Abra, entre e faça seu caminho...

Abra, entre e faça seu caminho...
A arte de escrever é para mim uma possibilidade de dar vida ao universo infinito de nossas criações. Precisava de um espaço onde isso fosse possível. Assim, nasceu este blog literário, com a ideia de ser um canal à expressão livre de muitas histórias, personagens, dramas e tramas que estão em minha mente, orientados por valores e crenças existenciais que representam a minha alma. Deste modo, seja muito bem vindo ao meu blog, e que minhas histórias possam lhe tocar o coração e a alma! (Antonio Rondinell)

O Pescador de Vidas (Terceira Parte)


Continuação

53


Diogo estacionou o carro numa rua esburacada da periferia de Maracanaú, quando pareceu ver alguém que ele conhecia.
— Meu Deus, é ele! — disse, sem explicar direito a Laura, do seu lado. Simplesmente desceu do carro no impulso e foi atrás da tal pessoa.
— De quem está falando? Diogo! — procurou saber, sem compreender o que estava acontecendo.
— LUCAS! LUCAS! — Diogo gritou por um rapaz, que passava de bicicleta.
Laura constatou que o jovem tinha a mesma estatura e condição física de Lucas. Aquela agonia de não saber por onde o sobrinho andava já durava quinze dias. Diariamente, ela e Diogo falavam com Cândida, em busca de notícias e sempre encerravam a ligação mais preocupados do que estavam.
Saltou também do veículo, enquanto Diogo já o estava abordando. Contudo, tratava-se apenas de um rapaz da comunidade que lembrava vagamente o sobrinho.
— Desculpa! — Diogo pediu, visivelmente decepcionado.
— Pensou que era ele, não é?
— Por um instante, pensei ter encontrado meu sobrinho.
— Parecia realmente.
Os dois voltaram e encostaram-se no automóvel.
— Às vezes tento visualizá-lo, mas é como se ele não quisesse ser encontrado. — partilhou Diogo, num tom de lamentação. — Algumas imagens começam a se formar na minha frente e logo desaparecem. A impressão que eu tenho é que ele criou uma espécie de campo de força para não ser encontrado.
— E por que ele faria isso?
— A gente não sabe como foi para ele receber a notícia da morte do Edgar. O Lucas amava muito aquele pai. Além do mais, a Cândida confidenciou-me que naquele dia ele ficou sabendo da verdade sobre sua paternidade da pior forma. O próprio Edgar contou a ele num surto de raiva, entende?
— Coitado! Ninguém pode imaginar como estava a cabeça dele. — comentou Laura.
— Em alguns momentos sinto uma angústia, que eu tenho certeza que não é minha. É dele, do Lucas, sabe? É a única forma de conexão que eu consigo estabelecer com ele.
— E como é isso?
— Sinto como se vagasse perdido, sem rumo, estando em muitos lugares diferentes e ao mesmo tempo em lugar algum. — o olhar de Diogo estava perdido, como se naquele instante ele conseguisse sentir exatamente o que descrevia. — Não enxergo formas, apenas sensações. É como se ele conhecesse bem o lugar onde está e ali experimentasse a proteção.
— Proteção de quê?
— Da vida que deixou para trás.
— E como sabe que realmente se trata do Lucas?
— Vem muito fortemente sentimentos em relação ao Edgar, Cândida, Salomão, enfim. Mas sentimentos que não são meus. Consigo sentir exatamente o que ele sente.
— Uma outra vertente do seu dom?
Diogo fez que sim com a cabeça.
— Empatia profunda.
— Você não havia me contado sobre isso.
— Quando não verbalizamos é como se não existisse. Quando isso acontece, é uma mistura de muitos sentimentos, meus e dos outros. A impressão que tenho é que não vou suportar. Não é bom, acredite.
Só de pensar em sentir tudo o que as outras pessoas sentiam, causava-lhe angústia. Laura compreendia porque tanta resistência de Diogo em aceitar o próprio dom. Muitas vezes acabava atormentado pela simples responsabilidade de tê-lo, bem como pelas consequências enfrentadas, a exemplo da overdose de sentimentos não-seus pelo dom da empatia.
— Acredito que logo vai conseguir quebrar essa barreira e descobrir onde o Lucas está.
— Vou continuar tentando! — afirmou ele. Em seguida, Diogo se antecipou até a casa em frente.
Precisavam permanecer no foco. Haviam descoberto, através de um missionário do Chiamare, o endereço de Vera, irmã da prostituta encontrada morta na cama de Thomás, há doze anos. Estavam ali pra encontrá-la. Eles bateram palma e um adolescente os recebeu, dizendo que a mãe não se encontrava. Diogo, no entanto, pareceu visualizá-la dentro de casa e concentrou-se para que ela viesse ao seu encontro. Para a surpresa de Laura, em alguns instantes a mulher apareceu por trás do menino. Inicialmente, tratou-os de modo hostil ao reconhecer Diogo ou confundi-lo com os irmãos. Porém tão logo este concentrou-se nela, a mesma os convidou a entrar, ofereceu-lhes um café e contou-lhes tudo o que sabia.
Laura e Diogo se entreolhavam a cada revelação, partilhando do mesmo espanto. Segundo Vera, a irmã tinha sim um caso com alguém de grande posto dentro da comunidade, embora não soubesse quem. Dias antes de sua morte, Eliane dizia estar sendo ameaçada de morte.
O que realmente deixou Laura de cabelo em pé foi a última revelação da mulher. Ela afirmou que no dia do crime, Eliane ligou para ela contando que um padre italiano estava lá naquela noite e acabaria com seu sonho.
Pe. Giuseppe Giordano, só pode ser!
Ao ser indagada do porquê de não ter contado à polícia, Vera disse que tivera medo, bem como havia recebido um bom dinheiro para permanecer em silêncio.
A missão ali estava concluída. Os dois agradeceram e voltaram para o carro.
Trabalhar com Diogo era perfeito! Ele conseguia todos os furos jamais alcançados por um jornalista.
— Pensou na mesma pessoa que eu? — Laura procurou saber, atracando o cinto.
— Pe. Giuseppe? — confirmou, dando a partida no motor. — Com certeza. Ele dormiu naquela noite na comunidade, foi uma das testemunhas de acusação.
— Acha que pode ter sido ele?
— Acho que tudo é possível. — respondeu, voltado para trás, em marcha ré.
— Bom, tendo sido ou não, Pe. Giuseppe tem muito a nos explicar. — arrematou ela.


54


Saulo despertou com o ranger do portão do velho galpão. Certamente uns dos capangas de Thomás para deixar o café com pão seco de todas as manhãs. No entanto, o som provocado pelo caminhar da pessoa, chegava-lhe aos ouvidos, diferente do habitual. Parecia saltos femininos. Quando ergueu a cabeça, teve a visão de Guilhermina à sua frente.
— Saulo? — disse ela assustada, olhando para todos os lados, como se se certificasse que ninguém a via. Em seguida, antecipou-se a ele, tocando-lhe o rosto. — Meu Deus, como você está?
Experimentou uma raiva descomunal da mulher que estivera ao seu lado nos últimos anos. Já haviam se passado duas semanas desde o sequestro e ela nada fizera para ajudá-lo. Sentia-se traído.
— O que quer? Veio ver com seus próprios olhos que sou prisioneiro dele?
— Não sabe como venho sofrendo nessas últimas semanas.
— Mentira! — procurou afastar-se dela. — Vocês estão juntos.
— Não, não! Isso não é verdade! O Thomás me tem em suas mãos.
— Por causa dos dez milhões roubados? Você é uma cretina!
Ela deu as costas, talvez fingindo vergonha, pensou ele.
— Então você já sabe?
— O Thomás me contou.
— CANALHA! — desabafou ela num grito.
— Passou todos esses anos me roubando, roubando a comunidade! Guilhermina, você era a minha pessoa de confiança.
— Fiz isso por nós dois! — afirmou ela, voltando para junto dele.
Falsa!
— NÃO ENCOSTA EM MIM! — Saulo gritou, afastando-se o quanto pôde.
Ela parecia surpresa.
— Sempre fiz tudo por você! — insistiu ela.
— Por mim? Nunca vi tamanho cinismo!
— Esse dinheiro era para nos resguardar. Nunca senti segurança com o Dr. Juca na presidência do conselho. Por isso o desviei, entende?
— Não, não entendo! Roubou esse dinheiro em segredo...
— Você não concordaria!
— Claro que não!
— Então. Por esse motivo não contei.
— Vai querer me convencer que fez certo?
— Tudo o que fiz até hoje vai para te proteger, você não entende?
— Você me traiu.
— Isso não é verdade! Eu nunca o trairia! — aproximou-se mais. Saulo não tinha como escapar, por causa das correntes. — Saulo, eu te amo! Sempre te amei! E sempre vou te amar!
Ele virou o rosto.
— Nós já falamos sobre isso. — relembrou-a.
— E a jornalista? Pensa que não sei? Está apaixonado por ela.
— Você está louca!
— Não me engana, Saulo. Observava como a olhava, o jeito como a tratava. Depois as fotos dela no seu celular. Coisa de paixão recolhida. Uma mulher sabe quando um homem está apaixonado, principalmente se não for por ela.
— E se eu estivesse?
— Isso sim seria traição.
— Dediquei a minha vida a você.
— Nunca te prometi nada. Além do mais você melhor que ninguém sabe que existem os votos. Mesmo que fosse verdade, que estivesse realmente apaixonado por Laura, nunca aconteceria nada. O Chiamare está sempre em primeiro lugar.
— Ainda assim foi doloroso quando me dei conta dos seus sentimentos por ela. — Guilhermina caminhou de um lado para o outro. — Por que não eu? Não sou uma mulher atraente, interessante? Não tenho nada que possa fazer com você se apaixone por mim?
— Sempre foi uma grande amiga.
— DANE-SE AMIZADE! — voltou-se a ele, ajoelhando-se em sua frente. — Eu o amo, como nunca amei ninguém! É por isso que estou há tantos anos do seu lado, esperando por alguma migalha de afeto que possa respingar em mim. Saulo, eu fiquei casta junto com você. Para mim não importa ser tocada por nenhum outro homem!
Guilhermina levou a mão de Saulo ao rosto dela, como se procurasse sentir aquele afeto de que falara. Ele sentiu pena daquela mulher. Jamais conseguiria retribuir o sentimento partilhado. O voto de castidade, a comunidade eram mais importantes que qualquer coisa.  
— Sou fiel a Deus, aos princípios, você sabe. — explicou Saulo.
— E eu a você!
— Nunca me falaria desse dinheiro.
— Quando fosse necessário. O silêncio era também uma forma de te proteger.
— Tire-me daqui!
— Você me perdoa?
Por mais que não devesse, acreditava nela. Guilhermina sempre fora leal e podia contar com seu apoio incondicional em qualquer situação. Embora estivesse com raiva, não era justo desconsiderar tudo o que já fizera por ele. Se estava ali, correndo o risco de ser descoberta por Thomás, provava mais uma vez a lealdade cega, capaz de qualquer coisa para vê-lo feliz. Sim, talvez estivesse certa também em relação ao dinheiro. Além do mais, Guilhermina era a única pessoa naquele momento que podia ajudá-lo a sair dali.
— Acredito em você, não tem o que ser perdoado. — afirmou Saulo.
Guilhermina o abraçou e encheu-o de beijos.
— Agora tire-me daqui. — exigiu.
— Calma. Preciso pensar num plano.
— Plano nada. Tire-me daqui!
— O sítio está cercado de capangas. Eles pensam que eu vim por ordem do Thomás. Não pode ser assim. Não se preocupe, vou pensar numa forma de te tirar daqui o mais rápido possível.
Nesse momento eles ouviram palmas. Em seguida a figura de Thomás surgindo do fundo escuro do galpão, sorridente por flagrá-los.
— Que bonito, a cena ética dos dois bandidos. — ironizou.
— Thomás? — surpreendeu-se Guilhermina.
— Pensaram realmente que iam me enganar? — Thomás os provocou.
Saulo sentiu tanto ódio daquele psicopata. Se pudesse seria capaz de matá-lo com as próprias mãos. Como alguém podia mudar tanto? Inacreditável que o fundador de uma obra como o Chiamare, que já havia feito tanto bem às pessoas tivesse se transformado num demônio! Loucura, a única explicação! O fato é que não estava mais diante do irmão que conhecera no passado, mas de um homem desprovido de qualquer afeto ou temor a Deus. 
— Seus dias de glória estão contados, seu desgraçado! — Saulo anunciou. Não podia demonstrar fraqueza.
— E o que vão fazer? Matar-me como fizeram com a Eliane e puseram a culpa em mim? Os dias de mentiras de vocês é que estão contados. Laura e Diogo começaram a investigar o passado. Em breve todos saberão quem é Saulo Sobreira.
Saulo e Guilhermina entreolharam-se.
— O que vai fazer, criar provas contra mim? — perguntou Saulo.
— Como fez comigo? — arrematou Thomás.
— Você é pior do que eu pensava! — Saulo desabafou.
— Não pior do que você, meu irmão, acredite. — respondeu. — Vamos, Guilhermina, não temos mais nada a fazer aqui. — Segurou-a pelo braço e a conduziu à saída.
— Ai, está me machucando! — Guilhermina reclamou.
— SOLTA ELA, SEU DESGRAÇADO! VOLTA AQUI! — gritou, sem sucesso.
Precisava sair daquele lugar antes que fosse tarde demais. Aquele louco estava disposto a acabar com ele e a imagem construída em todos aqueles anos. Já tinha um plano em mente e era hora de executá-lo.
Não! Ele não destruiria tão fácil o Pescador de Vidas.




55


Cândida terminou de rezar o terço e continuou olhando fixamente o ícone da Santíssima Trindade na parede frontal da capela principal da comunidade. Pedia incansavelmente que Deus a perdoasse e trouxesse seu filho de volta. Procurava, sem êxito, não imaginar por onde e como ele estaria naquele momento, se com fome ou sede, se em algum lugar seguro. O que poderia ter acontecido a Lucas? Uma angústia injusta a uma mãe! Daria a própria vida para vê-lo em segurança.
Pensou no filho em cada segundo daquelas últimas duas semanas e não sabia mais dormir sem a ajuda de remédios. O coração saltava a cada mensagem ou ligação recebida, na esperança de receber alguma notícia. Porém era como Diogo afirmava, Lucas não queria ser encontrado e aquilo a matava aos poucos, por culpa de tudo o que havia acontecido. Se não tivesse sido fraca, entregando-se à paixão, talvez tivesse evitado a tragédia que tirou a vida de Edgar e jogou seu filho no mundo.
Sim, era a única culpada por tudo!
Perdão, Senhor! Perdão!
— Cândida? — A voz grave veio do banco de trás.
— Dr. Juca?
— Acabei de vir da delegacia.
Ela se encheu de esperanças mais uma vez.
— Nada ainda. — disse ele, com pesar.
Cândida afogou o rosto nas duas mãos em concha e chorou. O sogro saiu de onde estava e veio ao seu encontro, acolhendo-a.
— Calma, filha. A polícia está trabalhando duro para descobrir alguma coisa sobre o paradeiro dele.
— E se tiver acontecido algo de grave com meu filho, Dr. Juca?
— Não se preocupe, ele está bem.
— É tudo culpa minha!
— Não tem culpa de nada.
— Sim, tenho. O Edgar contou toda a verdade a ele.
— Isso um dia teria que acontecer. Nós fizemos tudo o que foi possível para que ele não descobrisse. Cândida, você já se arrependeu há muito tempo. Deus já lhe perdoou. Agora precisa se perdoar, minha filha.
Nem imaginava ele que novamente caíra em tentação e havia traído Edgar justo com seu filho. Se soubesse, certamente não a trataria daquela forma, com tanto carinho. Dr. Juca sempre dissera que Cândida era para ele uma nova filha.
— Se acontecer algo ao Lucas, aí sim nunca vou me perdoar!
— Nós vamos encontrá-lo, não se preocupe. Vim aqui também porque precisava conversar com você.
O que teria Dr. Juca a falar além do sumiço de Lucas? Cândida enxugou as lágrimas, procurou se recompor.
— É sobre Delano. — anunciou ele.
Cândida assustou-se. Será que ele havia descoberto sobre o romance dos dois? Mas como era possível? Se Lucas tinha desaparecido e Edgar estava morto, só se o próprio Delano tivesse lhe contado. Ele seria capaz, para prosseguir com a vingança e destruir a família Rebelo.
Cafajeste!
— O que tem ele? — perguntou, com voz trêmula.
— Cândida, Delano é meu neto. Ele foi o que me restou do meu filho. Por isso o convidei a morar conosco.
Como se seu chão tivesse desaparecido. Depois de tudo teria que conviver com ele de baixo do mesmo teto? Não, impossível!
— Dr. Juca, não sabemos nada sobre esse rapaz.
— Como não? É o melhor amigo do Lucas, seu personal. Todos na comunidade gostaram dele. “Você” parecia gostar dele.
— Isso antes de descobrir a verdade. Ele se aproximou do Lucas, de nós sorrateiramente, sem revelar quem verdadeiramente era.
— Qualquer um de nós em seu lugar faria o mesmo. — contra-argumentou o médico. — Depois de tudo o que ele e a mãe passaram, precisava saber onde estava pisando.
— Ele lhe disse isto?
— Cândida, sei que anda com os nervos à flor da pele, que você e Edgar brigaram naquele dia. Mas não pode descontar nesse rapaz.
Descontar?!
Delano queria vingança, acabar com o pai e o fez! Mentiu, envolveu-a num jogo sujo de sedução e provocou a morte de Edgar. O que Cândida tinha contra aquele homem era legítimo, nada passional como Dr. Juca insinuava.
— Dr. Juca, esse rapaz não presta!
— Cândida, está passando dos limites. Delano vai morar conosco, assunto encerrado! — ordenou o implacável Dr. Juca Rebelo, com toda a sua autoridade.
A menos que ela contasse a verdade, o que de fato tinha ocorrido naquele dia, que ela e Delano tiveram um caso e Edgar havia descoberto tudo. Além da vingança anunciada pelo próprio rapaz ao pai. Talvez o velho turrão mudasse de ideia e revisse a decisão de levar aquele cafajeste para dentro de casa. Seria também uma forma de libertação, estaria definitivamente banida da família Rebelo, da comunidade, de toda a farsa vivida naqueles últimos doze anos.
E seus filhos? E Lucas? Aquela revelação poderia também afastá-la de tudo o que mais amava. Seria obrigada a sair de casa justo no momento em que Lucas estava desaparecido. Correria o risco de perder o filho para sempre. Não, jamais pagaria esse preço. Se para permanecer com seus filhos deveria conviver também com Delano, assim o faria.
— Faça como achar melhor, Dr. Juca. — encerrou a história e saiu pisando firme.
Suportou as mentiras de um casamento fracassado por tantos anos. Aguentaria um pouco mais, até que Lucas estivesse a salvo. Esse era o dever de uma mãe.




56


O homem de terno e sapatos italianos saltou de sua caminhonete e caminhou alguns metros, até a calçada do Banco Central, na Rua Rodrigues Júnior, quase esquina com a Av. Heráclito Graça, onde dormia um grupo de mendigos em cima de papelões. Homens, mulheres, crianças e jovens. Contou treze pessoas ao todo.
Não sabia se o tremor se dava por conta do frio daquela noite, havia chovido mais cedo, ou se pela emoção de estar de volta às ruas, onde tudo começara. A primeira vez que Thomás saía em missão após reassumir a liderança do Chiamare. Procurou o quanto pôde evitar todo e qualquer compromisso religioso que o cargo lhe exigia naquele primeiro mês, até ficar impossível negar.
Em seguida, chegaram os demais missionários que vinham em outros carros e juntaram-se a ele. Aos poucos as pessoas foram despertando e pondo-se de pé. Logo um círculo fora constituído na calçada e todos acompanharam, atentos, de mãos dadas, a leitura do evangelho realizada por um dos missionários. Há muitos anos não ouvia a parábola do filho pródigo e, na primeira parte do texto de Lucas, nada foi tocado. De repente, um arrepio.
Depressa, tragam a melhor túnica para vestir meu filho. E coloquem um anel no seu dedo e sandália nos pés. Peguem o novilho gordo e o matem. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto, e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado.
Considerava um dos textos mais belos do evangelho e pela primeira vez em muitos anos, encheu-se de emoção com a palavra de Deus. Como se falasse dele, que voltara à vida, que fora encontrado de novo! Sentindo cada uma daquelas palavras se materializarem quando distribuíram o pão e a sopa àquele povo sedento de amor, perdido da sociedade, à margem da dignidade humana. O sorriso, a gratidão de cada uma daquelas pessoas por um gesto tão simples o fizeram bom novamente.
Por um instante, esqueceu tudo. Não havia espaço para mágoas, sofrimentos, nem para a dor que se fez companheira naqueles doze anos. Sentiu-se feliz por estar ali simplesmente e entregar a vida àquela gente.
Sentiu-se gente!
Thomás Sobreira voltou a ser o Pescador de Vidas.
Avistou dois outros mendigos que dormiam na calçada do outro lado, e se antecipou a eles. Contudo, um dos homens, ao percebê-lo se aproximar, levantou e correu. Magro, alto, parecia jovem.
— EI, ESPERE! — levava uma caixa de sopa numa mão e o pão na outra.
Não deu para ver o rosto do rapaz, estava no escuro, mas tinha algo de familiar. Infelizmente, viu-o desaparecer pela noite fria. Ao chegar do outro lado da rua, entregou a comida ao homem que permanecia deitado em cima de um papelão.
— Por que ele correu? — procurou saber do mendigo.
— Sei lá, moço. Deve estar com medo. — respondeu o homem abocanhando o pão.
— Sabe como se chama?
— Não. Chegou hoje e perguntou se podia dormir aqui. Disse o nome não.
Thomás ergueu-se e mirou o escuro da rua para onde o rapaz havia corrido. Pensou em pegar o carro e ir atrás dele. Não sabia porque, mas alguma coisa o movia a procurá-lo. Talvez resgatá-lo. Era assim que funcionava com as pessoas que saiam das ruas e passavam a fazer parte do Chiamare. Uma espécie de intuição do missionário em relação ao outro. Na verdade, uma conexão entre ambos. A fuga repentina do rapaz podia representar o medo por aquela empatia estabelecida no olhar. Por isso, no passado, utilizavam-se do dom de Diogo para fazê-los se aproximar e proporcionar-lhe uma nova vida.
Sim, aquele homem precisava de ajuda.
Conferiu se as chaves da caminhonete estavam no bolso e caminhou em direção ao veículo.
— Thomás?
Ouviu alguém chamá-lo pelo nome, logo que destravou as portas do carro com o controle. Como assim Thomás? Para todos era Saulo Sobreira.
Quando se virou, estava diante do Dr. Juca Rebelo.
Finalmente tivera a identidade descoberta. Como procederia agora?
— O que o senhor disse? — perguntou, disfarçando.
— Por um instante pensei estar diante do Thomás. — explicou o médico, com ar desconfiado.
Thomás alinhou o paletó e ajeitou o cabelo, como Saulo fazia.
— O senhor deve estar muito tocado pela morte do Edgar.
— Telefone para você. — disse o homem, sorrindo de um jeito irônico e estendendo o celular em sua direção.
Para mim?
— Tome. — insistiu Dr. Juca.
Thomás pegou o aparelho e o colocou no ouvido. Estava mudo. Depois mirou o visor e constatou que estava desligado.
— O senhor esta brincando comigo?
— Desligaram o telefone? — permanecia com o mesmo sorriso irônico.
Thomás devolveu o aparelho a ele e travou as portas do carro de volta.
— O senhor se enganou.
— Deve ter sido.
Os dois voltaram ao grupo.
Aquele velho devia estar louco. No entanto, precisava ter cuidado e se preparar para enfrentá-lo. Alguma ele estava armando.

~
O mendigo caminhou firme pela Rua Costa Barros em direção ao Centro da cidade. Havia acabado de fugir dos missionários pescadores de vidas. Não queria ser invadido no novo mundo o qual escolhera para viver, nem muito menos reencontrar aquelas pessoas escravizadas pelo ego, por uma sociedade injusta e egoísta, e sua necessidade mórbida de manutenção da mesma. Nas ruas, sentia-se livre e seguro, pela insegurança que sua figura suja e maltrapilha gerava nos demais.
O frio nas costelas nuas, a humidade do chão nos pés descalços e o odor de urina nos pontos de apoio já não o incomodavam mais depois de tanto tempo, um tempo que não se fazia mais contar e tornara-se etéreo nas conjugações verbais resistentes da vida deixada pra trás.
Optou por ser livre de todos, dos condicionamentos, da rejeição, do desamor. Agora se via do outro lado, num universo perdido para muitos e achado por poucos. Vez por outra, questionava-se acerca de sua atitude passada em invadir aquele mundo e sequestrar pessoas de escolhas firmadas. Muitas sabiam o que queriam e tinham o direito a permanecerem onde quisessem estar, equivocadas em seus acertos e acertadas em seus equívocos existenciais. Escolhiam a não ter direitos, a agregarem um conjunto de elementos marginalizados pelos seus, mas importantes para o próprio egoísmo inóspito, contraditório, contudo, necessário.
Seguiu até o semáforo da Rua João Cordeiro e aguardou que o mesmo abrisse. Apesar do trânsito calmo, alguns veículos arriscavam velocidade. Em seguida, autorizado pelo verde à sua frente, antecipou-se à faixa de pedestres, quando ouviu o cantar dos pneus. A caminhonete não conseguiria parar a tempo, não fosse por seu dom. Tão rápido quanto tudo aconteceu, o mendigo concentrou-se no veículo e o mesmo arrastou-se até poucos centímetros diante dele. Podia sentir o calor do motor em seu abdômen. Os olhos dos dois rapazes pelo pára-brisa do carro estavam arregalados. Foi quando cruzou o olhar com o do motorista. Jamais o esqueceria! O irmão que tanto amou e por ele fora desprezado a vida inteira. Agora o universo se encarregava de fazê-los novamente se encontrar.
Conseguiu ler claramente nos lábios do rapaz dentro do carro o que ele dissera.
Você?
Sim, ele também o havia reconhecido. Por um instante, ensaiou um sorriso. Talvez depois daquele tempo distante os dois pudessem finalmente se encontrar de verdade no amor nunca vivido entre irmãos. Como desejou aquele encontro! O momento de exílio e solidão poderia acabar. Seria um sinal, o convite a voltar? A possibilidade se fazia presente diante dele e justo por quem mais o motivara a desaparecer e deixar tudo para trás.
Os dentes brancos contrastaram com a sujeira do rosto barbado, num sorriso reconciliador.
O motorista, por sua vez, fez-se entender novamente em leitura labial.
Some da minha vida, aberração!
Estava errado mais uma vez. A vida o convidava a viver o desprendimento pleno de todos. O sorriso se fez lágrima e ele prosseguiu, atravessando a rua. Em seguida, o carro se foi com o seu passado a bordo.
Jesus também havia sido tentado pelo demônio no deserto.
A saudade era sua única companheira, em quem podia confiar, e fazia-o manter-se de pé, a lutar pela própria sobrevivência e seguir apartado de um passado que o impulsionava para longe.
Caminhou até o abrigo da parada de ônibus mais próxima. Ali sentou, trouxe as pernas para junto do corpo, a fim de se proteger do frio, e abraçou-as em posição fetal. Provavelmente o tremor proveniente da noite fria o acompanharia por toda a madrugada. Aquilo era tudo. Fechou os olhos, com a cabeça apoiadas nos joelhos, e agradeceu por mais um dia, por estar vivo, por não ter sido encontrado, por continuar pássaro livre, guiado por Deus.
A vida nas ruas o tinha aproximado mais de Deus. Era um homem feliz.




57


Pe. Giuseppe serviu café na louça italiana e depois entregou uma xícara a Laura e outra a Diogo. O homem se vangloriou pelo inconfundível sabor reconhecido por todos que experimentavam seu café.  Haviam se passado duas semanas desde que conversaram com Vera, irmã de Eliane, a prostituta encontrada morta na cama de Thomás. Eles preferiam espera mais um pouco, a fim de descobrirem outras pistas, antes de procurá-lo e ouvir sua versão da história. Acabaram por saber através de alguns missionários que o mesmo era visto frequentemente ao lado de Eliane, nos meses que antecederam sua morte.
 O padre discorreu sobre alguns assuntos corriqueiros da paróquia, até que Laura o abordou com o que verdadeiramente os interessava.
— Pe. Giuseppe, viemos aqui para falar com o senhor sobre o dia em o Thomás cometeu aquele crime. — anunciou sem rodeios. Preliminares não era seu forte. Pousou a xícara vazia no pires em cima da mesinha de centro da sala de estar e observou atenta a reação do homem revezando o olhar surpreso entre ela e Diogo.
O padre tomou um último gole de café e pronunciou-se. — Por que remexer no passado, meus filhos?
— Pe. Giuseppe, isso é muito importante para mim. — justificou Diogo, desafazendo-se também de sua xícara. — Nunca falamos sobre esse assunto, talvez por medo de enfrentar os detalhes. Agora sinto necessidade em saber o que de fato aconteceu naquele dia.
— Ora o que aconteceu... — o padre impacientou-se. — Não há nada a ser dito além do que todos já sabem, do que foi arrolado no processo.
— Naquele dia o senhor estava presente na comunidade, correto? — perguntou Laura, sem se importar com a reação anterior do homem.
— Sim. Quer dizer, cheguei bem cedo e flagrei seu irmão com a mulher morta em sua cama. — explicou, focando Diogo.
— E o senhor tinha o costume de acordá-lo? — Laura lançou outra pergunta.
O velho parecia não ter compreendido e ela procurou ser mais clara.
— Ou melhor, o senhor costumava ir até seu quarto de manhã logo cedo?
— Que pergunta mais sem cabimento! — o padre desviou o olhar, nitidamente incomodado.
— Por favor, Pe. Giuseppe, é importante. — insistiu Diogo.
— Thomás era como um filho, como você e seu irmão. — novamente voltou-se a Diogo. — Não vejo mal algum em acordá-lo.
Laura tinha certeza que estava mentindo.
— Não estamos julgando sua atitude, apenas querendo saber. — explicou.
— Vocês estão especulando. — o velho levantou-se. — Não vejo mais porque retomar esse assunto. Tudo já passou, Thomás está morto.
É hora de ser mais assertiva!
— O senhor realmente chegou naquela manhã ou dormiu no Chiamare desde a noite anterior? — foi Laura quem perguntou.
— Que insistência, menina! — resmungou o velho.
— Pe. Giuseppe, por favor. — Diogo interviu mais uma vez.
— Cheguei pela manhã. Isso está nos autos do processo. — respondeu. — Por que esse interrogatório? O que pretendem?
Diogo foi ao encontro do padre.
— Há algumas semanas estivemos com Vera, irmã de Eliane. Ela nos contou que na noite do crime recebeu uma ligação da irmã, dizendo que sentia-se ameaçada, e que um padre italiano estava ali, podendo acabar com seu sonho. Não tenho conhecimento de nenhum outro padre italiano na comunidade a não ser o senhor, Pe. Giuseppe.
— Essa mulher deve estar enganada. — sugeriu ele.
— Não acredito que estivesse — comentou Laura, aproximando-se também do padre. O mesmo estava encurralado e visivelmente abalado com o interrogatório.
— E por que eu mentiria? — o velho questionou.
— Usei meu dom para convencê-la a falar. — Diogo revelou. — Diante disso, não há equívocos, o senhor sabe melhor que ninguém.
— Já fazem muitos anos, não lembro direito. — disse ele, passando pelos dois, como se fugisse de um tribunal.
Laura estava certa de que lembrava.
— Mas o que o senhor confirmou no processo foi exatamente isso. — ela arrematou. — Isto é, o senhor mentiu para a justiça.
— Não vejo em que isso pode modificar o que houve naquela noite. O Thomás matou aquela mulher e pronto. Por que mexer no que está quieto, meus filhos?
— Porque tenho motivos para acreditar que meu irmão pagou por um crime que não cometeu. — respondeu-lhe Diogo, deixando-o mais abalado. Pe. Giuseppe demonstrava nervosismo na voz trêmula e nos gestos agitados.
— Isso é loucura, meu filho! A justiça o condenou.
— Que tipo de relação o senhor mantinha com Eliane naquela época? — disparou Diogo.
Isso, ele está mordendo a isca.
— O senhor era visto o tempo inteiro com ela, desde que fora resgatada das ruas. — complementou Laura.
— O que estão insinuando?
— O Thomás gritou aos quatro cantos que nunca teve nada com ela. — Diogo explicou. — Realmente ninguém nunca o viu ao seu lado, mas Vera afirma que a irmã tinha sim um caso com alguém dentro da comunidade. Já o senhor estava sempre ao lado de Eliane.
— Acham que eu tinha um caso com Eliane? Nunca fui tão desrespeitado em toda a minha vida! — Pe. Giuseppe se alterou. — Eu o criei como a um filho, Diogo! Como ousa me ultrajar dessa forma?
— O senhor mentiu para a justiça. — Diogo justificou. — Estamos procurando a verdade.
— Saiam daqui já! — exigiu, apontando à porta.
— Se não tem nada a ver com isso, por que não nos ajuda a descobrir a verdade? — Laura questionou-o novamente. Não queria perder a oportunidade de descobrir mais alguma coisa naquelas falas contraditórias, o que ele pudesse deixar escapar através do não dito. Se insistisse um pouco mais, talvez Pe. Giuseppe revelasse algo pressionado pelo desespero do momento. Do contrário, podia lhe assustar e motivá-lo a procurar outras saídas para continuar esconder a verdade de todos.
Melhor seria deixá-lo em paz por enquanto.
— Saia daqui com suas conjecturas infundadas, menina! — foi irredutível. — Vocês não tem o direito!
— Nem o senhor de mentir para a justiça. — Diogo completou. — Nós vamos descobrir a verdade, Pe. Giuseppe, quer o senhor queira ou não!
— SAIAM! — gritou o velho padre.
Laura e Diogo trocaram olhares, como que acertando o passo. Ela pegou sua bolsa e seguiu o amigo. Os dois saíram da casa paroquial e foram para o carro, estacionado em frente, sem nada falar. Foi Laura quem quebrou o silêncio, ao entrar no veículo.
— O que você achou?
— Ele está mentindo.
— Foi o que pensei. Se não estivesse, não teria ficado tão abalado. Pe. Giuseppe sabe muito mais sobre aquela noite do que contou a justiça. Acha que eles eram amantes, que foi ele quem a matou?
— Isso nós vamos descobrir. — disse Diogo, ligando o carro.
— Só mais uma pergunta — anunciou Laura.
— O que é?
— Por que não usou seu dom para fazê-lo falar a verdade?
Diogo sorriu.
— Não consigo com aqueles com quem sou envolvido emocionalmente.
Mas pode ler minha mente!
— Sim, leio, — afirmou ele. — mas nunca consegui fazer o mesmo com Pe. Giuseppe. Talvez por ter sido meu mentor espiritual, não sei explicar.
— Ok.
O importante era que estavam muito perto. Agora investigariam as demais testemunhas do caso.

~
Pe. Giuseppe digitou uma mensagem no celular.
Más notícias! Laura e Diogo estão juntos, investigando a morte de Eliane. Saíram daqui tem pouco tempo e sabem mais do que deviam. Temo o que eles possam descobrir.
Depois, enviou.
Encontrava-se num alto nível de tensão após a visita. Sabia que um dia aquela história poderia voltar-se contra ele. Finalmente aquele dia havia chegado. Nem todos os segredos podiam ser guardados para sempre. O que provocava-lhe taquicardia.
Foi até a gaveta do armário, pegou o envelope de comprimidos para a pressão e sacou um deles, tomando-o em seguida. Voltou à sala, juntou a louça usada há pouco e a levou para a cozinha, quando o som de notificação do aparelho anunciou o recebimento de uma mensagem.
Como chegaram até você? O que disse a eles?
Respondeu em sequência.
Estiveram com Vera, a irmã de Eliane. Mantive-me firme, mas sabem que há algo errado. Pensam que era comigo que ela mantinha o caso. Estão determinados a descobrir a verdade. E pelo visto, acontecerá brevemente.
Enviou. Segundos depois, outra mensagem recebida.
Sinto que está fraquejando. A vida de muita gente está em jogo. Não pode voltar atrás!
Pe. Giuseppe puxou o ar para os pulmões com toda a força que dispunha e respondeu.
Sei de minha responsabilidade. Mas não acredito que podemos levar essa história adiante por muito tempo. O cerco está se fechando.
MENSAGEM ENVIADA
MENSAGEM RECEBIDA
Não se preocupe, providenciarei para que nada descubram. O passado continuará em seu devido lugar.
Tomara que não!
Surpreendeu-se consigo mesmo torcendo para que tudo fosse descoberto. Estava farto de omitir ou mentir por uma boa causa. Sentia-se sujo e em dívida com Deus. Até hoje não se perdoava por não ter contado toda a verdade em juízo. E se Diogo tivesse razão e Thomás fosse realmente inocente? Que barbárie teria cometido com seu depoimento capenga! Fazer alguém pagar por um crime que não havia cometido. Justo o filho de coração. Monstruosidade! Pensar naquela possibilidade foi o que de fato mais o perturbou na conversa com Laura e Diogo, não o medo de ser flagrado em suas contradições, como certamente eles imaginavam que fosse, mas cogitar a ideia de ter colaborado com uma injustiça gigantesca, destruindo a vida de uma pessoa que tanto amava.
No passado, acreditou piamente na culpa de Thomás. Tudo levava a crer que havia sido ele realmente o criminoso, embora houvesse outros fatos ocorridos naquela noite, mantidos em segredo. Um segredo de confissão que lhe roubou a paz de espírito por anos e voltava a atormentá-lo.
Questionou-se incontáveis vezes se violaria um sacramento em nome da verdade e justiça. Se estivesse compactuando para a destruição de um inocente? Até onde ia o limite entre a ética canônica, as leis dos homens e a verdade de seu coração? Como um pastor deveria se comportar diante desse dilema, cumprindo rigorosamente a missão por Deus confiada?
Novamente se viu tomado de interrogações.
Não me abandona nesse momento, Senhor! Mais do que nunca este humilde servo precisa de Ti!
— O que eu faço, Pai?
Limpou o suor da testa com uma das mãos, empurrou os óculos da ponta do nariz até seu devido lugar com o indicador, e mais uma vez respondeu a mensagem.
Prepare-se! Mais cedo do que nunca a verdade virá à tona. É hora de soltarmos as rédeas e permitirmos que Deus haja.
MENSAGEM ENVIADA
Sentou-se à mesa da cozinha, colocando o celular à sua frente, e aguardou até outro bip.
MENSAGEM RECEBIDA
Deus nos usa como anjos para implementar Seus feitos. Farei tudo para salvar o Chiamare! Tudo! Boa noite.
Pois ele estava decidido, não moveria mais uma palha em favor da manutenção daquele segredo. Pelo contrário, chegava o momento de também saber a verdade. Talvez pudesse ajudar nas investigações de Laura e Diogo.




58


— Padre, eu pequei! — anunciou Thomás, diante do confessionário.
Fazia parte de seu plano de justiça aquele encontro com Pe. Giuseppe, no qual, passando-se pelo irmão, confessaria um suposto crime de pedofilia. A ideia seria começar a destruir a imagem construída por Saulo, minando a confiança dos mais próximos, para só depois tornar o caso público. Sentiria ele na pele o que era ser acusado de um crime que não cometeu.
Perfeito seria, não fosse pela dúvida corrosiva dos últimos dois dias, desde a missão às ruas. Encontrava-se atormentado pelo que sentira naquela noite ao vivenciar novamente o carisma criado por ele há vinte anos. Uma força descomunal o movia a deixar tudo para trás e seguir com o chamado esquecido nos escombros das próprias mágoas.
Como se Deus quisesse mais uma vez estabelecer um diálogo.
Está brincando de ser Deus, Thomás. Esse é seu verdadeiro plano. Vingar-se Daquele que te abandonou, assumindo seu lugar. As palavras de Juscelino pareciam piche em sua mente, repetindo-se numa frequência estúpida que o fazia hesitar.
Vingar-me de Deus?
O maior absurdo que já ouvira. Saulo sempre fora seu foco principal. O objetivo era livrar a sociedade de um assassino frio, capaz de destruir a vida do próprio irmão por conta de sua ambição.
A tua maior dor não foi o abandono daqueles que te amavam ou as mentiras do Saulo, mas o suposto silêncio de Deus diante de tudo isso.
Para Thomás, puro equívoco de Juscelino.
Não tenho mais nenhuma relação com Deus! Nenhuma!
Por que não conseguia simplesmente prosseguir? Aquele caminho lhe dera fôlego e um motivo para viver dentro daquele inferno nos últimos doze anos. Na verdade, o plano de justiça o mantivera vivo, alimentando sua alma.
Contudo, a sensação inexplicável de felicidade ao alimentar aquela gente nas ruas, de sentir-se como eles e ao mesmo tempo, proporcionar-lhes a vida, consumia-o em fortes labaredas, capazes de ruir as piores dores.
É possível a justiça com mentiras?
Sentiu-se tão infame quanto o próprio irmão.
— Qual seu pecado, filho?
A pergunta do Pe. Giuseppe o silenciou.
Fingir-me de morto, sequestrar meu irmão, passar-me por ele e enganar a todos!
— Ser quem não sou, para voltar a ser quem sou. — a única resposta capaz de traduzir o turbilhão de sentimentos que o chafurdava naquele momento.
— Thomás?!
Viu o rosto do padre, procurá-lo através da tela do confessionário. De repente, o homem que o criou como a um filho saiu de onde estava e se pôs diante de Thomás, com olhos arregalados e um nervosismo aparente.
— É você mesmo?! — insistiu ele, visivelmente chocado, permitindo que uma lágrima lhe banhasse a face.
— A gente só enxerga aquilo que deseja enxergar. — sua fala vinha carregada de mágoas e significados, pela traição sofrida.
— Você havia morrido! — aproximou-se, tocando-lhe o rosto.
— Foi melhor para todos nós.
— Onde está o Saulo? — puxou a mão num impulso, como se por medo de queimar-se. — O que fez com ele?
— Vivendo algo parecido com o que vivi. — levantou e deu as costas ao homem. — Só parecido. Fui preso injustamente. Ele não! 
— Meu Deus, você sequestrou o Saulo!
— Ele roubou a minha vida! — girou, encarando o padre. — Estamos quites.
Quites?
Nem ele mesmo acreditava no que dizia.
— Está se vingando?
— Não, buscando justiça.
— A justiça só existe na relação, meu filho. — disse Pe. Giuseppe. — Quando feita pelas próprias mãos, sem levar em conta um acordo comum, é vingança.
Juscelino já havia lhe dito isso.
— E quando esse acordo é corrompido, devastando a vida de quem estiver pela frente? — Thomás questionou. — O que fazer?
— Como agora?
— Fui vítima de uma mentira sórdida que acabou com a minha vida! É justo deixar as coisas como estão?
— Não, não é. Também não é justo usar o mesmo caminho que supostamente lhe feriu. Olho por olho, dente por dente, isso só traz dores, meu filho! Onde está o Pescador de Vidas que eu conheci?
Thomás sucumbiu à emoção e deixou escapar uma lágrima.
— Vocês o mataram!
— Jesus foi traído, perseguido, crucificado, e permaneceu firme na fé.
— Bela desculpa para vocês que continuaram livres.
— Não sabe o quanto sofri, meu filho!
— Por que o senhor me abandonou? — aquela pergunta estava engasgada há doze anos.
— Por uma causa maior. — o velho pôs a mão no rosto e caiu em prantos. — Foi o pior erro da minha vida, meu filho!
Pe. Giuseppe ajoelhou-se diante de Thomás.
— Perdão, meu filho! Perdão!
Ele permaneceu imóvel, sem conseguir mexer um músculo, caindo num choro de doze anos. Desejava ouvir aquilo de quem amava, de quem o havia abandonado. Novamente experimentou o afeto do homem que para ele fora um pai. Quis abraçá-lo, deitar a cabeça em seu colo, como quando menino e gozar do carinho que lhe era peculiar.
Thomás se viu garotinho, correndo igreja adentro, em prantos, com a perna lavada de sangue, abraçando-se com Pe. Giuseppe que vinha apreensivo ao seu encontro.
— O que foi isso, meu filho?
— Eu caí, padre! Está doendo muito!
— Calma, filho, calma. Estou aqui. — falou ele com um jeito terno, abaixando-se para verificar o local do machucado. — Não é nada demais. Vamos fazer um curativo.
— Vai doer!
— Confie em mim. Nada de mal vai lhe acontecer. Estou aqui pra protegê-lo.
Não, não o protegeu! Pe. Giuseppe foi a principal testemunha de acusação contra ele no tribunal.
— Perdoe-me, meu filho! — insistiu o velho, de joelho.
Por uma causa maior.
Se estivesse mancomunado com Saulo?
— Não cabe a mim, perdoar a monstruosidade que vocês me fizeram! — sentenciou Thomás, saindo diante dele. — Mas ao seu Deus.
— Sempre o amei, meu filho! — afirmou o padre, permanecendo onde estava, como se numa penitência.
Queria acreditar, mas eles também haviam lhe roubado a capacidade de perdoar.
— Vou cuidar para que o senhor não conte nada a ninguém! — prometeu, deixando aquele lugar que lhe trazia de volta uma certeza até então aniquilada no mais profundo de seus sentimentos.




59


Cândida pôs uma roupa simples e finalmente resolveu deixar o quarto, depois de um tempo de exílio nas próprias amarguras. Procurou estar distante de todos naquele último mês, desde que tudo havia acontecido, como forma, talvez, de suportar a culpa e não precisar encarar ninguém da família. Cada olhar, cada palavra chegava-lhe como sentença, por mais que não soubessem da verdade, o que de fato tinha tirado a vida de Edgar. Se descobrissem, certamente a excomungariam de suas vidas. O que não seria de todo o mal. Por Lucas e Salomão, permanecia em martírio. Na verdade, cuidaria para que nada mudasse, pelo menos até que tivesse alguma notícia de seu filho.
Ao descer as escadas, viu a figura de Delano, de costas, escorado na porta que dava para uma das varandas do apartamento. Por um instante, sentiu uma alegria que encheu-lhe de vida, o mesmo quando o via no Chiamare, antes de descobrir a verdade. Tão logo se animou, a força vital se desfez, oprimida pela traição.
Não passou de um instrumento nas mãos de Delano para se vingar do próprio pai. Como alguém poderia ter o poder de fazer com que o outro se sentisse tão pequeno, insignificante? Sentia-se desprezível! Primeiramente apaixonada por um homem que nunca a amou. Depois, casada por quase vinte anos com uma pessoa que a odiou. Por fim, envolveu-se com um rapaz, quinze anos mais jovem, que a usou simplesmente. O que mais podia sentir senão pena de si mesma?
Cândida pensou em subir de volta ao quarto, mas precisaria enfrentar aquela situação mais cedo ou mais tarde. Afinal, Delano agora fazia parte daquela família e estava morando debaixo do mesmo teto que ela, há alguns dias. Não tinha mais como evitar aquele encontro.
Ao perceber sua presença, ele girou o corpo de uma vez.
— Cândida?
— Como tem coragem de vir morar aqui depois de tudo o que houve?
— Esta é a única família que me resta. — justificou o rapaz.
Cândida se certificou que ninguém os estava vendo e se aproximou.
— Uma família que quer destruir. É por isso que está aqui? Para dar continuidade à sua vingança?
— Muita coisa mudou despois da morte do Edgar.
— Mentira! Você é ardiloso, arquitetou a ruína de nossa família.
— Não planejei a morte de ninguém!
— Talvez não, mas foi conveniente para seus planos.
— Acha que sou um monstro, não é?
— O que eu acho não vai mudar em nada o que houve, nem trazer o Edgar de volta.
— Queria sim me vingar, mas não que ele tivesse morrido.
— O que pretende? Qual o plano?
Ele olhou todo o ambiente, passou a língua no lábio superior e o mordeu em seguida.
— Não há mais plano algum! — anunciou. — A vingança morreu junto com meu pai.
— Pai? Agora o chama de pai? Nós matamos o Edgar!
— Não! — ele a segurou pelos ombros. — Nós não tivemos como evitar!
Cândida tomou distância.
— O Edgar saiu dirigindo daquela forma porque estava transtornado depois de descobrir que o traíamos. Somos sim os culpados!
— Não se cansa de se culpar por tudo?
O que aquele menino sabia da vida, de sua vida? Nada! Como podia julgá-la, enquadrá-la em seus parâmetros? Não tinha o direito.
— Olha o que fez da sua vida até hoje... — chamou ele sua atenção.
— Quem pensa que é para questionar a minha vida? — disse ela, com todo o ódio que cabia a uma mulher usada, traída.
— O homem que está apaixonado por você! — Delano respondeu, tentando uma aproximação.
Mas Cândida se afastou novamente.
Apaixonado?!
Esse era o plano? Continuar a envolvê-la para destruir o que restava da família? Como alguém podia ser tão cruel? Desejou voar nele, esmagá-lo, demonstrar toda a ira e indignação de mulher ferida. Talvez matá-lo a fizesse sentir-se melhor. Qualquer loucura que cometesse seria justificada perante todos pela dor da perda de seu marido.
Conferiu mais uma vez se estavam realmente a sós.
Temia que alguém soubesse ou desconfiasse do que houve entre eles. Como reagiria Salomão? Melhor aquietar o juízo e evitar mais escândalos.
— Você é um doente! — foi o que conseguiu pronunciar ao ouvir a declaração estúpida.
— Eu me apaixonei realmente por você, Cândida. — insistiu.
— Acha mesmo que depois de tudo, pode continuar com essa farsa?
— Foi por isso que eu vim para cá.
— Para terminar o que começou?
— A vida foi muito difícil para mim. Após a morte de minha mãe só tinha um motivo para continuar vivo. Vingá-la!
— Não conheci sua mãe, mas certamente ela estaria triste se soubesse o que fez.
— Como estou.
Uma lágrima despontou no rosto de Delano.
Lágrima de crocodilo!
— Chega de mentiras! Vai embora daqui! — exigiu.
Ele se aproximou e segurou-a firmemente.
— Me perdoa, Cândida!
Como seria bom se fosse verdade! Fechou os olhos e imaginou que seria.
É mentira, tola!
Mais uma vez teve a imagem de Delano em sua frente.
— Saia da minha vida para sempre! — ordenou ela.
— Eu te amo, Cândida!
— Você é pior do que eu pensava!
Ele a beijou. Cândida resistiu, mas logo sucumbiu ao calor, ao cheiro, à força envolvente daquele homem. Por um instante o mundo poderia acabar! Foi assustadoramente maravilhoso aquele beijo. Até que ela conseguiu se desvencilhar e o acertou com um tapa.
— FICA LONGE DE MIM E DA MINHA FAMÍLIA! — gritou, para que ela mesma ouvisse e se convencesse daquilo.
Delano tocou no local da agressão e parecia tentar reequilibrar o fluxo respiratório. Cândida verificou novamente se não havia mais ninguém no ambiente e subiu as escadas em passos largos.
Não havia mais lugar para ela naquela casa!




60


Thomás estacionou a caminhonete em frente ao galpão do sítio em Maranguape. Desligou o motor e saltou do carro em direção à entrada do prédio. Fez um sinal de cabeça para os dois homens de guarda nas laterais da construção e afastou o grande portão, o suficiente para passar. Vinha determinado a por um fim àquela farsa. Pelo que sabia Laura e Diogo já estavam investigando o crime que o tinha levado à prisão no passado. Bastava!
Depois da morte de Edgar, do sumiço de Lucas, do sofrimento de Laura estava certo de que não havia como fazer justiça com as próprias mãos e não se sujar ou arriscar no caminho estúpido da injustiça, interferindo diretamente e de um uma forma desastrosa na vida daqueles ao seu entorno, fazendo-o igualar-se em medida e proporção aos responsáveis à sua condição de vítima.
Sentia-se tão culpado quanto eles! De que adiantava continuar se aquilo não traria sua vida de volta? Justiça maior seria provar a própria inocência, embora já tivesse pagado por um crime que não cometeu. Desejava o emergir da verdade, a fim de se livrar das correntes que lhe aprisionavam a alma.
Thomás se aproximou do local onde o irmão parecia estar dormindo.
— Saulo?
Estranhou que ele não desse sinal de vida.
— Saulo? — insistiu.
O outro continuou imóvel, desacordado. Chegou mais perto e viu que, mesmo acorrentado, ele tinha uma barra de ferro entre as mãos. Como o bote de uma cobra, Saulo partiu de sua aparente quietude e o atacou. Antes que pudesse pensar em qualquer atitude de defesa, sentiu uma dormência na lateral da cabeça e tudo escureceu.
De repente, era novamente um garoto de nove anos, disputando o melhor pulo e mergulho da parede do açude com Diogo. Ao cair na água, sentiu uma força estranha puxá-lo para o fundo. As mãos de alguém estavam agarradas ao seu tornozelo, e por mais que lutasse, não conseguia se desvencilhar, tomando muita água. O ar já não se fazia mais o suficiente para mantê-lo vivo e em meio ao desespero, viu o próprio reflexo conduzindo-o à morte.
Saulo!
Uma dor de cabeça descomunal o fez emergir. Sentiu um calor escorrendo pelo rosto e percebeu que o braço direito e o peito nu estavam lavados de sangue. As água do açude haviam se transformado nas paredes do velho galpão alugado, cativeiro do irmão. A imagem turva de Saulo terminando de se vestir, desenhava-se, à sua frente.
— Acordou, irmãozinho?
Sentia-se zonzo, sem compreender direito o que estava acontecendo. O frio e umidade do chão de cimento queimado o fizeram perceber que se encontrava descalço, vestindo a velha calça suja que outrora cobria o corpo magro do irmão. As correntes pesavam em seu pulso.
Saulo balançou as chaves e sorriu.
— Estavam no seu bolso. — zombou ele.
— O que você fez? — perguntou com dificuldade.
A cabeça latejava de uma forma insuportável.
— Agora está no canto que é seu. — explicou Saulo, alinhando o paletó.
Saulo o havia acertado com a barra de ferro.
— Vim conversar com você para acabarmos com isso.
— Mentira! Você é um psicopata e eu não caio mais nas suas armações. Daqui mesmo vou direto para a polícia. Vai apodrecer atrás das grades, Thomás. Aliás, de onde nunca devia ter saído. Loucos como você precisam estar longe da sociedade!
Chegara ali decidido a por um fim ao seu plano de justiça ou vingança, como Juscelino o considerava, a ressignificar o caminho, propondo ao irmão uma trégua. Mas estava prestes a ver tudo ser dissolvido de outra forma, do mesmo modo que Saulo conseguiu acabar com sua vida, provavelmente enganando a todos e transformando-o mais uma vez num monstro implacável. Por um instante, teve uma estranha sensação de fracasso. Tudo em vão!
Temo por você, de acabar voltando para cá. O receio de Juscelino fora quase uma previsão.
Era justo deixá-lo vencer mais uma vez? Temia que Saulo a solta e ele preso, o irmão impedisse de algum modo a descoberta da verdade, como havia feito nos últimos doze anos. Certamente o líder do Chiamare e sua fiel secretária inescrupulosa fariam de tudo para que aquela promessa maldita fosse cumprida e Thomás apodreceria na cadeia, como ele havia planejado desde o princípio.
Infelizmente precisava usar a mesmas armas que ele.
— Isso, vai para a polícia. — Thomás o incentivou. — Conta que não estou morto, que você forjou tudo isso e me tirou de circulação. Esta é a versão que será exposta a todos. Se voltar agora, a Laura e o Diogo receberão todas as informações necessárias para acreditarem nisso e te entregarem à polícia.
— CANALHA, DESGRAÇADO! — Saulo partiu novamente para ele, sacudindo-o pelos ombros. — Acha que vai manter esta farsa até quando, hein?
— Não quero mantê-la. Vim aqui para te fazer uma proposta.
— Proposta? Que proposta?
— Tirá-lo daqui e levá-lo para um local seguro, até que a verdade seja descoberta.
— E por que acreditaria em você, um criminoso capaz de sequestrar o próprio irmão?
Cretino!
— Não há escolhas. — expôs simplesmente.
— Há sim! — retrucou, correndo em direção à saída.
— VOCÊ NÃO VAI MUITO LONGE! — advertiu.
Mas Saulo sumiu pelo portão.
Sentia-se meio zonzo, mas lembrou dos homens, fora do galpão.
— SOCORRO! SOCORRO! SOCORRO!
Ouviu o motor da caminhonete e em seguida o cantar de pneus. Só depois os dois homens entraram no galpão.
— Rápido, me tirem daqui!
Os capangas se entreolharam certamente em dúvida. Foi quando lembrou que provavelmente estava a cara de Saulo no cativeiro. O irmão havia saído com suas roupas.
— Sou eu, Thomás! Aconteceu o que disse que podia acontecer, ele me atacou e se fez passar por mim!
Os homens ainda hesitaram.
— Thomás Sobreira, o verdadeiro Pescador de Vidas! — anunciou o código, caso aquilo acontecesse.
De qualquer modo, com Saulo fora do cativeiro, aquela história estava chegando ao fim.

~
Saulo pisou firme na aceleração e em poucos minutos estava na CE-065, em direção a Fortaleza. Focou no retrovisor interno da caminhonete e deparou-se com o reflexo de um homem com cabelo desgrenhado, rosto sujo e uma expressão de tensão por receio de não conseguir chegar ou ser pego pelos homens de Thomás.
Bem que a explosão podia tê-lo matado realmente!
Estaria livre do fantasma daquele assassino.
Precisava proteger-se, ganhar tempo e destruir o plano de vingança de Thomás.
O celular dele, se não estava com ele deve estar aqui.
Dividiu a atenção entre a estrada e o ambiente interno do veículo, passando a vista rapidamente pelo painel e o porta-trecos logo abaixo. Em seguida, abriu o porta-luvas com uma das mãos, enquanto permanecia com a mesma velocidade. Derrubou um bloco de papel, caixa de lenço, carteira com os documentos do carro. Nada, nenhum celular.
Um som forte de buzina.
A desatenção o fizera entrar na outra faixa.
— MEU DEUS! — gritou, girando o volante a tempo de evitar o acidente.
Depois passou a mão pela testa, limpando o suor que insistia em escorrer, embora o ar condicionado estivesse ligado no volume máximo.
Ouviu um bipe de notificação de celular. Quando olhou o compartimento da porta do veículo, avistou o aparelho com a tela acesa.
— Graças a Deus!
Dessa vez, procurando manter o foco na estrada, pegou o celular cheio de esperança. A ideia era ligar para Guilhermina, a fim de que ela agilizasse a polícia contra Thomás, e deste modo, antecipar-se na tomada do poder. Ao acionar o desbloqueio de tela pelo touch screen, deparou-se com um fundo preto e nove pontos brancos a serem ligados pelo usuário. — código de desbloqueio através de desenho.
— QUE DROGA É ESSA!
Ligou o primeiro ponto inferior esquerdo ao último superior direito, traçando uma linha diagonal. A mesma mudou para a cor vermelha e apareceu uma notificação acima da tela:
DESENHO INCORRETO
— Desgraçado! Eu não vou conseguir!
Tentou mais uma vez, desenhando um L. Novamente, a mesma mensagem. Em seguida, respirou fundo, procurou se concentrar e fez um U.
DESENHO INCORRETO
— DROGA! — Jogou o aparelho com toda a força que dispunha no assoalho do veículo. Não conseguiria nunca.
Foi quando percebeu estar sendo seguido por um carro preto. Se mudasse de faixa, ele também mudava, se acelerava, o outro também o fazia.
Deve ser o Thomás!
Pisou firme. Desta vez seria diferente, ele não o impediria de chegar primeiro. Ultrapassou alguns veículo, mas o carro preto permanecia em sua cola, aproximando-se cada vez mais. Avistou o emblema da empresa através do retrovisor. Tratava-se da firma de segurança que prestava serviços para o Chiamare.
Meu Deus, o que devo fazer?
Temia que eles estivessem em sua cola a mando de Thomás. Se parasse, poderia estar perdido e voltar ao cativeiro, deixando o louco do irmão acabar com sua vida e a comunidade. Do contrário, eles o pegariam de qualquer forma. Detestava dirigir e não dispunha de nenhuma intimidade com o volante e a estrada. Na verdade, não tinha a menor chance contra aquela gente preparada para enfrentar uma crise daquela dimensão.
Talvez pudesse barganhar? Era velho conhecido da empresa. Sim, havia uma possibilidade.
Ligou a sinaleira e guiou a caminhonete para o acostamento. O outro carro fez o mesmo.
Seja o que Deus quiser!
Estava tão nervoso quanto no dia do sequestro. Saulo acompanhou pelo retrovisor, dois homens saírem do carro, atrás dele e virem até sua janela. Abaixou o vidro e os cumprimentou.
— Boa tarde, senhor. — responderam os homens. — Recebemos uma denúncia de que este veículo havia sido roubado. O senhor pode nos mostrar os documentos?
Se ele mexesse um músculo que fosse, certamente iam perceber o quanto tremia e podiam desconfiar. Desviou o olhar para o painel do carro à frente e viu sua carteira. Em seguida, com esforço para não tremer e aparentar nervosismo estendeu a mão e a entregou aos homens. Depois, abaixou-se até o piso do passageiro ao seu lado e pegou os documentos do veículo, jogados por ele há pouco.
Os dois homens foram até a traseira do carro e pareceram conferir a placa com a descrição nos documentos entregues a eles. A inspeção demorou mais que o esperado. Pensou em questionar, mas temia qualquer reação por parte deles.
Me ajuda, Pai! Faz com que dê tudo certo!
Os homens voltaram, entregam-lhe os documentos, desculparam-se e disseram para seguir viagem.
Obrigado, Senhor!
O Chiamare seria seu destino. Estava prestes a desmascarar o bandido do irmão.

~
Thomás entrou impecável no escritório de Saulo no Chiamare. Acabara de tomar um bom banho, vestiu-se como o irmão e fez um pequeno curativo na cabeça, pouco acima da orelha direita, onde havia sido acertado com a barra de ferro. Abriu a primeira gaveta da mesa e retirou de lá uma pasta preta. Ali continha sua segurança.
Recordou-se de quando voltava de Maranguape pela CE-065, no carro dos homens que havia contratado para vigiar o irmão, há pouco mais de uma hora, e passou pela caminhonete de Saulo, parada no acostamento, vendo este ser abordado pela empresa de segurança da comunidade, após a denúncia que fizera.
Tempo suficiente para voltar ao controle.
Thomás sentou na poltrona destinada ao líder do Chiamare, com uma ampla visão do ambiente, girou devagar de um lado para o outro, imaginando como seria mais aquele encontro, e aguardou pelo irmão.
Minutos mais tarde, Saulo abriu as portas do escritório e invadiu o local. Trazia uma tensão nociva no semblante.
— O que você fez? Aprendeu a se teletransportar nesses doze anos? — inqueriu ele, caminhando firme em direção à mesa onde Thomás estava.
— Não. A me defender. — respondeu com a naturalidade que a vantagem da situação lhe proporcionava.
— O que faz aqui? Não tem como me impedir de tomar meu lugar!
Irônico!
— Seu lugar? — pôs-se de pé, a fim de enfrenta-lo de igual para igual. — Você o roubou de mim!
Ficaram cara a cara mais uma vez, separados por uma mesa.
— Não o roubei. Você o perdeu quando matou aquela mulher.
Cretino, inescrupuloso!
— Não há mais tempo para isso, Saulo.
— Vou chamar a polícia e te mandar de novo para onde nunca devia ter saído!
— Aproveite e chame também o conselho administrativo, o representante da entidade italiana doadora dos fundos para a construção do templo do Chiamare.
— Do que está falando?
Thomás pegou a pasta preta em cima da mesa e a entregou ao irmão.
— O que é isto? — perguntou ele, desconfiado.
— Veja você mesmo.
Saulo tomou a pasta, deu as costas para Thomás e a abriu, folheando os papéis que lá estavam. Em seguida, voltou-se a ele com um olhar que poderia matá-lo.
— O que pretende com isso, Thomás?
— Que aceite a condição que te ofereço.
— E se eu não aceitar?
— Aí todos vão saber que você desviou vinte milhões de reais dos fundos para a construção do templo do Chiamare. Não apenas terá que prestar explicações ao conselho, mas, sobretudo à entidade italiana, responsável pela doação. Pelas regras do contrato, o mesmo será quebrado. Terão de devolver cada centavo empregado na obra.
— Nós já investimos mais da metade do valor, as obras do templo estão a todo vapor. Trata-se de cento e sessenta milhões, isso levaria o Chiamare à falência! — largou a pasta aberta com os documentos em cima da mesa.
— Dos quais roubou vinte milhões.
— Esse dinheiro foi para você, para fazê-lo sumir!
— Para a entidade doadora não interessa o objetivo. Você os roubou e pronto. — Thomás caminhou até a vidraça atrás dele que dava para o jardim, colocou a mão no bolso e sorriu. — Além do mais, precisará também explicar ao conselho esse valor de dez milhões depositados em sua conta pessoal.
— Mas esse valor não é meu!
— Exatamente. Também pertence à comunidade. Sua fiel secretária o desviou e transferiu-o recentemente para sua conta.
Saulo parecia completamente chocado.
— Você deve tê-la forçado.
— As únicas provas existentes são contra vocês e estão dentro desta pasta. A propósito, pode levá-la de lembrança. Isto é uma cópia. Os originais estão muito bem guardados.
— CANALHA!
O grito de Saulo não o surpreendeu, nem roubou-llhe o sorriso. Gostou de vê-lo encurralado, tenso, pagando de algum modo por seus crimes.
Este era o momento. Thomás aproximou-se da mesa mais uma vez e tirou um envelope branco da gaveta, estendendo-o ao irmão.
— O que isso?
— As coordenadas de como deve proceder daqui em diante. Meu motorista o levará a um lugar seguro, onde deverá aguardar por notícias.
— E o que vai fazer?
— Nada que não seja justo, não se preocupe.
— E como posso confiar?
— Não pode. Apenas obedeça.
Saulo olhou-o profundamente por um tempo, com um ódio aparente, depois guardou o envelope no bolso interno do paletó e deu as costas.
— Você é um monstro, Thomás! — disse, de costas.
— Digo o mesmo de você, Saulo. A diferença é que agora estou no controle.
— Essa história não acabou, meu irmão. Vou destruí-lo definitivamente e retomar o que é meu!
— Estou ansioso por isso, meu irmão.
Saulo deixou o escritório e Thomás despencou na poltrona, exausto. No fundo, não queria que fosse daquele jeito. Procurava o irmão na face daquele homem que refletia a própria imagem, e só enxergava ódio, ambição e mentiras.
Em seguida pegou o telefone e ligou. Aguardou alguns instantes até que atendessem do outro lado da linha.
— E então, o caso do Pe. Giuseppe está resolvido? — perguntou Thomás ao telefone. — Ótimo. Vamos acabar logo com isso!
Precisava consertar aquilo que havia saído de seu controle. 




61


O mendigo guardou no bolso algumas moedas que havia recebido há pouco de uma senhora e pensou em comprar um caldo de cana pra saciar a fome que o havia perseguido o dia inteiro. Caminhando pela Praça do Ferreira em direção ao Leão do Sul naquele final de tarde, viu que os bancos estavam todos lotados e muitas pessoas cumpriam seu destino, passando por ali em meio ao movimento intenso do centro de Fortaleza. Sentiu uma alegria imensa por ninguém reconhecê-lo, e poder seguir, sem um passado para tolher a liberdade que levara uma vida inteira para conquistar. O tempo, outrora algoz, agora fazia-se escravo das próprias vontades. Senhor de si mesmo, livre para experimentar aquilo que desejava, sem condições ou amarras, direcionado por seus próprios sonhos, simples, de um andarilho em busca de si mesmo, de Deus, em todos os lugares pelos quais passava.
De repente, uma dor. A velha conhecida e traiçoeira latência na cabeça, trazendo de volta um passado que desejava esquecer. Imagens foram materializando-se em sua frente, confundindo-o com a realidade em seu entorno.
Flores e um véu. 
Mais dor.
Uma pá sendo erguida.
O mendigo desequilibrou-se e despencou por sobre as grades protetoras do relógio, no centro da praça. A imagem do poço emergindo das pedras, lá em baixo se confundiam com muito sangue. Seus músculos contraiam-se e não conseguia manter-se de pé. Olhou para todos os lados e as pessoas continuavam em seus mundos normais, na agitação típica que o cotidiano lhes convidava.
Pessoas chorando.
O mundo girou e o fez sentar no chão, escorado na grade.
Uma ânsia de vômito.
Golpes de pá desferidos com um rosto. O horror que o fez encolher-se, como se protegesse a si mesmo daquela violência. Podia sentir a mesma dor dilacerando seu crânio. Procurou esconder o rosto entre os próprios joelhos dobrados, a fim de evitar as visões, a cena macabra. Tudo em vão! Um homem estava morto em sua frente. Reconheceu o corpo, as roupas. Aquilo fez doer-lhe a alma.
— NÃO!
Seu grito pôde ser ouvido certamente em toda a praça.
A pessoa que o ajudou a enxergar naturalidade onde não havia, fazendo-o se sentir verdadeiramente filho de Deus e não uma aberração acabara de morrer diante dele.
Assassinado!
Talvez fosse hora de voltar e juntar-se aos seus, acolher e ser acolhido em sua dor, viver o luto que lhe cabia na presença de quem amava. Foi praticamente consumido por aquele desejo. Então, de que adiantaria? Voltaria a fazer parte do circo dos horrores, perderia a liberdade tão cara conquistada e compactuaria a escravidão da alma de milhares de pessoas.
Melhor permanecer sem nome, sem um passado, longe daqueles que o fizeram sofrer.
Abraçou os joelhos e chorou a perda de seu grande amigo.




62


Enquanto Diogo estacionou o carro, Laura acompanhou atentamente, do banco do passageiro, o aglomerado de pessoas que se formava em frente à Paróquia Santo Antônio de Pádua, naquele início de manhã.
— Você está preparado? — procurou saber cuidadosamente de Diogo, antes de saírem do veículo. O amigo estava visivelmente abalado desde que recebera a ligação da polícia há menos de uma hora, avisando sobre o crime. Ele até havia chorado algumas vezes no percurso de casa até a igreja.
O corpo de Pe. Giuseppe Giordano fora encontrado logo cedo pelo sacristão no jardim da casa paroquial. Até o momento não sabiam de muitos detalhes, apenas que tinha sido vítima de um crime bárbaro.
Diogo mordeu o lábio inferior e fez que sim com a cabeça.
Queria de algum modo transmitir a ele a mesma segurança experimentada ao seu lado. Tomou-lhe a mão e segurou-a com força. Não tinha muito a ser dito. Sabia da importância daquele homem na vida de Diogo, não apenas como um mentor espiritual, mas quase como pai.
Ele pareceu esforçar-se para sair do carro e Laura o seguiu. Em seguida, precisaram atravessar a multidão para chegarem à frente da casa paroquial, pessoas comentando o caso com diversas versões, as mais absurdas, outras lamentando, algumas chorando e certamente muitos curiosos.
O local estava cercado, vários carros com luzes de alerta ligadas.
Diogo aproximou-se de um policial e apresentou-se como amigo próximo, procurando saber de detalhes. O rapaz contou com frieza que Pe. Giuseppe havia sido morto com uma pá, tivera o rosto desfigurado e provavelmente fora vítima de um assalto. Segundo o sacristão, ele gostava de aguar o jardim à noite, quando fora atacado pelo bandido, que entrou na casa, roubando celular, dinheiro e várias peças de valor.
Em seguida, o policial permitiu que eles entrassem.
O jardim estava repleto de homens da polícia e o corpo já coberto com um lençol branco. Ao se aproximarem, um dos policiais descobriu o cadáver até a altura da cintura para que o vissem.
Meu Deus, que horror!
O rosto estava irreconhecível.
Diogo parecia ter tido uma rápida vertigem e Laura o apoiou. Depois, deram as costas à cena macabra.
— Quer ir embora? — Laura perguntou.
— Quem pode ter feito isso? — ele questionou.
— Há dois dias nós conversamos com ele. Acredito que estamos mexendo em casa de maribondo.
— Então não foi o Pe. Giuseppe quem matou Eliane.
— Com certeza não. Talvez a mesma pessoa que a tenha colocado na cama do seu irmão, tirou ontem a vida do Pe. Giuseppe.
— Mas a polícia desconfia de assalto.
— É o que o assassino quer que acreditemos. Diogo, tenho certeza que foi queima de arquivo.
— Então estamos chegando perto.
— Certamente.
Nesse momento, eles percebem o burburinho e uma agitação entre as pessoas, quando o Dr. Juca Rebelo chega ao local.
Laura sente que mais uma vez não é bem-vinda ao cruzar o olhar com o pai. Diogo aproxima-se do mesmo, abrindo caminho para que ela o siga.
— Uma tragédia, Dr. Juca. — Diogo comentou.
— Perda irreparável, meu filho, para o Chiamare e todos nós! — confirmou o médico, com um tom de profundo pesar. — E você, o que faz aqui? — referiu-se a Laura.
Por que ele me odeia tanto?
— Diogo e eu somos amigos. Isso responde sua pergunta?
— Já devia estar longe daqui há muito tempo! — afirmou Dr. Juca.
— Por quê? Do que o senhor tem tanto medo?
— Por que não nos deixa em paz?! — Dr. Juca foi mais hostil.
— Porque existem muitos podres debaixo do tapete dessa comunidade. Eu vou descobrir todos eles!
— Se eu fosse você não me meteria onde sou chamado.
— É uma ameaça?
— Gente, por favor! — Diogo interferiu. — Olhem onde estamos.
— Com licença — pediu Dr. Juca, retirando-se do local.
Diogo pegou Laura pelo braço e a puxou para um canto do jardim.
— Precisamos manter o foco. — advertiu-a.
— Ele me ameaçou, você viu?
Laura desconfiou que o pai já sabia da investigação sobre o caso de Thomás, por isso a ameaça. Se não queria que fizesse uma investigação, tinha a esconder. Seria o presidente do conselho administrativo do Chiamare o responsável pelos crimes? Se no passado, foi capaz de tirar a vida do cunhado, o próprio paciente, a fim de que ele e Laura não levassem o caso amoroso adiante, com certeza não hesitaria em matar uma prostituta e implantar seu corpo da cama de Thomás para incriminá-lo, tirá-lo do caminho, se o mesmo representasse um empecilho aos seus planos.
Deste modo, o pai era um monstro! Que outro motivo teria para odiá-la tanto?
Será?
Viu Saulo atravessar o portão.
Estão juntos!
Poderia esperar que se encontrassem, ele e seu pai, e os abordaria. Perceber a reação de ambos e perscrutá-los em sua parceria e cumplicidade. Segundo Diogo, na época do crime, Thomás representava uma ameaça ao crescimento financeiro da obra, visto que pretendia dividir os lucros das fábricas de roupas com os missionários resgatados das ruas, os trabalhadores. Para tanto precisava enfrentar o irmão, então diretor financeiro, e o presidente do conselho, ambos discordavam veementemente de sua posição política dentro da comunidade.
Acha realmente que foi a primeira mulher com quem me envolvi nesta comunidade? Aquela provocação de Saulo reverberava em seus ouvidos.
Mau caráter!
Sim, Saulo Sobreira era capaz de arquitetar aquele plano para assumir o poder, apoiado pelo Dr. Juca Rebelo.
No entanto, abordá-los naquele momento, podia assustá-los. Estavam muito perto da verdade. Aguardaria para agir na hora certa.




63


As escolhas que fazemos trazem consequências que nem sempre podemos suportar ou pelo menos parece que vão nos matar, corroendo em remorsos nossa alma e nos tornando réus de nós mesmos, numa sentença impiedosa proferida por nossa história e as feridas que a desvirtuaram da sacralidade da vida.
Thomás acompanhou o sepultamento de Pe. Giuseppe profundamente abalado com a perda do homem que foi para ele como um pai.
A justiça só existe na relação, meu filho. Quando feita pelas próprias mãos, sem levar em conta um acordo comum, é vingança. Pe. Giuseppe parecia soprar-lhe ao ouvido. Não é justo usar o mesmo caminho que supostamente lhe feriu. Olho por olho, dente por dente, isso não é cristão, meu filho! Onde está o Pescador de Vidas que eu conheci?
O Pescador de Vidas morreu no dia em que foi condenado por um crime que não cometeu! Dando vida a um homem cruel, impiedoso, quase tanto quanto aqueles que haviam roubado a pureza do seu coração.
Amargava na culpa pelo caminho escolhido num silêncio mortal, sentindo-se igualmente responsável pelas mortes de Edgar e Pe. Giuseppe. Perdia duas pessoas importantes em sua vida, em poucos mais de um mês.
Deu alguns passos para trás, ampliando a visão daqueles que choravam a perda de um homem que ofereceu a existência a propagar a palavra de Deus e cuidar dos necessitados. O Chiamare só existia por sua causa.
Perdão, meu filho! Pe. Giuseppe implorou na última vez em que o viu.
Não fora grande o suficiente para perdoá-lo. Talvez o próprio Saulo tivesse razão, transformara-se num monstro. Por mais que quisesse, ele mesmo não conseguia mais se reconhecer.
Thomás deu as costas ao local do sepultamento e afastou-se dali. Não tinha o direito de chorar junto daquela gente.
— Saulo?
A voz de Laura o fez parar. Sentindo um desejo incontrolável de abraçá-la logo que a viu.
— Mais um fora do caminho? — inquiriu ela.
— Como? — não havia compreendido.
— Primeiro o Edgar, agora Pe. Giuseppe. Como se sente?
Morto por dentro!
— Preciso ir. — anunciou.
— Soube que esteve com ele pouco antes de sua morte, ontem à tarde. Foi a última pessoa que o viu vivo, segundo a polícia.
— O que está insinuando?
— Mais um representante do conselho administrativo do Chiamare está morto. Talvez isso o deixe numa situação confortável no controle da obra, não acha?
— Acha que fui eu quem o matou?
— Não acho nada. Mas vou descobrir a verdade, pode apostar.
Laura deu as costas e se foi.
Saulo!
Ela tinha razão. Saulo podia estar por trás daquele crime. Ele havia fugido do cativeiro no final da tarde e talvez procurado por Pe. Giuseppe após ter saído da comunidade. Um desentendimento podia tê-lo motivado ao assassinato, como saber que ele havia pedido perdão a Thomás. Isto é, mudado de lado, de certa forma.
Pe. Giuseppe pode ter sido morto por se rebelar contra Saulo — uma hipótese que transformava o irmão no principal suspeito.
Como sou idiota! A culpa não é minha!
— O Saulo o matou. — disse para si mesmo. — Sei o que fazer!




64


Cândida espalhou algumas fotografias antigas em cima da cama. O namoro com Thomás, a amizade entre eles e Edgar, o dia do casamento, Salomão e Lucas bebês, diversos momentos de sua vida, dispostos ao seu alcance. Quem dera manipular o próprio destino e escolher os melhores caminhos como era possível optar pela fotografia predileta.  
Dentre a coletânea, encontrou um registro afetivo com Pe. Giuseppe, datado de fevereiro de 2001. Recordou-se de quando Edgar os fotografou, na inauguração do Chiamare, em Recife. Estavam felizes.
Ela sorriu e quase sentiu a mesma sensação de alegria daquele dia.
Pe. Giuseppe Giordano fora um grande homem, além de sacerdote. Empenhado desde a juventude com a causa dos desabrigados, incentivou Thomás, a ela e o grupo de jovens a fundarem o Chiamare. Ele a apoiou nos momentos mais difíceis de sua vida.
Sentiria muita saudade! Talvez agora um pouco órfã.
O celular tocou e viu que se tratava de um número restrito, procurando atender o mais rápido que pôde.
— Alô, é você? — uma pausa. — O que acha? Foi um dia difícil. — focou mais uma vez a fotografia com o padre. — Só não concordo que precisava ter sido dessa forma. Foi um crime brutal. — pausou novamente, para ouvir a resposta do outro lado da linha. — Sim, sei que finalmente estamos livres do Pe. Giuseppe, ainda assim, acredito que poderia ter sido diferente. — ouviu atentamente a pessoa. — Laura e Diogo estão dispostos a descobrir a verdade. Tomarei cuidado. Até breve.
Desligou o aparelho e jogou-o em cima das fotografias, sendo surpreendida por Delano ao seu lado.
— Pensei que estivesse sofrendo pela morte do Pe. Giuseppe. — comentou ele.
— O que faz no meu quarto?
— A porta estava entreaberta, resolvi entrar.
— Pois pode tratar de sair daqui! — exigiu, apontando para a porta.
— Cândida, você tem alguma coisa a ver com a morte do Pe. Giuseppe?
É muita ousadia!
— Além de invadir meu quarto, ainda me acusa?
— Não tive como não ouvir sua conversa ao telefone. — justificou Delano.
— Fora daqui!
— Cândida, seja razoável. Não temos como conviver dentro do mesmo espaço com esse clima de hostilidade.
Hostilidade?
Conhecia aquela realidade. Conviveu por doze anos no mesmo ambiente, sendo hostilizada por Edgar. Delano não sabia nada da vida.
— Não precisamos conviver, falar um com o outro. Basta que me ignore, como farei em relação a você.
Ele aproximou-se, com um jeito sedutor.
— Impossível! Não tenho como fingir que não existe.
— Por que não vai embora e me deixa em paz? Ainda pretende se vingar de quem? Deixa ver se adivinho. Do Dr. Juca, é isso? E mais uma vez serei instrumento de seu plano sórdido. Poupe-me! Não me engana mais.
Delano a envolveu pela cintura.
— Por que não baixa essa guarda? Sei que também me quer.
Ela tentou se desvencilhar.
— Nunca! Não caio mais nos seus jogos.
Ele a trouxe para mais próximo, pressionando-a contra os próprios músculos. Cândida podia sentir a respiração ofegante e o hálito que outrora a fez se entregar.
Não posso fraquejar!
Tratava-se de mais um jogo? O que Delano pretendia afinal?
Continuou lutando para se libertar dos braços e calor que a provocavam a permanecer.
— Eu te amo, Cândida!
Mentira!
— Fica comigo! — insistiu Delano.
Jamais!
— Sei que você também me ama. — confrontou-a. — Por que não podemos ficar juntos?
— Porque você não presta!
— Errei, reconheço. Percebi a tempo o que de melhor aconteceu na minha vida. Cândida, você é a minha redenção.
— Não acredito em uma só palavra.
— Pelo amor de Deus, acredita!
— Não posso!
Percebia que ele a queria tanto quanto ela o desejava. A atração, a pele era muito forte, quase uma vontade mortal. Delano estava excitado como ela. Se tudo se resumia a um jogo de poder e sedução, por que não aproveitar diante da consciência acerca do mesmo? Diferente do que ele pensava, não a estava enganando, pelo contrário, Cândida sabia que não passava de uma estratégia na vingança contra os Rebelo. O que lhe autorizava a jogar na mesma medida e proporção. Dispunha da oportunidade de estabelecer as regras e deixar de ser a eterna sofredora.
E viver mais uma mentira?
Pelo menos naquele momento não importava mais.
Cândida se entregou num beijo ardente que a transportou para outro universo. Eles rasgaram as roupas um do outro institivamente, como dois animais que se devorariam. Naquele instante, Delano era sua presa e ela uma fera, sedenta de um amor que ele jamais lhe daria, mas disposta a experimentar o prazer que o momento convidava.
Estava totalmente no controle.
— Eu também te amo, Delano. Meu menino!




65


Thomás saltou da cama cedo, logo que os primeiros raios de sol invadiram o quarto pela janela. Pôs uma roupa leve, um tênis e saiu para correr no jardim do Chiamare. Tivera uma noite agitada, com sonhos que o reportaram de volta ao inferno da prisão. Precisava cansar-se fisicamente e desprender-se da angústia que os últimos acontecimentos provocavam.
A justiça com as próprias mãos é uma bússola que te conduz inevitavelmente ao massacre das emoções de todos os envolvidos, independente dos lados em questão. Como a vingança que transmuta os sentimentos do vingador, tornando-o vilão, algoz de si mesmo, vítima das próprias emoções, num universo que vagueia entre o céu e o inferno.
O preço a pagar era caro!
Justiça e vingança, dois lados de uma mesma moeda?
— Thomás?
A voz viera em meio ao percurso. Procurou-a e avistou o Dr. Juca Rebelo, no estacionamento da comunidade, acabando de sair do carro.
De novo, com suas desconfianças estúpidas?
Thomás desviou a rota e foi ao encontro do presidente do conselho. Havia entrado no ritmo da corrida e teve dificuldade para recuperar o fôlego.
— Dr. Juca?
— Sinto atrapalhar seu percurso, mas precisamos conversar, Thomás Sobreira. — anunciou o médico, com um sorriso de quem havia descoberto o maior dos segredos.
— Confundindo as coisas novamente, Dr. Juca? Cuidado! Pode ser grave. — ironizou.
No fundo estava apreensivo. Que carta ele trazia na manga?
Dr. Juca retirou um envelope branco do bolso interno do paletó e o entregou a Thomás.
— Este documento explicita a gravidade em questão. — explicou o médico, mantendo o mesmo sorriso que já o incomodava.
Thomás abriu o envelope e deparou-se com um exame de perícia comprobatório de digitais.
— O que significa isso?
— Ora, meu caro. Um homem esperto como você, que tão bem orquestrou esta sinfonia de vingança contra todos do Chiamare, não sabe realmente do que se trata? Aí está a prova de que estamos todos diante de Thomás Sobreira.
Recordou da última missão, nas ruas, quando Dr. Juca lhe entregou o próprio celular, com uma suposta ligação para ele, que na verdade não procedia.
Minhas digitais.
— Onde está o Saulo? O que fez com ele? — inquiriu Dr. Juca, veementemente.
Thomás simplesmente guardou o documento no envelope e o devolveu a ele, procurando não esboçar nenhuma emoção, embora estivesse furioso por dentro. Não lhe daria esse gosto!
— Em um lugar seguro, longe de todos, para que eu possa seguir tranquilo.
— Seguir com seu plano de vingança? — aproximou-se de Thomás, encarando-o nos olhos. — Achou realmente que poderia enganar-me por muito tempo, rapaz?
— O suficiente para cumprir com meu objetivo. — não arredou um milímetro e procurou manter a calma e simplicidade, como se nada tivesse acontecido.
— Não me provoque, Thomás! Posso acabar com você! — o tom era mais grave.
— Como o Saulo fez no passado? O senhor realmente foi enganado por ele ou participou deste jogo sórdido e destruíram juntos a minha vida?
Aquele acerto de contas havia esperado doze anos.
— Não tenho tempo a perder com um psicopata como você! A polícia vai adorar saber que forjou a própria morte, sequestrou o irmão e roubou-lhe a identidade. Novos crimes para sua cartilha. Desta vez vai apodrecer na cadeia! — expressava-se com tanto ódio.
Um homem tão perspicaz como Dr. Juca Rebelo jamais se deixaria enganar por doze anos. Um mês fora o suficiente para perceber que Thomás havia roubado o lugar do irmão. Certamente sempre soube da verdade. Se não participou da trama de Saulo a fim de tomar o poder dentro do Chiamare, acobertou-o, fora sem sombra de dúvidas seu cúmplice, endossando a liderança daquele calhorda por todos esses anos. Gostava do poder e Saulo com certeza vestiria melhor a fantasia de marionete em suas mãos.
Pouco antes da tragédia que o levou à prisão, tivera inúmeros confrontos políticos com Dr. Juca. Enquanto lutava pelos interesses de todos os resgatados, propondo uma divisão de lucros nas fábricas da obra, com o intuito de não desvirtuar o carisma, ele defendia a ideia de crescimento e manutenção do controle, afirmando que a independência financeira proposta por Thomás aos missionários, provocaria a desobediência e ruína total da comunidade.
Mesmo sem perceber, na época, transformara-se no maior inimigo do Dr. Juca dentro do Chiamare, e Saulo certamente o agente de manutenção daquilo que desejava para a obra.
Claro, sempre estiveram juntos!
Dr. Juca Rebelo pregava a verdade, o amor e a fé, quando de fato defendia o poder a qualquer custo. Mentir, roubar, matar — para ele, instrumentos simples de garantia para seus objetivos.
Poderia confrontá-lo, como planejara na cadeia. Mas de que adiantaria? Pessoas inescrupulosas como o Dr. Juca, eram desprovidas de qualquer sentimento real por alguém. Mais sensato seria falar a mesma língua por ele conhecida.
— O que o senhor pretende fazer?
— Ligar para a polícia e acabar logo com isso.
— Vejo que não tenho alternativas.
— Você está liquidado, Thomás!
— Pode me acompanhar ao escritório? É o último pedido que lhe faço, antes de voltar para a cadeia.
O velho o olhou de modo desconfiado. Ainda assim, fechou o carro com o alarme e seguiu-o, até o escritório. Lá, Thomás retirou um envelope amarelo da gaveta e o entregou a ele.
Olho por olho, dente por dente!
— O que pensa que está fazendo? — Dr. Juca o questionou.
— Nada demais, apenas uma última surpresa. Abra! É um presente para o senhor.
Dr. Juca fez o que ele disse e retirou do envelope cópias de laudos médicos. Tratava-se das provas de que ele havia matado o próprio cunhado, Ricardo Cordeiro, há vinte anos, internado sob seus cuidados por um apêndice estrangulado. Em meio aos papéis também tinham fotos comprometedoras da vítima ao lado de D. Augusta, esposa do Dr. Juca. Um crime passional.
— Embora esse crime já tenha prescrito, acredito que o senhor não queira ver sua família exposta num escândalo dessas proporções, não é verdade?
— Não matei esse homem!
— Jura? Nem eu, nem sua filha acreditamos nisso.
O homem nada mais falou.
— Xeque-mate, Dr. Juca Rebelo! — complementou, sorrindo. Em seguida, jogou-se na poltrona e girou trezentos e sessenta graus, comemorando a vitória da partida. Pelo menos até que Laura e Diogo descobrissem a verdade, continuaria a ser Saulo Sobreira. 




66


— Diogo, olha só quem está ali. — Laura apontou para Zica, saindo da casa de Vera, na periferia de Maracanaú.
Eles haviam resolvido procurar novamente a irmã de Eliane, a fim de obter mais informações sobre a suposta relação da moça com Pe. Giuseppe. Ao se depararem com a primeira resgatada do Chiamare, preferiram permanecer escondidos no carro, até que a mesma desaparece pela rua. Em seguida, desceram e bateram mais uma vez na porta de Vera. A mulher fez uma cara de assustada quando os viu e focou para os lados, como se averiguasse se a outra tinha realmente ido embora.
— A senhora pode falar com a gente um instante? — Laura a abordou.
— Estou muito ocupada. — respondeu, quase fechando a parte de cima da porta.
Laura trocou olhar com Diogo e este fechou um pouco os olhos. Vera imediatamente abriu a porta e os convidou a entrar.
— O que Zica fazia aqui? — Laura foi direto ao ponto e viu o amigo contorcer o pescoço.
— Somos amigas há muitos anos, desde que eles tiraram minha irmã das ruas e a levaram para a comunidade. — disse a mulher, apontando o sofá, para que sentassem.
Os dois se acomodaram.
— Acha que a Zica sabia quem era o caso de sua irmã? — desta vez foi Diogo quem perguntou.
— Talvez. Ela sabe de tudo lá dentro.
— Inclusive quem matou Eliane? — Laura foi certeira.
— Não tenho certeza. — disse a mulher. — Zica tem me ajudado financeiramente todos esse anos.
— Na verdade, ela tem comprado seu silêncio. — Diogo comentou.
— É uma troca, ela me ajuda, eu a ajudo. Justo! — explicou Vera.
— E qual seria o interesse de Zica no seu silêncio? O que ela ganha com isso? — Laura a inquiriu.
— Amor. Zica quer proteger o homem que ela ama.
Laura e Diogo se entreolharam novamente.
— E quem é o homem que ela ama? — Laura se aprofundou.
— Saulo Sobreira — revelou a mulher.
Acha realmente que foi a primeira mulher com quem me envolvi nesta comunidade? Não teve como não lembrar daquela declaração de Saulo. Canalha!
Será que Zica também havia sido um de seus casos?
— Espere aí, ama como? — Diogo queria ter certeza.
— Apaixonada por ele. — revelou Vera, de pronto. — Desde que o viu pela primeira vez.
— Mas eles tiveram alguma coisa? — Laura se antecipou.
— Nada, nunca. — Vera confirmou. — Ela sofre com isso. Acreditava que por ser uma negra, vinte anos mais velha que ele, nunca teria chances, mas hoje compreende que ele é um homem casto.
— E por isso é tão devotada? — Diogo perguntou.
— Exatamente — disse ela.
— Ao ponto de fazer qualquer coisa por ele? — Laura acrescentou.
A mulher fez que sim com a cabeça.
Isso a torna uma suspeita!
— Tem alguma fotografia de sua irmã? — Diogo voltou o foco para o que vieram fazer ali.
Vera levantou e os deixou a sós.
— Diogo, acha que a Zica seria capaz de...
— Todo mundo é suspeito. — ele a interrompeu. — Sempre questionei sua devoção cega pelo meu irmão. Zica estava na comunidade, na noite do crime. Ela morava lá.
Vera voltou com uma caixa de papelão nas mãos, sentou no sofá ao lado dos dois e tirou a tampa que cobria um bolo de fotografias, tomando-o em suas mãos. Certamente registros diversos da família. Ela passou uma série deles, até uma imagem da irmã de biquíni numa praia ao lado de um homem. Entregou-a a Laura.
Impossível não reconhecer aquela figura. Seu pai, o Dr. Juca Rebelo, bem mais jovem, sem camisa, abraçado com a moça.
Meu Deus!
A fotografia revelava o suposto caso de Eliane. Não Pe. Giuseppe, como tudo levava a crer anteriormente. O próprio presidente do conselho administrativo do Chiamare.
Por um momento, Laura encontrou-se meio perdida, sem saber o que pensar ou que caminho seguir dali para frente. Tinha certeza que o Chiamare escondia muitos podres em sua estrutura megalomaníaca criada por Saulo Sobreira. Só não imaginava que seu pai pudesse esta por trás de tudo.
Como fui tola!
Claro. O verdadeiro poder da comunidade sempre estivera em suas mãos, não nas de Thomás ou até mesmo com o próprio Saulo, no topo de sua arrogância e vaidade desenfreadas, mas no território de Juca Rebelo, o grande articulador e presidente vitalício do conselho que tudo direcionava e mandava indubitavelmente.
Se fora capaz de matar o cunhado por seu caso com Laura, por que não matar uma prostituta e jogar a culpa em seu maior inimigo político dentro da comunidade? Juca Rebelo podia sim ser o assassino.
Mas e Zica, comprando o silêncio de Vera. Que tipo de envolvimento tinha ela com aquela história sórdida e perigosa?
— É o que precisamos descobrir. — afirmou Diogo. Provavelmente tinha lido sua mente.
No entanto, ela temia o que podiam descobrir. Afinal de contas, tratava-se de seu pai, por pior que fosse. O que a fez cogitar a possibilidade de desistir. Diogo poderia continuar sozinho.
— Preciso de você! — disse ele, segurando-lhe a mão.
— Acho que o próximo passo é falarmos com Zica. — Laura comentou, como se não tivesse fraquejado.
Sim, continuaria até descobrir toda a verdade, fosse ela qual fosse.




67


Saulo saiu do elevador e caminhou em passos largos até o número 1302. Apertou uma vez na campainha e a porta foi aberta imediatamente. Guilhermina demonstrou uma alegria incontrolável ao vê-lo e o envolveu num caloroso abraço.
Bom estar novamente ao lado de quem podia confiar.
— Saulo! Nem acreditei quando ligou. — comentou ela.
— Despistei os homens que ele colocou para me vigiar e vim o mais rápido que pude. — explicou.
Estava há alguns dias recluso num apartamento no Meireles, segundo orientações do próprio Thomás, totalmente incomunicável. Até conseguir sair sem ser percebido pelos homens e ligar de um telefone público para Guilhermina.
— O que ele fez com você? Como você está? — a secretária procurou saber, tocando em seu rosto, verificando suas vestimentas.
Certamente se encontrava distante da vaidade do grande Pescador de Vidas de outrora. Thomás havia providenciado-lhe roupas simples, calças jeans, camisetas e tênis. Já não precisava mais perder tanto tempo escolhendo o melhor corte e a cor apropriada ao dia, dispunha de poucas opções. Na verdade, os últimos encontros consigo mesmo diante do espelho eram breves e sem muitas surpresas ou expectativas. Destinando cada segundo da última semana, desde que fugira do cativeiro, a pensar numa forma de neutralizar o irmão, antes que fosse tarde demais.
— Você está magro! Tem se alimentando bem? — Guilhermina estava ansiosa.
— Estou bem, Guilhermina. Tá? — procurou acalmá-la. — Você ligou para o Dr. Juca?
— Deve estar a caminho.
Ela o puxou para dentro e fechou a porta atrás deles.
— E as provas, encontrou alguma coisa? — Saulo foi direto ao ponto.
— Vasculhei tudo dentro do Chiamare. Acredito que ele tenha guardado esse dossiê em outro local.
— Enquanto ele estiver com esses documentos em mãos, nós não poderemos fazer nada. Seria um grande risco esses papéis chegarem à entidade doadora na Itália. Enfrentaríamos um grande escândalo dentro da Igreja. Provavelmente o fim do Chiamare.
— Calma! Isso não vai acontecer, Saulo.
Novamente o som da campainha. Guilhermina abriu a porta e abriu espaço para que Dr. Juca entrasse. Saulo ficou aliviado ao vê-lo.
— Dr. Juca!
— Meu filho!
Os dois se abraçaram.
— Pensei que estivesse preso. — disse o médico.
— Teoricamente estou. Preciso voltar logo, antes que os homens do Thomás sintam minha falta. Ele nos tem nas mãos, Dr. Juca.
— Guilhermina me adiantou. — revelou Dr. Juca. — Vocês foram loucos em desviar esse dinheiro, quando eu já havia vetado essa possibilidade!
— Era a única forma de vê-lo longe daqui e tentar evitar exatamente o que está acontecendo. — justificou Saulo.
— São vinte milhões, Saulo! — advertiu o médico, furioso.
— Desculpe-nos, Dr. Juca, — pediu Guilhermina. — mas não há mais tempo para chorarmos sobre o leite derramado. A desgraça está feita e Thomás pode destruir a comunidade.
O velho olhou para os dois e calou.
— O que nós faremos? — Saulo indagou, na esperança que ele tivesse um plano.
Dr. Juca sentou, respirou fundo e respondeu. — O que deve ser feito.
Saulo não tinha compreendido.
— E o que deve ser feito? — perguntou.
— A única forma de eliminar o mal é cortá-lo pela raiz. — foi Guilhermina quem respondeu.
Saulo percebeu que os dois já haviam conversado e chegado a conclusões.
— Espera aí... o que estão propondo?
Ambos permaneceram em silêncio.
— Querem matar o Thomás?
Dr. Juca levantou e segurou-o pelos ombros.
— Sabe que sempre fui um homem íntegro, temente a Deus. O que está em jogo é o futuro de milhares de pessoas que dependem desta comunidade. O Thomás é uma bomba relógio e pode explodir a qualquer momento, devastando tudo a sua volta. Isso inclui a você, a nós, ao Chiamare.
— Assim estaria assassinando meu próprio irmão.
Caim e Abel.
— Você melhor que ninguém sabe que existem sacrifícios que precisam ser feitos em nome da fé. Lembra-se do passado? — recordou-se do Dr. Juca.
Preferia esquecer o passado.
Saulo caminhou de um lado para o outro da sala.
— Tem que haver outra saída.
— Infelizmente não há, meu querido. — reforçou Guilhermina.
— O Thomás é um psicopata e está disposto a tudo. A única saída é matá-lo! — sentenciou Dr. Juca. — Sei que é uma difícil decisão, meu filho. Trata-se do sacrifício necessário para mantermos o Chiamare de pé. A vida de milhares de fiéis depende de nós. Não será a primeira vez que sacrificamos alguém, não é verdade? Eis aqui a nossa responsabilidade.
Tinha que haver outra saída! Por pior que ele fosse, era seu irmão. Agora com Diogo e Laura investigando o passado, temia que eles descobrissem a verdade.
Olhou para a secretária e Dr. Juca e viu que eles trocavam olhares de cumplicidade. Se estivessem tramando para tirá-lo do caminho, como fizeram com Thomás, há doze anos? Dr. Juca sabia que Saulo era a única pessoa capaz de tomar o poder dentro da comunidade. Aquele seria um ótimo momento para livrar-se dele. Na verdade, eliminar os dois irmãos de uma só vez. Um morto e o outro preso!
Eles querem acabar comigo!
Definitivamente, não confiava em mais ninguém. Sentiu-se descartável, talvez o mesmo sentimento experimentado por Thomás quando fora abandonado por todos nos braços da própria loucura.
Será que Thomás planejou inclusive isso?
Acreditava estar em meio a uma conspiração.
— Precisamos decidir como será feito. — comentou Dr. Juca.
Não! Ele não participaria daquela atitude suicida. Recorreria à única pessoa capaz de ajudá-lo naquele momento.
Olhou uma última vez para os dois traidores e saiu.
— SAULO! — gritou Guilhermina.
— Saulo, para onde vai?
Ouviu ainda o Dr. Juca. Mas eles não saberiam mais nada, enquanto não pusesse um ponto final naquela história, do seu jeito.

~
— A única forma de eliminar o mal é cortá-lo pela raiz. — Thomás acompanhou a declaração de Guilhermina através da imagem diagonal captada por seu laptop. Passava horas no escritório do Chiamare ou no quarto, acompanhando todos os passos de seus inimigos, através das câmeras e microfones implantados no relógio entregue a Saulo, quando recebeu as novas roupas e acessórios, após o pacto com o irmão; na bolsa, carro e apartamentos de Guilhermina e Dr. Juca Rebelo. Foi uma forma de sentir-se mais seguro e no controle da situação. Deste modo, ficava sabendo de todos os passos daqueles que desejavam lhe destruir.
— Espera aí... o que estão propondo? — foi Saulo que se manifestou na gravação. — Querem matar o Thomás? 
Thomás contraiu o estômago de repulsa e pousou a xícara com força no pires ao lado do computador, respigando a mesa com o restante de café que havia no recipiente.
— Desgraçados! Querem mesmo acabar comigo. — viu o próprio pensamento transformar-se em verbo.
Na gravação, Dr. Juca levantou e segurou Saulo pelos ombros.
— Sabe que sempre fui um homem íntegro, temente a Deus. — Thomás desdenhou ao ouvir aquela declaração falsa do médico. Continuou acompanhando as imagens no laptop. — O que está em jogo é o futuro de milhares de pessoas que dependem desta comunidade. O Thomás é uma bomba relógio e pode explodir a qualquer momento, devastando tudo a sua volta. Isso inclui a você, a nós, ao Chiamare.
— Assim estaria assassinando meu próprio irmão. — Saulo respondeu.
— Uma versão pós-moderna de Caim e Abel? — Mais uma vez Thomás falou consigo mesmo, entortando o pescoço para um lado e outro, a fim de estralar as vértebras do pescoço.
— Você melhor que ninguém sabe que existem sacrifícios que precisam ser feitos em nome da fé. Lembra-se do passado? — foi a resposta de Dr. Juca.
Thomás pausou a imagem no rosto daquele criminoso. Talvez tenha sido sua a ideia de matar Eliane e tirá-lo de uma vez por todas de seu caminho. Quem sabe Saulo não era um joguete em suas mãos, como todas as pessoas em seu entorno?
Sacrifícios?
Imaginava o que Juca Rebelo não fora capaz de fazer para conquistar o poder e ser temido por todos. Segundo suas investigações, o médico havia se transformado num homem milionário nos últimos vinte anos, com uma fortuna avaliada em mais de trezentos milhões de reais, entre imóveis e investimentos financeiros. A última transação, um desvio de cinquenta e oito milhões de reais de uma doação da Europa, a serem investidos numa fábrica do Chiamare.
Por esse motivo o Dr. Juca mantinha-se num cargo vitalício de presidente do conselho administrativo da comunidade.
O cão não quer largar o osso.
— Então não há outro jeito, senão destruir o osso. — comentou Thomás em voz alta, maximizando a tela de e-mail, onde estavam selecionados os endereços da polícia federal, Laura Ponte, Diogo Sobreira e a mala direta a todos os responsáveis da obra, dos centros espalhados pelo Brasil e o mundo. Em anexo, um arquivo chamado “Dossiê Dr. Juca Rebelo”.
Thomás sorriu e clicou na opção enviar.
MENSAGEM ENVIADA COM SUCESSO
Justiça realizada com sucesso!
Apoiou os cotovelos na mesa e cobriu o rosto com as duas mãos. Feliz, com uma tonelada a menos nas costas, não conseguiu segurar o choro. Bastava que a verdade sobre o crime de Eliane fosse descoberta, vendo o irmão finalmente pagar pelo que fizera.
Novamente minimizou a tela, tendo a visão de diversos quadrantes trazendo as imagens das câmeras escondidas. Maximizou a figura de Guilhermina dentro do carro, estacionando numa rua, que identificou como sendo próximo ao apart-hotel onde Saulo estava recluso. Em seguida, o irmão entrou no veículo.
— Fez o que pedi? — Saulo perguntou sem rodeios.
— Sim. Tudo certo com a secretária do Dr. Feliciano — confirmou Guilhermina.
Dr. Feliciano?
— Será Feliciano Guerreiro? — Thomás cogitou.
Aquele nome parecia corroer seus tímpanos. O psiquiatra que o acompanhou por anos no presídio, vetando seus pedidos de liberdade condicional.
O mais interessante era que vinha investigando nos últimos meses.
— Logo que o expediente seja encerrado daqui a pouco, entrarei na clínica e terei acesso a todas as gravações do Dr. Feliciano. — continuou Guilhermina, na transmissão.
— Ótimo. Ganharemos tempo e teremos o Thomás em nossas mãos. — disse Saulo, parecendo confiante.
Cretinos!
Mais uma vez planejavam destruí-lo ou pelo menos neutralizá-lo com aquelas gravações. Sabia o que continha nos arquivos do médico inescrupuloso. Precisava pensar rapidamente numa saída estratégica para evitar uma nova injustiça. Caso as falsas informações chegassem às mãos de Laura e Diogo, talvez pudessem atravancar as investigações sobre a morte de Eliane. No mínimo, causaria alguns estragos e retardaria o processo.
O que fazer diante de uma situação daquelas? Procurou evitar atitudes extremas desde o início. Agora jogavam alto, sua vida e sanidade dependiam disso.
— Errado, meu irmão. Isso não vai acontecer. — Thomás verbalizou, tirando da gaveta uma pistola. — Vou acabar com a festa de vocês.
Em seguida, baixou a tela do laptop, pegou o paletó na cadeira da frente e saiu.

~
Thomás estacionou ao lado do carro de Guilhermina, em frente à clínica do Dr. Feliciano Guerreiro. Desligou a caminhonete, a fim de não chamar atenção e verificou no relógio que já eram oito e quarenta e cinco da noite. A esta altura, a secretária de Saulo provavelmente encontrava-se no consultório do psiquiatra, em busca de provas contra o ex-líder do Chiamare.
Ele pegou o Iped e acessou as imagens da câmera escondida na bolsa de Guilhermina, acompanhando toda a ação da inimiga diante do computador de Feliciano, copiando arquivos do médico num pen drive.
Momento de agir!
Saltou do carro e aproveitou o instante em que dois pacientes deixavam a clínica, para entrar no local, sem que fosse percebido pela recepcionista, que se ausentou por alguns minutos do balcão, o suficiente para ele atravessar o ambiente e pegar o elevador até o terceiro andar, onde Guilhermina estava.
Em seguida, tirou a arma da cintura e aproximou-se devagar da porta que o separava dos documentos utilizados para respaldar a negação dos infinitos pedidos de sua liberdade condicional, por parte da defensoria pública. Girou a maçaneta com cuidado e constatou que a fechadura estava trancada, vendo a fresta de luz no rodapé da porta desaparecer.
Droga! Ela percebeu...
Não tinha mais o que esperar. Se não agisse a tempo, aqueles arquivos cairiam em mãos erradas e ele poderia estar perdido. Tomou a distância calculada para erguer o joelho e arrebentar a porta com um único chute. Precisava ser rápido e por as mãos em Guilhermina, antes que os seguranças da clínica se dessem conta do que havia ocorrido.
Ao entrar no consultório, tratou de ascender a luz e vasculhar o ambiente cautelosamente, com a arma em punho, guiando-o por todos os lugares.
— Vamos, Guilhermina. Onde você está? — perguntou ele.
Aproximou-se de um biombo com cuidado. Ela podia tentar alguma gracinha.
— Vamos acabar logo com isso. — propôs.
Pôs-se do outro lado do bimbo de uma vez. Nada! Em seguida, uma pancada em sua cabeça, fazendo-o desequilibrar.
— Toma, seu desgraçado!
Ouviu a voz dela nas suas costas e viu-a correndo.
Infeliz!
Tinha sido mais esperta. Ele seguiu seus passos e gritou antes que Guilhermina descesse pelas escadas.
— Pare, senão atiro!
A mulher parou e pôs as mãos para o alto.
— Não teria coragem. — comentou ela, assustada.
— Ainda duvida do que sou capaz?
Manteve a arma apontada para Guilhermina e aproximou-se, enfiando a mão em seu bolso. Finalmente se apoderou do pen drive.
— Você não vai conseguir se safar dessa. — provocou-o.
— Não?
Thomás a empurrou de volta ao consultório do Dr. Feliciano, ordenou que ela ligasse o computador do médico novamente, procurasse os mesmo arquivos copiados há pouco e os deletasse. A secretária hesitou e ele a machucou com a pistola.
— Está me testando é, sua desgraçada?
Faltava pouco para tirar a vida daquela vagabunda e livrar a sociedade de uma bandida. Seus crimes estavam prestes a serem descobertos, através do dossiê contra o Dr. Juca, apontando-a como principal cúmplice no esquema de corrupção e desvio de dinheiro dentro da comunidade. Saber que ambos traíram até mesmo a confiança de Saulo lhe causava um prazer visceral.
Não precisava sujar as mãos com aquele sangue imundo. Guilhermina teria muito para explicar à polícia.
Thomás a empurrou, derrubando-a no chão. Em seguida, ele mesmo deletou os arquivos.
— Pronto. Vocês não podem mais nada contra mim.

~
Quando o relógio marcou vinte e uma horas, Saulo foi até um telefone público e ligou para Guilhermina, conforme combinado. Em breve, teria um meio de neutralizar o irmão e ganhar tempo para pensar numa saída e não ver o mundo construído com tanto esforço ser destruído por seus inimigos. Faria de tudo para salvá-lo.
Guilhermina atendeu após o quarto toque.
— O que houve, por que demorou atender? — estava muito ansioso.
— O Thomás descobriu tudo, Saulo! — a voz de Guilhermina do outro lado da linha trazia certa carga de tensão percebida no tom.
— O que aconteceu?
— Ele sabe de nós, dos arquivos do Dr. Feliciano e destruiu o pen drive no qual eu os havia copiado.
— Desgraçado!
E agora?
Os arquivos do psiquiatra eram seu trunfo. Por um momento viu-se perdido.
— E por que não volta lá e os copia novamente?
— Ele deletou os arquivos no computador. Saulo, escuta. Não pode voltar ao apart-hotel. Ele está armado e é perigoso.
Meu Deus, o que está havendo? De que lado o Senhor está?
— Guilhermina, a gente não pode entregar os pontos a esse louco.
— Claro que não. Tenho uma solução. Para isso, quero que prometa que fará o que é preciso ser feito.
— Matar o Thomás! — completou a sugestão da secretária.
— Exatamente.
Por que eles mesmos não providenciavam aquilo ao invés de exigirem que ele o fizesse? Óbvio que planejavam incriminá-lo e fazê-lo apodrecer na cadeia. No entanto, se continuasse a se negar ao que propunham, com certeza encontrariam um meio de eliminar Thomás e fazer com que todos pensassem que havia sido ele o responsável.
Sabia do que Guilhermina e Dr. Juca eram capazes e talvez mais perigosos que o próprio Thomás. Encontrava-se encurralado, sem saber que caminho seguir.
— Vocês tem razão. — concordou. Faria o jogo deles. — Eu mato o Thomás.
— Ótimo, meu querido. É o melhor a ser feito.
Falsa, ordinária! Traiu-o durante todos aqueles anos. Sabia como acabar com eles.
— Qual a solução? — procurou saber da mulher.
— Antes de colocar os arquivos no pen drive eu os enviei para o meu e-mail.
Podia imaginar o sorriso de Guilhermina do outro lado da linha.
Graças a Deus!
— Estou acabando de enviá-los para seu e-mail. — completou ela.
Com essa Thomás não esperava.
Saulo desligou o telefone e sem querer, bateu com o relógio no orelhão. Resmungou ao perceber que havia quebrado o vidro.
Aparelho vagabundo!
Arrancou a pulseira do braço e jogou-o na primeira lixeira que encontrou, entrando no prédio do irmão. Depois de ser anunciado pelo porteiro através do interfone, subiu até o décimo quarto andar. Em poucos minutos tocou a campainha do apartamento de Diogo. Novamente ficou cara a cara com o mesmo, logo que ele abriu a porta. Parecia estar diante de si mesmo.
Primeiramente o irmão o observou da cabeça aos pés, esboçando surpresa. De certo por conta das roupas simples que vestia.
— O que quer aqui? — o tom de Diogo foi hostil.
Nada o impediria de lutar e salvar a própria pele.
— Preciso falar urgente com você.
— Estou ocupado.
Saulo olhou por cima do ombro do irmão e viu que Laura estava sentada no sofá logo atrás dele.
— Que bom que estão juntos, assim saberão de tudo de uma só vez. Por favor, me deixa entrar, Diogo!
O irmão hesitou, talvez por causa de Laura, olhou para ela e a mesma fez um sinal positivo com a cabeça, autorizando sua entrada. A repórter o encarou de um modo desconfiado.
— Sei que vai parecer uma loucura, mas o Thomás está vivo, me sequestrou e tomou meu lugar do Chiamare. — disparou. Não tinha um modo mais sutil de começar aquela história.
— Como é que é? — Diogo questionou.
— Você está louco? — Laura o interpelou, pondo-se de pé.
— Querem ou não ouvir o que tenho para contar? — Saulo procurou ser mais firme.
Diogo e Laura se entreolharam e pareceram autorizá-lo. Em seguida, o irmão sentou-se e ouviu-o atentamente ao lado da repórter. Saulo procurou contar tudo o que sabia desde o dia do sequestro, sem esquecer nenhum detalhe. Qualquer minúcia seria importante para que não o considerassem um lunático.
— E como vamos saber que não é mais uma de suas mentiras? — foi Laura quem indagou.
Claro, ela o tinha em péssima conta, por pensar ter sido ele quem a levou para a cama e depois a desprezou.
— Não foi comigo que você dormiu, Laura. — revelou.
— O quê? — Diogo interferiu.
— Você passou dos limites, Saulo! — afirmou Laura.
— O que pretende com essas mentiras absurdas? — Diogo foi mais enfático.
— Seduzi-la, em seguida abandoná-la, fazia parte dos planos do Thomás. Uma forma de instigá-la em seu ódio e motivá-la a me destruir. — Saulo complementou sem se importar com o julgamento do irmão, aproximando-se da repórter. — Sabe, Laura, quando assumi a liderança do Chiamare, fiz votos de pobreza, obediência e castidade. Desde então nunca me envolvi com mulher nenhuma.
— Mentira! — disse ela, com ódio.
— Não era eu com você, — continuou. — mas confesso que em muitos anos foi a única mulher que mexeu comigo realmente.
— Chega, Saulo! — Diogo interviu.
— Não, deixa — Laura pediu.
— Eu me apaixonei por você, Laura, mas sempre soube que nunca aconteceria nada. Por causa dos meus votos, da minha missão junto à comunidade.
Ela o olhava, pasmada.
— Você é louco! — foi um desabafo de Laura. 
— Aonde quer chegar com isso, Saulo? — Diogo questionou mais uma vez.
— ACREDITEM EM MIM! — Saulo gritou no desespero. — Esse psicopata vai acabar com a minha vida! Vai destruir tudo o que construí em todos esses anos!  Quero uma chance de provar que estou falando a verdade.
— Muito bem. — disse Laura. — Como vai provar?
Saulo viu um tablet em cima da mesa e pediu para usá-lo. Acessou sua conta de e-mail do aparelho e exibiu o arquivo enviado por Guilhermina. Laura e Diogo se aproximaram, pondo-se um de cada lado, assistindo ao vídeo. A gravação trazia a imagem de Thomás sentado de frente para o Dr. Feliciano Guerreiro vestido com a farda do presídio.
— Ok, Dr. Feliciano. Confesso. Fui eu quem matou Eliane Ferreira.
Saulo sentiu um alívio ao ouvir a declaração de Thomás, no vídeo.
— Criei um mundo paralelo, a fim de me livrar da culpa que me cabe. — continuou a gravação. Depois, um corte de edição.
— Não sou culpado! Foi o Saulo quem matou a Eliane e fez com que todos acreditassem que fui eu! — afirmou Thomás, tomado de ódio.
Mais um corte de edição. Agora apareceu o rosto do Dr. Feliciano, sozinho falando para a câmera. Um homem obeso de cento e cinquenta quilos, gravata borboleta e óculo de uma lente só, como uma dessas figuras extraídas do século IXX.
— O paciente Thomás Sobreira sofre de um nível moderado de esquizofrenia, criando um universo fictício de conspiração. — Diagnosticou-o o médico. — Ausente de uma terapia medicamentosa, ele está sujeito ao agravamento da doença. Consequentemente, torna-se uma pessoa perigosa. Com certeza é responsável pela morte de Eliane Ferreira.
Diogo afastou-se e caminhou de um lado para o outro. Passou a mão pela testa e pela nuca, sem conseguir pronunciar uma palavra. Estava visivelmente abalado.
— Isso só prova que o Thomás sofria de esquizofrenia, não que está vivo. — Laura se antecipou.
— É aí que vocês entram. Eu tenho um plano para desmascará-lo. — anunciou Saulo.
Finalmente aquele pesadelo estava perto de acabar.


68


Cândida despertou com os primeiros raios de sol invadindo seu quarto. Delano a observava ao seu lado na cama, parecendo embevecido, com um sorriso que o deixava mais gracioso.
— Meu menino, já amanheceu! A gente precisa...
— Psiu... — ele tocou delicadamente em seus lábios e a beijou em seguida, com uma ternura nunca sentida por ninguém. Feito um sonho bom.
Tão bom se fosse verdade!
Acreditava fazer parte do plano de vingança. Estava disposta a correr o risco e descobrir seus próximos passos, a fim de desmontá-los. Tão bem fingiu um casamento feliz por doze anos, achava-se capaz de jogar à altura de Delano e superá-lo em sua imaturidade. No demais, desfrutar de momentos como aqueles, enchia-lhe de vida e alegria, por mais que não fossem verdade.
— Precisamos estar de pé para o café — advertiu ela, entre um beijo e outro. — Dr. Juca pode desconfiar.
— Já é hora dele saber.
— Você está louco!
Os dois riram.
— É. Vamos dar uma festa no nosso noivado.
Noivado! Quem dera...
— Meu menino... louco!
Ser beijada com tanto desejo a desarmava completamente.
— A loucura é para os sãs. — disse ele, parecendo tão apaixonado. — Eu te amo, Cândida, minha rainha!
Como eu queria acreditar!
A porta foi aberta com um chute que estremeceu o quarto. A atmosfera de amor entranhada nos lençóis, em cada uma daquelas paredes, dissolveu-se de repente no ódio eminente nos olhos do Dr. Juca Rebelo.
Esse era o plano de Delano.
Mais uma vez flagrada em sua fragilidade de mulher.
— Calma, vô! A gente pode explicar! — antecipou-se Delano.
Explicar? Canalha! Ele planejou tudo...
Cândida cobriu-se com o lençol, enquanto Delano expôs-se em pé, despido. Com certeza, estrategicamente com o objetivo de piorar as coisas, rasgando uma intimidade que lhes pertencia. Pronto, ele dizimava de vez a família de seu pai.
— Vista-se! — ordenou o velho.
Delano procurou as roupas do lado e obedeceu, à medida que Cândida tomou o robe e tratou também de se recompor, enquanto Dr. Juca deu as costas, para que ambos estivessem prontos a uma conversa.
Pela primeira vez Cândida não temia nada. Parecia tomada de uma dormência que a manteve firme, com um desejo latente de enfrentar a verdade com todas as suas consequências e o que dela também pudesse desfrutar.
Sabia que Dr. Juca já a havia perdoado uma vez, quando o caso da paternidade de Lucas fora descoberto no passado. Tinha sido ele o grande responsável pela mentira de seu casamento em todos aqueles anos. Tudo para manter as aparências, vender a imagem de família feliz, necessária ao Chiamare.
Talvez fosse possível um novo perdão. O sogro era capaz de tudo pelo status de perfeição e honra familiar, como matar a própria filha em vida, por não conseguir submetê-la aos seus desígnios. O fato é que se sentia segura para tomar qualquer decisão. O que a encorajou a embarcar nesse novo jogo de Delano.
— Eu a recebi como uma filha nessa casa. — lamentou o sogro, de costas.
Filha? Hipocrisia!
— E eu me comportei como tal, fazendo tudo o que o senhor queria. — respondeu de pronto.
Abneguei de minha felicidade em nome de sua família.
— Traindo meu filho com seu próprio enteado? — foi quando Dr. Juca se voltou a eles.
— Nós só descobrimos que estávamos apaixonados agora. — mentiu Delano.
— MENTIRA! — O grito foi mais forte que ela. — Chega de mentiras!
— Vocês mataram o meu filho! — concluiu Dr. Juca, com a mão no peito e a respiração ofegante.
— Não foi nossa culpa! — afirmou Delano.
— Foi sim! — Cândida descordou firmemente. — Ele havia descoberto que estávamos tendo um caso. Na verdade, foi um conjunto de fatores.
Minha mãe foi perseguida, juntamente com minha avó. Passaram anos se escondendo com uma criança no colo. Até que numa emboscada, ela foi atingida por uma bala na perna, que a deixou aleijada. Foi essa bala que começou a matá-la, de vagar! A história de Delano se fez bem viva em sua memória naquele momento. FORAM VOCÊS QUE MATARAM MINHA MÃE!
— Edgar saiu naquela tarde decidido a prestar contas com o senhor. — completou ela.
— Você está querendo jogar a culpa pela morte do meu filho em mim?
— Não. Foram muitos fatores que o levaram ao desespero naquele dia, mas não sou eu a única responsável.
— E você? — Dr. Juca voltou-se inteiramente a Delano. — Como pôde fazer isso com o próprio pai?
Delano mudou a fisionomia com aquela abordagem. Parecia uma fera se armando.
— É irônico o senhor me perguntar isso quando teve coragem de expulsar a própria filha de casa e fingir por vinte anos que ela estava morta.
— O que sabe sobre nossa família, rapaz? Você não sabe nada! — afirmou o velho categoricamente.
— O suficiente para não querer fazer parte dela. — retrucou o jovem, com a mesma empáfia, encarando-o de frente. — O senhor, com toda a arrogância e o poder que lhe cabe, matou a minha mãe!
— Estava defendendo a minha família. — justificou o velho, com naturalidade.
— E eu a memória da minha mãe. — complementou Delano. — O fato é que o senhor não tem moral nenhuma para cobrar nada de mim, nem da Cândida ou de qualquer pessoa que seja!
Ele está mesmo me defendendo?
Não compreendia a estratégia de Delano.
— A família “Rebelo”... — ele pronunciou aquele sobrenome com desdém. — ...é uma grande mentira, um negócio criado pelo senhor pera enriquecer às custas de pessoas idiotas, pobres de espírito, que respiram aparências, como o senhor.
Sentiu vontade de vibrar e por um instante orgulhou-se daquele menino-homem. Delano expressou tudo o que ela desejava, enfrentando de igual para igual uma figura temida por todas as pessoas. O que a motivou a fazer o mesmo.
Chega de viver um personagem! Chega de ser infeliz em nome de uma mentira!
Experimentou um instante de felicidade e alívio em seu coração, libertando-se de uma vez por todas de seu maior inimigo, a eterna vítima criada por ela mesma para justificar e superar o medo da rejeição.
— Trazê-lo para dentro da minha casa foi um grande erro! — concluiu Dr. Juca.
— Pois vir para cá foi um de meus maiores acertos. — retrucou Delano, sorrindo. — Aqui tive a oportunidade de descobrir quem realmente sou. E definitivamente, Dr. Juca, não sou um Rebelo. Sou simplesmente o filho da minha mãe.
— Você cometeu um grande erro, rapaz. — o avô o advertiu.
— Nós não temos medo do senhor! — afirmou Delano, com um sorriso de cumplicidade voltado a Cândida.
Nós?
— Quanto a mim, Dr. Juca, fique tranquilo. Vou deixar esta casa o mais rápido possível — anunciou Cândida, com uma alegria que não cabia em seu peito.
— Em hipótese alguma. — o sogro foi enfático. — Este assunto se encerra aqui, Cândida. Continua sendo a minha nora querida e nunca mais falaremos sobre isso.
Delano a olhou chocado, mas era exatamente a postura que Cândida esperava.
Momento de decidir! Tentar ainda ser feliz ou permanecer numa mentira?
— Não precisa responder agora, minha querida. — o sogro procurou tranquilizá-la, com o sorriso cínico e a gentileza que lhe era peculiar. — Quanto a você, rapaz. — voltou-se a Delano, com uma expressão de dureza. — Vá embora de minha casa imediatamente. Em seguida caminhou em direção à porta.
— Dr. Juca? — Cândida o chamou.
Precisava saber da verdade.
— Sim? — respondeu sem olhar para eles.
— Como soube que estávamos juntos?
Queria ter certeza das estratégias doentias de Delano.
Nesse momento, Cândida viu a meia imagem de Salomão na porta de seu quarto. O filho trocou um olhar de cumplicidade com o avô.
Aquilo foi como ácido corroendo implacavelmente cada uma de suas células.




69


— Vamos, filho? É hora de voltar a ser o Pescador de Vidas! — O homem de voz grave trazia no rosto um sorriso afogado em lágrimas e um olhar familiar. Ao movimentar-se, a luz do poste mais próximo revelou-lhe a identidade. Diogo, o tio amado.
Chegava ao fim sua jornada como andarilho, experimentando na própria pele os mesmos sentimentos daqueles a quem deu a mão no passado e os tirou do mundo sombrio de uma realidade esquecida pelo conforto egoísta da sociedade.
Lucas olhou à sua volta e viu outras pessoas dormindo em cima de papelões, procurando se refugiar do frio daquela noite. Focou o desenho de um escador jogando sua rede ao mar na camisa do tio, e sorriu. Segurou-lhe a mão estendida e foi direto para seus braços, desfrutando do aconchego de um colo afetivo. Diogo o cobriu de beijos, rindo como uma criança.
— Como eu te procurei, garotão!
Aquele tempo nas ruas, vivendo como mendigo, fora necessário para sentir a liturgia que o contato pleno e o amor consigo mesmo proporciona, conduzindo-o invariavelmente à experiência de Deus. Longe dos seus, das dores, dos desejos do ego, tivera a oportunidade de se encontrar verdadeiramente com sua missão.
— Foram quarenta dias de angústia! — partilhou Diogo, num choro feliz.
Quarenta dias!
O necessário para saber-se, no chamado mais forte de Deus em sua vida.
Recordou-se do momento em que encontrou com o irmão na rua e por muito pouco não se entregou novamente aos convites sedutores do próprio ego, desejando aquilo que nunca tivera — a vida do outro.
A tentação!
Tempo de purificação e cura. Sentia-se livre para cumprir a missão a ele confiada.
Diogo colocou a mão no peito de Lucas, na altura do coração e o mesmo retribuiu o gesto, como de costume.
— Vamos para casa? — propôs Diogo.
Sim. Como o filho pródigo, que volta à casa do Pai.




70


— Entregue nas mãos de Laura Ponte. — Thomás orientou o motorista, passando-lhe um envelope amarelo.
O homem assentiu e saiu.
O som de notificação do celular o avisou do recebimento de um novo e-mail. Ele sentou diante do laptop e acessou sua conta, identificando a mensagem com assunto “confidencial”. Esperava por aquele e-mail há dias.
As provas que faltavam contra nosso homem!
No primeiro anexo, as duas versões do laudo médico elaborado pelo Dr. Feliciano Guerreiro acerca de Thomás, uma do lado da outra. Na primeira, nominada no arquivo de “Versão Original”, a conclusão da ausência de qualquer transtorno mental. Na segunda, respectivamente, nominada de “Versão Oficial ou Adaptada”, a confirmação de que sofre de um nível médio de esquizofrenia, criando um mundo paralelo.
O motivo pelo qual cumpriu os doze anos de prisão impostos pelo tribunal, sem direito a liberdade condicional. Uma farsa!
Thomás baixou a cabeça e respirou fundo. Sentiu raiva pela maldade humana.
Abaixo, no arquivo, trocas de e-mails entre Feliciano e Juca Rebelo, negociando valores, datados dos mesmos períodos em que a defensoria pública requisitava a liberdade de Thomás. Bem como cópias de extratos bancários, comprovando os depósitos nas datas especificadas.
R$ 200.000,00
R$ 250.000,00
R$ 400.000,00
R$ 500.000,00
R$ 750.000,00
Um total de dois milhões e cem mil reais compraram os laudos falsificados do Dr. Feliciano Guerreiro à justiça, garantindo a prisão de Thomás por todos aqueles anos.
Em outros anexos, o mesmo em relação a outros processos judiciais, fazendo do médico um homem milionário com inúmeras fraudes à justiça.
Thomás respondeu o e-mail imediatamente.
Bom trabalho.
Os outros R$ 500.000,00 serão transferidos logo mais para sua conta.
Att,
TS
O jovem e ambicioso hacker contratado por ele a peso de outro para se infiltrar como auxiliar administrativo na clínica do Dr. Feliciano havia feito um belíssimo trabalho de investigação, nos últimos meses, tanto na vida de Juca Rebelo quanto nos arquivos do psiquiatra. Enviando-o ao seu contato na polícia, com cópia para Laura e Diogo.
MENSAGEM ENVIADA COM SUCESSO
Thomás sorriu e levantou-se. Mais um inimigo desmascarado. Faltavam as conclusões finais de Laura e Diogo sobre o caso de Eliane logo que recebessem o envelope, e tudo estaria terminado.
Em seguida, fechou o laptop, encerando ali uma página de sua vida, abotoou o paletó e deixou o escritório do Chiamare para sempre. Caminhou imponente, pela última vez, vestido de Saulo Sobreira pelos corredores da sede da comunidade. Aquele lugar não mais o representava.
Quando passou em frente à entrada de uma das capelas do centro, sentiu um desejo forte de parar e o fez. Podia ouvir o forte pulsar do próprio coração, na eminência de um reencontro que procurou evitar em todos aqueles anos. De repente, após concluída sua missão de justiça, por que não?
Uma forma de confrontá-Lo.
Seguiu devagar os próprios passos em direção à capela. Ao atravessar a porta, pôs-se diante de sua maior mágoa, fitando o sacrário na parede do fundo e a lâmpada em forma de chama que identificava a presença do Santíssimo.
Pela primeira vez em doze anos se viu novamente cara a cara com Deus.
Está brincando de ser Deus, Thomás. Recordou-se da afirmativa de Juscelino.
— E eu venci!
Esta rivalidade é uma fantasia, quando é Ele que te dá forças para continuar vivo e lutar por aquilo que acredita. Mesmo que esta luta seja contra Ele ou contra você mesmo. Aquelas declarações ainda reverberavam.
Thomás caiu de joelhos na passarela entre as poltronas da capela que ia de uma extensão a outra do local.
Senhor, tu me sondas e me conheces. Sabes quando me sento e quando me levanto; de longe percebes os meus pensamentos. Sabes muito bem quando trabalho e quando descanso; todos os meus caminhos te são bem conhecidos.
Conhecia inteiramente o salmo cento e trinta e nove. Aquela passagem sempre o emocionava. Nunca mais tinha lhe chegado de forma tão forte em seu coração. 
Antes mesmo que a palavra me chegue à língua, tu já a conheces inteiramente, Senhor. Tu me cercas, por trás e pela frente, e pões a tua mão sobre mim. Tal conhecimento é maravilhoso demais e está além do meu alcance, é tão elevado que não posso atingir.
Sentiu uma força descomunal pressionando seu peito de dentro para fora e um desejo forte de chorar, mas procurou conter.
Para onde poderia eu escapar do teu Espírito? Para onde poderia fugir da tua presença? Se eu subir aos céus, lá estás; se eu fizer a minha cama na sepultura, também lá estás.
Por que fora tomado por aquelas passagens bíblicas? Terminara sua jornada de justiça. Pronto. Não tinha mais nada a fazer ali.
O meu chamado é levar a palavra de Deus ao coração dos feridos e ajudar as pessoas nas ruas. Recordou-se veementemente de quando anunciou aquilo ao Pe. Giuseppe, há vinte anos. Olhou firme para o sacrário.
Que diálogo Ele queria estabelecer? Prestar contas, por ter feito justiça contra Ele?
Vim para fazer justiça!
Vim para servir!
Vim para fazer justiça!
Vim para ajudar o outro!
Vim para fazer justiça!
Vim para pescar vidas!
— NÃO! — gritou visceralmente, entregue a um choro compulsivo. — O que quer de mim? Hein? DIZ!
O sacrário continuava impávido diante dele, rasgando todas as vestes de sua alma. Sentiu um fogo queimar o abdómen e um arrepio que parecia elevá-lo. As lembranças do carisma, das missões nas ruas, dos rostos sorridentes na evangelização e entrega de alimentos, das pregações tornaram-se tão vivas. Depois, as imagens da mulher morta ao seu lado na cama, das algemas que o transformaram em amargura, do veredito no tribunal, da cela se fechando em suas costas, do inferno vivido na prisão. E por fim, o enterro de Edgar, a morte de Pe. Giuseppe, a tristeza de Laura, o sofrimento de Lucas.
A figura do Demônio se fez presente em sua frente através da própria imagem e semelhança, vestido de Saulo Sobreira, com olhos negros, pele rachada e um sorriso macabro, denunciando seu feito.
— Vim para fazer justiça — disse o Demônio.
A justiça que mata, magoa e faz sofrer.
Thomás recordou-se de Jesus, quando no momento da crucificação, questionou Deus por tê-lo abandonado. Mais uma tentação do Demônio. Ele havia passado pela mesma provação, em doze anos de condenação injusta, mas deixando-se encharcar completamente pelo ódio gerado nas ações do inimigo. A traição de Saulo, Judas, desvirtuara-o de seu caminho, fazendo-o fracassar na maior das tentações.
— Eu me deixei vencer pelo inimigo!
Buscar ou lutar pela verdade, não havia mal algum. A distância de si mesmo e a perdição de seu chamado residia na força de Thanatos, da justiça realizada pelas próprias mãos ou vingança como Juscelino e Pe. Giuseppe consideravam.
Mentir, enganar, destruir!
— Olho por olho, dente por dente — insistiu a figura do Demônio. — Onde estava o teu Deus quando mais precisou?
E veio o momento em que conheceu Juscelino, no primeiro dia em que chegou ao presídio. Em nenhum instante esteve só. Este ficou ao seu lado durante toda a jornada na prisão, independente dos surtos ou agressividade incontida de um cotidiano limitado. Companheiro fiel, presença amiga e diferenciada de uma lealdade inabalável.
Deus esteve comigo o tempo todo, na presença de Juscelino!
Thomás experimentou tão fortemente a presença de Deus, feito no passado. Na verdade, percebeu que Ele nunca o havia abandonado, mesmo nos momentos mais difíceis, quando o hostilizou e blasfemou contra Ele. Ainda assim, foi cuidado e acolhido em seu colo, encontrando força vital onde não existia. 
Eu sei que tu me sondas.
Vim para levar o pão e o vinho.
Vim para ser o Pescador de Vidas.
A figura macabra se desfez e ele se curvou até o chão, num choro de alegria, por retornar à casa do Pai. Foi o próprio Thomás quem o tinha abandonado e não o contrário, como pensou todos aqueles anos.
— Perdão, Senhor! Perdão por tê-lo abandonado! Perdão!
E novamente se encontrou com Deus dentro de seu coração. Como nascer de novo, depois de um sono mortal de doze anos.
— Teu Pescador de Vidas está de volta, Senhor! — declarou de braços abertos, com imenso sorriso, tomado pela emoção que lhe cabia.




71


Cândida abraçou o filho tão fortemente parecendo que nunca mais o largaria. Fora ao apartamento de Diogo, de manhã cedo, após o telefonema do mesmo trazendo a melhor notícia que podia receber naqueles dias. 
— Você está bem, meu querido? — procurou saber, tocando em seu rosto, nos braços, no peito, ansiosa e feliz por tê-lo de volta e seguro.
— Sim, mãe! — confirmou Lucas, sorrindo.
Ele trajava roupas limpas, provavelmente um número maior que o seu. Mas estava muito magro — as marcas que a vida nas ruas lhe deixou. 
— O Lucas está inteirinho, não falta nada. — brincou Diogo, com uma caneca de chá, ao lado dos dois.
— Ele precisa descansar um pouco, se recuperar. — comentou Laura.
Cândida olhou para Diogo com imensa gratidão e extremamente emocionada. Uma mãe não é nada apartada violentamente de seus filhos.
— Não sei como agradecer, Diogo.
— O Diogo não sossegou enquanto não o encontrou. — revelou Laura, abraçando o amigo afetivamente.
— Foi difícil. — disse ele. — Esse moleque não queria ser achado. — piscou o olho para Lucas.
— Por que fez isso, filho? — Cândida se antecipou. — Não sabe o quanto sofri.
— Desculpa, mãe. Foi necessário. Esse tempo me fez enxergar muita coisa e descobrir minha verdadeira missão.
— Bom, nós vamos deixar vocês conversando. Precisamos ir. — anunciou Diogo, pousando a caneca no balcão.
Os dois despediram-se e os deixaram a sós.
Cândida aproveitou e encheu o filho de beijos. A alegria de vê-lo a salvo, não cabia em seu coração. Ele, como um menino travesso, fugindo dos beijos com largo sorriso.
— E agora, meu querido? O que vai ser? — momento de falar sério.
Lucas levantou, caminhou um pouco até a porta que dava para a varanda pelo sol daquele início de manhã, fechou os olhos e recebeu o vento que veio ao seu encontro. Depois, girou o corpo em direção a ela, mostrando-lhe as mãos.
— Deus me deu um dom, mãe. — assumiu finalmente. — Agora a responsabilidade de saber que tenho que usá-lo. — direcionou o olhar para as próprias mãos. — De saber como usá-lo.
Ela aproximou-se e o olhou ternamente nos olhos.
— O que pretende nesse novo momento?
— Conversei a noite inteira com o tio Diogo. Ele me entende melhor que qualquer pessoa, sabe?
— Claro, meu querido. O Diogo sofreu o mesmo que você por não aceitar o dom.
— Pois é, mas agora ele me ajudou a enxergar o meu chamado mais forte.
— E qual é?
— O carisma do Chiamare precisa ser retomado na íntegra. Nós servimos através da cura do espírito, mãe. Esta é a minha missão.
Parecia estar diante de Thomás, no passado. Ele falava da mesma forma. Logo lembrou da tragédia, de como o fundador do Chiamare havia se perdido em meio ao carisma e a manutenção da obra, dos interesses envolvidos, do jogo de poder e as consequências que lhe cabe no cotidiano.
Cândida temeu pela vida do filho. Aquilo lhe trouxe uma angústia exorbitante. Não queria vê-lo acabar como o pai. Isto é, nem sabia mais ao certo de quem Lucas era filho. O fato é que desejava outro futuro para ele, longe daquela realidade, de tudo o que lhe fizera sofrer, sem poder levar uma vida normal. E fundamentalmente, distante do destino de Thomás.
O que podia ser feito diante de uma decisão já tomada? Pensou em falar com Diogo. Lucas o ouvia e talvez pudesse mudar de ideia. Algo precisava ser feito para impedir aquela insanidade. A imaturidade da juventude o impedia de enxergar o óbvio. Cabia a ela, como mãe, este papel.
— E o Saulo, Lucas? Ele é o líder do Chiamare. Tem noção de que comprará uma briga? Foi este o mesmo motivo de desentendimentos e racha dentro da comunidade, com Thomás, no passado. Não quero vê-lo envolvido neste jogo, meu querido. — advertiu-o, tocando-lhe o rosto delicadamente.
— A senhora não está compreendendo. Não é uma decisão do ego, mãe. Esse chamado me veio durante o tempo de retiro nas ruas. O carisma do Chiamare é necessário, vital nos dias de hoje.
— Meu querido, existem forças contrárias que movimentam uma entidade do porte do Chiamare. É disso que tenho medo. Não quero vê-lo ser corrompido ou sofrer as consequências de quem rema contra esse sistema. Falo da política institucional.
— O tio Saulo não será empecilho, acredite!
Ele falava com tanta convicção que por pouco não lhe convencia.
E o Dr. Juca?
Não podia entrar em detalhes sobre ele, para proteger o próprio filho. Porém aquele homem era o presidente do conselho administrativo, a maior força contrária e política da instituição, por isso ela sabia melhor que ninguém do que era capaz de fazer para tirar os inimigos do caminho, independente de quem fossem.
— Nem meu avô, mãe. — completou Lucas.
— Hã?
Ele parecia responder aos seus pensamentos.
— Meu avô, — repetiu ele. — também não será empecilho.
Pura inocência!
— A senhora não compreende. — insistiu Lucas. — Deus falou no meu coração. Começará um novo tempo no Chiamare. Além do mais, o tio Diogo estará inteiramente do meu lado.
— O Diogo?
— Sim. Ele voltará à obra e nos ajudará a restabelecer o carisma.
Cândida sorriu, surpresa. Com a presença de Diogo tudo seria diferente.



72


Thomás retirou o paletó e o pendurou no braço. Desabotoou a camisa e a colocou para fora da calça. Começava a se desfazer do personagem assumido nos últimos meses. Em seguida, deixou a capela e caminhou pelos corredores do Chiamare em direção à saída. Não precisava levar nada consigo. Já tinha de volta o necessário.
— Thomás?
Ouviu o som da própria voz atrás dele. Quando se virou, teve a visão de Saulo, o impecável e vaidoso Pescador de Vidas de volta. Sentia forte dor de cabeça, talvez pelo choro há pouco diante do Santíssimo. Certamente os olhos estavam inchados e achava-se um trapo.
— Não se preocupe, estou deixando o Chiamare. — anunciou, abrindo os braços em sinal de paz.
— E o que o faz pensar que pode ir embora assim? — interpelou o outro. Mas estava diferente, o olhar, o tom da voz. Não parecia o irmão.
— Tudo está terminado, Saulo. — justificou, olhando-o de modo a perscrutá-lo. — Finalmente a justiça será feita. E diferente do que pensa, não precisarei sujar minhas mãos, usar das mesmas armas que vocês.
— O que quer dizer com isso?
Alguma coisa de muito estanho o distanciava da figura de Saulo Sobreira.
— A polícia cuidará do Dr. Juca e do Dr. Feliciano. Quanto a você, em breve a morte de Eliane será esclarecida.
— Não tenho nada a ver com a morte dela. — falou Saulo, sem a menor convicção.
Thomás procurou a hostilidade no irmão e não encontrou.
O que houve com ele?
— Quer saber? Não tenho mais tempo, nem paciência para isso, Saulo. Estou cansado desse seu joguinho. Se a intenção era me deixar louco, junto ao Dr. Feliciano, não gaste seu latim. A essa altura a justiça já está com as provas de que vocês falsificaram o laudo médico que me manteve na cadeia durante esses doze anos. Não precisa mais continuar mentindo, meu irmão. Em breve seu reinado também desmoronará. Eu não precisarei fazer mais nada.
Por um momento Saulo parecia não ter o que dizer.
— O que e faz acreditar que fui eu quem matou a Eliane?
Que pergunta mais descabida!
— Na verdade acredito que foi uma conspiração de todos vocês. A Eliane vinha chantageando o Dr. Juca, e ele tinha razões mais do que suficientes, dentro da cabeça podre dele, para matá-la, e de quebra me tirar de seu caminho. Naquele momento você seria o fantoche mais apropriado. Invejoso, ambicioso, tudo o que ele precisava.
— Posso te fazer só uma pergunta?
Saulo estava muito diferente, calado, observador.
Thomás sorriu e deu de ombros.
— Como foi estar sozinho durante todos esses anos?
Definitivamente, o irmão parecia ter enlouquecido.
— Eu não estive só, — referia-se a Deus e Juscelino. — mas pensava que estava e até então, fui a pessoa mais infeliz desse mundo. O que mais me doía era a saudade e a falta de compreensão do por quê. Levei uma vida de doação e serviço ao outro e fui abandonado por todos, traído por quem amei. Engoli a solidão e fiz dela uma companheira. O que me motivou a voltar e fazer justiça com as próprias mãos, mas diferente do que eu pensava, isso não me trouxe de volta a felicidade.
Saulo deixou escapulir uma lágrima. Um lampejo de arrependimento?
— Eu te entrego de volta o que é teu, meu irmão. — girou a cabeça, focando a estrutura do prédio. — O que eu deixei não tem nada a ver com isso. A minha missão não é mais aqui. Meu chamado é para o mundo.
O irmão caiu em prantos, e Thomás finalmente o reconheceu. De repente, a terceira figura, à sua imagem e semelhança, surgiu por trás de uma coluna, também vestido como eles, o verdadeiro Saulo. Pela primeira vez em doze anos, os três irmãos gêmeos, juntos de novo. Na verdade, havia conversado com Diogo, todo aquele tempo. O irmão, companheiro e cúmplice de uma vida o tinha enganado por alguns instantes.
Thomás foi dominado por uma saudade que parecia arrebentá-lo por dentro. Diogo aproximou-se devagar e tocou em seu rosto. Ele fez o mesmo, e choraram juntos. Em seguida, o outro o envolveu num forte abraço que quase os esmagou.
— Por que me abandonou? — não teve como evitar aquela pergunta.
— Covardia, medo. — respondeu Diogo, sem largá-lo. — Uma decepção infundada.
— Eu quis tanto esse abraço nesses doze anos!
— Me perdoa? — indagou Diogo.
Não tinha o que ser perdoado. Apenas não queria sair daquele abraço nunca mais.
— Está tudo bem. — afirmou Thomás.
— Me perdoa! — insistiu o outro.
— Claro! — confirmou um perdão constituído diariamente em todos aqueles anos.
— O Thomás tem dívidas com a justiça. — lembrou-os Saulo, ao lado.
Finalmente Diogo o soltou do abraço, voltando-se ao outro irmão.
— Dívidas? Não seja ainda mais canalha, Saulo! — interviu.
— Ora, vai defender o irmãozinho? — Saulo ironizou. — Acreditou por doze anos que ele fosse um assassino. Mudou de ideia por causa de um abraço?
Por um momento, Thomás sentiu pena de Saulo, por se deixar dominar pelos rancores e a inveja.
— O Thomás não deve mais nada à justiça! — Diogo o defendeu. — Ele pagou doze anos por um crime que não cometeu. Isso é mais do que crédito.
Bom tê-lo de volta!
— Diogo, você não entende. — Saulo parecia mesmo desesperado. — O Thomás é perigoso! Ele está distorcendo os fatos e vai acabar com todos nós!
— CHEGA! — Diogo gritou. — É hora de voltarmos a ser uma família, independente do que tenha acontecido! A verdade virá à tona mais cedo ou mais tarde.
Viria mais cedo, logo que Laura recebesse o envelope e o encontro marcado entre o Dr. Juca Rebelo e Saulo para planejarem a morte de Thomás acontecesse. Tudo seria gravado, como havia pensado. E finalmente, o irmão desmascarado.




73


Laura saiu do táxi e foi em direção ao portão do prédio de Diogo, quando o motorista do Chiamare a abordou. Ela se assustou, mas logo o reconheceu.
— Mandaram lhe entregar isto. — explicou ele, entregando-lhe o envelope amarelo.
— Quem mandou? — Laura procurou saber.
— É importante. — foi a única resposta que obteve, antes do motorista ir embora.
Com certeza tinha sido Saulo, ou Thomás, se sua versão sobre o suposto sequestro fosse verdadeira.
Laura verificou que nenhuma informação foi registrada no envelope, nada que pudesse lhe adiantar o que havia dentro. Entrou no prédio, e no elevador, sucumbiu à curiosidade, rasgando com cuidado uma das extremidades do misterioso envelope. Em seguida, retirou de seu interior um laudo médico. Tratava-se da autópsia de Ricardo Cordeiro, o marido de sua tia, por quem tinha se apaixonado há vinte anos. Ela tentou controlar o tremor nas mãos ao deparar-se com aquelas informações. Segundo o documento, a morte do paciente fora causada por uma quantidade excessiva de barbitúrico encontrada em seu organismo. Isto é, Ricardo não tinha morrido por complicações cirúrgicas, como alegara o Dr. Juca, mas realmente assassinado.
No envelope também continha uma cópia do falso atestado de óbito com a assinatura seu pai.
— Meu Deus!
Laura saiu do elevador meio zonza, e acabou sentando na porta do apartamento de Diogo. Dobrou os joelhos para apoiar os documentos e poder apreciá-los com mais calma. Precisava ter certeza de que seu grande amor fora realmente assassinado.
Não há dúvida!
Em seguida, vasculhou mais uma vez o envelope e achou algumas fotografias no fundo. A primeira imagem a deixou sem respirar, por não acreditar no que vira. Dona Augusta, sua mãe e Ricardo se beijando.
— Santo Deus, o que isso significa?
Passou as fotografias, esboçando outros momentos de afeto comprometedor entre os dois, datado da mesma época em que Laura e ele se relacionavam.
Minha mãe tinha um romance com Ricardo?
— Como assim? Nessa época nós estávamos juntos.
Olhava as fotografias, verificava bem as datas, os lugares ao fundo, e procurava o que desmentisse aquela loucura. O homem pelo qual fora tão apaixonada e perdera tudo, mantinha um romance com mãe e filha ao mesmo tempo. Estranho, mas sentiu a dor de uma traição vivida há vinte anos, como se fosse hoje. Por ele enfrentou o pai, foi expulsa de casa e amargurou numa saudade quase mortal, impedindo-se de amar novamente.
Canalha!
Por isso seu pai o odiava tanto. Até hoje não compreendia o porquê de tanta rejeição a Ricardo, visto que era viúvo de sua irmã. Dr. Juca sabia melhor que ninguém que ele não prestava.
Diante da descoberta, Laura temeu o que pensou. Lembranças apagadas de seu passado voltaram e ela associou ao que havia conversado poucas horas antes de chegar ali com o sacristão de Pe. Giuseppe.
Se Saulo ou Thomás, não importava quem, enviou-lhe aqueles documentos, certamente não imaginava que ela fosse conseguir estabelecer uma teia entre os crimes de Ricardo, Eliane e Pe. Giuseppe. O remetente acreditava no máximo que estaria incriminando o Dr. Juca Rebelo por um deles.
No entanto, a situação era mais complexa do que aparentava.
Laura sentiu-se perdida, sem referencial, lamentando as últimas conclusões e alimentando um fio de esperança de que fossem equivocadas. Porém a revelação do sacristão, aqueles documentos e as lembranças que se faziam vivas sobre o passado davam-lhe a certeza de que estava correta em suas conjecturas.
Sabia quem era o verdadeiro assassino.
Pensou em ligar para a polícia e pedir ajuda. Talvez entrar em contato primeiramente com Diogo. Ele com certeza saberia o que fazer. Encontrava-se muito abalada emocionalmente e não tinha condições de raciocinar sozinha. Aquela descoberta a tinha deixado sem chão.
— Não pode ser verdade!
Mas era!
Ela retirou o celular da bolsa, procurou o nome de Diogo na agenda e ligou.
— Alô, Diogo? — estava apreensiva. — Eu sei quem matou a Eliane. Foi a mesma pessoa que assassinou o Pe. Giuseppe e também o Ricardo, há vinte anos. Não tenho como adiantar muito por telefone. Preciso de você!




74


Thomás aguardou que a empregada do Dr. Juca Rebelo saísse, e usou uma chave-mestra para destrancar a porta da cozinha do apartamento do médico. Abriu-a com cautela e entrou devagar, aguardando no portal de uma dispensa, para que as outras duas empregadas presentes no ambiente não percebessem sua presença. As moças conversavam baixinho sobre o caso de Cândida e Delano, mas não dava para ele definir o que elas falavam. Em seguida, o som da fofoca foi ficando mais distante, até desaparecer por completo, constatando que o caminho estava livre.
Todo cuidado era pouco, a fim de não ser notado por ninguém. Certamente Saulo e Guilhermina já se encontravam no escritório com o presidente do conselho, arquitetando a morte de Thomás, como haviam combinado no dia anterior. As câmeras e microfones instalados secretamente na casa lhe renderiam as provas necessárias para desmascarar o irmão e quem sabe render algumas pistas sobre a verdade acerca da morte de Eliane. O link da transmissão estava conectado diretamente com seu contato na polícia, que já montavam guarda fora do apartamento, com o objetivo de prender o Dr. Juca. Bem como com o celular de Laura, que seria surpreendida online com as imagens do escritório do pai.
Contudo, Thomás não queria perder aquilo pessoalmente. Seria sua última ação antes de partir.
Ele atravessou a enorme sala de estar do apartamento e se escondeu por trás de grossas cortinas de uma janela próxima à porta do escritório. Ajeitou o ponto no ouvido e acessou as imagens do ambiente no outro lado da parede, através do celular. Na tela do aparelho, Guilhermina aparecia sentada de costas e Dr. Juca à sua frente. Saulo estava de pé, ao lado.
— O que o senhor quer que eu faça? — Indagou Saulo.
— Marque um encontro com ele no sítio, onde foi seu cativeiro. — respondeu o médico. — Lá você dá a ele o que ele merece. — puxou de dentro da gaveta uma pistola e estendeu-a na direção de Saulo.
O irmão pegou a arma e analisou-a.
Triste assistir aquela cena, uma pessoa planejando a morte do próprio irmão.
— Foi assim com Eliane? — Saulo o abordou.
Ele não sabia?
— Saulo, meu querido, não temos mais tempo a perder. — advertiu Guilhermina.
Vaca!
— Acham que eu sou idiota? — Saulo parecia se rebelar, pondo a arma em cima da mesa. — Agora vocês querem me tirar do caminho como fizeram com Thomás.
— Opa, opa... O que está acontecendo aqui? — Thomás falou consigo mesmo, procurando ajeitar novamente o ponto no ouvido. Achava ter entendido errado.
— Você está louco, Saulo? — foi Guilhermina que interviu.
— Pelo contrário, muito lúcido. — respondeu ele de pronto. — O plano é: eu mato o Thomás, vocês me incriminam e assumem de vez o poder no Chiamare. Correto?
— O que está acontecendo? Está com a mesma paranoia do seu irmão? — Dr. Juca levantou.
— Ei, que jogo é esse? — Thomás comentou novamente, atento à imagem na tela do celular.
Nesse momento, o som da campainha invadiu o ambiente. Ele procurou ficar imóvel, pressionando contra a parede, a fim de que ninguém o notasse por trás das cortinas. Acompanhou por uma fresta a empregada atendendo a porta e sala sendo invadida por Laura e Diogo.
— Onde está o Dr. Juca Rebelo? — interpelou ela, firmemente.
Thomás percebeu que Laura segurava o envelope amarelo na mão.
— A senhora não pode entrar assim... — tentou impedir a empregada, sem sucesso.
— No escritório, Laura. Vamos. — propôs Diogo, na direção onde Thomás estava.
Droga! Eles vão atrapalhar tudo! Logo agora que podiam falar sobre Eliane.
— O complô está formado para matar o Thomás? — Laura surpreendeu a todos, abrindo as portas do escritório de repente.
Thomás apreciou através do aparelho celular o espanto no rosto do Dr. Juca e do irmão. Guilhermina se pôs de pé imediatamente. Ele ouvia o som através da porta aberta e do ponto ao mesmo tempo.
— Continuem! — completou Laura.
— O que quer aqui? — Dr. Juca perguntou, com sua arrogância.
— Nós viemos esclarecer uma série de crimes. — foi Diogo quem respondeu.
— Vocês devem estar loucos. — comentou Guilhermina.
Exatamente nesse instante, Thomás viu pela fresta da cortina que dona Augusta, a esposa do Dr. Juca, descia as escadas do apartamento, já atenta ao que se passava no escritório.
— Não, Guilhermina. — disse Laura. — “Vocês” estão loucos. Sei que foi o senhor quem realmente matou o Ricardo, papai. — afirmou, retirando os laudos médicos e fotografias de dentro do envelope e lançando-os sobre a mesa. 
Exatamente como Thomás previa que aconteceria. Dr. Juca Rebelo era o assassino.
— Mas diferente do que eu pensava, não o matou por minha causa. O senhor matou o Ricardo por ter descoberto que ele também mantinha um romance com a mamãe.
Thomás viu claramente que estavam todos chocados.
— Aí estão as provas. — declarou ela. — Oito anos mais tarde foi a sua vez de traí-la, com Eliane, a prostituta resgatada no Chiamare. A mesma mulher que apareceu morta na cama do Thomás. O senhor fez com que todos pensassem que eles tinham um caso e que depois, o Thomás a matou.
— Isso, menina! — Thomás vibrou baixinho, de onde estava.
— E há alguns dias precisou dar cabo também da vida do Pe. Giuseppe. Ele era a única pessoa que sabia da verdade e podia desmascará-lo. — Laura afirmou.
— Você tem a mente fértil. — foi o único comentário do Dr. Juca.
Não tem como negar, Dr. Juca. E a polícia já está sabendo de tudo — anunciou Diogo.
— NÃO! — gritou dona Augusta, na porta do escritório. — Isso não é verdade!
— Mãe, sinto muito, mas é verdade sim. — Laura confirmou com cuidado, tocando no ombro de dona Augusta. — E a polícia já está a caminho para levá-lo.
— Não foi ele! — disse a mulher. Parecia muito nervosa.
Thomás acompanhava tudo atentamente pelo celular, atrás das cortinas.
— Eu matei o Ricardo! — revelou dona Augusta.
O quê?
— Augusta! — Dr. Juca parecia tentar impedi-la.
— Chega de mentiras, Juca! — respondeu a mulher.
— O que a senhora está falando, mamãe? — Laura questionou-a.
— Quando descobri que o Ricardo também estava tendo um caso com você, eu fiquei louca. — acrescentou dona Augusta. — Raiva, ciúme, tudo ao mesmo tempo. Ele havia conseguido acabar com nossa família. Então fui à noite ao hospital, onde estava internado, após a cirurgia de apendicite, e apliquei aquela injeção nele.
— Meu Deus!Thomás estava chocado, como todos aparentavam na imagem que assistia. Laura se apoiou em Diogo, parecia muito assustada.
— E a Eliane? —Diogo perguntou.
— Augusta, não precisa responder. — advertiu Dr. Juca.
Quando descobri que ela estava tendo um caso com meu marido, tratei de pôr um fim nisso, antes que ela também acabasse com minha família.
— E pôs a culpa no meu irmão? — Diogo questionou.
— Ele também estava destruindo a nossa família. Nós havíamos acabado de descobrir que Lucas era seu filho. O Edgar tentou se matar naquela época, e eu não podia permitir que ninguém lhe fizesse tanto mal. Então arrastei o corpo de Eliane até a cama do Thomás e pus a arma em suas mãos. A crise com nossa família já durava algumas semanas e eu sabia que ele vinha dormindo à base de remédios. Acabei com dois problemas de uma só vez.
Saulo pôs as mãos na cabeça com olhos arregalados e Laura afogou o rosto no peito de Diogo.
— E o Pe. Giuseppe? — Saulo citou, esboçando receio do que ouviria.
— Ele desconfiava que tinha sido eu a matar a Eliane. Então, conversando com Juca, nós decidimos que eu me confessaria. Assim o Pe. Giuseppe seria obrigado a guardar esse segredo. Mas isso já foi muito tempo após o julgamento do Thomás. Recentemente, ele havia me ligado dizendo que a Laura e o Diogo estavam em seu encalço. Não quis correr riscos de ver minha família envolvida num escândalo. Precisei também calar o padre.
— A senhora também assassinou o Pe. Giuseppe? — visivelmente assustado, Saulo procurou ter certeza.
— Descobri através do sacristão que a senhora havia estado lá, mas pensava ter ido atrás do meu pai. — comentou Laura, com uma tristeza profunda. — Isso tudo é monstruoso!
— Por isso a mantivemos longe, todos esses anos. — dona Augusta justificou. — Para evitar o sofrimento, caso viesse a descobrir a verdade. E sabíamos que o faria. Então, Juca e eu decidimos afastá-la de nós, de modo a acreditar apenas que tivesse sido expulsa. Mas cuidamos para que seus caminhos fossem bem conduzidos.
— Sinto muito, minha filha! — manifestou-se Dr. Juca.
— Então o Thomás é inocente! — comentou Saulo, muito abalado. — Incriminei meu irmão todos esses anos! — Segurou-se na mesa, como se fosse despencar. — Meu Deus, o que eu fiz? — Dona Augusta, a senhora é um monstro!
Thomás finalmente saiu de trás das cortinas, das sombras que o aprisionavam no submundo da marginalidade e aproximou-se de sua redenção. Sentia o calor das próprias lágrimas banhando o rosto. Estava livre, finalmente absolvido de uma culpa que não lhe cabia. Aterrorizado com a revelação da identidade da verdadeira assassina, mas feliz pela justiça que se fazia.
Pôs-se diante de todos e encarou-os, marcado na alma pela inocência desvelada. Homem livre de acusações, de volta ao mundo dos vivos como Thomás Sobreira. Apreciou em cada rosto a surpresa e a condescendência nos irmãos e em Laura. Especialmente Saulo, observava-o de modo a demonstrar o que não conseguia definir, se tristeza ou vergonha.
Ele ensaiou um tímido sorriso em meio ao choro que o sucumbia e os deixou.
Um silêncio se fez em seu interior. Passou pela polícia que acabava de invadir o local e caminhou devagar para longe, em direção a uma nova vida. Deixando para trás as mágoas, as feridas abertas, a amargura que o acompanhou até então.


75


O dia amanheceu e Laura chorava na cama a dor pelas revelações da tarde anterior. Não conseguira pregar o olho, e as poucas vezes em que havia cochilado fora arremessada em terríveis pesadelos. Esperou vinte anos para estar novamente perto dos pais e finalmente quando isso acontecia, descobriu que era melhor ter permanecido longe.
Alguém bateu na porta. Na verdade, preferia ficar só e continuar em silêncio.
Diogo apareceu devagar pela fresta aberta e sorriu de um modo tão acolhedor, que somente ele conseguia ser.
— Olha só o que eu trouxe. — anunciou, mostrando uma caneca de chocolate quente.
Podia sentir o aroma da mistura da canela, do jeito que ela gostava. Não tinha como não sorrir.
— E então, como passou a noite? — sondou ele.
Laura se ergueu, recebendo a caneca de chocolate.
— Como se descobrisse que meus pais são uns monstros. — procurou brincar.
— Ai. Mas vejo que está com bom humor.
— Tentando superar. — tomou um gole e quase queimou a língua.
— Ei, cuidado. Assim pode se queimar.
O chocolate estava delicioso.
Estendeu a mão sobre o lençol e encontrou com a dele.
— Diogo, obrigada por tudo. Acho que se não fosse por você, talvez eu estivesse ainda mais perdida.
— Que bom que te trago continente.
Ele sorria de um jeito tão terno, capaz de curar boa parte de suas feridas.
— Nós vamos superar isso juntos. — sentenciou Diogo, apertando sua mão.
Contudo, haviam feridas abertas que jamais seriam curadas, nem mesmo Diogo se aproximaria tão profundamente desse abismo, mas se existia realmente um Deus, ela agradeceu por sua presença naqueles últimos meses.
— Tem uma pessoa aí querendo falar com você. — anunciou ele.
— Quem?
Diogo olhou à porta atrás dele e Thomás apareceu.
Laura quase jogou a caneca na mesa ao lado, e se recostou mais na cabeceira da cama, como se se armasse para uma nova batalha.
Ele não tinha o direito!
— O que faz aqui? — Laura o abordou, sem rodeios.
— Laura, vocês precisam conversar. — explicou Diogo.
— Eu não tenho nada para conversar com esse homem! — foi categórica.
— Sei que não tenho o direito de te pedir nada, mas, por favor, me ouve. — o tom de Thomás foi quase uma imploração.
Laura fitou Diogo cheia de raiva. Sentiu-se traída. Por mais que fossem irmãos, ele não tinha o direito de trazê-lo ali sem uma autorização prévia. Podiam ter conversado a respeito primeiro.
Não reconhecia aquele homem, não sabia quem era ele, exceto que fora movido por uma vingança, envolvendo-a num jogo sórdido de sedução, a fim de concretizar seus objetivos, com requinte de crueldade. Frio, capaz de passar por cima de qualquer pessoa, desconsiderando sentimentos, desprovido de quaisquer laços afetivos.
Definitivamente não queria falar com ele. Podia simplesmente expulsá-lo. Tinha esse direito. Entretanto, no momento em que recordou das vezes em que estiveram juntos, experimentou um fio de curiosidade. Tudo pareceu tão real, o desejo de estarem juntos, o instante em que se fizeram um. Quem era ele afinal? Que tipo de homem se fazia tão inteiro, verdadeiro, e de repente, revelava-se uma farsa? E por que Diogo insistia para ouvi-lo? Ele melhor que ninguém sabia de sua dor.
Por um instante não sabia o que fazer, se ouvia suas explicações ou mandava-o embora dali e de sua vida para sempre. O que uma mulher machucada fazia numa hora dessas?
— Muito bem. Tem cinco minutos. — anunciou.
Diogo pediu licença, deu uma piscadela de olho para ela e deixou-os.
Houve um instante de silêncio, até que Thomás pareceu tomar coragem e falou. — Como sabe, a vida não foi muito fácil para mim.
— Isso não te dá o direito de destruir a vida das pessoas à sua volta. — respondeu de pronto.
— Eu sei, tem toda razão de me odiar, mas quero te dizer que eu estava perdido, cego, movido único e exclusivamente pelo desejo de fazer justiça com minhas próprias mãos.
— De se vingar. — interrompeu ela.
— Isso mesmo. Tão cego que as pessoas não passavam de coisas, instrumentos dessa vingança.
Laura desconsiderou o pudor de estar vestida apenas com um camisão de malha e levantou, tomando distância.
— E só percebeu isso após tê-la concluído?
— Não. Pouco depois de termos estado juntos.
— Mas aí já tinha feito mal a muita gente.
— Infelizmente.
— Olha, Thomás, não sei qual é a sua intenção, mas...
— Por favor, me ouve! — foi a vez dele interrompê-la. — Sei que te fiz muito mal e a muitas pessoas, mas queria que soubesse que em muitos momentos pensei em desistir, por sua causa. E quando nós estivemos juntos, para mim foi um dos momentos mais bonitos nos últimos anos.
Mentira! E o meu irmão?
— Thomás, eu sei de sua orientação sexual. E do amor que você tinha pelo Edgar.
— Você não sabe nada! — ele foi enfático e aproximou-se. — Não podemos ser tão simplistas.
— Para mim as coisas são simples. Sou heterossexual. E você, é gay ou é bi?
— Não preciso dessas convenções sociais para saber o que sinto. Apenas sinto. O que posso te dizer é que foi maravilhoso estar com você. Fazia tempo que não me sentia tão inteiro com alguém. Você despertou um lado adormecido.
Ela sentiu-se enrubescer.
— Thomás, o que quer afinal?
— Ser verdadeiro com você. Eu te devo isso. O que houve entre nós foi muito bonito e importante para me lembrar da humanidade existente em mim. A mentira se resumia à minha identidade, mas não ao que sentia. Você realmente mexeu comigo, Laura.
O pior é que ele parecia honesto. Mas da outra vez também, e enganou-a.
— Obrigado por quebrar a dureza do meu coração! Esse é meu pedido de perdão. — continuou ele.
— Infelizmente não tenho como te perdoar. O que fez ainda reverbera aqui dentro, sabe? — Laura justificou, circulando a mão no próprio peito. — Você também mexeu com coisas adormecidas, mas tocou em feridas muito profundas. Não confio em você, Thomás. Na verdade, não acredito em nada do que foi dito aqui.
— Compreendo. — ele falou com tanta ternura no olhar que por pouco não retirou tudo o que dissera. — Bom, acho que não tem mais nada para eu fazer aqui. — sorriu, meio constrangido. — É... Espero que possa fazer meu irmão feliz, tanto quanto eu sei que ele te fará. Deus abençoe a vocês.
Thomás a observou por alguns instantes. Tinha uma expressão diferente de quando o havia conhecido como Saulo Sobreira. Talvez um traço de dor ou sofrimento, não sabia ao certo. Em seguida, ele foi embora.
Estranho! Parecia realmente ter estado diante de outra pessoa. Ela segurou os próprios ombros com braços cruzados, como num abraço consigo mesma, e fechou os olhos. Revivendo, por alguns segundos, a mesma sensação de quando fora tocada por Thomás, passando-se por Saulo. Também tinha sido especial naquele momento.
Espero que possa fazer meu irmão feliz, tanto quanto eu sei que ele te fará.
Sentia-se confusa.



76


Cândida desceu as escadas do apartamento da família Rebelo trazendo nas mãos uma caixa contendo os pertences mais queridos. À sua frente, os empregados carregando as malas. Sentia-se feliz por finalmente deixar aquele lugar, cenário de seu martírio, da grande mentira que foi o casamento com Edgar, de uma morte em vida. Abandonava o personagem criado pelo sogro como referência aos fiéis do Chiamare e encarnava a fragilidade real de uma mulher cheia de erros, mas disposta a lutar por sua felicidade.
Ao perceber a porta do escritório entreaberta, julgou que alguém estava lá dentro.
Quem pode ser?
Por um instante acreditou ter sido o Dr. Juca que havia talvez conseguido o relaxamento da prisão. Colocou a caixa na poltrona ao lado e aproximou-se, apreensiva. Já pela fresta, viu a imagem de Salomão, sentado na cadeira do avô, desfrutando de uma dose de uísque. Como alguém poderia parecer tanto com outra pessoa, sem nenhum laço sanguíneo? O que a entristeceu profundamente. O filho aprendera o pior na convivência com aquela família.
— Salomão? — antecipou-se, ao entrar no escritório.
— Como vai, mamãe? De partida?
Demonstrava total apatia à sua presença ou ausência ali.
— Sim. Fico no Chiamare até o dia da viagem.
— Minha avó volta para casa hoje. O juiz já autorizou sua liberdade. Ela responderá em liberdade. — anunciou Salomão, como se aquilo a afetasse de algum modo.
— É, eu soube. Os problemas de saúde de dona Augusta colaboraram com a decisão do juiz. Também pelo que conheço das manobras do Dr. Juca, ele deve ter ficado um pouco menos rico para que isso acontecesse.
Salomão pousou o copo de bebida na mesa e levantou.
— Por que odeia tanto o meu avô? Ele sempre te tratou como a uma filha.
— E você como a um neto. — fez questão lembrá-lo que verdadeiramente não pertencia àquela família. — E sou grata a ele por isso, meu filho, mas existem coisas que não sabe sobre o Dr. Juca.
Desejava vê-lo longe daquele lugar. Jamais estaria com o coração em paz, sabendo que Salomão ainda convivia com o Dr. Juca Rebelo.
— Por favor, vamos para o Chiamare comigo! — praticamente o implorou.
— Nunca! Não vou abandonar o meu avô no momento em que ele mais precisa de mim. Não há motivos reais para estar preso. E odeio você por ficar do lado de nossos inimigos!
Salomão falava com a mesma arrogância do Dr. Juca, orientado pelos mesmos valores morais ou amorais. Sentia-se uma péssima mãe, omissa, por não ter conseguido lhe ensinar a ser uma pessoa de bem. Temia pelos caminhos que ele escolhia.
— Os bens do Dr. Juca estão bloqueados pela justiça.
Sabia de seus interesses. Lembrá-lo de questões materiais poderia ser uma forma de dissuadi-lo.
— Meu avô está me orientando a tomar conta de tudo o que é seu. — replicou o jovem, com sorriso vitorioso. — E acredite, mamãe, os bens bloqueados pela justiça são apenas a ponta do iceberg. Logo ele estará fora da cadeia e vamos juntos limpar o nome de nossa família. Quem não estiver do nosso lado, estará contra nós! — falou aquilo quase ao seu ouvido e saiu.
— No que meu filho se tornou? — perguntou para si mesma, culpando-se pelas escolhas de Salomão. Seria correto deixá-lo justo naquele momento? Não podia abandoná-lo à própria sorte e sob as orientações nefastas do Dr. Juca Rebelo. Talvez ficar e dar o suporte que uma mãe devia neste momento. Mas de que verdadeiramente adiantaria? Salomão sempre fora uma criança, um adolescente e agora um jovem interesseiro, ambicioso. Nunca aceitou ser filho de Thomás e não pertencer à família Rebelo. Por isso a odiava.
Definitivamente, não sabia o que fazer.
— Pelo menos Laura está voltando para esta casa e poderá cuidar dele para mim.
— Cuidar de quem? — perguntou Delano, entrando no escritório.
— Nada. Estou me despedindo desse lugar.
— Também estou indo embora. Vou aguardar a chegada de dona Augusta e me despedir.
— E você... vai para onde? — perguntou com dificuldade, como se não devesse.
— Ainda não sei. — disse ele, com sorriso meio desconsertado. — Sabe, Cândida. Por um instante, pensei que tivesse envolvida nas mortes.
— Era o Dr. Juca naquele telefonema. — explicou ela. — Queria me advertir sobre Laura e Diogo. Também achei estranha a forma como ele colocou as coisas e falou sobre a morte do Pe. Giuseppe, mas vindo de quem veio, tudo é possível. E você, conversou com o Lucas? — tratou de mudar de assunto.
Delano sorriu.
— O Lucas foi uma das melhores coisas que me aconteceram, sabe? — revelou o rapaz. — O irmão que nunca tive.
— Pelo visto a conversa foi ótima. — concluiu, direcionando-se à sala. Delano a seguiu.
— Ele me tratou com tanto afeto, Cândida. Já parece mesmo o líder do Chiamare.
— Que bom que vocês se entenderam.
— E você, quando viaja?
— Em alguns dias, logo que sair o resultado do exame de DNA.
— O Lucas me pareceu muito ansioso, embora já saiba qual o resultado. Como está em relação a isso?
Difícil responder aquilo. Para Cândida, não saber a paternidade do próprio filho, maculava a sacralidade de ser mãe. Total sensação de estranheza e ao mesmo tempo de vulnerabilidade, por cobrar-se acerca da insanidade e inconsequência na noite de seu casamento. Na verdade, as poucas recordações daquele momento, divididas em flashes, representavam o epicentro de uma catástrofe em série na vida de muitas pessoas, sobretudo na de Lucas. O que a fazia acreditar que nunca se perdoaria pelo que houve.
— Tentando me encontrar num conto surreal. — foi o que respondeu a Delano.
— Vocês beberam muito naquela noite. Não lembrar do que houve é mais comum do que pensa.
— Mas um filho foi gerado em meio à loucura e irresponsabilidade.
— Eu sei. Procura pensar que foi esse momento de anarquia que te deu o Lucas. É isso o que mais importa nesse momento.
Delano não compreendia. Sua angústia e vergonha não resumiam ao fato de ter engravidado naquela noite, pelo contrário, mas por não saber quem dos três irmãos era o pai.
Beijou-o no rosto, em seguida pegou a caixa e preparou-se para ir embora.
— Cândida? — Delano a chamou.
Ela o olhou por uma última vez.
— Por que não podemos ficar juntos? — questionou-a.
Por mais que o amasse, precisava de um momento só para ela. Um período de reconciliação consigo, de revisão dos próprios valores e, sobretudo, de se reencontrar com a mulher perdida nos escombros que uma vida de mentiras lhe deixou. Esse tempo em Paris seria como entrar num rio gelado e experimentar a vivência única do instante presente, resetar as dores e deixar florescer a beleza que ainda pulsava dentro de si.
— Quem sabe um dia não nos reencontramos?! — cogitou ela, deixando para sempre aquele lugar sombrio.
Antes de sair, ouviu o que Delano falou.
— Estarei esperando por você!




77


Laura se encheu de alegria, ao ver o encontro emocionante de Lucas e Diogo como pai e filho. Eles estavam abraçados, partilhando um com o outro de sua felicidade por aquela descoberta, com o resultado do exame em mãos. Para a surpresa de todos, há algumas semanas o jovem havia tido uma visão revelando que Diogo era seu verdadeiro pai, e Saulo acabara por confessar que mais uma vez mentira ao afirmar ter estado com Cândida naquela noite, alegando ter sido uma tentativa de proteger Lucas de Thomás. Isto é, o próprio Saulo também tinha se confundido ao vê-la com o irmão.
Agora, ambos estavam mais ligados que nunca e conduziriam juntos o Chiamare.
Pai e filho, os dois Pescadores de Vidas.
Ela preferiu deixá-los a sós, os dois tinham muito a conversar. Em seguida, foi para o quarto, terminar de arrumar sua mala. Precisava estar em casa quando a mãe voltasse. Por pior que fosse, queria ficar perto e cuidar dela, pelo menos até a saída de seu pai da cadeia.
Olhando o ambiente à sua volta, reconheceu o zelo, o carinho com qual foi recebida por Diogo em Fortaleza.
Tu não faz como passarinho
Que fez um ninho e avoou
Mas eu fiquei sozinho
Sem teu carinho
Sem teu amor
Aquele recorte da música Quixabeira no mural acima da escrivaninha representava tanta ternura.
Em poucos meses, sua vida havia se transformado por completo. E tudo, depois de conhecê-lo. Recordou-se do dia em que se conheceram, em São Paulo. Não fosse por ele, teria sido atropelada por aquele carro. Se existiam anjos, Diogo certamente era um deles.
De repente deu-se conta das nuanças do próprio sentimento. Sem saber, envolveu-se com os três irmãos gêmeos, experimentando com cada um deles, uma dimensão diferente do sentir. Thomás despertou-lhe o desejo, o prazer, a força da própria carne pulsando em vida, numa atração forte e fugaz. Já Saulo foi responsável por fazê-la descobrir que mais uma vez poderia viver o fogo da paixão. Em meio a esse turbilhão de emoções afloradas, Diogo ensinou-lhe a delicadeza do afeto presente e cuidadoso, a segurança gerada no encontro e a confiança que somente uma amizade verdadeira é capaz de proporcionar.
Tão iguais e tão diferentes ao mesmo tempo!
Depositou a última peça de roupa na mala, depois a fechou. Em seguida, riu de si mesma, desejando que todas aquelas dimensões experimentadas fossem vividas numa única relação, que os três fossem um só.
— Laura? — Diogo abriu a porta devagar.
— Cadê o Lucas?
— Ele precisou sair com urgência, estava atrasado para deixar a mãe no aeroporto.
Laura aproximou-se dele e tirou uma mexa de cabelo de sua testa.
— Você está muito feliz, não é? — gostava de vê-lo tão radiante.
— Descobrir ser pai do Lucas foi o maior presente que Deus poderia me dar. — Na sequência, ele viu a mala pronta. — Está mesmo decidida?
— Quero estar lá quando minha mãe chegar. Preciso estar ao seu lado, independente das atrocidades que ela tenha cometido. É minha mãe!
— Compreendo. E seu trabalho na revista?
— Pedi umas férias ao meu editor. Depois decido o que fazer.
— Sabe que pode contar comigo, não sabe?
Ela sorriu e estendeu-lhe a palma da mão. Diogo pôs a sua sobre a dela e entrelaçaram os dedos. Ficaram um pouco em silêncio e pareciam viajar nos olhos um do outro. Ele se aproximou com a delicadeza que lhe era peculiar e beijou-a no rosto. Em seguida, trouxe-a para mais perto de si e fez com que se perdesse na intensidade do encontro. 
— Eu amo você, Laura! — sussurrou-lhe ao ouvido.
Experimentou-se enrubescer. Ficava sem graça e ao mesmo era maravilhoso.
— Quando nos vemos novamente? — mudar de assunto parecia a melhor saída.
— Hoje à noite? Uma massa daquele jeito que você gosta, um bom vinho... O que acha? — propôs Diogo, com uma piscadela de olho e o charme de seu meio sorriso.
— Precisarei fazer companhia à minha mãe. Quem sabe outro dia...
Diogo mordeu o lábio inferior e fez eu sim com a cabeça.
Até quando terá tanta paciência comigo?
— Bom, preciso ir. O táxi já está me esperando.
— Eu posso te deixar.
— Não precisa. O motorista está lá em abaixo.
Laura pôs a mala no chão e ele a tomou de suas mãos, como um bom cavalheiro. Em seguida, deixou aquele quarto com o coração apertado. Falaram algumas amenidades sobre a revista no caminho até o elevador, e o próprio Diogo o chamou. Despediram-se e o elevador fechou-se. Acompanhou a passagem por cada andar através do mostrador digital acima da porta, e a distância de Diogo foi lhe angustiando. Recordou-se dos passeios em São Paulo ao seu lado, dos cafés, dos jantares com vinho preparados especialmente por ele, de seus mimos e cuidados encantadores, conseguindo arrancar-lhe do universo exclusivo e sufocante do trabalho para um mundo terno de intimidade. Apesar de tudo, vivera com Diogo os melhores meses dos últimos vinte anos.
Eu amo você, Laura!
Ouvi-lo naquele instante a fez reconhecer outro sentimento provocado por ele. Estava errada a seu respeito, não era apenas amizade. Quando a beijou há pouco, desejou seus lábios. Ao lado de Diogo redescobriu a própria capacidade de amar. Percebia agora que por ele, experimentava tudo ao mesmo tempo. E aquilo era único.
O que faria com essa descoberta? Deixaria para depois, como tudo o que dizia respeito a sentimentos em sua vida?
As portas do elevador se abriram e ela pressionou o botão para que se fechassem novamente e a impedissem de se acovardar e fugir daquilo que queria.
O que está fazendo, Laura? Fechou os olhos e disse para si mesma, repetidas vezes, que não poderia desistir.
Tu não faz como passarinho
Que fez um ninho e avoou
Quando mais uma vez as portas se abriram, segurou-as e pensou se era a melhor coisa a fazer.  E se não conseguisse corresponder ao que Diogo sentia? Não podia magoá-lo. Pensou em recuar e seguir seu caminho.
Puxou a mala até a porta de Diogo e hesitou em tocar a campainha.
O que direi a ele? “Pensei melhor e...” Não, não! “Diogo, acho que também estou apaixonada.” Acho? Apaixonada? Ridículo!
A porta simplesmente foi aberta e ele apareceu em sua frente, com olhos lacrimejantes e um sorriso lindamente desconsertado.
— Diogo? — fefinitivamente não sabia o que dizer. Talvez inventar que havia esquecido alguma coisa.
— O apartamento ficou tão vazio sem você! — comentou Diogo, deixando que uma lágrima escorresse.
Nunca pensou que ficaria tão nervosa, com a boca seca e as mãos trêmulas.
— Aquele jantar ainda está de pé? — Laura procurou disfarçar o nervosismo.
Diogo abriu o sorriso, tomou-a nos braços e olhou-a profundamente em seus olhos. Em seguida, beijou-a com todo o amor que a vida lhes reservou.
Finalmente, Laura começava a juntar os pedaços deixados pelo caminho e dispunha-se a ser feliz mais uma vez.


78


A água do mar de Iracema banhou os pés de Thomás no instante em que se aproximou da beira da praia, lavando os últimos resquícios de um homem machucado pelo destino. Dobrara a calça até a altura do joelho e carregava as botas nas mãos, caminhando em direção ao pôr-do-sol, que se formava imponente por trás da Ponte dos Ingleses.
— Thomás?a voz não viera de muito longe.
Ele parou e Saulo o acompanhou. Novamente estavam um de frente para o outro. Não tinha como não se recordar da rivalidade de uma vida inteira estabelecida pelo irmão.
— O Diogo me disse que te encontraria aqui. — Saulo parecia ter ensaiado aquilo diversas vezes. O tom de artificialidade quase o fizera rir.
— Pensei que estivesse se preparando para a viagem. — disfarçou Thomás.
— Tudo já está pronto. — Saulo confirmou. — Parto amanhã para a Itália. Ficarei por tempo indeterminado, cuidando do centro do Chiamare em Roma, enquanto Lucas e Diogo assumem a obra aqui. Achamos melhor assim. — os dois ficaram um pouco em silêncio e Saulo continuou. — Viu a matéria da Laura? — estendeu-lhe um exemplar da revista Notícia, com uma fotografia de capa da missão nas ruas de Fortaleza.
Thomás recebeu o exemplar e focou a manchete.
Os verdadeiros Pescadores de Vidas.
— Ela é ótima. — foi seu único comentário.
— Sim. A tônica da reportagem é sobre o carisma e a mística do Chiamare, bem como as novas perspectivas da obra.
Thomás o observou direito e viu que a imagem impecável no jeito de se vestir do irmão não se fazia mais presente. Ele estava mais leve, mais solto. Ainda elegante, mas bem diferente.
— Vejo que alguma coisa mudou em você — Thomás comentou.
Saulo mordeu o lábio, pareceu conter um choro e depois sorriu.
— O tempo naquele galpão parece que mexeu aqui dentro, sabe? — tocou no próprio peito. — Fez-me valorizar outras coisas.
Ambos pareciam perdidos no diálogo. Thomás não sentia a menor intimidade com o irmão, talvez certo incômodo. Um completo estranho, apesar de estar diante do próprio reflexo. 
— E eu ia te pedir desculpas pelo que fiz. — anunciou Thomás, meio sem jeito.
— Não peça. Mesmo sem saber, você acabou me ajudando. — Saulo apoiou as mãos no quadril e desviou o olhar para o mar. Thomás percebeu que ele começou a chorar. — Sabe, Thomás, durante essas semanas que passaram, após descobrirmos a verdade, eu fiquei pensando numa forma de... — a voz foi embargada pelo choro. — dDe te pedir perdão.
Esperou doze anos por aquilo. Mais uma vez Deus veio lhe falar ao coração. Procurou ouvi-lo atentamente, embora que também tomado pela emoção.
— Mas não encontrei nenhuma. — continuou Saulo. — Pelo simples motivo de não existir uma forma para isso. — finalmente Saulo o encarou. — Sempre soube de muitos absurdos cometidos pelo Dr. Juca para transformar o Chiamare no que ele é hoje. Contudo, não imaginava que ele estivesse por trás da sua prisão. Você foi roubado do convívio de quem amava, exilado do espaço construído sob a ideia do seu chamado, acusado das maiores barbaridades, achincalhado, violentado, traído e... abandonado. Hoje me dói profundamente saber que liderei essa conspiração! Embora não soubesse da verdade, foi mais fácil, mais cômodo acreditar que era culpado, sem dar a você o benefício da dúvida. Como se o destino tivesse me vingado, sabe? Eu sempre senti inveja da relação do Diogo com você. Achava que vocês me desprezavam.  E isso me matava aos poucos. Descobrir que você era aquele monstro, foi de certa forma, prazeroso. Isso faz de mim uma pessoa pequena, suja, monstruosa!
— Já passou. — interrompeu-o.
— Não! Está aqui dentro. — Saulo bateu com força na altura do coração. — E eu vou precisar de um tempo muito... muito grande para me perdoar!
Saulo não compreendia que para Thomás aquela atitude já apagava tudo.
Sentiu-se bem-aventurado por tê-lo de volta! Simplesmente, estendeu os braços em sua direção e esperou que viesse. Era como se vissem a própria figura em sua frente, chorando pela alegria do retorno. Saulo aproximou-se devagar e acomodou-se nos braços do irmão. Um chorou no ombro do outro.
Parecia passar um filme na cabeça de Thomás.
Percorri estradas tortuosas conhecidas apenas por Deus e o Diabo. Nelas, perdi-me tantas vezes, na busca do meu próprio coração esquecido em algum lugar. Esta foi a minha cruz, constituída por dores dilacerantes e esperanças não assumidas, as quais me encheram de vida e possibilitaram-me suportar o tempo de crucificação que me coube, guiando-me de volta a me encontrar.
A fé me acompanhou a todo instante, dela nunca me separei, apenas tratei de escondê-la para que também não se dissolvesse junto à crença no ser humano. Esta última me foi dada de volta, no momento em que percebi que o abismo estabelecido entre a minha alma e o mundo material se formava de dentro para fora e não o contrário.
— Me perdoa, meu irmã. — murmurou Saulo, enquanto experimentava o afeto em seu colo.
Entretanto, não havia mais nada a ser perdoado.


Epílogo


Semanas depois...
Numa manhã chuvosa, Thomás aguardou ansioso, na cabine da caminhonete, que Juscelino aparecesse no portão do presídio. Foi quando surgiu, em meio ao movimento vertiginoso dos limpadores do pára-brisa, a figura de seu companheiro, encharcado, carregando uma tímida mochila a tiracolo, em direção ao carro. Nem teve tempo de se aproximar um pouco mais, a fim de que não se molhasse. Quando menos esperou, a porta do veículo foi aberta e o sorriso largo de Juscelino se misturava à água que caía dos céus. 
— Bem-vindo de volta ao lado de cá. — recepcionou-o, retribuindo o sorriso.
Juscelino entrou e fechou a porta ao seu lado.
— Para onde vamos? — ele procurou saber, parecendo apreensivo.
— Quero que conheça um lugar. — Thomás revelou e tratou de se apressar.
Em menos de uma hora, entraram no vão de uma casa vazia, no Bairro de Fátima. Tratava-se de uma construção dos anos setenta, um espaço de 520m² de área construída, paredes brancas e grandes janelões de vidro do chão ao teto que davam para o jardim afogado na chuva que caía lá fora. Tudo estava limpo e o piso encerado de tábua corrida brilhava, refletindo a imagem dos dois.
— O que achou? — Thomás estava ansioso.
— É um espaço maravilhoso. — comentou Juscelino, com um jeito curioso.
— Sério? Gostou mesmo?
— Sim. Mas por que me trouxe aqui?
Thomás deu uma volta no ambiente antes de responder.
— Esse espaço é nosso. Aqui será a sede da Fundação Pe. Giuseppe Giordano. — anunciou com alegria e braços abertos, apresentando o local.
— Como assim, Thomás? Que instituição é essa?  
Aproximou-se de Juscelino e olhou-o com firmeza e ternura.
— Você me ensinou que a liberdade transcende os muros da prisão. Aprendi nesta convivência a arte de se saber em cada momento. Foi o que me manteve vivo nos últimos doze anos. — colocou as duas mãos nos ombros de Juscelino. — Sinto que meu chamado é ensinar o que aprendi aos irmãos. Evangelizar, fazer com que as pessoas encontrem a alegria de viver dentro das prisões. Foi para isso que estive lá dentro.
O outro parecia emocionado.
— Quer fundar um novo carisma, Thomás?
— Não posso fazer isso sozinho. Preciso de você!
Hoje percebo que o verdadeiro pecado reside na distância da centelha divina existente dentro de nós. É o que nos faz sofrer!
Juscelino o segurou pela nuca e ambos riram, com a mesma cumplicidade que entrelaçou suas almas. 
Thomás voltaria a pescar vidas, mas agora dentro dos muros da marginalização!

Fortaleza, 20 de março de 2015, tempo quaresmal.


Resenha por Andréia Regina Nogueira Cruz


Qual é a sua casa dos Anjos?
Essa pergunta aparece quase no fim do livro, mas te faz pensar muito...
O livro conta o drama de quatro mulheres que tem suas vidas, de certa forma, interligadas, apesar de uma e outra não se conhecerem.
Júlia é a personagem "central", que tem a filha de 1 ano desaparecida. Marina é uma mulher apaixonada e submissa. Celina, uma tetraplégica que não aceita sua condição e Clarinda, uma mulher que não se permite viver seu grande amor.
No começo foi meio difícil acompanhar as quatro histórias, porque quando voltava na personagem, eu tinha esquecido onde tinha parado, então voltava um pedacinho para acompanhar (eu tenho esse probleminha, eu esqueço as coisas muito rápido...). mas conforme as histórias vão se entrelaçando e você vai conhecendo-as melhor, você só quer saber mais e mais o que vai "rolar".
Basicamente, uma história de encontros, principalmente o de si mesmo. E vou te falar que fiquei com a maior vontade de conhecer um pouco mais sobre Biodança e praticá-la.
Quanto ao nome do livro, ele se deve a uma "casa" que Celina ganhou ainda na infância, onde guardava seus desejos, mas também...(leia o livro...rsrsrs...).
Eu acabei descobrindo, acho, a minha. Eu queria muito ler esse livro, mas acabei "enrolando", demorando a ler e acredito que acabei lendo-o na hora certa. Sabe quando você lê algo que parece ter sido escrito pra você? Pois é, eu me vi em determinados "sentimentos" e pela primeira vez, depois de muito tempo, resolvi exprimi-los e OMG, foi tão bom, me senti tão mais leve e feliz...
Então só posso dizer que gostei muito do livro...
Fica a dica...
Bjos!!!

Resenha por Jailson Batista


Quando eu comecei a ler o livro “A Casa dos Anjos” eu me deparei com o seguinte: 4 histórias sendo contadas por 4 narradoras diferentes. A princípio eu achei que isso atrapalharia a leitura e até mesmo o desenrolar da história. Porém o que aconteceu foi exatamente o contrario, na verdade ajudou. As historias se cruzam e é isso o que dá o algo mais a trama. A maneira que elas se encaixam é importante para entender melhor o enredo. Quando terminei de ler o livro e vim fazer a resenham relembrando fatos, me senti como se não fosse um livro que eu tivesse lido, mas sim uma novela que eu tivesse assistido. Original, essa é a palavra. Acredito que o Autor Antonio Rondinell quis mostrar os conflitos que temos, conflitos que nos mostra nossa verdadeira face. Lembro que li em algum lugar a frase: “A dor é suportável, exceto para quem a sente” e o livro mostra um pouco disso, um pouco de como lidamos com nossos sofrimentos. No aspecto físico dou destaque à capa, suave e encantadora, assim como a história.

Agradeço ao Autor Antonio Rondinell (Que mora aqui do lado :]) por ter cedido um exemplar do livro para resenha, espero que ele continue escrevendo (já estou sabendo de novos projetos :D) e nos agraciado com suas histórias.

Abraço e boa leitura.

Comentério do Leitor


A leitura de A Casa dos Anjos foi perfeita, o conteudo maravilhoso, me fez resgatar o habito que havia perdido. Estamos esperando ansiosamente pela segunda edição, deixou um gosto de quero mais. São historias que nos envolvem vivenciando as alegrias, tristezas e força de vontade de superar os problemas que surgem no decorrer de nossa caminhada como ser humano. Pra mim foi perfeito, e que venham logo as proximas ediçoes.

Vanessa - Leitora

Comentário do Leitor


"O livro é escrito com uma riqueza de detalhes que em muitos momentos me sentia sugada pelas cenas descritas. Era como se presenciasse aquele momento narrado, sentisse o que era dito pelas personagens. Ele envolve, seduz de uma forma tão sutil que quando você menos espera não consegue se separar querendo saber o desfecho da história. Vale a pena comprar e aceitar este convite a leitura."

Ticiana Otoch Moura - Psicóloga


Comentário do Leitor


Gostaria de parabenizá-lo pelo seu sucesso nacional. Li todo o livro e realmente é muito bom. Para quem tem sensibilidade, ao ler um livro como A Casa dos Anjos, descobre os valores de sua vida e da vida do próximo, avalia sua posição diante das dificuldades e porque não das facilidades, passando a valorizar a vida independente de sermos apreciados pelo outro. Descobri a importancia do ser, independente do ter. Nos convida a fazer uma reflexão dos nossos valores, atitudes e escolhas. Minha nota é 10. Parabens, um forte abraço.

Odília Gondim - Economista Doméstica e Educadora.



Comentário do Leitor


"A leitura de A casa dos anjos foi deveras prazerosa para mim, sobretudo pelas peculiaridades que me levaram ao livro: ter no escritor um amigo querido; a estória ambientada em Fortaleza; a narrativa de cada uma das quatro mulheres que me remetem a situações vividas em algum momento da vida. De fato, nunca levei a termo uma leitura de forma tão determinada como fiz com este livro, e o motivo era muito simples, a cada página que folheava sentia-me convidada, mais que isso, sentia-me instigada a continuar e continuar e continuar, e lia avidamente. No dia que conclui a leitura percebi que jamais havia lido um livro com tamanha empolgação e curiosidade que me acompanharam desde a primeira até a última página, foi uma experiência realmente fascinante e única para mim. Percebi também que, inexplicavelmente, sentia-me ligada aos personagens como se em algum lugar eles me aguardassem para continuarem suas vidas, como se eu fizesse parte da história deles ou quem sabe eles da minha... Já havia ouvido falar em “depressão pós livro”, mas só agora pude compreender do que se trata isso, não só porque chorei na leitura das últimas páginas, mas em especial pela enorme saudade que sinto de Júlia, Marina, Celina e Clarinda."

Norma Sampaio - Economista e Facilitadora de Grupos

Comentário do Leitor


"A Casa dos Anjos é um livro fascinante que nos instiga a mergulhar no universo de quatro mulheres, seus conflitos, sentimentos, numa busca que nos convida a refletir e a dialogar sobre felicidade, ética, valores, esperança, verdade, vida, amor. È um livro fantástico, emocionante que nos convida a ser,a sonhar e a viver quando sentimos a força, a dor, o vôo de liberdade, a doação, o amor de cada uma das personagens. Convido você a ler este livro e dialogar com cada uma destas mulheres."

Luciana Nogueira - Educadora / Licenciada em Letras


Comentário do Leitor


"Nunca tinha lido uma síntese da vida e do seu sentido, do nosso destino e das nossas possiblidades, permeado de cautela em relação aos nossos erros e acertos que podemos cometer nesse emaranhado que a vida e os nossos relacionamentos como A Casa dos Anjos. O livro tem passagens marcantes e tocantes. Júlia Serrado, Marina Pessoa, Celina Gondim e Clarinda de Holanda são mulheres que me habitam. Muitas vezes me sinto "tetraplégica", pelo medo de enfrentar a minha essência. Júlia Serrado me remete à Deusa grega Perséfone, ao ter sua filha sequestrada para o mundo avernal de Hades, o mundo do inconsciente e também da sombra, que muitas vezes me impedem de ver a luz. Perséfone é muito intuitiva e tem muita sabedoria, mas é preciso vigilância... Enfim, este livro é um convite a buscar a nossa essência, e vai além do Ter e Ser. Quem tiver oportunidade de ler, com certeza vai abrigar este espírito, a mente e o coração.
Obrigada, Rond."

Maria do Rozário de Oliveira - Psicóloga e Educadora.

 
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