Acredito que estamos mexendo em casa de maribondo.
— Então não foi o Pe. Giuseppe
quem matou Eliane.
— Com certeza não. Talvez a
mesma pessoa que a tenha colocado na cama do seu irmão, tirou ontem a vida do
Pe. Giuseppe.
— Mas a polícia desconfia de
assalto.
— É o que o assassino quer que
acreditemos. Diogo, tenho certeza que foi queima de arquivo.
— Então estamos chegando
perto.
— Certamente.
Nesse momento, eles percebem o
burburinho e uma agitação entre as pessoas, quando o Dr. Juca Rebelo chega ao
local.
Laura sente que mais uma vez
não é bem-vinda ao cruzar o olhar com o pai. Diogo aproxima-se do mesmo,
abrindo caminho para que ela o siga.
— Uma tragédia, Dr. Juca. — Diogo
comentou.
— Perda irreparável, meu
filho, para o Chiamare e todos nós! — confirmou o médico, com um tom de
profundo pesar. — E você, o que faz aqui? — referiu-se a Laura.
Por
que ele me odeia tanto?
— Diogo e eu somos amigos.
Isso responde sua pergunta?
— Já devia estar longe daqui
há muito tempo! — afirmou Dr. Juca.
— Por quê? Do que o senhor tem
tanto medo?
— Por que não nos deixa em
paz?! — Dr. Juca foi mais hostil.
— Porque existem muitos podres
debaixo do tapete dessa comunidade. Eu vou descobrir todos eles!
— Se eu fosse você não me meteria
onde sou chamado.
— É uma ameaça?
— Gente, por favor! — Diogo
interferiu. — Olhem onde estamos.
— Com licença — pediu Dr. Juca,
retirando-se do local.
Diogo pegou Laura pelo braço e
a puxou para um canto do jardim.
— Precisamos manter o foco. — advertiu-a.
— Ele me ameaçou, você viu?
Laura desconfiou que o pai já
sabia da investigação sobre o caso de Thomás, por isso a ameaça. Se não queria
que fizesse uma investigação, tinha a esconder. Seria o presidente do conselho
administrativo do Chiamare o responsável pelos crimes? Se no passado, foi capaz
de tirar a vida do cunhado, o próprio paciente, a fim de que ele e Laura não
levassem o caso amoroso adiante, com certeza não hesitaria em matar uma
prostituta e implantar seu corpo da cama de Thomás para incriminá-lo, tirá-lo
do caminho, se o mesmo representasse um empecilho aos seus planos.
Deste modo, o pai era um
monstro! Que outro motivo teria para odiá-la tanto?
Será?
Viu Saulo atravessar o portão.
Estão
juntos!
Poderia esperar que se
encontrassem, ele e seu pai, e os abordaria. Perceber a reação de ambos e
perscrutá-los em sua parceria e cumplicidade. Segundo Diogo, na época do crime,
Thomás representava uma ameaça ao crescimento financeiro da obra, visto que
pretendia dividir os lucros das fábricas de roupas com os missionários
resgatados das ruas, os trabalhadores. Para tanto precisava enfrentar o irmão,
então diretor financeiro, e o presidente do conselho, ambos discordavam
veementemente de sua posição política dentro da comunidade.
Acha
realmente que foi a primeira mulher com quem me envolvi nesta comunidade? Aquela
provocação de Saulo reverberava em seus ouvidos.
Mau
caráter!
Sim, Saulo Sobreira era capaz
de arquitetar aquele plano para assumir o poder, apoiado pelo Dr. Juca Rebelo.
No entanto, abordá-los naquele
momento, podia assustá-los. Estavam muito perto da verdade. Aguardaria para
agir na hora certa.
63
As
escolhas que fazemos trazem consequências que nem sempre podemos suportar ou
pelo menos parece que vão nos matar, corroendo em remorsos nossa alma e nos
tornando réus de nós mesmos, numa sentença impiedosa proferida por nossa
história e as feridas que a desvirtuaram da sacralidade da vida.
Thomás acompanhou o
sepultamento de Pe. Giuseppe profundamente abalado com a perda do homem que foi
para ele como um pai.
A
justiça só existe na relação, meu filho. Quando feita pelas próprias mãos, sem
levar em conta um acordo comum, é vingança. Pe. Giuseppe parecia
soprar-lhe ao ouvido. Não é justo usar o
mesmo caminho que supostamente lhe feriu. Olho por olho, dente por dente, isso
não é cristão, meu filho! Onde está o Pescador de Vidas que eu conheci?
O Pescador de Vidas morreu no
dia em que foi condenado por um crime que não cometeu! Dando vida a um homem
cruel, impiedoso, quase tanto quanto aqueles que haviam roubado a pureza do seu
coração.
Amargava na culpa pelo caminho
escolhido num silêncio mortal, sentindo-se igualmente responsável pelas mortes
de Edgar e Pe. Giuseppe. Perdia duas pessoas importantes em sua vida, em poucos
mais de um mês.
Deu alguns passos para trás,
ampliando a visão daqueles que choravam a perda de um homem que ofereceu a
existência a propagar a palavra de Deus e cuidar dos necessitados. O Chiamare
só existia por sua causa.
Perdão,
meu filho! Pe. Giuseppe implorou na última vez em que o
viu.
Não fora grande o suficiente
para perdoá-lo. Talvez o próprio Saulo tivesse razão, transformara-se num
monstro. Por mais que quisesse, ele mesmo não conseguia mais se reconhecer.
Thomás deu as costas ao local
do sepultamento e afastou-se dali. Não tinha o direito de chorar junto daquela
gente.
— Saulo?
A voz de Laura o fez parar.
Sentindo um desejo incontrolável de abraçá-la logo que a viu.
— Mais um fora do caminho? — inquiriu
ela.
— Como? — não havia
compreendido.
— Primeiro o Edgar, agora Pe.
Giuseppe. Como se sente?
Morto
por dentro!
— Preciso ir. — anunciou.
— Soube que esteve com ele
pouco antes de sua morte, ontem à tarde. Foi a última pessoa que o viu vivo,
segundo a polícia.
— O que está insinuando?
— Mais um representante do
conselho administrativo do Chiamare está morto. Talvez isso o deixe numa situação
confortável no controle da obra, não acha?
— Acha que fui eu quem o
matou?
— Não acho nada. Mas vou
descobrir a verdade, pode apostar.
Laura deu as costas e se foi.
Saulo!
Ela tinha razão. Saulo podia
estar por trás daquele crime. Ele havia fugido do cativeiro no final da tarde e
talvez procurado por Pe. Giuseppe após ter saído da comunidade. Um
desentendimento podia tê-lo motivado ao assassinato, como saber que ele havia
pedido perdão a Thomás. Isto é, mudado de lado, de certa forma.
Pe. Giuseppe pode ter sido
morto por se rebelar contra Saulo — uma hipótese que transformava o irmão no
principal suspeito.
Como
sou idiota! A culpa não é minha!
— O Saulo o matou. — disse
para si mesmo. — Sei o que fazer!
64
Cândida espalhou algumas
fotografias antigas em cima da cama.
O namoro com Thomás, a amizade entre eles e Edgar, o dia do casamento, Salomão
e Lucas bebês, diversos momentos de sua vida, dispostos ao seu alcance. Quem
dera manipular o próprio destino e escolher os melhores caminhos como era
possível optar pela fotografia predileta.
Dentre a coletânea, encontrou
um registro afetivo com Pe. Giuseppe, datado de fevereiro de 2001. Recordou-se
de quando Edgar os fotografou, na inauguração do Chiamare, em Recife. Estavam
felizes.
Ela sorriu e quase sentiu a
mesma sensação de alegria daquele dia.
Pe. Giuseppe Giordano fora um
grande homem, além de sacerdote. Empenhado desde a juventude com a causa dos
desabrigados, incentivou Thomás, a ela e o grupo de jovens a fundarem o
Chiamare. Ele a apoiou nos momentos mais difíceis de sua vida.
Sentiria muita saudade! Talvez
agora um pouco órfã.
O celular tocou e viu que se
tratava de um número restrito, procurando atender o mais rápido que pôde.
— Alô, é você? — uma pausa. — O
que acha? Foi um dia difícil. — focou mais uma vez a fotografia com o padre. — Só
não concordo que precisava ter sido dessa forma. Foi um crime brutal. — pausou
novamente, para ouvir a resposta do outro lado da linha. — Sim, sei que
finalmente estamos livres do Pe. Giuseppe, ainda assim, acredito que poderia
ter sido diferente. — ouviu atentamente a pessoa. — Laura e Diogo estão
dispostos a descobrir a verdade. Tomarei cuidado. Até breve.
Desligou o aparelho e jogou-o
em cima das fotografias, sendo surpreendida por Delano ao seu lado.
— Pensei que estivesse
sofrendo pela morte do Pe. Giuseppe. — comentou ele.
— O que faz no meu quarto?
— A porta estava entreaberta,
resolvi entrar.
— Pois pode tratar de sair
daqui! — exigiu, apontando para a porta.
— Cândida, você tem alguma
coisa a ver com a morte do Pe. Giuseppe?
É
muita ousadia!
— Além de invadir meu quarto,
ainda me acusa?
— Não tive como não ouvir sua
conversa ao telefone. — justificou Delano.
— Fora daqui!
— Cândida, seja razoável. Não
temos como conviver dentro do mesmo espaço com esse clima de hostilidade.
Hostilidade?
Conhecia aquela realidade.
Conviveu por doze anos no mesmo ambiente, sendo hostilizada por Edgar. Delano
não sabia nada da vida.
— Não precisamos conviver,
falar um com o outro. Basta que me ignore, como farei em relação a você.
Ele aproximou-se, com um jeito
sedutor.
— Impossível! Não tenho como
fingir que não existe.
— Por que não vai embora e me
deixa em paz? Ainda pretende se vingar de quem? Deixa ver se adivinho. Do Dr. Juca,
é isso? E mais uma vez serei instrumento de seu plano sórdido. Poupe-me! Não me
engana mais.
Delano a envolveu pela
cintura.
— Por que não baixa essa
guarda? Sei que também me quer.
Ela tentou se desvencilhar.
— Nunca! Não caio mais nos
seus jogos.
Ele a trouxe para mais próximo,
pressionando-a contra os próprios músculos. Cândida podia sentir a respiração
ofegante e o hálito que outrora a fez se entregar.
Não
posso fraquejar!
Tratava-se de mais um jogo? O
que Delano pretendia afinal?
Continuou lutando para se
libertar dos braços e calor que a provocavam a permanecer.
— Eu te amo, Cândida!
Mentira!
— Fica comigo! — insistiu
Delano.
Jamais!
— Sei que você também me ama.
— confrontou-a. — Por que não podemos ficar juntos?
— Porque você não presta!
— Errei, reconheço. Percebi a
tempo o que de melhor aconteceu na minha vida. Cândida, você é a minha
redenção.
— Não acredito em uma só
palavra.
— Pelo amor de Deus, acredita!
— Não posso!
Percebia que ele a queria
tanto quanto ela o desejava. A atração, a pele era muito forte, quase uma
vontade mortal. Delano estava excitado como ela. Se tudo se resumia a um jogo
de poder e sedução, por que não aproveitar diante da consciência acerca do
mesmo? Diferente do que ele pensava, não a estava enganando, pelo contrário,
Cândida sabia que não passava de uma estratégia na vingança contra os Rebelo. O
que lhe autorizava a jogar na mesma medida e proporção. Dispunha da
oportunidade de estabelecer as regras e deixar de ser a eterna sofredora.
E
viver mais uma mentira?
Pelo menos naquele momento não
importava mais.
Cândida se entregou num beijo
ardente que a transportou para outro universo. Eles rasgaram as roupas um do
outro institivamente, como dois animais que se devorariam. Naquele instante,
Delano era sua presa e ela uma fera, sedenta de um amor que ele jamais lhe
daria, mas disposta a experimentar o prazer que o momento convidava.
Estava totalmente no controle.
— Eu também te amo, Delano.
Meu menino!
65
Thomás saltou da cama cedo,
logo que os primeiros raios de sol invadiram o quarto pela janela. Pôs uma
roupa leve, um tênis e saiu para correr no jardim do Chiamare. Tivera uma noite
agitada, com sonhos que o reportaram de volta ao inferno da prisão. Precisava
cansar-se fisicamente e desprender-se da angústia que os últimos acontecimentos
provocavam.
A
justiça com as próprias mãos é uma bússola que te conduz inevitavelmente ao
massacre das emoções de todos os envolvidos, independente dos lados em questão.
Como a vingança que transmuta os sentimentos do vingador, tornando-o vilão,
algoz de si mesmo, vítima das próprias emoções, num universo que vagueia entre
o céu e o inferno.
O preço a pagar era caro!
Justiça
e vingança, dois lados de uma mesma moeda?
— Thomás?
A voz viera em meio ao
percurso. Procurou-a e avistou o Dr. Juca Rebelo, no estacionamento da
comunidade, acabando de sair do carro.
De
novo, com suas desconfianças estúpidas?
Thomás desviou a rota e foi ao
encontro do presidente do conselho. Havia entrado no ritmo da corrida e teve
dificuldade para recuperar o fôlego.
— Dr. Juca?
— Sinto atrapalhar seu
percurso, mas precisamos conversar, Thomás Sobreira. — anunciou o médico, com
um sorriso de quem havia descoberto o maior dos segredos.
— Confundindo as coisas
novamente, Dr. Juca? Cuidado! Pode ser grave. — ironizou.
No fundo estava apreensivo.
Que carta ele trazia na manga?
Dr. Juca retirou um envelope
branco do bolso interno do paletó e o entregou a Thomás.
— Este documento explicita a
gravidade em questão. — explicou o médico, mantendo o mesmo sorriso que já o
incomodava.
Thomás abriu o envelope e
deparou-se com um exame de perícia comprobatório de digitais.
— O que significa isso?
— Ora, meu caro. Um homem
esperto como você, que tão bem orquestrou esta sinfonia de vingança contra
todos do Chiamare, não sabe realmente do que se trata? Aí está a prova de que
estamos todos diante de Thomás Sobreira.
Recordou da última missão, nas
ruas, quando Dr. Juca lhe entregou o próprio celular, com uma suposta ligação
para ele, que na verdade não procedia.
Minhas
digitais.
— Onde está o Saulo? O que fez
com ele? — inquiriu Dr. Juca, veementemente.
Thomás simplesmente guardou o
documento no envelope e o devolveu a ele, procurando não esboçar nenhuma
emoção, embora estivesse furioso por dentro. Não lhe daria esse gosto!
— Em um lugar seguro, longe de
todos, para que eu possa seguir tranquilo.
— Seguir com seu plano de
vingança? — aproximou-se de Thomás, encarando-o nos olhos. — Achou realmente
que poderia enganar-me por muito tempo, rapaz?
— O suficiente para cumprir
com meu objetivo. — não arredou um milímetro e procurou manter a calma e
simplicidade, como se nada tivesse acontecido.
— Não me provoque, Thomás!
Posso acabar com você! — o tom era mais grave.
— Como o Saulo fez no passado?
O senhor realmente foi enganado por ele ou participou deste jogo sórdido e
destruíram juntos a minha vida?
Aquele acerto de contas havia
esperado doze anos.
— Não tenho tempo a perder com
um psicopata como você! A polícia vai adorar saber que forjou a própria morte,
sequestrou o irmão e roubou-lhe a identidade. Novos crimes para sua cartilha.
Desta vez vai apodrecer na cadeia! — expressava-se com tanto ódio.
Um homem tão perspicaz como
Dr. Juca Rebelo jamais se deixaria enganar por doze anos. Um mês fora o
suficiente para perceber que Thomás havia roubado o lugar do irmão. Certamente
sempre soube da verdade. Se não participou da trama de Saulo a fim de tomar o
poder dentro do Chiamare, acobertou-o, fora sem sombra de dúvidas seu cúmplice,
endossando a liderança daquele calhorda por todos esses anos. Gostava do poder
e Saulo com certeza vestiria melhor a fantasia de marionete em suas mãos.
Pouco antes da tragédia que o
levou à prisão, tivera inúmeros confrontos políticos com Dr. Juca. Enquanto
lutava pelos interesses de todos os resgatados, propondo uma divisão de lucros
nas fábricas da obra, com o intuito de não desvirtuar o carisma, ele defendia a
ideia de crescimento e manutenção do controle, afirmando que a independência
financeira proposta por Thomás aos missionários, provocaria a desobediência e
ruína total da comunidade.
Mesmo sem perceber, na época,
transformara-se no maior inimigo do Dr. Juca dentro do Chiamare, e Saulo
certamente o agente de manutenção daquilo que desejava para a obra.
Claro,
sempre estiveram juntos!
Dr. Juca Rebelo pregava a
verdade, o amor e a fé, quando de fato defendia o poder a qualquer custo.
Mentir, roubar, matar — para ele, instrumentos simples de garantia para seus
objetivos.
Poderia confrontá-lo, como
planejara na cadeia. Mas de que adiantaria? Pessoas inescrupulosas como o Dr. Juca,
eram desprovidas de qualquer sentimento real por alguém. Mais sensato seria
falar a mesma língua por ele conhecida.
— O que o senhor pretende
fazer?
— Ligar para a polícia e
acabar logo com isso.
— Vejo que não tenho
alternativas.
— Você está liquidado, Thomás!
— Pode me acompanhar ao
escritório? É o último pedido que lhe faço, antes de voltar para a cadeia.
O velho o olhou de modo
desconfiado. Ainda assim, fechou o carro com o alarme e seguiu-o, até o
escritório. Lá, Thomás retirou um envelope amarelo da gaveta e o entregou a
ele.
Olho
por olho, dente por dente!
— O que pensa que está
fazendo? — Dr. Juca o questionou.
— Nada demais, apenas uma
última surpresa. Abra! É um presente para o senhor.
Dr. Juca fez o que ele disse e
retirou do envelope cópias de laudos médicos. Tratava-se das provas de que ele
havia matado o próprio cunhado, Ricardo Cordeiro, há vinte anos, internado sob
seus cuidados por um apêndice estrangulado. Em meio aos papéis também tinham
fotos comprometedoras da vítima ao lado de D. Augusta, esposa do Dr. Juca. Um
crime passional.
— Embora esse crime já tenha
prescrito, acredito que o senhor não queira ver sua família exposta num
escândalo dessas proporções, não é verdade?
— Não matei esse homem!
— Jura? Nem eu, nem sua filha
acreditamos nisso.
O homem nada mais falou.
— Xeque-mate, Dr. Juca Rebelo!
— complementou, sorrindo. Em seguida, jogou-se na poltrona e girou trezentos e
sessenta graus, comemorando a vitória da partida. Pelo menos até que Laura e
Diogo descobrissem a verdade, continuaria a ser Saulo Sobreira.
66
— Diogo, olha só quem está ali.
— Laura apontou para Zica, saindo da casa de Vera, na periferia de Maracanaú.
Eles haviam resolvido procurar
novamente a irmã de Eliane, a fim de obter mais informações sobre a suposta
relação da moça com Pe. Giuseppe. Ao se depararem com a primeira resgatada do
Chiamare, preferiram permanecer escondidos no carro, até que a mesma desaparece
pela rua. Em seguida, desceram e bateram mais uma vez na porta de Vera. A
mulher fez uma cara de assustada quando os viu e focou para os lados, como se
averiguasse se a outra tinha realmente ido embora.
— A senhora pode falar com a
gente um instante? — Laura a abordou.
— Estou muito ocupada. — respondeu,
quase fechando a parte de cima da porta.
Laura trocou olhar com Diogo e
este fechou um pouco os olhos. Vera imediatamente abriu a porta e os convidou a
entrar.
— O que Zica fazia aqui? — Laura
foi direto ao ponto e viu o amigo contorcer o pescoço.
— Somos amigas há muitos anos,
desde que eles tiraram minha irmã das ruas e a levaram para a comunidade. — disse
a mulher, apontando o sofá, para que sentassem.
Os dois se acomodaram.
— Acha que a Zica sabia quem
era o caso de sua irmã? — desta vez foi Diogo quem perguntou.
— Talvez. Ela sabe de tudo lá
dentro.
— Inclusive quem matou Eliane?
— Laura foi certeira.
— Não tenho certeza. — disse a
mulher. — Zica tem me ajudado financeiramente todos esse anos.
— Na verdade, ela tem comprado
seu silêncio. — Diogo comentou.
— É uma troca, ela me ajuda,
eu a ajudo. Justo! — explicou Vera.
— E qual seria o interesse de
Zica no seu silêncio? O que ela ganha com isso? — Laura a inquiriu.
— Amor. Zica quer proteger o
homem que ela ama.
Laura e Diogo se entreolharam
novamente.
— E quem é o homem que ela
ama? — Laura se aprofundou.
— Saulo Sobreira — revelou a
mulher.
Acha
realmente que foi a primeira mulher com quem me envolvi nesta comunidade? Não
teve como não lembrar daquela declaração de Saulo. Canalha!
Será que Zica também havia
sido um de seus casos?
— Espere aí, ama como? — Diogo
queria ter certeza.
— Apaixonada por ele. — revelou
Vera, de pronto. — Desde que o viu pela primeira vez.
— Mas eles tiveram alguma
coisa? — Laura se antecipou.
— Nada, nunca. — Vera
confirmou. — Ela sofre com isso. Acreditava que por ser uma negra, vinte anos
mais velha que ele, nunca teria chances, mas hoje compreende que ele é um homem
casto.
— E por isso é tão devotada? —
Diogo perguntou.
— Exatamente — disse ela.
— Ao ponto de fazer qualquer
coisa por ele? — Laura acrescentou.
A mulher fez que sim com a
cabeça.
Isso
a torna uma suspeita!
— Tem alguma fotografia de sua
irmã? — Diogo voltou o foco para o que vieram fazer ali.
Vera levantou e os deixou a
sós.
— Diogo, acha que a Zica seria
capaz de...
— Todo mundo é suspeito. — ele
a interrompeu. — Sempre questionei sua devoção cega pelo meu irmão. Zica estava
na comunidade, na noite do crime. Ela morava lá.
Vera voltou com uma caixa de
papelão nas mãos, sentou no sofá ao lado dos dois e tirou a tampa que cobria um
bolo de fotografias, tomando-o em suas mãos. Certamente registros diversos da
família. Ela passou uma série deles, até uma imagem da irmã de biquíni numa
praia ao lado de um homem. Entregou-a a Laura.
Impossível não reconhecer
aquela figura. Seu pai, o Dr. Juca Rebelo, bem mais jovem, sem camisa, abraçado
com a moça.
Meu
Deus!
A fotografia revelava o
suposto caso de Eliane. Não Pe. Giuseppe, como tudo levava a crer
anteriormente. O próprio presidente do conselho administrativo do Chiamare.
Por um momento, Laura
encontrou-se meio perdida, sem saber o que pensar ou que caminho seguir dali
para frente. Tinha certeza que o Chiamare escondia muitos podres em sua
estrutura megalomaníaca criada por Saulo Sobreira. Só não imaginava que seu pai
pudesse esta por trás de tudo.
Como
fui tola!
Claro. O verdadeiro poder da
comunidade sempre estivera em suas mãos, não nas de Thomás ou até mesmo com o
próprio Saulo, no topo de sua arrogância e vaidade desenfreadas, mas no
território de Juca Rebelo, o grande articulador e presidente vitalício do
conselho que tudo direcionava e mandava indubitavelmente.
Se fora capaz de matar o
cunhado por seu caso com Laura, por que não matar uma prostituta e jogar a
culpa em seu maior inimigo político dentro da comunidade? Juca Rebelo podia sim
ser o assassino.
Mas e Zica, comprando o
silêncio de Vera. Que tipo de envolvimento tinha ela com aquela história
sórdida e perigosa?
— É o que precisamos descobrir.
— afirmou Diogo. Provavelmente tinha lido sua mente.
No entanto, ela temia o que podiam
descobrir. Afinal de contas, tratava-se de seu pai, por pior que fosse. O que a
fez cogitar a possibilidade de desistir. Diogo poderia continuar sozinho.
— Preciso de você! — disse
ele, segurando-lhe a mão.
— Acho que o próximo passo é
falarmos com Zica. — Laura comentou, como se não tivesse fraquejado.
Sim, continuaria até descobrir
toda a verdade, fosse ela qual fosse.
67
Saulo saiu do elevador e
caminhou em passos largos até o número 1302. Apertou uma vez na campainha e a
porta foi aberta imediatamente. Guilhermina demonstrou uma alegria
incontrolável ao vê-lo e o envolveu num caloroso abraço.
Bom estar novamente ao lado de
quem podia confiar.
— Saulo! Nem acreditei quando
ligou. — comentou ela.
— Despistei os homens que ele
colocou para me vigiar e vim o mais rápido que pude. — explicou.
Estava há alguns dias recluso
num apartamento no Meireles, segundo orientações do próprio Thomás, totalmente
incomunicável. Até conseguir sair sem ser percebido pelos homens e ligar de um
telefone público para Guilhermina.
— O que ele fez com você? Como
você está? — a secretária procurou saber, tocando em seu rosto, verificando
suas vestimentas.
Certamente se encontrava
distante da vaidade do grande Pescador de Vidas de outrora. Thomás havia
providenciado-lhe roupas simples, calças jeans, camisetas e tênis. Já não
precisava mais perder tanto tempo escolhendo o melhor corte e a cor apropriada
ao dia, dispunha de poucas opções. Na verdade, os últimos encontros consigo
mesmo diante do espelho eram breves e sem muitas surpresas ou expectativas.
Destinando cada segundo da última semana, desde que fugira do cativeiro, a
pensar numa forma de neutralizar o irmão, antes que fosse tarde demais.
— Você está magro! Tem se
alimentando bem? — Guilhermina estava ansiosa.
— Estou bem, Guilhermina. Tá?
— procurou acalmá-la. — Você ligou para o Dr. Juca?
— Deve estar a caminho.
Ela o puxou para dentro e
fechou a porta atrás deles.
— E as provas, encontrou
alguma coisa? — Saulo foi direto ao ponto.
— Vasculhei tudo dentro do
Chiamare. Acredito que ele tenha guardado esse dossiê em outro local.
— Enquanto ele estiver com
esses documentos em mãos, nós não poderemos fazer nada. Seria um grande risco
esses papéis chegarem à entidade doadora na Itália. Enfrentaríamos um grande escândalo
dentro da Igreja. Provavelmente o fim do Chiamare.
— Calma! Isso não vai
acontecer, Saulo.
Novamente o som da campainha.
Guilhermina abriu a porta e abriu espaço para que Dr. Juca entrasse. Saulo
ficou aliviado ao vê-lo.
— Dr. Juca!
— Meu filho!
Os dois se abraçaram.
— Pensei que estivesse preso.
— disse o médico.
— Teoricamente estou. Preciso
voltar logo, antes que os homens do Thomás sintam minha falta. Ele nos tem nas
mãos, Dr. Juca.
— Guilhermina me adiantou. — revelou
Dr. Juca. — Vocês foram loucos em desviar esse dinheiro, quando eu já havia
vetado essa possibilidade!
— Era a única forma de vê-lo
longe daqui e tentar evitar exatamente o que está acontecendo. — justificou
Saulo.
— São vinte milhões, Saulo! — advertiu
o médico, furioso.
— Desculpe-nos, Dr. Juca, — pediu
Guilhermina. — mas não há mais tempo para chorarmos sobre o leite derramado. A
desgraça está feita e Thomás pode destruir a comunidade.
O velho olhou para os dois e
calou.
— O que nós faremos? — Saulo
indagou, na esperança que ele tivesse um plano.
Dr. Juca sentou, respirou
fundo e respondeu. — O que deve ser feito.
Saulo não tinha compreendido.
— E o que deve ser feito? — perguntou.
— A única forma de eliminar o
mal é cortá-lo pela raiz. — foi Guilhermina quem respondeu.
Saulo percebeu que os dois já
haviam conversado e chegado a conclusões.
— Espera aí... o que estão
propondo?
Ambos permaneceram em
silêncio.
— Querem matar o Thomás?
Dr. Juca levantou e segurou-o
pelos ombros.
— Sabe que sempre fui um homem
íntegro, temente a Deus. O que está em jogo é o futuro de milhares de pessoas
que dependem desta comunidade. O Thomás é uma bomba relógio e pode explodir a
qualquer momento, devastando tudo a sua volta. Isso inclui a você, a nós, ao
Chiamare.
— Assim estaria assassinando
meu próprio irmão.
Caim
e Abel.
— Você melhor que ninguém sabe
que existem sacrifícios que precisam ser feitos em nome da fé. Lembra-se do
passado? — recordou-se do Dr. Juca.
Preferia esquecer o passado.
Saulo caminhou de um lado para
o outro da sala.
— Tem que haver outra saída.
— Infelizmente não há, meu
querido. — reforçou Guilhermina.
— O Thomás é um psicopata e
está disposto a tudo. A única saída é matá-lo! — sentenciou Dr. Juca. — Sei que
é uma difícil decisão, meu filho. Trata-se do sacrifício necessário para
mantermos o Chiamare de pé. A vida de milhares de fiéis depende de nós. Não
será a primeira vez que sacrificamos alguém, não é verdade? Eis aqui a nossa
responsabilidade.
Tinha que haver outra saída!
Por pior que ele fosse, era seu irmão. Agora com Diogo e Laura investigando o
passado, temia que eles descobrissem a verdade.
Olhou para a secretária e Dr. Juca
e viu que eles trocavam olhares de cumplicidade. Se estivessem tramando para
tirá-lo do caminho, como fizeram com Thomás, há doze anos? Dr. Juca sabia que
Saulo era a única pessoa capaz de tomar o poder dentro da comunidade. Aquele
seria um ótimo momento para livrar-se dele. Na verdade, eliminar os dois irmãos
de uma só vez. Um morto e o outro preso!
Eles
querem acabar comigo!
Definitivamente, não confiava
em mais ninguém. Sentiu-se descartável, talvez o mesmo sentimento experimentado
por Thomás quando fora abandonado por todos nos braços da própria loucura.
Será
que Thomás planejou inclusive isso?
Acreditava estar em meio a uma
conspiração.
— Precisamos decidir como será
feito. — comentou Dr. Juca.
Não! Ele não participaria
daquela atitude suicida. Recorreria à única pessoa capaz de ajudá-lo naquele
momento.
Olhou uma última vez para os
dois traidores e saiu.
— SAULO! — gritou Guilhermina.
— Saulo, para onde vai?
Ouviu ainda o Dr. Juca. Mas
eles não saberiam mais nada, enquanto não pusesse um ponto final naquela
história, do seu jeito.
~
—
A única forma de eliminar o mal é cortá-lo pela raiz. — Thomás
acompanhou a declaração de Guilhermina através da imagem diagonal captada por
seu laptop. Passava horas no escritório do Chiamare ou no quarto, acompanhando
todos os passos de seus inimigos, através das câmeras e microfones implantados
no relógio entregue a Saulo, quando recebeu as novas roupas e acessórios, após
o pacto com o irmão; na bolsa, carro e apartamentos de Guilhermina e Dr. Juca
Rebelo. Foi uma forma de sentir-se mais seguro e no controle da situação. Deste
modo, ficava sabendo de todos os passos daqueles que desejavam lhe destruir.
—
Espera aí... o que estão propondo? — foi Saulo que se manifestou
na gravação. — Querem matar o
Thomás?
Thomás contraiu o estômago de
repulsa e pousou a xícara com força no pires ao lado do computador, respigando
a mesa com o restante de café que havia no recipiente.
— Desgraçados! Querem mesmo
acabar comigo. — viu o próprio pensamento transformar-se em verbo.
Na gravação, Dr. Juca levantou
e segurou Saulo pelos ombros.
—
Sabe que sempre fui um homem íntegro, temente a Deus. — Thomás
desdenhou ao ouvir aquela declaração falsa do médico. Continuou acompanhando as
imagens no laptop. — O que está em jogo é
o futuro de milhares de pessoas que dependem desta comunidade. O Thomás é uma
bomba relógio e pode explodir a qualquer momento, devastando tudo a sua volta.
Isso inclui a você, a nós, ao Chiamare.
—
Assim estaria assassinando meu próprio irmão. — Saulo
respondeu.
— Uma versão pós-moderna de
Caim e Abel? — Mais uma vez Thomás falou consigo mesmo, entortando o pescoço
para um lado e outro, a fim de estralar as vértebras do pescoço.
—
Você melhor que ninguém sabe que existem sacrifícios que precisam ser feitos em
nome da fé. Lembra-se do passado? — foi a resposta de Dr. Juca.
Thomás pausou a imagem no
rosto daquele criminoso. Talvez tenha sido sua a ideia de matar Eliane e
tirá-lo de uma vez por todas de seu caminho. Quem sabe Saulo não era um joguete
em suas mãos, como todas as pessoas em seu entorno?
Sacrifícios?
Imaginava o que Juca Rebelo
não fora capaz de fazer para conquistar o poder e ser temido por todos. Segundo
suas investigações, o médico havia se transformado num homem milionário nos
últimos vinte anos, com uma fortuna avaliada em mais de trezentos milhões de
reais, entre imóveis e investimentos financeiros. A última transação, um desvio
de cinquenta e oito milhões de reais de uma doação da Europa, a serem
investidos numa fábrica do Chiamare.
Por esse motivo o Dr. Juca
mantinha-se num cargo vitalício de presidente do conselho administrativo da
comunidade.
O
cão não quer largar o osso.
— Então não há outro jeito,
senão destruir o osso. — comentou Thomás em voz alta, maximizando a tela de
e-mail, onde estavam selecionados os endereços da polícia federal, Laura Ponte,
Diogo Sobreira e a mala direta a todos os responsáveis da obra, dos centros
espalhados pelo Brasil e o mundo. Em anexo, um arquivo chamado “Dossiê Dr. Juca
Rebelo”.
Thomás sorriu e clicou na
opção enviar.
MENSAGEM ENVIADA COM
SUCESSO
Justiça
realizada com sucesso!
Apoiou os cotovelos na mesa e
cobriu o rosto com as duas mãos. Feliz, com uma tonelada a menos nas costas,
não conseguiu segurar o choro. Bastava que a verdade sobre o crime de Eliane
fosse descoberta, vendo o irmão finalmente pagar pelo que fizera.
Novamente minimizou a tela,
tendo a visão de diversos quadrantes trazendo as imagens das câmeras
escondidas. Maximizou a figura de Guilhermina dentro do carro, estacionando
numa rua, que identificou como sendo próximo ao apart-hotel onde Saulo estava
recluso. Em seguida, o irmão entrou no veículo.
—
Fez o que pedi? — Saulo perguntou sem rodeios.
—
Sim. Tudo certo com a secretária do Dr. Feliciano — confirmou
Guilhermina.
Dr.
Feliciano?
— Será Feliciano Guerreiro? — Thomás
cogitou.
Aquele nome parecia corroer
seus tímpanos. O psiquiatra que o acompanhou por anos no presídio, vetando seus
pedidos de liberdade condicional.
O mais interessante era que
vinha investigando nos últimos meses.
—
Logo que o expediente seja encerrado daqui a pouco, entrarei na clínica e terei
acesso a todas as gravações do Dr. Feliciano. — continuou
Guilhermina, na transmissão.
—
Ótimo. Ganharemos tempo e teremos o Thomás em nossas mãos. — disse
Saulo, parecendo confiante.
Cretinos!
Mais uma vez planejavam
destruí-lo ou pelo menos neutralizá-lo com aquelas gravações. Sabia o que
continha nos arquivos do médico inescrupuloso. Precisava pensar rapidamente
numa saída estratégica para evitar uma nova injustiça. Caso as falsas
informações chegassem às mãos de Laura e Diogo, talvez pudessem atravancar as
investigações sobre a morte de Eliane. No mínimo, causaria alguns estragos e
retardaria o processo.
O que fazer diante de uma
situação daquelas? Procurou evitar atitudes extremas desde o início. Agora
jogavam alto, sua vida e sanidade dependiam disso.
— Errado, meu irmão. Isso não
vai acontecer. — Thomás verbalizou, tirando da gaveta uma pistola. — Vou acabar
com a festa de vocês.
Em seguida, baixou a tela do laptop, pegou o
paletó na cadeira da frente e saiu.
~
Thomás estacionou ao lado do
carro de Guilhermina, em frente à clínica do Dr. Feliciano Guerreiro. Desligou
a caminhonete, a fim de não chamar atenção e verificou no relógio que já eram
oito e quarenta e cinco da noite. A esta altura, a secretária de Saulo
provavelmente encontrava-se no consultório do psiquiatra, em busca de provas
contra o ex-líder do Chiamare.
Ele pegou o Iped e acessou as imagens da câmera
escondida na bolsa de Guilhermina, acompanhando toda a ação da inimiga diante
do computador de Feliciano, copiando arquivos do médico num pen drive.
Momento de agir!
Saltou do carro e aproveitou o
instante em que dois pacientes deixavam a clínica, para entrar no local, sem
que fosse percebido pela recepcionista, que se ausentou por alguns minutos do
balcão, o suficiente para ele atravessar o ambiente e pegar o elevador até o
terceiro andar, onde Guilhermina estava.
Em seguida, tirou a arma da
cintura e aproximou-se devagar da porta que o separava dos documentos
utilizados para respaldar a negação dos infinitos pedidos de sua liberdade
condicional, por parte da defensoria pública. Girou a maçaneta com cuidado e
constatou que a fechadura estava trancada, vendo a fresta de luz no rodapé da
porta desaparecer.
Droga!
Ela percebeu...
Não tinha mais o que esperar.
Se não agisse a tempo, aqueles arquivos cairiam em mãos erradas e ele poderia
estar perdido. Tomou a distância calculada para erguer o joelho e arrebentar a
porta com um único chute. Precisava ser rápido e por as mãos em Guilhermina,
antes que os seguranças da clínica se dessem conta do que havia ocorrido.
Ao entrar no consultório,
tratou de ascender a luz e vasculhar o ambiente cautelosamente, com a arma em
punho, guiando-o por todos os lugares.
— Vamos, Guilhermina. Onde
você está? — perguntou ele.
Aproximou-se de um biombo com
cuidado. Ela podia tentar alguma gracinha.
— Vamos acabar logo com isso.
— propôs.
Pôs-se do outro lado do bimbo
de uma vez. Nada! Em seguida, uma pancada em sua cabeça, fazendo-o
desequilibrar.
— Toma, seu desgraçado!
Ouviu a voz dela nas suas
costas e viu-a correndo.
Infeliz!
Tinha sido mais esperta. Ele
seguiu seus passos e gritou antes que Guilhermina descesse pelas escadas.
— Pare, senão atiro!
A mulher parou e pôs as mãos
para o alto.
— Não teria coragem. — comentou
ela, assustada.
— Ainda duvida do que sou
capaz?
Manteve a arma apontada para Guilhermina
e aproximou-se, enfiando a mão em seu bolso. Finalmente se apoderou do pen drive.
— Você não vai conseguir se
safar dessa. — provocou-o.
— Não?
Thomás a empurrou de volta ao
consultório do Dr. Feliciano, ordenou que ela ligasse o computador do médico
novamente, procurasse os mesmo arquivos copiados há pouco e os deletasse. A
secretária hesitou e ele a machucou com a pistola.
— Está me testando é, sua
desgraçada?
Faltava pouco para tirar a
vida daquela vagabunda e livrar a sociedade de uma bandida. Seus crimes estavam
prestes a serem descobertos, através do dossiê contra o Dr. Juca, apontando-a
como principal cúmplice no esquema de corrupção e desvio de dinheiro dentro da
comunidade. Saber que ambos traíram até mesmo a confiança de Saulo lhe causava
um prazer visceral.
Não precisava sujar as mãos
com aquele sangue imundo. Guilhermina teria muito para explicar à polícia.
Thomás a empurrou,
derrubando-a no chão. Em seguida, ele mesmo deletou os arquivos.
— Pronto. Vocês não podem mais
nada contra mim.
~
Quando o relógio marcou vinte
e uma horas, Saulo foi até um telefone público e ligou para Guilhermina,
conforme combinado. Em breve, teria um meio de neutralizar o irmão e ganhar
tempo para pensar numa saída e não ver o mundo construído com tanto esforço ser
destruído por seus inimigos. Faria de tudo para salvá-lo.
Guilhermina atendeu após o
quarto toque.
— O que houve, por que demorou
atender? — estava muito ansioso.
— O Thomás descobriu tudo,
Saulo! — a voz de Guilhermina do outro lado da linha trazia certa carga de
tensão percebida no tom.
— O que aconteceu?
— Ele sabe de nós, dos
arquivos do Dr. Feliciano e destruiu o pen
drive no qual eu os havia copiado.
— Desgraçado!
E
agora?
Os arquivos do psiquiatra eram
seu trunfo. Por um momento viu-se perdido.
— E por que não volta lá e os
copia novamente?
— Ele deletou os arquivos no
computador. Saulo, escuta. Não pode voltar ao apart-hotel. Ele está armado e é
perigoso.
Meu
Deus, o que está havendo? De que lado o Senhor está?
— Guilhermina, a gente não
pode entregar os pontos a esse louco.
— Claro que não. Tenho uma
solução. Para isso, quero que prometa que fará o que é preciso ser feito.
— Matar o Thomás! — completou
a sugestão da secretária.
— Exatamente.
Por que eles mesmos não
providenciavam aquilo ao invés de exigirem que ele o fizesse? Óbvio que
planejavam incriminá-lo e fazê-lo apodrecer na cadeia. No entanto, se
continuasse a se negar ao que propunham, com certeza encontrariam um meio de
eliminar Thomás e fazer com que todos pensassem que havia sido ele o
responsável.
Sabia do que Guilhermina e Dr.
Juca eram capazes e talvez mais perigosos que o próprio Thomás. Encontrava-se
encurralado, sem saber que caminho seguir.
— Vocês tem razão. — concordou.
Faria o jogo deles. — Eu mato o Thomás.
— Ótimo, meu querido. É o
melhor a ser feito.
Falsa,
ordinária! Traiu-o durante todos aqueles anos. Sabia como
acabar com eles.
— Qual a solução? — procurou
saber da mulher.
— Antes de colocar os arquivos
no pen drive eu os enviei para o meu
e-mail.
Podia imaginar o sorriso de
Guilhermina do outro lado da linha.
Graças
a Deus!
— Estou acabando de enviá-los
para seu e-mail. — completou ela.
Com essa Thomás não esperava.
Saulo desligou o telefone e
sem querer, bateu com o relógio no orelhão. Resmungou ao perceber que havia
quebrado o vidro.
Aparelho
vagabundo!
Arrancou a pulseira do braço e
jogou-o na primeira lixeira que encontrou, entrando no prédio do irmão. Depois
de ser anunciado pelo porteiro através do interfone, subiu até o décimo quarto
andar. Em poucos minutos tocou a campainha do apartamento de Diogo. Novamente
ficou cara a cara com o mesmo, logo que ele abriu a porta. Parecia estar diante
de si mesmo.
Primeiramente o irmão o
observou da cabeça aos pés, esboçando surpresa. De certo por conta das roupas
simples que vestia.
— O que quer aqui? — o tom de
Diogo foi hostil.
Nada o impediria de lutar e
salvar a própria pele.
— Preciso falar urgente com
você.
— Estou ocupado.
Saulo olhou por cima do ombro
do irmão e viu que Laura estava sentada no sofá logo atrás dele.
— Que bom que estão juntos,
assim saberão de tudo de uma só vez. Por favor, me deixa entrar, Diogo!
O irmão hesitou, talvez por
causa de Laura, olhou para ela e a mesma fez um sinal positivo com a cabeça,
autorizando sua entrada. A repórter o encarou de um modo desconfiado.
— Sei que vai parecer uma
loucura, mas o Thomás está vivo, me sequestrou e tomou meu lugar do Chiamare. —
disparou. Não tinha um modo mais sutil de começar aquela história.
— Como é que é? — Diogo
questionou.
— Você está louco? — Laura o
interpelou, pondo-se de pé.
— Querem ou não ouvir o que
tenho para contar? — Saulo procurou ser mais firme.
Diogo e Laura se entreolharam
e pareceram autorizá-lo. Em seguida, o irmão sentou-se e ouviu-o atentamente ao
lado da repórter. Saulo procurou contar tudo o que sabia desde o dia do
sequestro, sem esquecer nenhum detalhe. Qualquer minúcia seria importante para
que não o considerassem um lunático.
— E como vamos saber que não é
mais uma de suas mentiras? — foi Laura quem indagou.
Claro, ela o tinha em péssima
conta, por pensar ter sido ele quem a levou para a cama e depois a desprezou.
— Não foi comigo que você
dormiu, Laura. — revelou.
— O quê? — Diogo interferiu.
— Você passou dos limites,
Saulo! — afirmou Laura.
— O que pretende com essas
mentiras absurdas? — Diogo foi mais enfático.
— Seduzi-la, em seguida
abandoná-la, fazia parte dos planos do Thomás. Uma forma de instigá-la em seu
ódio e motivá-la a me destruir. — Saulo complementou sem se importar com o
julgamento do irmão, aproximando-se da repórter. — Sabe, Laura, quando assumi a
liderança do Chiamare, fiz votos de pobreza, obediência e castidade. Desde
então nunca me envolvi com mulher nenhuma.
— Mentira! — disse ela, com
ódio.
— Não era eu com você, — continuou.
— mas confesso que em muitos anos foi a única mulher que mexeu comigo
realmente.
— Chega, Saulo! — Diogo
interviu.
— Não, deixa — Laura pediu.
— Eu me apaixonei por você,
Laura, mas sempre soube que nunca aconteceria nada. Por causa dos meus votos, da
minha missão junto à comunidade.
Ela o olhava, pasmada.
— Você é louco! — foi um
desabafo de Laura.
— Aonde quer chegar com isso,
Saulo? — Diogo questionou mais uma vez.
— ACREDITEM EM MIM! — Saulo
gritou no desespero. — Esse psicopata vai acabar com a minha vida! Vai destruir
tudo o que construí em todos esses anos!
Quero uma chance de provar que estou falando a verdade.
— Muito bem. — disse Laura. —
Como vai provar?
Saulo viu um tablet em cima da mesa e pediu para
usá-lo. Acessou sua conta de e-mail do aparelho e exibiu o arquivo enviado por
Guilhermina. Laura e Diogo se aproximaram, pondo-se um de cada lado, assistindo
ao vídeo. A gravação trazia a imagem de Thomás sentado de frente para o Dr. Feliciano
Guerreiro vestido com a farda do presídio.
—
Ok, Dr. Feliciano. Confesso. Fui eu quem matou Eliane Ferreira.
Saulo sentiu um alívio ao
ouvir a declaração de Thomás, no vídeo.
—
Criei um mundo paralelo, a fim de me livrar da culpa que me cabe. — continuou
a gravação. Depois, um corte de edição.
—
Não sou culpado! Foi o Saulo quem matou a Eliane e fez com que todos
acreditassem que fui eu! — afirmou Thomás, tomado de ódio.
Mais um corte de edição. Agora
apareceu o rosto do Dr. Feliciano, sozinho falando para a câmera. Um homem
obeso de cento e cinquenta quilos, gravata borboleta e óculo de uma lente só,
como uma dessas figuras extraídas do século IXX.
—
O paciente Thomás Sobreira sofre de um nível moderado de esquizofrenia, criando
um universo fictício de conspiração. — Diagnosticou-o o médico. — Ausente de uma terapia medicamentosa, ele
está sujeito ao agravamento da doença. Consequentemente, torna-se uma pessoa
perigosa. Com certeza é responsável pela morte de Eliane Ferreira.
Diogo afastou-se e caminhou de
um lado para o outro. Passou a mão pela testa e pela nuca, sem conseguir
pronunciar uma palavra. Estava visivelmente abalado.
— Isso só prova que o Thomás
sofria de esquizofrenia, não que está vivo. — Laura se antecipou.
— É aí que vocês entram. Eu
tenho um plano para desmascará-lo. — anunciou Saulo.
Finalmente aquele pesadelo
estava perto de acabar.
68
Cândida despertou com os
primeiros raios de sol invadindo seu quarto. Delano a observava ao seu lado na
cama, parecendo embevecido, com um sorriso que o deixava mais gracioso.
— Meu menino, já amanheceu! A
gente precisa...
— Psiu... — ele tocou
delicadamente em seus lábios e a beijou em seguida, com uma ternura nunca
sentida por ninguém. Feito um sonho bom.
Tão
bom se fosse verdade!
Acreditava fazer parte do
plano de vingança. Estava disposta a correr o risco e descobrir seus próximos
passos, a fim de desmontá-los. Tão bem fingiu um casamento feliz por doze anos,
achava-se capaz de jogar à altura de Delano e superá-lo em sua imaturidade. No
demais, desfrutar de momentos como aqueles, enchia-lhe de vida e alegria, por
mais que não fossem verdade.
— Precisamos estar de pé para
o café — advertiu ela, entre um beijo e outro. — Dr. Juca pode desconfiar.
— Já é hora dele saber.
— Você está louco!
Os dois riram.
— É. Vamos dar uma festa no
nosso noivado.
Noivado!
Quem dera...
— Meu menino... louco!
Ser beijada com tanto desejo a
desarmava completamente.
— A loucura é para os sãs. — disse
ele, parecendo tão apaixonado. — Eu te amo, Cândida, minha rainha!
Como
eu queria acreditar!
A porta foi aberta com um
chute que estremeceu o quarto. A atmosfera de amor entranhada nos lençóis, em
cada uma daquelas paredes, dissolveu-se de repente no ódio eminente nos olhos
do Dr. Juca Rebelo.
Esse
era o plano de Delano.
Mais uma vez flagrada em sua
fragilidade de mulher.
— Calma, vô! A gente pode
explicar! — antecipou-se Delano.
Explicar?
Canalha! Ele planejou tudo...
Cândida cobriu-se com o
lençol, enquanto Delano expôs-se em pé, despido. Com certeza, estrategicamente
com o objetivo de piorar as coisas, rasgando uma intimidade que lhes pertencia.
Pronto, ele dizimava de vez a família de seu pai.
— Vista-se! — ordenou o velho.
Delano procurou as roupas do
lado e obedeceu, à medida que Cândida tomou o robe e tratou também de se
recompor, enquanto Dr. Juca deu as costas, para que ambos estivessem prontos a
uma conversa.
Pela primeira vez Cândida não
temia nada. Parecia tomada de uma dormência que a manteve firme, com um desejo
latente de enfrentar a verdade com todas as suas consequências e o que dela
também pudesse desfrutar.
Sabia que Dr. Juca já a havia
perdoado uma vez, quando o caso da paternidade de Lucas fora descoberto no
passado. Tinha sido ele o grande responsável pela mentira de seu casamento em
todos aqueles anos. Tudo para manter as aparências, vender a imagem de família
feliz, necessária ao Chiamare.
Talvez fosse possível um novo
perdão. O sogro era capaz de tudo pelo status de perfeição e honra familiar,
como matar a própria filha em vida, por não conseguir submetê-la aos seus
desígnios. O fato é que se sentia segura para tomar qualquer decisão. O que a
encorajou a embarcar nesse novo jogo de Delano.
— Eu a recebi como uma filha
nessa casa. — lamentou o sogro, de costas.
Filha?
Hipocrisia!
— E eu me comportei como tal,
fazendo tudo o que o senhor queria. — respondeu de pronto.
Abneguei
de minha felicidade em nome de sua família.
— Traindo meu filho com seu
próprio enteado? — foi quando Dr. Juca se voltou a eles.
— Nós só descobrimos que
estávamos apaixonados agora. — mentiu Delano.
— MENTIRA! — O grito foi mais
forte que ela. — Chega de mentiras!
— Vocês mataram o meu filho! —
concluiu Dr. Juca, com a mão no peito e a respiração ofegante.
— Não foi nossa culpa! — afirmou
Delano.
— Foi sim! — Cândida descordou
firmemente. — Ele havia descoberto que estávamos tendo um caso. Na verdade, foi
um conjunto de fatores.
Minha
mãe foi perseguida, juntamente com minha avó. Passaram anos se escondendo com
uma criança no colo. Até que numa emboscada, ela foi atingida por uma bala na
perna, que a deixou aleijada. Foi essa bala que começou a matá-la, de vagar! A
história de Delano se fez bem viva em sua memória naquele momento. FORAM VOCÊS QUE MATARAM MINHA MÃE!
— Edgar saiu naquela tarde
decidido a prestar contas com o senhor. — completou ela.
— Você está querendo jogar a
culpa pela morte do meu filho em mim?
— Não. Foram muitos fatores
que o levaram ao desespero naquele dia, mas não sou eu a única responsável.
— E você? — Dr. Juca voltou-se
inteiramente a Delano. — Como pôde fazer isso com o próprio pai?
Delano mudou a fisionomia com
aquela abordagem. Parecia uma fera se armando.
— É irônico o senhor me
perguntar isso quando teve coragem de expulsar a própria filha de casa e fingir
por vinte anos que ela estava morta.
— O que sabe sobre nossa
família, rapaz? Você não sabe nada! — afirmou o velho categoricamente.
— O suficiente para não querer
fazer parte dela. — retrucou o jovem, com a mesma empáfia, encarando-o de
frente. — O senhor, com toda a arrogância e o poder que lhe cabe, matou a minha
mãe!
— Estava defendendo a minha
família. — justificou o velho, com naturalidade.
— E eu a memória da minha mãe.
— complementou Delano. — O fato é que o senhor não tem moral nenhuma para
cobrar nada de mim, nem da Cândida ou de qualquer pessoa que seja!
Ele
está mesmo me defendendo?
Não compreendia a estratégia
de Delano.
— A família “Rebelo”... — ele
pronunciou aquele sobrenome com desdém. — ...é uma grande mentira, um negócio
criado pelo senhor pera enriquecer às custas de pessoas idiotas, pobres de
espírito, que respiram aparências, como o senhor.
Sentiu vontade de vibrar e por
um instante orgulhou-se daquele menino-homem. Delano expressou tudo o que ela
desejava, enfrentando de igual para igual uma figura temida por todas as
pessoas. O que a motivou a fazer o mesmo.
Chega
de viver um personagem! Chega de ser infeliz em nome de uma mentira!
Experimentou um instante de
felicidade e alívio em seu coração, libertando-se de uma vez por todas de seu
maior inimigo, a eterna vítima criada por ela mesma para justificar e superar o
medo da rejeição.
— Trazê-lo para dentro da
minha casa foi um grande erro! — concluiu Dr. Juca.
— Pois vir para cá foi um de
meus maiores acertos. — retrucou Delano, sorrindo. — Aqui tive a oportunidade
de descobrir quem realmente sou. E definitivamente, Dr. Juca, não sou um
Rebelo. Sou simplesmente o filho da minha mãe.
— Você cometeu um grande erro,
rapaz. — o avô o advertiu.
— Nós não temos medo do
senhor! — afirmou Delano, com um sorriso de cumplicidade voltado a Cândida.
Nós?
— Quanto a mim, Dr. Juca,
fique tranquilo. Vou deixar esta casa o mais rápido possível — anunciou
Cândida, com uma alegria que não cabia em seu peito.
— Em hipótese alguma. — o
sogro foi enfático. — Este assunto se encerra aqui, Cândida. Continua sendo a
minha nora querida e nunca mais falaremos sobre isso.
Delano a olhou chocado, mas
era exatamente a postura que Cândida esperava.
Momento de decidir! Tentar
ainda ser feliz ou permanecer numa mentira?
— Não precisa responder agora,
minha querida. — o sogro procurou tranquilizá-la, com o sorriso cínico e a
gentileza que lhe era peculiar. — Quanto a você, rapaz. — voltou-se a Delano,
com uma expressão de dureza. — Vá embora de minha casa imediatamente. Em
seguida caminhou em direção à porta.
— Dr. Juca? — Cândida o
chamou.
Precisava saber da verdade.
— Sim? — respondeu sem olhar
para eles.
— Como soube que estávamos
juntos?
Queria ter certeza das
estratégias doentias de Delano.
Nesse momento, Cândida viu a
meia imagem de Salomão na porta de seu quarto. O filho trocou um olhar de
cumplicidade com o avô.
Aquilo foi como ácido
corroendo implacavelmente cada uma de suas células.
69
— Vamos, filho? É hora de
voltar a ser o Pescador de Vidas! — O homem de voz grave trazia no rosto um
sorriso afogado em lágrimas e um olhar familiar. Ao movimentar-se, a luz do
poste mais próximo revelou-lhe a identidade. Diogo, o tio amado.
Chegava ao fim sua jornada
como andarilho, experimentando na própria pele os mesmos sentimentos daqueles a
quem deu a mão no passado e os tirou do mundo sombrio de uma realidade
esquecida pelo conforto egoísta da sociedade.
Lucas olhou à sua volta e viu
outras pessoas dormindo em cima de papelões, procurando se refugiar do frio
daquela noite. Focou o desenho de um escador jogando sua rede ao mar na camisa
do tio, e sorriu. Segurou-lhe a mão estendida e foi direto para seus braços,
desfrutando do aconchego de um colo afetivo. Diogo o cobriu de beijos, rindo
como uma criança.
— Como eu te procurei,
garotão!
Aquele tempo nas ruas, vivendo
como mendigo, fora necessário para sentir a liturgia que o contato pleno e o
amor consigo mesmo proporciona, conduzindo-o invariavelmente à experiência de
Deus. Longe dos seus, das dores, dos desejos do ego, tivera a oportunidade de
se encontrar verdadeiramente com sua missão.
— Foram quarenta dias de
angústia! — partilhou Diogo, num choro feliz.
Quarenta
dias!
O necessário para saber-se, no
chamado mais forte de Deus em sua vida.
Recordou-se do momento em que
encontrou com o irmão na rua e por muito pouco não se entregou novamente aos
convites sedutores do próprio ego, desejando aquilo que nunca tivera — a vida
do outro.
A
tentação!
Tempo de purificação e cura.
Sentia-se livre para cumprir a missão a ele confiada.
Diogo colocou a mão no peito
de Lucas, na altura do coração e o mesmo retribuiu o gesto, como de costume.
— Vamos para casa? — propôs
Diogo.
Sim.
Como o filho pródigo, que volta à casa do Pai.
70
— Entregue
nas mãos de Laura Ponte. — Thomás orientou o motorista, passando-lhe um
envelope amarelo.
O
homem assentiu e saiu.
O som
de notificação do celular o avisou do recebimento de um novo e-mail. Ele sentou
diante do laptop e acessou sua conta,
identificando a mensagem com assunto “confidencial”. Esperava por aquele e-mail
há dias.
As provas que faltavam contra nosso homem!
No
primeiro anexo, as duas versões do laudo médico elaborado pelo Dr. Feliciano
Guerreiro acerca de Thomás, uma do lado da outra. Na primeira, nominada no
arquivo de “Versão Original”, a conclusão da ausência de qualquer transtorno
mental. Na segunda, respectivamente, nominada de “Versão Oficial ou Adaptada”,
a confirmação de que sofre de um nível médio de esquizofrenia, criando um mundo
paralelo.
O
motivo pelo qual cumpriu os doze anos de prisão impostos pelo tribunal, sem
direito a liberdade condicional. Uma farsa!
Thomás
baixou a cabeça e respirou fundo. Sentiu raiva pela maldade humana.
Abaixo,
no arquivo, trocas de e-mails entre Feliciano e Juca Rebelo, negociando
valores, datados dos mesmos períodos em que a defensoria pública requisitava a
liberdade de Thomás. Bem como cópias de extratos bancários, comprovando os
depósitos nas datas especificadas.
R$ 200.000,00
R$ 250.000,00
R$ 400.000,00
R$ 500.000,00
R$ 750.000,00
Um total de dois milhões e cem
mil reais compraram os laudos falsificados do Dr. Feliciano Guerreiro à
justiça, garantindo a prisão de Thomás por todos aqueles anos.
Em outros anexos, o mesmo em
relação a outros processos judiciais, fazendo do médico um homem milionário com
inúmeras fraudes à justiça.
Thomás respondeu o e-mail
imediatamente.
Bom
trabalho.
Os
outros R$ 500.000,00 serão transferidos logo mais para sua conta.
Att,
TS
O jovem e ambicioso hacker
contratado por ele a peso de outro para se infiltrar como auxiliar
administrativo na clínica do Dr. Feliciano havia feito um belíssimo trabalho de
investigação, nos últimos meses, tanto na vida de Juca Rebelo quanto nos
arquivos do psiquiatra. Enviando-o ao seu contato na polícia, com cópia para
Laura e Diogo.
MENSAGEM ENVIADA COM
SUCESSO
Thomás sorriu e levantou-se.
Mais um inimigo desmascarado. Faltavam as conclusões finais de Laura e Diogo
sobre o caso de Eliane logo que recebessem o envelope, e tudo estaria
terminado.
Em seguida, fechou o laptop, encerando ali uma página de sua
vida, abotoou o paletó e deixou o escritório do Chiamare para sempre. Caminhou
imponente, pela última vez, vestido de Saulo Sobreira pelos corredores da sede
da comunidade. Aquele lugar não mais o representava.
Quando passou em frente à
entrada de uma das capelas do centro, sentiu um desejo forte de parar e o fez.
Podia ouvir o forte pulsar do próprio coração, na eminência de um reencontro
que procurou evitar em todos aqueles anos. De repente, após concluída sua
missão de justiça, por que não?
Uma forma de confrontá-Lo.
Seguiu devagar os próprios
passos em direção à capela. Ao atravessar a porta, pôs-se diante de sua maior
mágoa, fitando o sacrário na parede do fundo e a lâmpada em forma de chama que
identificava a presença do Santíssimo.
Pela primeira vez em doze anos
se viu novamente cara a cara com Deus.
Está
brincando de ser Deus, Thomás. Recordou-se da afirmativa de
Juscelino.
— E eu venci!
Esta
rivalidade é uma fantasia, quando é Ele que te dá forças para continuar vivo e
lutar por aquilo que acredita. Mesmo que esta luta seja contra Ele ou contra
você mesmo. Aquelas declarações ainda reverberavam.
Thomás caiu de joelhos na
passarela entre as poltronas da capela que ia de uma extensão a outra do local.
Senhor,
tu me sondas e me conheces. Sabes quando me sento e quando me levanto; de longe
percebes os meus pensamentos. Sabes muito bem quando trabalho e quando
descanso; todos os meus caminhos te são bem conhecidos.
Conhecia inteiramente o salmo
cento e trinta e nove. Aquela passagem sempre o emocionava. Nunca mais tinha
lhe chegado de forma tão forte em seu coração.
Antes
mesmo que a palavra me chegue à língua, tu já a conheces inteiramente, Senhor.
Tu me cercas, por trás e pela frente, e pões a tua mão sobre mim. Tal
conhecimento é maravilhoso demais e está além do meu alcance, é tão elevado que
não posso atingir.
Sentiu uma força descomunal
pressionando seu peito de dentro para fora e um desejo forte de chorar, mas
procurou conter.
Para
onde poderia eu escapar do teu Espírito? Para onde poderia fugir da tua
presença? Se eu subir aos céus, lá estás; se eu fizer a minha cama na
sepultura, também lá estás.
Por que fora tomado por
aquelas passagens bíblicas? Terminara sua jornada de justiça. Pronto. Não tinha
mais nada a fazer ali.
O
meu chamado é levar a palavra de Deus ao coração dos feridos e ajudar as
pessoas nas ruas. Recordou-se veementemente de quando anunciou
aquilo ao Pe. Giuseppe, há vinte anos. Olhou firme para o sacrário.
Que diálogo Ele queria
estabelecer? Prestar contas, por ter feito justiça contra Ele?
Vim
para fazer justiça!
Vim
para servir!
Vim
para fazer justiça!
Vim
para ajudar o outro!
Vim
para fazer justiça!
Vim
para pescar vidas!
— NÃO! — gritou visceralmente,
entregue a um choro compulsivo. — O que quer de mim? Hein? DIZ!
O sacrário continuava impávido
diante dele, rasgando todas as vestes de sua alma. Sentiu um fogo queimar o
abdómen e um arrepio que parecia elevá-lo. As lembranças do carisma, das
missões nas ruas, dos rostos sorridentes na evangelização e entrega de
alimentos, das pregações tornaram-se tão vivas. Depois, as imagens da mulher
morta ao seu lado na cama, das algemas que o transformaram em amargura, do
veredito no tribunal, da cela se fechando em suas costas, do inferno vivido na
prisão. E por fim, o enterro de Edgar, a morte de Pe. Giuseppe, a tristeza de
Laura, o sofrimento de Lucas.
A figura do Demônio se fez
presente em sua frente através da própria imagem e semelhança, vestido de Saulo
Sobreira, com olhos negros, pele rachada e um sorriso macabro, denunciando seu
feito.
— Vim para fazer justiça — disse
o Demônio.
A justiça que mata, magoa e
faz sofrer.
Thomás recordou-se de Jesus,
quando no momento da crucificação, questionou Deus por tê-lo abandonado. Mais
uma tentação do Demônio. Ele havia passado pela mesma provação, em doze anos de
condenação injusta, mas deixando-se encharcar completamente pelo ódio gerado
nas ações do inimigo. A traição de Saulo, Judas, desvirtuara-o de seu caminho,
fazendo-o fracassar na maior das tentações.
— Eu me deixei vencer pelo
inimigo!
Buscar ou lutar pela verdade,
não havia mal algum. A distância de si mesmo e a perdição de seu chamado
residia na força de Thanatos, da justiça realizada pelas próprias mãos ou
vingança como Juscelino e Pe. Giuseppe consideravam.
Mentir, enganar, destruir!
— Olho por olho, dente por
dente — insistiu a figura do Demônio. — Onde estava o teu Deus quando mais
precisou?
E veio o momento em que
conheceu Juscelino, no primeiro dia em que chegou ao presídio. Em nenhum
instante esteve só. Este ficou ao seu lado durante toda a jornada na prisão,
independente dos surtos ou agressividade incontida de um cotidiano limitado.
Companheiro fiel, presença amiga e diferenciada de uma lealdade inabalável.
Deus
esteve comigo o tempo todo, na presença de Juscelino!
Thomás experimentou tão
fortemente a presença de Deus, feito no passado. Na verdade, percebeu que Ele
nunca o havia abandonado, mesmo nos momentos mais difíceis, quando o hostilizou
e blasfemou contra Ele. Ainda assim, foi cuidado e acolhido em seu colo,
encontrando força vital onde não existia.
Eu
sei que tu me sondas.
Vim
para levar o pão e o vinho.
Vim
para ser o Pescador de Vidas.
A figura macabra se desfez e
ele se curvou até o chão, num choro de alegria, por retornar à casa do Pai. Foi
o próprio Thomás quem o tinha abandonado e não o contrário, como pensou todos
aqueles anos.
— Perdão, Senhor! Perdão por
tê-lo abandonado! Perdão!
E novamente se encontrou com
Deus dentro de seu coração. Como nascer de novo, depois de um sono mortal de
doze anos.
— Teu Pescador de Vidas está
de volta, Senhor! — declarou de braços abertos, com imenso sorriso, tomado pela
emoção que lhe cabia.
71
Cândida
abraçou o filho tão fortemente parecendo que nunca mais o largaria. Fora ao
apartamento de Diogo, de manhã cedo, após o telefonema do mesmo trazendo a
melhor notícia que podia receber naqueles dias.
— Você
está bem, meu querido? — procurou saber, tocando em seu rosto, nos braços, no
peito, ansiosa e feliz por tê-lo de volta e seguro.
— Sim,
mãe! — confirmou Lucas, sorrindo.
Ele
trajava roupas limpas, provavelmente um número maior que o seu. Mas estava
muito magro — as marcas que a vida nas ruas lhe deixou.
— O
Lucas está inteirinho, não falta nada. — brincou Diogo, com uma caneca de chá,
ao lado dos dois.
— Ele
precisa descansar um pouco, se recuperar. — comentou Laura.
Cândida
olhou para Diogo com imensa gratidão e extremamente emocionada. Uma mãe não é
nada apartada violentamente de seus filhos.
— Não
sei como agradecer, Diogo.
— O
Diogo não sossegou enquanto não o encontrou. — revelou Laura, abraçando o amigo
afetivamente.
— Foi
difícil. — disse ele. — Esse moleque não queria ser achado. — piscou o olho
para Lucas.
— Por
que fez isso, filho? — Cândida se antecipou. — Não sabe o quanto sofri.
— Desculpa,
mãe. Foi necessário. Esse tempo me fez enxergar muita coisa e descobrir minha
verdadeira missão.
— Bom,
nós vamos deixar vocês conversando. Precisamos ir. — anunciou Diogo, pousando a
caneca no balcão.
Os
dois despediram-se e os deixaram a sós.
Cândida
aproveitou e encheu o filho de beijos. A alegria de vê-lo a salvo, não cabia em
seu coração. Ele, como um menino travesso, fugindo dos beijos com largo
sorriso.
— E
agora, meu querido? O que vai ser? — momento de falar sério.
Lucas
levantou, caminhou um pouco até a porta que dava para a varanda pelo sol
daquele início de manhã, fechou os olhos e recebeu o vento que veio ao seu
encontro. Depois, girou o corpo em direção a ela, mostrando-lhe as mãos.
— Deus
me deu um dom, mãe. — assumiu finalmente. — Agora a responsabilidade de saber
que tenho que usá-lo. — direcionou o olhar para as próprias mãos. — De saber
como usá-lo.
Ela
aproximou-se e o olhou ternamente nos olhos.
— O
que pretende nesse novo momento?
— Conversei
a noite inteira com o tio Diogo. Ele me entende melhor que qualquer pessoa, sabe?
— Claro,
meu querido. O Diogo sofreu o mesmo que você por não aceitar o dom.
— Pois
é, mas agora ele me ajudou a enxergar o meu chamado mais forte.
— E
qual é?
— O
carisma do Chiamare precisa ser retomado na íntegra. Nós servimos através da
cura do espírito, mãe. Esta é a minha missão.
Parecia
estar diante de Thomás, no passado. Ele falava da mesma forma. Logo lembrou da
tragédia, de como o fundador do Chiamare havia se perdido em meio ao carisma e
a manutenção da obra, dos interesses envolvidos, do jogo de poder e as
consequências que lhe cabe no cotidiano.
Cândida
temeu pela vida do filho. Aquilo lhe trouxe uma angústia exorbitante. Não
queria vê-lo acabar como o pai. Isto é, nem sabia mais ao certo de quem Lucas
era filho. O fato é que desejava outro futuro para ele, longe daquela
realidade, de tudo o que lhe fizera sofrer, sem poder levar uma vida normal. E
fundamentalmente, distante do destino de Thomás.
O que
podia ser feito diante de uma decisão já tomada? Pensou em falar com Diogo.
Lucas o ouvia e talvez pudesse mudar de ideia. Algo precisava ser feito para
impedir aquela insanidade. A imaturidade da juventude o impedia de enxergar o
óbvio. Cabia a ela, como mãe, este papel.
— E o
Saulo, Lucas? Ele é o líder do Chiamare. Tem noção de que comprará uma briga?
Foi este o mesmo motivo de desentendimentos e racha dentro da comunidade, com
Thomás, no passado. Não quero vê-lo envolvido neste jogo, meu querido. — advertiu-o,
tocando-lhe o rosto delicadamente.
— A
senhora não está compreendendo. Não é uma decisão do ego, mãe. Esse chamado me
veio durante o tempo de retiro nas ruas. O carisma do Chiamare é necessário,
vital nos dias de hoje.
— Meu
querido, existem forças contrárias que movimentam uma entidade do porte do
Chiamare. É disso que tenho medo. Não quero vê-lo ser corrompido ou sofrer as
consequências de quem rema contra esse sistema. Falo da política institucional.
— O
tio Saulo não será empecilho, acredite!
Ele
falava com tanta convicção que por pouco não lhe convencia.
E o Dr. Juca?
Não
podia entrar em detalhes sobre ele, para proteger o próprio filho. Porém aquele
homem era o presidente do conselho administrativo, a maior força contrária e
política da instituição, por isso ela sabia melhor que ninguém do que era capaz
de fazer para tirar os inimigos do caminho, independente de quem fossem.
— Nem
meu avô, mãe. — completou Lucas.
— Hã?
Ele
parecia responder aos seus pensamentos.
— Meu
avô, — repetiu ele. — também não será empecilho.
Pura inocência!
— A
senhora não compreende. — insistiu Lucas. — Deus falou no meu coração. Começará
um novo tempo no Chiamare. Além do mais, o tio Diogo estará inteiramente do meu
lado.
— O
Diogo?
— Sim.
Ele voltará à obra e nos ajudará a restabelecer o carisma.
Cândida
sorriu, surpresa. Com a presença de Diogo tudo seria diferente.
72
Thomás
retirou o paletó e o pendurou no braço. Desabotoou a camisa e a colocou para
fora da calça. Começava a se desfazer do personagem assumido nos últimos meses.
Em seguida, deixou a capela e caminhou pelos corredores do Chiamare em direção
à saída. Não precisava levar nada consigo. Já tinha de volta o necessário.
— Thomás?
Ouviu
o som da própria voz atrás dele. Quando se virou, teve a visão de Saulo, o
impecável e vaidoso Pescador de Vidas de volta. Sentia forte dor de cabeça,
talvez pelo choro há pouco diante do Santíssimo. Certamente os olhos estavam
inchados e achava-se um trapo.
— Não
se preocupe, estou deixando o Chiamare. — anunciou, abrindo os braços em sinal
de paz.
— E o
que o faz pensar que pode ir embora assim? — interpelou o outro. Mas estava
diferente, o olhar, o tom da voz. Não parecia o irmão.
— Tudo
está terminado, Saulo. — justificou, olhando-o de modo a perscrutá-lo. — Finalmente
a justiça será feita. E diferente do que pensa, não precisarei sujar minhas mãos,
usar das mesmas armas que vocês.
— O
que quer dizer com isso?
Alguma
coisa de muito estanho o distanciava da figura de Saulo Sobreira.
— A
polícia cuidará do Dr. Juca e do Dr. Feliciano. Quanto a você, em breve a morte
de Eliane será esclarecida.
— Não
tenho nada a ver com a morte dela. — falou Saulo, sem a menor convicção.
Thomás
procurou a hostilidade no irmão e não encontrou.
O que houve com ele?
— Quer
saber? Não tenho mais tempo, nem paciência para isso, Saulo. Estou cansado
desse seu joguinho. Se a intenção era me deixar louco, junto ao Dr. Feliciano,
não gaste seu latim. A essa altura a justiça já está com as provas de que vocês
falsificaram o laudo médico que me manteve na cadeia durante esses doze anos.
Não precisa mais continuar mentindo, meu irmão. Em breve seu reinado também
desmoronará. Eu não precisarei fazer mais nada.
Por um
momento Saulo parecia não ter o que dizer.
— O
que e faz acreditar que fui eu quem matou a Eliane?
Que pergunta mais descabida!
— Na
verdade acredito que foi uma conspiração de todos vocês. A Eliane vinha
chantageando o Dr. Juca, e ele tinha razões mais do que suficientes, dentro da
cabeça podre dele, para matá-la, e de quebra me tirar de seu caminho. Naquele
momento você seria o fantoche mais apropriado. Invejoso, ambicioso, tudo o que
ele precisava.
— Posso
te fazer só uma pergunta?
Saulo
estava muito diferente, calado, observador.
Thomás
sorriu e deu de ombros.
— Como
foi estar sozinho durante todos esses anos?
Definitivamente,
o irmão parecia ter enlouquecido.
— Eu
não estive só, — referia-se a Deus e Juscelino. — mas pensava que estava e até
então, fui a pessoa mais infeliz desse mundo. O que mais me doía era a saudade
e a falta de compreensão do por quê. Levei uma vida de doação e serviço ao
outro e fui abandonado por todos, traído por quem amei. Engoli a solidão e fiz
dela uma companheira. O que me motivou a voltar e fazer justiça com as próprias
mãos, mas diferente do que eu pensava, isso não me trouxe de volta a
felicidade.
Saulo
deixou escapulir uma lágrima. Um lampejo de arrependimento?
— Eu
te entrego de volta o que é teu, meu irmão. — girou a cabeça, focando a
estrutura do prédio. — O que eu deixei não tem nada a ver com isso. A minha
missão não é mais aqui. Meu chamado é para o mundo.
O
irmão caiu em prantos, e Thomás finalmente o reconheceu. De repente, a terceira
figura, à sua imagem e semelhança, surgiu por trás de uma coluna, também
vestido como eles, o verdadeiro Saulo. Pela primeira vez em doze anos, os três
irmãos gêmeos, juntos de novo. Na verdade, havia conversado com Diogo, todo
aquele tempo. O irmão, companheiro e cúmplice de uma vida o tinha enganado por
alguns instantes.
Thomás
foi dominado por uma saudade que parecia arrebentá-lo por dentro. Diogo
aproximou-se devagar e tocou em seu rosto. Ele fez o mesmo, e choraram juntos.
Em seguida, o outro o envolveu num forte abraço que quase os esmagou.
— Por
que me abandonou? — não teve como evitar aquela pergunta.
— Covardia,
medo. — respondeu Diogo, sem largá-lo. — Uma decepção infundada.
— Eu
quis tanto esse abraço nesses doze anos!
— Me
perdoa? — indagou Diogo.
Não
tinha o que ser perdoado. Apenas não queria sair daquele abraço nunca mais.
— Está
tudo bem. — afirmou Thomás.
— Me
perdoa! — insistiu o outro.
— Claro!
— confirmou um perdão constituído diariamente em todos aqueles anos.
— O
Thomás tem dívidas com a justiça. — lembrou-os Saulo, ao lado.
Finalmente
Diogo o soltou do abraço, voltando-se ao outro irmão.
— Dívidas?
Não seja ainda mais canalha, Saulo! — interviu.
— Ora,
vai defender o irmãozinho? — Saulo ironizou. — Acreditou por doze anos que ele
fosse um assassino. Mudou de ideia por causa de um abraço?
Por um
momento, Thomás sentiu pena de Saulo, por se deixar dominar pelos rancores e a
inveja.
— O
Thomás não deve mais nada à justiça! — Diogo o defendeu. — Ele pagou doze anos
por um crime que não cometeu. Isso é mais do que crédito.
Bom
tê-lo de volta!
— Diogo,
você não entende. — Saulo parecia mesmo desesperado. — O Thomás é perigoso! Ele
está distorcendo os fatos e vai acabar com todos nós!
— CHEGA!
— Diogo gritou. — É hora de voltarmos a ser uma família, independente do que
tenha acontecido! A verdade virá à tona mais cedo ou mais tarde.
Viria
mais cedo, logo que Laura recebesse o envelope e o encontro marcado entre o Dr.
Juca Rebelo e Saulo para planejarem a morte de Thomás acontecesse. Tudo seria
gravado, como havia pensado. E finalmente, o irmão desmascarado.
73
Laura
saiu do táxi e foi em direção ao portão do prédio de Diogo, quando o motorista
do Chiamare a abordou. Ela se assustou, mas logo o reconheceu.
— Mandaram
lhe entregar isto. — explicou ele, entregando-lhe o envelope amarelo.
— Quem
mandou? — Laura procurou saber.
— É
importante. — foi a única resposta que obteve, antes do motorista ir embora.
Com
certeza tinha sido Saulo, ou Thomás, se sua versão sobre o suposto sequestro
fosse verdadeira.
Laura
verificou que nenhuma informação foi registrada no envelope, nada que pudesse
lhe adiantar o que havia dentro. Entrou no prédio, e no elevador, sucumbiu à
curiosidade, rasgando com cuidado uma das extremidades do misterioso envelope.
Em seguida, retirou de seu interior um laudo médico. Tratava-se da autópsia de
Ricardo Cordeiro, o marido de sua tia, por quem tinha se apaixonado há vinte
anos. Ela tentou controlar o tremor nas mãos ao deparar-se com aquelas
informações. Segundo o documento, a morte do paciente fora causada por uma
quantidade excessiva de barbitúrico encontrada em seu organismo. Isto é,
Ricardo não tinha morrido por complicações cirúrgicas, como alegara o Dr. Juca,
mas realmente assassinado.
No
envelope também continha uma cópia do falso atestado de óbito com a assinatura
seu pai.
— Meu
Deus!
Laura
saiu do elevador meio zonza, e acabou sentando na porta do apartamento de
Diogo. Dobrou os joelhos para apoiar os documentos e poder apreciá-los com mais
calma. Precisava ter certeza de que seu grande amor fora realmente assassinado.
Não há dúvida!
Em
seguida, vasculhou mais uma vez o envelope e achou algumas fotografias no
fundo. A primeira imagem a deixou sem respirar, por não acreditar no que vira.
Dona Augusta, sua mãe e Ricardo se beijando.
— Santo
Deus, o que isso significa?
Passou
as fotografias, esboçando outros momentos de afeto comprometedor entre os dois,
datado da mesma época em que Laura e ele se relacionavam.
Minha mãe tinha um romance com Ricardo?
— Como
assim? Nessa época nós estávamos juntos.
Olhava
as fotografias, verificava bem as datas, os lugares ao fundo, e procurava o que
desmentisse aquela loucura. O homem pelo qual fora tão apaixonada e perdera
tudo, mantinha um romance com mãe e filha ao mesmo tempo. Estranho, mas sentiu
a dor de uma traição vivida há vinte anos, como se fosse hoje. Por ele
enfrentou o pai, foi expulsa de casa e amargurou numa saudade quase mortal,
impedindo-se de amar novamente.
Canalha!
Por
isso seu pai o odiava tanto. Até hoje não compreendia o porquê de tanta
rejeição a Ricardo, visto que era viúvo de sua irmã. Dr. Juca sabia melhor que
ninguém que ele não prestava.
Diante
da descoberta, Laura temeu o que pensou. Lembranças apagadas de seu passado
voltaram e ela associou ao que havia conversado poucas horas antes de chegar
ali com o sacristão de Pe. Giuseppe.
Se
Saulo ou Thomás, não importava quem, enviou-lhe aqueles documentos, certamente
não imaginava que ela fosse conseguir estabelecer uma teia entre os crimes de
Ricardo, Eliane e Pe. Giuseppe. O remetente acreditava no máximo que estaria
incriminando o Dr. Juca Rebelo por um deles.
No
entanto, a situação era mais complexa do que aparentava.
Laura
sentiu-se perdida, sem referencial, lamentando as últimas conclusões e
alimentando um fio de esperança de que fossem equivocadas. Porém a revelação do
sacristão, aqueles documentos e as lembranças que se faziam vivas sobre o
passado davam-lhe a certeza de que estava correta em suas conjecturas.
Sabia
quem era o verdadeiro assassino.
Pensou
em ligar para a polícia e pedir ajuda. Talvez entrar em contato primeiramente
com Diogo. Ele com certeza saberia o que fazer. Encontrava-se muito abalada
emocionalmente e não tinha condições de raciocinar sozinha. Aquela descoberta a
tinha deixado sem chão.
— Não
pode ser verdade!
Mas
era!
Ela
retirou o celular da bolsa, procurou o nome de Diogo na agenda e ligou.
— Alô,
Diogo? — estava apreensiva. — Eu sei quem matou a Eliane. Foi a mesma pessoa
que assassinou o Pe. Giuseppe e também o Ricardo, há vinte anos. Não tenho como
adiantar muito por telefone. Preciso de você!
74
Thomás
aguardou que a empregada do Dr. Juca Rebelo saísse, e usou uma chave-mestra
para destrancar a porta da cozinha do apartamento do médico. Abriu-a com
cautela e entrou devagar, aguardando no portal de uma dispensa, para que as
outras duas empregadas presentes no ambiente não percebessem sua presença. As
moças conversavam baixinho sobre o caso de Cândida e Delano, mas não dava para
ele definir o que elas falavam. Em seguida, o som da fofoca foi ficando mais
distante, até desaparecer por completo, constatando que o caminho estava livre.
Todo
cuidado era pouco, a fim de não ser notado por ninguém. Certamente Saulo e
Guilhermina já se encontravam no escritório com o presidente do conselho,
arquitetando a morte de Thomás, como haviam combinado no dia anterior. As
câmeras e microfones instalados secretamente na casa lhe renderiam as provas
necessárias para desmascarar o irmão e quem sabe render algumas pistas sobre a
verdade acerca da morte de Eliane. O link da transmissão estava conectado
diretamente com seu contato na polícia, que já montavam guarda fora do
apartamento, com o objetivo de prender o Dr. Juca. Bem como com o celular de
Laura, que seria surpreendida online com as imagens do escritório do pai.
Contudo,
Thomás não queria perder aquilo pessoalmente. Seria sua última ação antes de
partir.
Ele
atravessou a enorme sala de estar do apartamento e se escondeu por trás de
grossas cortinas de uma janela próxima à porta do escritório. Ajeitou o ponto
no ouvido e acessou as imagens do ambiente no outro lado da parede, através do
celular. Na tela do aparelho,
Guilhermina aparecia sentada de costas e Dr. Juca à sua frente. Saulo estava de
pé, ao lado.
— O que o senhor quer que eu faça? — Indagou
Saulo.
— Marque um encontro com ele no sítio,
onde foi seu cativeiro. — respondeu o médico. — Lá você dá a ele o que ele merece. — puxou
de dentro da gaveta uma pistola e estendeu-a na direção de Saulo.
O
irmão pegou a arma e analisou-a.
Triste
assistir aquela cena, uma pessoa planejando a morte do próprio irmão.
— Foi assim com Eliane? — Saulo
o abordou.
Ele não sabia?
— Saulo, meu querido, não temos mais tempo
a perder. — advertiu Guilhermina.
Vaca!
— Acham que eu sou idiota? — Saulo
parecia se rebelar, pondo a arma em cima da mesa. — Agora vocês querem me tirar do caminho como fizeram com Thomás.
— Opa,
opa... O que está acontecendo aqui? — Thomás falou consigo mesmo, procurando
ajeitar novamente o ponto no ouvido. Achava ter entendido errado.
— Você está louco, Saulo? — foi
Guilhermina que interviu.
— Pelo contrário, muito lúcido. — respondeu
ele de pronto. — O plano é: eu mato o
Thomás, vocês me incriminam e assumem de vez o poder no Chiamare. Correto?
— O que está acontecendo? Está com a mesma
paranoia do seu irmão? — Dr. Juca levantou.
— Ei,
que jogo é esse? — Thomás comentou novamente, atento à imagem na tela do
celular.
Nesse
momento, o som da campainha invadiu o ambiente. Ele procurou ficar imóvel,
pressionando contra a parede, a fim de que ninguém o notasse por trás das
cortinas. Acompanhou por uma fresta a empregada atendendo a porta e sala sendo
invadida por Laura e Diogo.
— Onde
está o Dr. Juca Rebelo? — interpelou ela, firmemente.
Thomás
percebeu que Laura segurava o envelope amarelo na mão.
— A
senhora não pode entrar assim... — tentou impedir a empregada, sem sucesso.
— No
escritório, Laura. Vamos. — propôs Diogo, na direção onde Thomás estava.
Droga! Eles vão atrapalhar tudo! Logo
agora que podiam falar sobre Eliane.
— O
complô está formado para matar o Thomás? — Laura surpreendeu a todos, abrindo
as portas do escritório de repente.
Thomás
apreciou através do aparelho celular o espanto no rosto do Dr. Juca e do irmão.
Guilhermina se pôs de pé imediatamente. Ele ouvia o som através da porta aberta
e do ponto ao mesmo tempo.
— Continuem! — completou
Laura.
— O que quer aqui? — Dr.
Juca perguntou, com sua arrogância.
— Nós viemos esclarecer uma série de crimes. — foi
Diogo quem respondeu.
— Vocês devem estar loucos. — comentou
Guilhermina.
Exatamente
nesse instante, Thomás viu pela fresta da cortina que dona Augusta, a esposa do
Dr. Juca, descia as escadas do apartamento, já atenta ao que se passava no escritório.
— Não, Guilhermina. — disse
Laura. — “Vocês” estão loucos. Sei que
foi o senhor quem realmente matou o Ricardo, papai. — afirmou, retirando os
laudos médicos e fotografias de dentro do envelope e lançando-os sobre a
mesa.
Exatamente
como Thomás previa que aconteceria. Dr. Juca Rebelo era o assassino.
— Mas diferente do que eu pensava, não o
matou por minha causa. O senhor matou o Ricardo por ter descoberto que ele
também mantinha um romance com a mamãe.
Thomás
viu claramente que estavam todos chocados.
— Aí estão as provas. — declarou
ela. — Oito anos mais tarde foi a sua vez
de traí-la, com Eliane, a prostituta resgatada no Chiamare. A mesma mulher que
apareceu morta na cama do Thomás. O senhor fez com que todos pensassem que eles
tinham um caso e que depois, o Thomás a matou.
— Isso,
menina! — Thomás vibrou baixinho, de onde estava.
— E há alguns dias precisou dar cabo
também da vida do Pe. Giuseppe. Ele era a única pessoa que sabia da verdade e
podia desmascará-lo. — Laura afirmou.
— Você tem a mente fértil. — foi
o único comentário do Dr. Juca.
— Não tem como negar, Dr. Juca. E a polícia já
está sabendo de tudo — anunciou Diogo.
— NÃO!
— gritou dona Augusta, na porta do escritório. — Isso não é verdade!
— Mãe, sinto muito, mas é verdade sim. — Laura
confirmou com cuidado, tocando no ombro de dona Augusta. — E a polícia já está
a caminho para levá-lo.
— Não foi ele! — disse
a mulher. Parecia muito nervosa.
Thomás
acompanhava tudo atentamente pelo celular, atrás das cortinas.
— Eu matei o Ricardo! — revelou
dona Augusta.
O quê?
— Augusta! — Dr.
Juca parecia tentar impedi-la.
— Chega de mentiras, Juca! — respondeu
a mulher.
— O que a senhora está falando, mamãe? — Laura
questionou-a.
— Quando descobri que o Ricardo também
estava tendo um caso com você, eu fiquei louca. — acrescentou
dona Augusta. — Raiva, ciúme, tudo ao
mesmo tempo. Ele havia conseguido acabar com nossa família. Então fui à noite
ao hospital, onde estava internado, após a cirurgia de apendicite, e apliquei
aquela injeção nele.
— Meu
Deus! — Thomás estava chocado, como
todos aparentavam na imagem que assistia. Laura se apoiou em Diogo, parecia
muito assustada.
— E a Eliane? —Diogo
perguntou.
— Augusta, não precisa responder. — advertiu
Dr. Juca.
— Quando descobri que ela estava tendo um caso
com meu marido, tratei de pôr um fim nisso, antes que ela também acabasse com
minha família.
— E pôs a culpa no meu irmão? — Diogo
questionou.
— Ele também estava destruindo a nossa
família. Nós havíamos acabado de descobrir que Lucas era seu filho. O Edgar
tentou se matar naquela época, e eu não podia permitir que ninguém lhe fizesse
tanto mal. Então arrastei o corpo de Eliane até a cama do Thomás e pus a arma
em suas mãos. A crise com nossa família já durava algumas semanas e eu sabia que
ele vinha dormindo à base de remédios. Acabei com dois problemas de uma só vez.
Saulo
pôs as mãos na cabeça com olhos arregalados e Laura afogou o rosto no peito de
Diogo.
— E o Pe. Giuseppe? — Saulo
citou, esboçando receio do que ouviria.
— Ele desconfiava que tinha sido eu a
matar a Eliane. Então, conversando com Juca, nós decidimos que eu me
confessaria. Assim o Pe. Giuseppe seria obrigado a guardar esse segredo. Mas
isso já foi muito tempo após o julgamento do Thomás. Recentemente, ele havia me
ligado dizendo que a Laura e o Diogo estavam em seu encalço. Não quis correr
riscos de ver minha família envolvida num escândalo. Precisei também calar o
padre.
— A senhora também assassinou o Pe.
Giuseppe? — visivelmente assustado, Saulo procurou ter certeza.
— Descobri através do sacristão que a
senhora havia estado lá, mas pensava ter ido atrás do meu pai. — comentou
Laura, com uma tristeza profunda. — Isso
tudo é monstruoso!
— Por isso a mantivemos longe, todos esses
anos. — dona Augusta justificou. — Para evitar o sofrimento, caso viesse a descobrir a verdade. E sabíamos
que o faria. Então, Juca e eu decidimos afastá-la de nós, de modo a acreditar
apenas que tivesse sido expulsa. Mas cuidamos para que seus caminhos fossem bem
conduzidos.
— Sinto muito, minha filha! — manifestou-se
Dr. Juca.
— Então o Thomás é inocente! — comentou
Saulo, muito abalado. — Incriminei meu
irmão todos esses anos! — Segurou-se na mesa, como se fosse despencar. — Meu Deus, o que eu fiz? — Dona Augusta, a
senhora é um monstro!
Thomás
finalmente saiu de trás das cortinas, das sombras que o aprisionavam no
submundo da marginalidade e aproximou-se de sua redenção. Sentia o calor das
próprias lágrimas banhando o rosto. Estava livre, finalmente absolvido de uma
culpa que não lhe cabia. Aterrorizado com a revelação da identidade da
verdadeira assassina, mas feliz pela justiça que se fazia.
Pôs-se
diante de todos e encarou-os, marcado na alma pela inocência desvelada. Homem
livre de acusações, de volta ao mundo dos vivos como Thomás Sobreira. Apreciou
em cada rosto a surpresa e a condescendência nos irmãos e em Laura.
Especialmente Saulo, observava-o de modo a demonstrar o que não conseguia
definir, se tristeza ou vergonha.
Ele
ensaiou um tímido sorriso em meio ao choro que o sucumbia e os deixou.
Um
silêncio se fez em seu interior. Passou pela polícia que acabava de invadir o
local e caminhou devagar para longe, em direção a uma nova vida. Deixando para
trás as mágoas, as feridas abertas, a amargura que o acompanhou até então.
75
O dia
amanheceu e Laura chorava na cama a dor pelas revelações da tarde anterior. Não
conseguira pregar o olho, e as poucas vezes em que havia cochilado fora
arremessada em terríveis pesadelos. Esperou vinte anos para estar novamente
perto dos pais e finalmente quando isso acontecia, descobriu que era melhor ter
permanecido longe.
Alguém
bateu na porta. Na verdade, preferia ficar só e continuar em silêncio.
Diogo
apareceu devagar pela fresta aberta e sorriu de um modo tão acolhedor, que
somente ele conseguia ser.
— Olha
só o que eu trouxe. — anunciou, mostrando uma caneca de chocolate quente.
Podia
sentir o aroma da mistura da canela, do jeito que ela gostava. Não tinha como
não sorrir.
— E
então, como passou a noite? — sondou ele.
Laura
se ergueu, recebendo a caneca de chocolate.
— Como
se descobrisse que meus pais são uns monstros. — procurou brincar.
— Ai.
Mas vejo que está com bom humor.
— Tentando
superar. — tomou um gole e quase queimou a língua.
— Ei,
cuidado. Assim pode se queimar.
O
chocolate estava delicioso.
Estendeu
a mão sobre o lençol e encontrou com a dele.
— Diogo,
obrigada por tudo. Acho que se não fosse por você, talvez eu estivesse ainda
mais perdida.
— Que
bom que te trago continente.
Ele
sorria de um jeito tão terno, capaz de curar boa parte de suas feridas.
— Nós
vamos superar isso juntos. — sentenciou Diogo, apertando sua mão.
Contudo,
haviam feridas abertas que jamais seriam curadas, nem mesmo Diogo se
aproximaria tão profundamente desse abismo, mas se existia realmente um Deus, ela
agradeceu por sua presença naqueles últimos meses.
— Tem
uma pessoa aí querendo falar com você. — anunciou ele.
— Quem?
Diogo
olhou à porta atrás dele e Thomás apareceu.
Laura
quase jogou a caneca na mesa ao lado, e se recostou mais na cabeceira da cama,
como se se armasse para uma nova batalha.
Ele
não tinha o direito!
— O
que faz aqui? — Laura o abordou, sem rodeios.
— Laura,
vocês precisam conversar. — explicou Diogo.
— Eu
não tenho nada para conversar com esse homem! — foi categórica.
— Sei
que não tenho o direito de te pedir nada, mas, por favor, me ouve. — o tom de
Thomás foi quase uma imploração.
Laura
fitou Diogo cheia de raiva. Sentiu-se traída. Por mais que fossem irmãos, ele
não tinha o direito de trazê-lo ali sem uma autorização prévia. Podiam ter
conversado a respeito primeiro.
Não
reconhecia aquele homem, não sabia quem era ele, exceto que fora movido por uma
vingança, envolvendo-a num jogo sórdido de sedução, a fim de concretizar seus
objetivos, com requinte de crueldade. Frio, capaz de passar por cima de
qualquer pessoa, desconsiderando sentimentos, desprovido de quaisquer laços
afetivos.
Definitivamente
não queria falar com ele. Podia simplesmente expulsá-lo. Tinha esse direito.
Entretanto, no momento em que recordou das vezes em que estiveram juntos,
experimentou um fio de curiosidade. Tudo pareceu tão real, o desejo de estarem
juntos, o instante em que se fizeram um. Quem era ele afinal? Que tipo de homem
se fazia tão inteiro, verdadeiro, e de repente, revelava-se uma farsa? E por
que Diogo insistia para ouvi-lo? Ele melhor que ninguém sabia de sua dor.
Por um
instante não sabia o que fazer, se ouvia suas explicações ou mandava-o embora
dali e de sua vida para sempre. O que uma mulher machucada fazia numa hora
dessas?
— Muito
bem. Tem cinco minutos. — anunciou.
Diogo
pediu licença, deu uma piscadela de olho para ela e deixou-os.
Houve
um instante de silêncio, até que Thomás pareceu tomar coragem e falou. — Como
sabe, a vida não foi muito fácil para mim.
— Isso
não te dá o direito de destruir a vida das pessoas à sua volta. — respondeu de
pronto.
— Eu
sei, tem toda razão de me odiar, mas quero te dizer que eu estava perdido,
cego, movido único e exclusivamente pelo desejo de fazer justiça com minhas
próprias mãos.
— De
se vingar. — interrompeu ela.
— Isso
mesmo. Tão cego que as pessoas não passavam de coisas, instrumentos dessa
vingança.
Laura
desconsiderou o pudor de estar vestida apenas com um camisão de malha e
levantou, tomando distância.
— E só
percebeu isso após tê-la concluído?
— Não.
Pouco depois de termos estado juntos.
— Mas
aí já tinha feito mal a muita gente.
— Infelizmente.
— Olha,
Thomás, não sei qual é a sua intenção, mas...
— Por
favor, me ouve! — foi a vez dele interrompê-la. — Sei que te fiz muito mal e a
muitas pessoas, mas queria que soubesse que em muitos momentos pensei em
desistir, por sua causa. E quando nós estivemos juntos, para mim foi um dos
momentos mais bonitos nos últimos anos.
Mentira! E o meu irmão?
— Thomás,
eu sei de sua orientação sexual. E do amor que você tinha pelo Edgar.
— Você
não sabe nada! — ele foi enfático e aproximou-se. — Não podemos ser tão
simplistas.
— Para
mim as coisas são simples. Sou heterossexual. E você, é gay ou é bi?
— Não
preciso dessas convenções sociais para saber o que sinto. Apenas sinto. O que
posso te dizer é que foi maravilhoso estar com você. Fazia tempo que não me
sentia tão inteiro com alguém. Você despertou um lado adormecido.
Ela
sentiu-se enrubescer.
— Thomás,
o que quer afinal?
— Ser
verdadeiro com você. Eu te devo isso. O que houve entre nós foi muito bonito e
importante para me lembrar da humanidade existente em mim. A mentira se resumia
à minha identidade, mas não ao que sentia. Você realmente mexeu comigo, Laura.
O pior
é que ele parecia honesto. Mas da outra vez também, e enganou-a.
— Obrigado
por quebrar a dureza do meu coração! Esse é meu pedido de perdão. — continuou
ele.
— Infelizmente
não tenho como te perdoar. O que fez ainda reverbera aqui dentro, sabe? — Laura
justificou, circulando a mão no próprio peito. — Você também mexeu com coisas
adormecidas, mas tocou em feridas muito profundas. Não confio em você, Thomás.
Na verdade, não acredito em nada do que foi dito aqui.
— Compreendo.
— ele falou com tanta ternura no olhar que por pouco não retirou tudo o que
dissera. — Bom, acho que não tem mais nada para eu fazer aqui. — sorriu, meio
constrangido. — É... Espero que possa fazer meu irmão feliz, tanto quanto eu
sei que ele te fará. Deus abençoe a vocês.
Thomás
a observou por alguns instantes. Tinha uma expressão diferente de quando o
havia conhecido como Saulo Sobreira. Talvez um traço de dor ou sofrimento, não
sabia ao certo. Em seguida, ele foi embora.
Estranho!
Parecia realmente ter estado diante de outra pessoa. Ela segurou os próprios
ombros com braços cruzados, como num abraço consigo mesma, e fechou os olhos.
Revivendo, por alguns segundos, a mesma sensação de quando fora tocada por
Thomás, passando-se por Saulo. Também tinha sido especial naquele momento.
Espero que possa fazer meu irmão feliz,
tanto quanto eu sei que ele te fará.
Sentia-se
confusa.
76
Cândida
desceu as escadas do apartamento da família Rebelo trazendo nas mãos uma caixa
contendo os pertences mais queridos. À sua frente, os empregados carregando as
malas. Sentia-se feliz por finalmente deixar aquele lugar, cenário de seu
martírio, da grande mentira que foi o casamento com Edgar, de uma morte em
vida. Abandonava o personagem criado pelo sogro como referência aos fiéis do
Chiamare e encarnava a fragilidade real de uma mulher cheia de erros, mas
disposta a lutar por sua felicidade.
Ao
perceber a porta do escritório entreaberta, julgou que alguém estava lá dentro.
Quem pode ser?
Por um
instante acreditou ter sido o Dr. Juca que havia talvez conseguido o
relaxamento da prisão. Colocou a caixa na poltrona ao lado e aproximou-se,
apreensiva. Já pela fresta, viu a imagem de Salomão, sentado na cadeira do avô,
desfrutando de uma dose de uísque. Como alguém poderia parecer tanto com outra
pessoa, sem nenhum laço sanguíneo? O que a entristeceu profundamente. O filho
aprendera o pior na convivência com aquela família.
— Salomão?
— antecipou-se, ao entrar no escritório.
— Como
vai, mamãe? De partida?
Demonstrava
total apatia à sua presença ou ausência ali.
— Sim.
Fico no Chiamare até o dia da viagem.
— Minha
avó volta para casa hoje. O juiz já autorizou sua liberdade. Ela responderá em
liberdade. — anunciou Salomão, como se aquilo a afetasse de algum modo.
— É,
eu soube. Os problemas de saúde de dona Augusta colaboraram com a decisão do
juiz. Também pelo que conheço das manobras do Dr. Juca, ele deve ter ficado um
pouco menos rico para que isso acontecesse.
Salomão
pousou o copo de bebida na mesa e levantou.
— Por
que odeia tanto o meu avô? Ele sempre te tratou como a uma filha.
— E
você como a um neto. — fez questão lembrá-lo que verdadeiramente não pertencia
àquela família. — E sou grata a ele por isso, meu filho, mas existem coisas que
não sabe sobre o Dr. Juca.
Desejava
vê-lo longe daquele lugar. Jamais estaria com o coração em paz, sabendo que
Salomão ainda convivia com o Dr. Juca Rebelo.
— Por
favor, vamos para o Chiamare comigo! — praticamente o implorou.
— Nunca!
Não vou abandonar o meu avô no momento em que ele mais precisa de mim. Não há
motivos reais para estar preso. E odeio você por ficar do lado de nossos
inimigos!
Salomão
falava com a mesma arrogância do Dr. Juca, orientado pelos mesmos valores
morais ou amorais. Sentia-se uma péssima mãe, omissa, por não ter conseguido
lhe ensinar a ser uma pessoa de bem. Temia pelos caminhos que ele escolhia.
— Os
bens do Dr. Juca estão bloqueados pela justiça.
Sabia
de seus interesses. Lembrá-lo de questões materiais poderia ser uma forma de
dissuadi-lo.
— Meu
avô está me orientando a tomar conta de tudo o que é seu. — replicou o jovem,
com sorriso vitorioso. — E acredite, mamãe, os bens bloqueados pela justiça são
apenas a ponta do iceberg. Logo ele estará fora da cadeia e vamos juntos limpar
o nome de nossa família. Quem não estiver do nosso lado, estará contra nós! — falou
aquilo quase ao seu ouvido e saiu.
— No
que meu filho se tornou? — perguntou para si mesma, culpando-se pelas escolhas
de Salomão. Seria correto deixá-lo justo naquele momento? Não podia abandoná-lo
à própria sorte e sob as orientações nefastas do Dr. Juca Rebelo. Talvez ficar
e dar o suporte que uma mãe devia neste momento. Mas de que verdadeiramente
adiantaria? Salomão sempre fora uma criança, um adolescente e agora um jovem
interesseiro, ambicioso. Nunca aceitou ser filho de Thomás e não pertencer à
família Rebelo. Por isso a odiava.
Definitivamente,
não sabia o que fazer.
— Pelo
menos Laura está voltando para esta casa e poderá cuidar dele para mim.
— Cuidar
de quem? — perguntou Delano, entrando no escritório.
— Nada.
Estou me despedindo desse lugar.
— Também
estou indo embora. Vou aguardar a chegada de dona Augusta e me despedir.
— E
você... vai para onde? — perguntou com dificuldade, como se não devesse.
— Ainda
não sei. — disse ele, com sorriso meio desconsertado. — Sabe, Cândida. Por um
instante, pensei que tivesse envolvida nas mortes.
— Era
o Dr. Juca naquele telefonema. — explicou ela. — Queria me advertir sobre Laura
e Diogo. Também achei estranha a forma como ele colocou as coisas e falou sobre
a morte do Pe. Giuseppe, mas vindo de quem veio, tudo é possível. E você,
conversou com o Lucas? — tratou de mudar de assunto.
Delano
sorriu.
— O
Lucas foi uma das melhores coisas que me aconteceram, sabe? — revelou o rapaz.
— O irmão que nunca tive.
— Pelo
visto a conversa foi ótima. — concluiu, direcionando-se à sala. Delano a
seguiu.
— Ele
me tratou com tanto afeto, Cândida. Já parece mesmo o líder do Chiamare.
— Que
bom que vocês se entenderam.
— E
você, quando viaja?
— Em
alguns dias, logo que sair o resultado do exame de DNA.
— O
Lucas me pareceu muito ansioso, embora já saiba qual o resultado. Como está em
relação a isso?
Difícil
responder aquilo. Para Cândida, não saber a paternidade do próprio filho,
maculava a sacralidade de ser mãe. Total sensação de estranheza e ao mesmo
tempo de vulnerabilidade, por cobrar-se acerca da insanidade e inconsequência
na noite de seu casamento. Na verdade, as poucas recordações daquele momento,
divididas em flashes, representavam o
epicentro de uma catástrofe em série na vida de muitas pessoas, sobretudo na de
Lucas. O que a fazia acreditar que nunca se perdoaria pelo que houve.
— Tentando
me encontrar num conto surreal. — foi o que respondeu a Delano.
— Vocês
beberam muito naquela noite. Não lembrar do que houve é mais comum do que
pensa.
— Mas
um filho foi gerado em meio à loucura e irresponsabilidade.
— Eu
sei. Procura pensar que foi esse momento de anarquia que te deu o Lucas. É isso
o que mais importa nesse momento.
Delano
não compreendia. Sua angústia e vergonha não resumiam ao fato de ter
engravidado naquela noite, pelo contrário, mas por não saber quem dos três
irmãos era o pai.
Beijou-o
no rosto, em seguida pegou a caixa e preparou-se para ir embora.
— Cândida?
— Delano a chamou.
Ela o
olhou por uma última vez.
— Por
que não podemos ficar juntos? — questionou-a.
Por
mais que o amasse, precisava de um momento só para ela. Um período de
reconciliação consigo, de revisão dos próprios valores e, sobretudo, de se
reencontrar com a mulher perdida nos escombros que uma vida de mentiras lhe
deixou. Esse tempo em Paris seria como entrar num rio gelado e experimentar a
vivência única do instante presente, resetar as dores e deixar florescer a
beleza que ainda pulsava dentro de si.
— Quem
sabe um dia não nos reencontramos?! — cogitou ela, deixando para sempre aquele
lugar sombrio.
Antes
de sair, ouviu o que Delano falou.
— Estarei
esperando por você!
77
Laura
se encheu de alegria, ao ver o encontro emocionante de Lucas e Diogo como pai e
filho. Eles estavam abraçados, partilhando um com o outro de sua felicidade por
aquela descoberta, com o resultado do exame em mãos. Para a surpresa de todos,
há algumas semanas o jovem havia tido uma visão revelando que Diogo era seu
verdadeiro pai, e Saulo acabara por confessar que mais uma vez mentira ao
afirmar ter estado com Cândida naquela noite, alegando ter sido uma tentativa
de proteger Lucas de Thomás. Isto é, o próprio Saulo também tinha se confundido
ao vê-la com o irmão.
Agora,
ambos estavam mais ligados que nunca e conduziriam juntos o Chiamare.
Pai e filho, os dois Pescadores de Vidas.
Ela
preferiu deixá-los a sós, os dois tinham muito a conversar. Em seguida, foi
para o quarto, terminar de arrumar sua mala. Precisava estar em casa quando a
mãe voltasse. Por pior que fosse, queria ficar perto e cuidar dela, pelo menos
até a saída de seu pai da cadeia.
Olhando
o ambiente à sua volta, reconheceu o zelo, o carinho com qual foi recebida por
Diogo em Fortaleza.
Tu
não faz como passarinho
Que
fez um ninho e avoou
Mas
eu fiquei sozinho
Sem
teu carinho
Sem
teu amor
Aquele
recorte da música Quixabeira no mural acima da escrivaninha representava tanta
ternura.
Em
poucos meses, sua vida havia se transformado por completo. E tudo, depois de
conhecê-lo. Recordou-se do dia em que se conheceram, em São Paulo. Não fosse
por ele, teria sido atropelada por aquele carro. Se existiam anjos, Diogo
certamente era um deles.
De
repente deu-se conta das nuanças do próprio sentimento. Sem saber, envolveu-se
com os três irmãos gêmeos, experimentando com cada um deles, uma dimensão diferente
do sentir. Thomás despertou-lhe o desejo, o prazer, a força da própria carne
pulsando em vida, numa atração forte e fugaz. Já Saulo foi responsável por
fazê-la descobrir que mais uma vez poderia viver o fogo da paixão. Em meio a
esse turbilhão de emoções afloradas, Diogo ensinou-lhe a delicadeza do afeto
presente e cuidadoso, a segurança gerada no encontro e a confiança que somente
uma amizade verdadeira é capaz de proporcionar.
Tão iguais e tão diferentes ao mesmo
tempo!
Depositou
a última peça de roupa na mala, depois a fechou. Em seguida, riu de si mesma,
desejando que todas aquelas dimensões experimentadas fossem vividas numa única
relação, que os três fossem um só.
— Laura?
— Diogo abriu a porta devagar.
— Cadê
o Lucas?
— Ele
precisou sair com urgência, estava atrasado para deixar a mãe no aeroporto.
Laura
aproximou-se dele e tirou uma mexa de cabelo de sua testa.
— Você
está muito feliz, não é? — gostava de vê-lo tão radiante.
— Descobrir
ser pai do Lucas foi o maior presente que Deus poderia me dar. — Na sequência,
ele viu a mala pronta. — Está mesmo decidida?
— Quero
estar lá quando minha mãe chegar. Preciso estar ao seu lado, independente das
atrocidades que ela tenha cometido. É minha mãe!
— Compreendo.
E seu trabalho na revista?
— Pedi
umas férias ao meu editor. Depois decido o que fazer.
— Sabe
que pode contar comigo, não sabe?
Ela
sorriu e estendeu-lhe a palma da mão. Diogo pôs a sua sobre a dela e
entrelaçaram os dedos. Ficaram um pouco em silêncio e pareciam viajar nos olhos
um do outro. Ele se aproximou com a delicadeza que lhe era peculiar e beijou-a
no rosto. Em seguida, trouxe-a para mais perto de si e fez com que se perdesse
na intensidade do encontro.
— Eu
amo você, Laura! — sussurrou-lhe ao ouvido.
Experimentou-se
enrubescer. Ficava sem graça e ao mesmo era maravilhoso.
— Quando
nos vemos novamente? — mudar de assunto parecia a melhor saída.
— Hoje
à noite? Uma massa daquele jeito que você gosta, um bom vinho... O que acha? — propôs
Diogo, com uma piscadela de olho e o charme de seu meio sorriso.
— Precisarei
fazer companhia à minha mãe. Quem sabe outro dia...
Diogo
mordeu o lábio inferior e fez eu sim com a cabeça.
Até quando terá tanta paciência comigo?
— Bom,
preciso ir. O táxi já está me esperando.
— Eu
posso te deixar.
— Não
precisa. O motorista está lá em abaixo.
Laura
pôs a mala no chão e ele a tomou de suas mãos, como um bom cavalheiro. Em
seguida, deixou aquele quarto com o coração apertado. Falaram algumas
amenidades sobre a revista no caminho até o elevador, e o próprio Diogo o
chamou. Despediram-se e o elevador fechou-se. Acompanhou a passagem por cada
andar através do mostrador digital acima da porta, e a distância de Diogo foi
lhe angustiando. Recordou-se dos passeios em São Paulo ao seu lado, dos cafés,
dos jantares com vinho preparados especialmente por ele, de seus mimos e
cuidados encantadores, conseguindo arrancar-lhe do universo exclusivo e
sufocante do trabalho para um mundo terno de intimidade. Apesar de tudo, vivera
com Diogo os melhores meses dos últimos vinte anos.
Eu amo você, Laura!
Ouvi-lo
naquele instante a fez reconhecer outro sentimento provocado por ele. Estava
errada a seu respeito, não era apenas amizade. Quando a beijou há pouco,
desejou seus lábios. Ao lado de Diogo redescobriu a própria capacidade de amar.
Percebia agora que por ele, experimentava tudo ao mesmo tempo. E aquilo era
único.
O que
faria com essa descoberta? Deixaria para depois, como tudo o que dizia respeito
a sentimentos em sua vida?
As
portas do elevador se abriram e ela pressionou o botão para que se fechassem
novamente e a impedissem de se acovardar e fugir daquilo que queria.
O que está fazendo, Laura?
Fechou os olhos e disse para si mesma, repetidas vezes, que não poderia
desistir.
Tu
não faz como passarinho
Que fez um ninho e avoou
Quando
mais uma vez as portas se abriram, segurou-as e pensou se era a melhor coisa a
fazer. E se não conseguisse corresponder
ao que Diogo sentia? Não podia magoá-lo. Pensou em recuar e seguir seu caminho.
Puxou
a mala até a porta de Diogo e hesitou em tocar a campainha.
O que direi a ele? “Pensei melhor e...”
Não, não! “Diogo, acho que também estou apaixonada.” Acho? Apaixonada?
Ridículo!
A
porta simplesmente foi aberta e ele apareceu em sua frente, com olhos
lacrimejantes e um sorriso lindamente desconsertado.
— Diogo?
— fefinitivamente não sabia o que dizer. Talvez inventar que havia esquecido
alguma coisa.
— O
apartamento ficou tão vazio sem você! — comentou Diogo, deixando que uma
lágrima escorresse.
Nunca
pensou que ficaria tão nervosa, com a boca seca e as mãos trêmulas.
— Aquele
jantar ainda está de pé? — Laura procurou disfarçar o nervosismo.
Diogo
abriu o sorriso, tomou-a nos braços e olhou-a profundamente em seus olhos. Em
seguida, beijou-a com todo o amor que a vida lhes reservou.
Finalmente,
Laura começava a juntar os pedaços deixados pelo caminho e dispunha-se a ser
feliz mais uma vez.
78
A água
do mar de Iracema banhou os pés de Thomás no instante em que se aproximou da
beira da praia, lavando os últimos resquícios de um homem machucado pelo
destino. Dobrara a calça até a altura do joelho e carregava as botas nas mãos,
caminhando em direção ao pôr-do-sol, que se formava imponente por trás da Ponte
dos Ingleses.
— Thomás? — a voz não viera de muito longe.
Ele
parou e Saulo o acompanhou. Novamente estavam um de frente para o outro. Não
tinha como não se recordar da rivalidade de uma vida inteira estabelecida pelo
irmão.
— O
Diogo me disse que te encontraria aqui. — Saulo parecia ter ensaiado aquilo
diversas vezes. O tom de artificialidade quase o fizera rir.
— Pensei
que estivesse se preparando para a viagem. — disfarçou Thomás.
— Tudo
já está pronto. — Saulo confirmou. — Parto amanhã para a Itália. Ficarei por
tempo indeterminado, cuidando do centro do Chiamare em Roma, enquanto Lucas e
Diogo assumem a obra aqui. Achamos melhor assim. — os dois ficaram um pouco em
silêncio e Saulo continuou. — Viu a matéria da Laura? — estendeu-lhe um
exemplar da revista Notícia, com uma fotografia de capa da missão nas ruas de
Fortaleza.
Thomás
recebeu o exemplar e focou a manchete.
Os verdadeiros Pescadores de Vidas.
— Ela
é ótima. — foi seu único comentário.
— Sim.
A tônica da reportagem é sobre o carisma e a mística do Chiamare, bem como as
novas perspectivas da obra.
Thomás
o observou direito e viu que a imagem impecável no jeito de se vestir do irmão
não se fazia mais presente. Ele estava mais leve, mais solto. Ainda elegante,
mas bem diferente.
— Vejo
que alguma coisa mudou em você — Thomás comentou.
Saulo
mordeu o lábio, pareceu conter um choro e depois sorriu.
— O
tempo naquele galpão parece que mexeu aqui dentro, sabe? — tocou no próprio
peito. — Fez-me valorizar outras coisas.
Ambos
pareciam perdidos no diálogo. Thomás não sentia a menor intimidade com o irmão,
talvez certo incômodo. Um completo estranho, apesar de estar diante do próprio
reflexo.
— E eu
ia te pedir desculpas pelo que fiz. — anunciou Thomás, meio sem jeito.
— Não
peça. Mesmo sem saber, você acabou me ajudando. — Saulo apoiou as mãos no
quadril e desviou o olhar para o mar. Thomás percebeu que ele começou a chorar.
— Sabe, Thomás, durante essas semanas que passaram, após descobrirmos a
verdade, eu fiquei pensando numa forma de... — a voz foi embargada pelo choro.
— dDe te pedir perdão.
Esperou
doze anos por aquilo. Mais uma vez Deus veio lhe falar ao coração. Procurou
ouvi-lo atentamente, embora que também tomado pela emoção.
— Mas
não encontrei nenhuma. — continuou Saulo. — Pelo simples motivo de não existir
uma forma para isso. — finalmente Saulo o encarou. — Sempre soube de muitos
absurdos cometidos pelo Dr. Juca para transformar o Chiamare no que ele é hoje.
Contudo, não imaginava que ele estivesse por trás da sua prisão. Você foi
roubado do convívio de quem amava, exilado do espaço construído sob a ideia do
seu chamado, acusado das maiores barbaridades, achincalhado, violentado, traído
e... abandonado. Hoje me dói profundamente saber que liderei essa conspiração!
Embora não soubesse da verdade, foi mais fácil, mais cômodo acreditar que era
culpado, sem dar a você o benefício da dúvida. Como se o destino tivesse me
vingado, sabe? Eu sempre senti inveja da relação do Diogo com você. Achava que
vocês me desprezavam. E isso me matava
aos poucos. Descobrir que você era aquele monstro, foi de certa forma, prazeroso.
Isso faz de mim uma pessoa pequena, suja, monstruosa!
— Já
passou. — interrompeu-o.
— Não!
Está aqui dentro. — Saulo bateu com força na altura do coração. — E eu vou
precisar de um tempo muito... muito grande para me perdoar!
Saulo
não compreendia que para Thomás aquela atitude já apagava tudo.
Sentiu-se
bem-aventurado por tê-lo de volta! Simplesmente, estendeu os braços em sua
direção e esperou que viesse. Era como se vissem a própria figura em sua
frente, chorando pela alegria do retorno. Saulo aproximou-se devagar e
acomodou-se nos braços do irmão. Um chorou no ombro do outro.
Parecia
passar um filme na cabeça de Thomás.
Percorri estradas tortuosas conhecidas
apenas por Deus e o Diabo. Nelas, perdi-me tantas vezes, na busca do meu
próprio coração esquecido em algum lugar. Esta foi a minha cruz, constituída
por dores dilacerantes e esperanças não assumidas, as quais me encheram de vida
e possibilitaram-me suportar o tempo de crucificação que me coube, guiando-me
de volta a me encontrar.
A fé me acompanhou a todo instante, dela
nunca me separei, apenas tratei de escondê-la para que também não se
dissolvesse junto à crença no ser humano. Esta última me foi dada de volta, no
momento em que percebi que o abismo estabelecido entre a minha alma e o mundo
material se formava de dentro para fora e não o contrário.
— Me
perdoa, meu irmã. — murmurou Saulo, enquanto experimentava o afeto em seu colo.
Entretanto,
não havia mais nada a ser perdoado.
Epílogo
Semanas
depois...
Numa
manhã chuvosa, Thomás aguardou ansioso, na cabine da caminhonete, que Juscelino
aparecesse no portão do presídio. Foi quando surgiu, em meio ao movimento
vertiginoso dos limpadores do pára-brisa, a figura de seu companheiro,
encharcado, carregando uma tímida mochila a tiracolo, em direção ao carro. Nem
teve tempo de se aproximar um pouco mais, a fim de que não se molhasse. Quando
menos esperou, a porta do veículo foi aberta e o sorriso largo de Juscelino se
misturava à água que caía dos céus.
— Bem-vindo
de volta ao lado de cá. — recepcionou-o, retribuindo o sorriso.
Juscelino
entrou e fechou a porta ao seu lado.
— Para
onde vamos? — ele procurou saber, parecendo apreensivo.
— Quero
que conheça um lugar. — Thomás revelou e tratou de se apressar.
Em
menos de uma hora, entraram no vão de uma casa vazia, no Bairro de Fátima.
Tratava-se de uma construção dos anos setenta, um espaço de 520m² de área
construída, paredes brancas e grandes janelões de vidro do chão ao teto que
davam para o jardim afogado na chuva que caía lá fora. Tudo estava limpo e o
piso encerado de tábua corrida brilhava, refletindo a imagem dos dois.
— O
que achou? — Thomás estava ansioso.
— É um
espaço maravilhoso. — comentou Juscelino, com um jeito curioso.
— Sério?
Gostou mesmo?
— Sim.
Mas por que me trouxe aqui?
Thomás
deu uma volta no ambiente antes de responder.
— Esse
espaço é nosso. Aqui será a sede da Fundação Pe. Giuseppe Giordano. — anunciou
com alegria e braços abertos, apresentando o local.
— Como
assim, Thomás? Que instituição é essa?
Aproximou-se
de Juscelino e olhou-o com firmeza e ternura.
— Você
me ensinou que a liberdade transcende os muros da prisão. Aprendi nesta
convivência a arte de se saber em cada momento. Foi o que me manteve vivo nos
últimos doze anos. — colocou as duas mãos nos ombros de Juscelino. — Sinto que
meu chamado é ensinar o que aprendi aos irmãos. Evangelizar, fazer com que as
pessoas encontrem a alegria de viver dentro das prisões. Foi para isso que
estive lá dentro.
O
outro parecia emocionado.
— Quer
fundar um novo carisma, Thomás?
— Não
posso fazer isso sozinho. Preciso de você!
Hoje percebo que o verdadeiro pecado
reside na distância da centelha divina existente dentro de nós. É o que nos faz
sofrer!
Juscelino
o segurou pela nuca e ambos riram, com a mesma cumplicidade que entrelaçou suas
almas.
Thomás
voltaria a pescar vidas, mas agora dentro dos muros da marginalização!
Fortaleza, 20 de março de 2015, tempo
quaresmal.